Dossiê
Performances com musicares enquanto performances de existência
Musicking
performances as performances of existence
Revista Orfeu
Universidade do Estado de Santa Catarina,
Brasil
ISSN: 2525-5304
Periodicidade: Semestral
vol. 7, núm. 2, 2022
revistaorfeu@gmail.com
Recepção: 12 Maio 2022
Aprovação: 13 Julho 2022
Autores mantém os
direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação.
Este trabalho está sob uma Licença Internacional
Creative Commons Atribuição 4.0.
Resumo: Este texto
se estrutura como uma interface entre as áreas de Performance e de Educação
Musical. O seu objetivo é apresentar a ideia de Performances com Musicares
enquanto Performances de Existência. A ideia de musicar faz referência à
concepção de Christopher Small (1999). O texto faz parte de uma pesquisa de
Doutorado em andamento que se realiza por meio da etnografia, a autoetnografia
e a cartografia como métodos de trabalho. A investigação contou com a pesquisa
de campo, sendo realizadas entrevistas on-line com doze professores de
violoncelo de oito espaços musicais de ensino e aprendizagem de estudantes
iniciantes no Brasil. Entre os resultados apontados pela investigação, se
incluem a ideia de que as performances se estruturam sobre contextos
sobrepostos e dialógicos. Como reflexões, a pesquisa aponta que as performances
com práticas musicais podem ser interpretadas como processos pedagógicos de
representação de formas de existir que se ampliam à vida cotidiana.
Palavras-chave: Performances, Performances
musicais, Performances com Musicares.
Abstract:
This text is structured as an interface
between the areas of Performance and Music Education. Its objective is to
present the idea of Musicking Performances as Performances of Existence. The
idea of making music refers to the conception of Christopher Small (1999). It
is part of an ongoing Doctoral research carried out through ethnography,
autoethnography and cartography as working methods. The investigation relied on
field research, with online interviews being carried out with twelve cello
teachers from eight musical teaching and learning spaces for beginning students
in Brazil. Among the results pointed out by the investigation, there is the
idea that the performances are structured on overlapping and dialogic contexts.
As reflections, the research points out that performances with musical
practices can be interpreted as pedagogical processes of representation of ways
of existing that are extended to everyday life.
Keywords:
Performances, Musical Performances,
Musicking Performances.
Abertura
O objetivo deste texto é apresentar a ideia de Performances com
Musicares enquanto Performances de Existência, com base em uma pesquisa de
Doutorado em andamento que se realiza na Universidade de São Paulo desde o ano
de 2019. O Programa de Pós-Graduação do qual ela faz parte engloba distintas
Linhas de Pesquisa, sendo que na linha Questões Interpretativas cabem
investigações com demarcações não tão rígidas. Dessa forma, ao nela situar-se,
constitui-se como uma interface entre as linhas mais recorrentes de Performance
e Educação Musical
A ideia de Performances com Musicares enquanto Performances de
Existência é uma possibilidade de olharmos para as atuações de professores de
instrumento performers, ampliando a concepção sobre elas e considerando os
professores enquanto propositores. Dialoga, diretamente, com duas abordagens
que também são desenvolvidas na investigação: a de Professor Propositor
Performer e de Docência de Instrumentos Musicais enquanto Linguagem Artística e
Expressiva. É abordada em ressonância com autores que concebem as performances
como práticas artísticas e em sua visão antropológica, ou seja, como práticas
sociais de atuação no mundo.
Este texto, como parte da pesquisa em andamento, utiliza-se dos
mesmos métodos de investigação nela abordados. A pesquisa se coloca ao lado de
investigações qualitativas que concebem que mais de um método pode ser usado,
simultaneamente. São adotadas propostas da etnografia, da autoetnografia e,
ainda, da ideia de cartografia.
A concepção de etnografia tem como base as considerações do
antropólogo colombiano Eduardo Restrepo
(2016). Para esse pesquisador, a etnografia pode ser definida como a descrição
de uma prática segundo a perspectiva de seus praticantes. Dessa forma, são
relevantes para a pesquisa tanto as práticas quanto os significados atribuídos
a elas por seus praticantes (RESTREPO,
2016, p. 16). A ideia de autoetnografia, como parte do processo
etnográfico, é concebida segundo Silvio
Matheus Santos (2017). Esse pesquisador argumenta que a abordagem se trata
um relato sobre um grupo de pertencimento a partir de si mesmo, ou seja, a
partir da ótica daquele que escreve (SANTOS,
2017, p. 218). Nesse caso, a autora principal deste texto se inclui no
grupo pesquisado, aportando reflexões recentes e memórias de experiências
vividas.
A abordagem de cartografia se inspira nas considerações de Suely Rolnik (2016). A autora considera
que as paisagens psicossociais também são cartografáveis assim como as
paisagens geográficas. Elas indicam movimentos de transformação, em contraponto
à noção estática de mapa. As cartografias psicossociais apontam o desmanchar
das subjetividades que não fazem mais sentido na contemporaneidade de suas
existências e a sua transformação e construção de novas subjetividades, sempre
de maneira contínua (ROLNIK, 2016, p. 23).
Em alusão a essa concepção, propomos a cartografia de musicares, ou seja,
acompanhar o desmanchar e a germinação dos musicares que habitam os momentos
presentes das atuações dos professores performers envolvidos na investigação.
Para a análise que desenvolvemos neste texto foram consideradas
as interlocuções realizadas com doze professores de violoncelo de alunos
iniciantes de oito espaços musicais das regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e
Sudeste do Brasil. Os espaços foram escolhidos por sua relevância e pelo
efetivo interesse de seus representantes em participar da investigação. O termo
espaço musical é utilizado por ser capaz de abarcar uma série de propostas,
apesar de suas especificidades, como por exemplo, projetos sociais, escolas de
música, institutos, entre outras. No entanto, pensamos essa ideia mais além do
contexto geográfico. Pensamos como espaços territórios, considerando as pessoas
e coisas que neles circulam, as intersecções com as realidades nas quais se
encontram e todas as referências e influências transitórias ou permanentes,
imagéticas ou concretas. No contexto da pesquisa, que incluiu o período da
pandemia de Covid-19 entre 2020 e 2021, no qual as atividades se transferiram
para o formato de Ensino Remoto Emergencial4, os
espaços musicais transbordaram para os espaços virtuais e a investigação foi
realizada de forma on-line.
Como formas de produção de dados foram realizadas entrevistas
com os professores e coordenadores pedagógicos, foram analisados os planos de
aulas e foi realizada a observação das práticas docentes dos professores. As
interlocuções aconteceram durante as entrevistas e observações das aulas, mas
também em outros momentos, como trocas de mensagens e e-mails. Os dados
coletados conversam com as abordagens dos autores estudados que embasaram a
utilização da ideia de Performances com Musicares enquanto Performances de Existência
e possuem ressonância com as vivências da primeira autora do texto, como
professora de violoncelo e pesquisadora. As falas selecionadas se constituem
como um duplo falar, através de vozes polifonicamente sobrepostas que
estabelecem traçados coletivos apontando caminhos em devir.
Neste texto, a fim de evidenciar as discussões abordadas e
enfatizar a possibilidade de percepção das Performances com Musicares enquanto
Performances de Existência, foram selecionados, nos dados produzidos, aspectos
relativos às atuações dos professores em suas aulas, em contraposição às suas
próprias ideias de música e musicares. Também foram abordadas as práticas que
eles consideram como fundamentais e que não cabem em suas abordagens diárias em
função dos sistemas de opressão que caracterizam as ficcionalidades vigentes da
realidade. Parte das suas histórias de vida e das suas subjetividades que são
contadas através das manifestações desses musicares.
Diálogos
O termo performance na língua inglesa é um substantivo associado
ao verbo to perform. A origem francesa, parfounir, indica o ato de completar, ou seja, de
realizar algo completamente. A tradução do termo para o português é,
geralmente, associada ao alto desempenho em determinada atividade, o que o
condiciona a ser utilizado em contextos industriais, maquinais, ou relacionado
a elevadas capacidades humanas. Por outro lado, ao ser adotado pela Arte, é
considerado um termo polêmico, contestatório, incompleto, contraditório, capaz
de designar uma gama de nuances e expressões artísticas (CARLSON, 2009, p. 11-12). Em função da Arte,
outras áreas vêm estudando e utilizando o termo performance, sobretudo a
Antropologia. Por meio desses estudos se amplificam as complexidades das
práticas que se nomeiam como tais e são traçadas similaridades entre elas e a
vida.
O ator e teórico Richard
Schechner (2006), ao lado do antropólogo Victor Turner, desenvolveu o que
denominou de Estudos da Performance. Os campos abarcados por esses estudos
concentram todas as vivências que podem ser entendidas sob o nome de
performance. Nessas vivências se situam as ações ou comportamentos do ser
humano na posição de se exibir frente a um outro sujeito, incluindo os eventos
da vida cotidiana. Os Estudos da Performance indicam que é possível compreender
que a existência pode se dar de diferentes maneiras e não apenas da maneira
como o sistema vigente determina para cada indivíduo, delegando a ele um
determinado papel em função da maior vantagem de subsistência do próprio
sistema.
Para Schechner (2006),
as performances são o que ele considera como comportamentos restaurados. Esses
comportamentos são ações que contam estórias e que permitem ensaios e
elaborações de diferentes futuros, ou seja, ações duplamente experienciadas
(SCHECHNER, 2006, n.p.). Os comportamentos restaurados se situam “a parte do
eu”, se configuram como “eu me comportando como se fosse outra pessoa, como me
foi dito para fazer, ou como aprendi” (SCHECHNER, 2006, n.p.). Uma performance
artística seria, então, um comportamento duplamente restaurado, um duplo
ensaio, uma dobra da realidade. Para o autor, ao se auto investigar na
performance, o “eu” percebe que muitos dos seus comportamentos não foram
inventados por ele e que existem múltiplos possíveis “eus” em cada sujeito
(SCHECHNER, 2006, n.p.).
Augusto Boal (2009)
também apontava para a espetacularização das sociedades humanas. Considerava a
Arte como um processo de desvelamento das opressões às quais os sujeitos são
submetidos nas performances sociais (BOAL,
2009, p. 141).
Mesmo quando não conscientes, todas as
relações sociais na vida cotidiana são estruturadas como espetáculos nos quais
se exibem as relações de poder existentes entre os integrantes daquele segmento
social: o uso do espaço, a linguagem do corpo, a escolha das palavras e a
modulação das vozes, gestos e movimentos corporais, tudo que pode ser revelado
pelos sentidos denuncia relações de poder. Cada participante desses espetáculos
conhece o seu lugar, sabe o seu papel, com ele se conforma, ou tenta
modificá-lo segundo as armas de que dispõe. Uma das principais funções e
poderes da Arte é revelar, tornar sensíveis e conscientes esses rituais teatrais
cotidianos, espetáculos que nos passam desapercebidos, embora sejam potentes
formas de dominação (BOAL, 2009, p. 141).
As propostas de Boal, que fazem parte das abordagens do Teatro
do Oprimido, são experiências artísticas que conversam com as ideias de Paulo
Freire. Entre essas ideias destacamos a concepção do autor de que nas
estruturas sociais existem opressores e oprimidos. Os opressores, favoráveis a
manutenção de estruturas de dominação, retiram dos oprimidos a consciência da
sua condição humana, o que Freire denominou de desumanização (FREIRE, 2019, p. 40-41). Os oprimidos
acabam por acreditar que não possuem tal condição, desconsideram seu papel como
agentes culturais em transformação contínua. Ao recobrar sua humanidade, o que
o autor chamou de humanização, as pessoas recobram seu poder transformador e
sua autonomia, deslocando-se da condição de oprimido (FREIRE, 2019, p. 40-41).
Para Boal (2009), quando
um sujeito singular desempenha determinados papéis na realidade ficcional,
esses papéis constroem e impõem sobre ele determinados engessamentos corporais,
determinadas “máscaras sociais de comportamento” (BOAL, 2009, p. 145). Uma das primeiras
abordagens da sua proposta são exercícios que auxiliam a tornar conscientes e a
desfazer as estruturas musculares encarnadas pelas máscaras mais frequentes das
performances que cada singularidade desempenha na sociedade espetacularizada (BOAL, 2009, p. 146). Para ele, se uma
pessoa é capaz de desmontar suas estruturas musculares, será capaz de montar
outras estruturas, próprias de outras performances. Assim poderá, no teatro e
na vida, “interpretar” personagens diferentes dos que têm construído e aceito
para si (BOAL, 2009, p. 146).
Educadores também vêm apontando considerações sobre a
Performance, o que a Educação poderia aprender ou potencializar em si própria
com essas práticas, ou mesmo, pontos que elas têm em comum e que, algumas
vezes, passam desapercebidos e são enfraquecidos. Elyse Pineau (2010) trabalha sob a ótica
da pedagogia performativa dialogando com as práticas de educação libertadora
proposta por Paulo Freire. Nessas práticas, Freire (2019) associava a educação
reflexiva com a ideia de libertação das opressões. Segundo essa concepção, se
não aflorado o pensamento reflexivo nos processos pedagógicos, os oprimidos
tendem a querer tomar o lugar do opressor e manter os mesmos sistemas com
outros personagens (FREIRE, 2019, p. 44).
Pineau (2010) enfatiza
que a sala de aula é um espaço potente onde os corpos performatizam seus
valores sociais, sendo, assim, um espaço igualmente potente para a
experimentação e para o ensaio de novas performances que podem se estender para
outros espaços da existência desses corpos (PINEAU,
2010, p. 109).
Ao prestar atenção não apenas ao que o corpo
faz em sala de aula, mas a que significados e valores sociais responde esse
corpo, a pedagogia performativa pode intervir nos rituais da escolarização
sobre os quais não pensamos. A sala de aula pode se transformar naquilo que
Ernst Boyer chamou de cenário de renovação do eu e do social (1994), de tal
forma que professores e estudantes possam ensaiar modos mais equitativos,
envolvidos e passionais de ser e comportar-se. Além do mais, uma vez que a performance
é sempre incompleta, contingente, permeável e reativa aos momentos vividos, uma
vez que se desdobra na companhia dos outros, ela nos permite atravessar e pôr
abaixo ilusões acerca da aprendizagem como algo isolado, linear, cumulativo e
disponível à avaliação empírica (PINEAU,
2010, p. 104).
Marcelo Pereira (2013) argumenta
que os sujeitos absorvem progressivamente padrões de existência estabelecidos
pela cultura e pelas formas de saber engendradas pelos próprios mecanismos
culturais. Essas formas levam consigo os germens de sua atualização, permitindo
sua manutenção ou subversão (PEREIRA, 2013,
p. 27). O autor acrescenta, também, que a Performance utiliza a
representação como modo de neutralização das cenas sociais e culturais já
naturalizadas, sendo assim, considera a Performance uma arte metalinguística (PEREIRA, 2013, p. 30).
Gilberto Icle (2013)
destaca que um dos temas fundamentais para a Educação sobre o qual a
Performance trabalha, é a possibilidade de pensar para além das demarcações
compartimentalizadas de especificidades, horários e hierarquias de
conhecimentos dos currículos que se circunscrevem em campos de saber e,
consequentemente, de poder (ICLE, 2013, p.
14). Segundo o autor, os modelos de currículos, tanto os formais quanto os
existentes em processos culturais, “silenciam tudo aquilo que está fora do
modelo-padrão mais aceito e hierarquicamente colocado como o normal” (ICLE, 2013, p. 19). Em contrapartida, as
performances se apresentam como experiências coletivas, as quais rompem com a
ideia de pensar os conhecimentos como processos individuais. Nas performances
como conteúdo não programado, sem currículos a serem cumpridos, como forma de
intervenção na vida, deixa-se de reproduzir os comportamentos socialmente
esperados.
Outro ponto enfatizado pelo autor é a ideia do corpo como lócus
da experiência. Segundo ele, a aparente separação entre corpo e mente é
desfeita na performance, colocando o corpo no centro da atividade. Ele enfatiza
que “Performance e Educação se fazem no corpo, com o corpo e para o corpo”,
pensando-se, também, em um corpo compartilhado, “partilhado na ação de fazer e
olhar, interagir e reagir”. Para o autor, “não há Performance sem o olhar do
outro” (ICLE. 2013, p. 21).
A Música tem abordado timidamente as nuances dos significados
que o termo e as práticas de performance evocam, geralmente, adotando-os como
previamente compreendidos e como sinônimos do ato de cantar ou tocar um
instrumento. Algumas vezes, ainda, associa essas práticas a altos níveis de
habilidades específicas dos músicos. Assim, deixa de lado as contradições,
fricções, uma vasta gama de variabilidades e de percepções que o termo e as
práticas abarcam, além das próprias subjetividades dos performers. Dessa forma,
a pessoa do performer é fraccionada e as habilidades musicais são percebidas
como um dos fragmentos que a compõem.
Autores como Edward Cone
(1968), Eero Tarasti (2019) e William Rothestein (2019), no entanto, vêm
reforçando que as atuações dos performers de práticas musicais se conectam às
práticas teatrais. Os autores apontam o caráter narrativo da música,
considerando as atuações dos músicos/performers como escolhas de narratividade.
É possível, também, acrescentar e pensar essas atuações e escolhas como parte
de uma narratividade ficcional da realidade, e não apenas como narratividade
musical, conforme sustentam os autores.
Cristopher Small (1999) argumenta
que a pessoa do performer é neutralizada quando se considera a música como
produto elaborado por um compositor, tendo os ouvintes como destinatários. Small (1999), ao contrário, considerando a
música como atividade produzida por um grupo de pessoas, adota o termo musicar.
Concebe essa atividade como processo relacional que envolve uma trama de ações
que traduzem pensamentos e formas de conhecer e imaginar o mundo (SMALL, 1999, p. 2-3). Assim, para ele, os
significados de uma performance se configuram nas relações que se estabelecem
entre os sons e entre as pessoas que nela se envolvem, que se conectam com as
relações que estabelecem no mundo, de maneira mais ampla (SMALL, 1999, p. 6-7).
A ideia de Performances com Musicares se constitui em pensar as
performances com práticas musicais sob múltiplos aspectos, sem desconsiderar
sua colocação na realidade ficcional das existências. Aparentemente, o termo
pode apresentar uma redundância, por considerarmos tanto as performances quanto
os musicares como relacionais e, possivelmente, sinônimos, porém, torna-se
plausível assumi-la no intuito de enfatizar as nuances dos termos e das
práticas. Dessa forma, é possível perceber suas potências de manutenção e de
transformação das configurações ficcionais, entender como se movem nos sistemas
vigentes de hierarquias de saberes e poderes, traçar e realizar escolhas de
atuação corporificada. Se constituem, então, como processos pedagógicos de
representação de formas de existir, que se ampliam à vida cotidiana.
Assim, as Performances com Musicares dos professores assumem o
lugar de proposição, em ressonância com as concepções de Lygia Clark, e a
docência se constitui como expressão artística. Para Clark, as proposições são
constituídas pelo ato performático, pelo movimento artístico, diferente da
ideia de obra, da constituição de algo pensado como um resultado final
destinado à exibição. O propositor abdica temporariamente de sua personalidade
e auxilia o participante “a criar sua própria imagem e a atingir, através dessa
imagem um novo conceito de mundo” (CLARK,
1965, p. 28). Trata-se, nas palavras de Clark
(1965, p. 28), de “propor aos outros de serem eles mesmos e de atingirem o
singular estado de arte sem arte”. Não é a participação pela participação, mas
é necessário imprimir um sentido ao gesto. Segundo Clark (1965), o ato deve ser
nutrido por um pensamento que desvele que as ocorrências do processo evidenciam
a liberdade de ação dos participantes, a necessária posição de não neutralidade
(CLARK, 1965, p. 28).
A ideia de docência como processo artístico e expressivo tem
sido utilizada nas Artes Visuais para colocar a prática docente entre as demais
formas de expressão. Nesse caso, a Arte e a Educação se encontram sem
necessariamente se configurar como duas propostas distintas, ou mesmo como uma
proposta híbrida. Em analogia a essas ideias, na Música não caberia a
compartimentalização das subáreas de Performance e de Educação Musical. A
docência se constitui, então, como ato performático com musicares,
especificidade artística e forma de expressão estética.
Percursos
As entrevistas com os interlocutores aconteceram em forma de
video-conferências entre o segundo semestre de 2020 e o primeiro semestre de
2021. Foram transcritas em um caderno com paginação à parte no segundo semestre
de 2021. A transcrição das aulas ocorreu durante a observação, também no
segundo semestre de 2021. Foi realizada de forma on-line, sendo que foi
produzido um caderno de campo digitalizado. As análises desse material ocorreram
apenas em 2022, também com um intervalo temporal. Além disso, foi realizada,
também em 2022, uma análise preliminar do material documental. O tempo
transcorrido entre a realização das entrevistas e suas respectivas
transcrições, entre a observação das aulas, e entre as análises preliminares
dos dados produzidos possibilitou um maior distanciamento, outros
atravessamentos e debates, outras percepções das linhas de força entre os
interlocutores e os pesquisadores.
Os objetivos iniciais das entrevistas eram conhecer quais os
princípios adotados pelos professores para elaborar as atividades pedagógicas,
como eles se relacionam com esses princípios e como são aplicados nas
atividades das aulas de violoncelo. Também se desejava conhecer as formações
dos professores, seus musicares e suas ideias sobre música, educação e
performance. A observação das aulas teve como objetivo entender como os
professores realizam suas atividades em contato com os estudantes, como aplicam
os princípios dos espaços nos quais atuam e se conectam suas visões sobre
educação musical, música e seus musicares com suas atuações. Já a análise
documental teve como objetivo entender quais os princípios dos espaços musicais
que direcionam a escolha das atividades e do repertório que são desenvolvidos
com os estudantes, quais as ideias de música e musicares que adotam, quais os
seus principais enfoques pedagógicos, e quais as suas principais linhas de
abordagem.
As considerações realizadas pelos professores nas entrevistas
nem sempre coincidiam com suas abordagens efetivamente empregadas e com as
propostas de seus planos de aula ou súmulas curriculares. Algumas vezes, eles
demonstravam estar conscientes da distância existente entre elas, agregando em
suas falas ideias de propostas futuras, propostas utópicas, demandas não
atendidas, outras vezes, aparentavam não perceber essa desconexão. Segundo Restrepo (2016), é importante entender
que as distâncias podem existir, tanto entre o que se pratica e o que se diz
que se pratica, quanto entre o que se pratica e o que se diz que deveria se
praticar. Essa compreensão implica em perceber como as pessoas apresentam o que
realizam frente aos outros, o que se constitui em uma importante fonte de
conhecimentos em relação aos sentidos da vida social e do “universo moral”
atribuídos por elas (RESTREPO, 2016, p. 30).
Em suas falas, os professores interlocutores ressaltaram
aspectos específicos em relação aos seus próprios professores. Um desses
aspectos diz respeito à imitação em suas atuações, realizadas por eles no
início de suas atividades como docentes. Este fator foi apontado como uma
deficiência dos sistemas de formação universitária ou de formação continuada,
já que consideraram que, durante sua formação, foram preparados para a prática
instrumental e não para dar aulas. Foi apontada também a concepção da
performance como dissociada da educação musical
Em suas falas, os professores interlocutores ressaltaram aspectos
específicos em relação aos seus próprios professores. Um desses aspectos diz
respeito à imitação em suas atuações, realizadas por eles no início de suas
atividades como docentes. Este fator foi apontado como uma deficiência dos
sistemas de formação universitária ou de formação continuada, já que
consideraram que, durante sua formação, foram preparados para a prática
instrumental e não para dar aulas. Foi apontada também a concepção da
performance como dissociada da educação musical:
Eu fui aprendendo na prática porque, na
verdade, toda a minha formação foi para performance, em nenhum momento eu tinha
pensado em educação. Pelo menos na formação inicial, nos dez primeiros anos de
violoncelo, eu não tinha pensado nisso, na educação. E a educação foi uma coisa
que veio por acréscimo, na medida em que eu ia me apresentando, e aí iam
aparecendo alunos, ou indicação de professores para eu lecionar para algum
aluno. E eu acabei aprendendo dessa forma, eu não fui direcionado para a
educação. Depois, eu acabei me interessando. Hoje em dia, eu até faço um curso
de Licenciatura em Música, então, foi uma formação a posteriori, primeiro veio
a performance (Professor 6, p. 31-32).
Outra abordagem levantada diz respeito aos professores
considerarem como referências para suas aulas os seus próprios professores de
violoncelo ou outros professores desse instrumento com os quais conviveram,
mesmo que adotando abordagens diversas. Dos doze professores entrevistados,
oito deles responderam que seus próprios professores de violoncelo eram suas
principais referências, e sete enumeraram, também, outros professores desse
instrumento. As referências foram relatadas como atitudes e posicionamentos
sociais e éticos, além das propostas musicais:
Pelo lado humano desses três grandes seres humanos...o
Yo-Yo Ma eu não conheço pessoalmente, infelizmente, mas pela atmosfera que ele
transborda, para mim, ele é uma das minhas inspirações. E o Fabio [Presgrave] e
o Romain [Garrioud], porque antes deles serem dois grandes exemplos do que é a
excelência do violoncelo, que é algo que eu busco muito no meu estudo
diariamente, eles são, acima de tudo, grandes seres humanos e são pessoas que
estão sempre dispostas a ajudar os outros. Essa, para mim, é a principal
qualidade. Muitas vezes a pessoa toca muito bem e não tem isso, essa pessoa não
me interessa muito. E, muitas vezes, a pessoa não é o melhor violoncelista da
face da Terra, mas tem essa atmosfera. Eu gosto de estar perto dessas pessoas,
e não exatamente de quem toca trinta notas por segundo. Atualmente isso não é
tão importante para mim. Ser artista é muito mais do que ser tocador de
violoncelo (Professor 10, p. 60-61).
É interessante notar que, entre os professores citados como
referência, há apenas quatro mulheres, num universo de quinze professores,
sendo que desse total, quatorze são professores universitários. Entre os
interlocutores essa relação é equilibrada: de seis mulheres para seis homens. A
falta de referências femininas no contexto universitário também foi abordada
por uma professora interlocutora:
Eu vi que não tem mulheres aqui no Brasil, de
referência para mim, de representatividade. Mas assim, quando eu conheci a
Tecris [Teresa Cristina Rodrigues Silva], eu lembro que ficou claro para mim
como é estudar com uma mulher, como era diferente. Não no sentido da aula, mas
no sentido do que ela representa, por exemplo, ser uma mulher que passou trinta
anos na orquestra, que foi estudar fora, que fez doutorado, que tem filho, uma
mulher que conseguiu vários empregos, que conseguiu se envolver na música, teve
uma pesquisa, trabalha com música contemporânea, música antiga, toca bem, dá
aulas, tem pesquisa em história da música, então, e ainda é mãe, ainda é
ativista pelos animais. Então, para mim, ela foi minha primeira referência como
mulher mais próxima (Professora 7, p. 44).
Outro dado interessante é que, além dos professores, sete
entrevistados citaram violoncelistas performers como referências para suas
atividades docentes, sendo que desses sete, cinco citaram Yo-Yo Ma. Os demais
violoncelistas citados foram Mstislav Rostropovitch, Jacqueline du Pré, Sol
Gabetta, Kayami Satomi, Jaques Morelenbaum, Maria Clara Valle e Fredi Pupi.
Todos eles são performers exuberantes, que utilizam o instrumento de formas
distintas das comumente abordadas, que vão além das atuações nos palcos.
Para mim, o grande influenciador na minha vida
é o Yo-Yo Ma, com certeza. Ele é uma pessoa que me inspira em todos os
sentidos, de vida, com a música, e de querer levar a música para as pessoas,
fora do teatro. Ele tem muitos projetos ao redor do mundo inteiro, de unir a
música que ele faz com a música de origem dos lugares que ele vai, como já
aconteceu na África, na Ásia, em vários outros lugares, no norte da Europa
também, tipo, explorar a música de lá que não chega muito para a gente, fica
mais só por lá. E de didática, assim, além do meu professor, é claro, é o
professor Márcio Carneiro. Ele é um dos maiores professores na minha opinião,
de falar para o aluno sobre questões tão complexas, mas ao mesmo tempo de uma
maneira tão lúdica, tão simples, para trabalhar todos os âmbitos da vida do
aluno, não só a performance, mas no sentido de mudar, transformar a vida do
aluno (Professora 4, p. 16).
Apenas dois professores entrevistados citaram como referência o
nome de educadores musicais. Dois deles citaram Murray Schafer, um citou Keith
Swanwick e um citou a educadora brasileira Cecília Cavalieri França. Um
professor citou o Método Suzuki5 e outro citou a
proposta de ensino de instrumentos de cordas friccionadas de Paul Rolland6. Um professor, ainda, mencionou o compositor Johann
Sebastian Bach e outro, o compositor brasileiro Sílvio Ferraz. Um professor
também relatou que os seus estudantes são referências para a elaboração das
suas propostas de ensino. Uma professora reportou, também, um livro de Carlos
Pietro como referência imagética.
Foi recorrente o interesse dos professores em ouvir e tocar “música
popular”, a qual foi citada por onze dos doze professores entrevistados. Entre
eles, nove citaram a música popular brasileira. No entanto, quando relatavam
essas ideias, consideravam-se exceções, ou mesmo, apresentavam um certo receio
inicial em comentar sobre seus gostos musicais. Sete dos doze entrevistados
relataram que estimulavam os estudantes a tocar o que eles próprios escutavam,
especialmente “música popular”, mesclando esses repertórios com o selecionado
por eles. Nas aulas observadas, no entanto, esse fato não foi evidente, apenas
três professores trabalhavam repertórios sugeridos pelos estudantes.
Eu sou muito eclético. Eu gosto muito da
música popular porque na música popular eu vejo, no violoncelo, uma faceta de
cantor que, muitas vezes, na música erudita a gente perde por toda a
preocupação técnica que a gente tem. Às vezes, por nos preocuparmos demais com
toda a parte técnica do Concerto do Haydn em Ré, por exemplo, a gente deixa de
cantar essa melodia tão linda, tão característica que aparece em grande parte
do concerto. Quando eu toco música popular isso me permite cantar através do
cello, cantar com o meu arco (Professor 10, p. 61).
Apesar da preocupação em oferecer diferentes propostas musicais,
onze professores utilizam, de uma forma ou outra, o Método Suzuki em suas
aulas, apontando para a ideia de assegurar resultados de eficácia, o que
ressalta novamente a concepção de performance como o domínio de habilidades
específicas. Apesar disso, os professores citaram as propostas que gostariam de
incluir em suas aulas, propostas que se relacionam com suas ideias de músicas e
seus musicares. As mais recorrentes foram a incorporação da música brasileira
como repertório didático. Foram elencadas, ainda, as propostas de conceber a
música em sua visão antropológica, a inclusão de jogos e atividades de criação
e experimentação sonora, apreciação musical e acompanhamento de piano nas aulas
de violoncelo.
Ao relatarem essas ideias consideraram também alguns mecanismos
da realidade ficcional que impossibilitaram sua adoção. Entre eles, foi citada
a necessidade de realizar apresentações públicas de determinados repertórios
para que se mantenha o patrocínio e o funcionamento do espaço musical,
apresentações essas que não se conectam aos processos educacionais
desenvolvidos pelos professores.
A escola traz essa perspectiva da
criatividade, do aluno ativo, e a gente sente que existe uma dificuldade na
prática de fazer isso quando a gente está falando de ter um repertório
obrigatório no semestre, porque, muitas vezes, um repertório só para uma turma
de oito te demanda muito tempo. Então, uma aula de uma hora, duas vezes na
semana não é nada. Às vezes, eu acho um pouco triste nesse lado porque o campo
da criatividade ele acaba sendo deixado sempre de lado em detrimento da peça do
semestre. Eu acho que é isso que mais me inquieta, sabe? Porque eu queria
trazer um pouco mais da identidade deles... Eu queria trabalhar essencialmente
o criativo e deixar como segundo plano as peças padrão. É possível fazer isso, de
acordo com o que a gente tem de orientação, só que na prática a gente sente uma
certa pressão, pressão mesmo dos próprios patrocinadores porque querem uma
coisa pronta. Então, eu acho que esse é o ponto chave que me deixa um pouco
incomodada de não conseguir realizar (Professora 1, p. 4).
Também foi citada a ideia de formação orquestral como
obrigatoriedade prioritária acima os demais aspectos educacionais.
Eu dei aulas em projeto social por dois anos,
e eram aulas coletivas. Mas lá tinha muita dificuldade, de [conseguir]
instrumento. E quando tem um projeto social, tem muita música brasileira porque
como a gente está trabalhando com a comunidade, eles botavam. Então, até Anita
eles colocavam. Mas eu trabalhava muito voltado à orquestra que tinha lá. Era para
formar a orquestra de cordas e era sempre assim: o repertório. Tinha que
ensinar e era uma agonia. Tinha que ensinar a música para eles tocarem na
orquestra. Então assim, eu não escolhia, eu não tinha muito como escolher
(risos). Eu acho que tu já sabe tudo isso que eu estou falando, tu já deves ter
passado por isso, não? É aquela doidice de projeto social que a gente está em
prol de uma orquestra, é para formar a orquestra. E a orquestra está em prol de
um governo, de uma instituição, geralmente, uma prefeitura, um prefeito, um
governador, um estado (Professora 7, p. 43).
Apesar da ênfase que os professores colocaram sobre a “música popular”,
todos apontam que gostam de música de concerto, mas não apenas dela e nem de
todas as músicas de concerto. De certa forma, relatam se sentirem cansados da
suposta obrigatoriedade de escutar apenas esses estilos e gêneros de música.
Evidenciam que a procura e a prática de outros estilos acontece fora do
ambiente formal de ensino:
Eu tenho uma coisa curiosa porque quando eu
estudava repertório de instrumento eu ouvia muito repertório erudito para
cello, mas eu ouvia em função da minha prática porque eu precisava, por
exemplo, eu ouvia Haydn, ou o próprio Bach. Então, eu percebi, depois de um
tempo, que eu ouvia muito porque eu praticava, mas não era porque era um desejo
natural de ouvir essas peças. Isso me mostrou que eu poderia trazer outras coisas
que eu apreciava mais no instrumento para além das peças clássicas, eruditas.
Então, o que eu gosto de ouvir de verdade: música popular brasileira. Gosto de
ouvir Chico Buarque, bossa, enfim, mais esse popular mais raiz, digamos assim.
E eu gosto de trazer um pouco desse repertório para o instrumento. Quando eu
vou tocar, eu gosto de trazer um Chega de Saudade, trazer para o meu
instrumento. Eu acho que é mais ou menos essa linha que eu consigo juntar,
entre o que eu gosto de ouvir e o que eu gostaria de tocar no instrumento.
(Professora 1, p. 4)
O que eu ouço é MPB, eu tenho ouvido muito,
tanto sambas, bossas, músicas da cultura popular, tipo Siba, Elomar. Eu não sei
o gênero disso, mas essas são as coisas que eu tenho gostado de tocar, as
coisas que eu tenho procurado aprender no violoncelo, a como tocar ritmos,
percussões no violoncelo, claves de coco, essas coisas assim. Eu gosto de ouvir
também, de vez em quando eu ponho, músicas do século...não sei como, que nome
dar para isso, não é erudito, clássico. Música de concerto do século XXI. De
vez em quando eu gosto de colocar um Xenakis, às vezes tem alguma coisa do
Ligeti, às vezes eu ouço alguma outra coisa, sei lá, um Beethoven também. Mas é
mais difícil. São essas coisas, assim, com mais frequência. (Professor 2, p.
7-8)
Eu, atualmente, eu gosto muito de jazz.
Atualmente eu ouço bastante jazz. Música de concerto também, sobretudo, ópera,
balés, são as coisas que eu ando mais escutando atualmente. E música popular
brasileira também. (Professor 6, p. 34)
Música clássica eu gosto, claro, né? Eu amo
sinfonias. Tem coisas que eu gosto mais, coisas que eu gosto menos, também. Não
é só porque é clássica que eu gosto de tudo. Eu acho que todo mundo, né?
Porque, às vezes, só porque é música supercomplexa...eu acho um trabalho
incrível, mas eu não gosto de ouvir.... Existem inúmeras possibilidades e o
importante hoje para mim é eu me sentir bem ouvindo alguma coisa e eu conseguir
transmitir alguma coisa para as pessoas. Então, eu prefiro tocar O Cisne e a
pessoa realmente sentir o instrumento, sentir o som, prestar atenção no que
você está fazendo, do que tocar o 3º movimento do Concerto de Haydn em Dó maior
e não conseguir criar essa conexão com a pessoa. Então, isso para mim, hoje,
faz muita diferença. (Professor 5, p. 28)
Um professor especificou em sua fala as múltiplas performances
desenvolvidas pelos professores de espaços de ensino musical, sobretudo, os de
projetos sociais, performances que acabam sendo incorporadas às vivências dos
professores e naturalizadas como parte de suas funções, apesar de não existir
remuneração adequada para tais atribuições:
Claro que se nós pensarmos que o professor de
violoncelo é só violoncelista... Os projetos sociais não funcionam dessa forma.
Muitas vezes, o professor de violoncelo é violoncelista, ele é professor, ele é
arranjador, por exemplo, para essa aula que eu tive que fazer um arranjo para
os alunos tocarem em conjunto. Ele vai ser diretor artístico, ele vai ter que
imprimir partitura, ele vai ter que ir atrás de recursos, ele vai ter que ir lá
botar o projeto para funcionar, ele vai ter que ir atrás de alguma coisa
administrativa, por exemplo, compra de cordas, de arco, essas coisas, para o
projeto continuar (Professor 8, p. 47).
Apesar do envolvimento dos professores não foi percebido que
suas ideias de músicas e seus musicares são enfatizados nas súmulas
curriculares e planos de aula dos espaços musicais. Dessa forma, eles acabam,
em suas aulas, por pensar suas potências de atuação de forma reduzida e assumir
determinadas posturas e corporalidades confinadas à ideia laboral. A função
docente fica reduzida a reproduzir fórmulas, assumindo determinadas máscaras
sociais de comportamento. Igualmente, compartilham repertórios e atividades
que, muitas vezes, não fazem parte de suas rotinas e concepções musicais
propondo corporalidades alheias, também, aos estudantes envolvidos nas práticas
musicais.
Os professores citaram outras dificuldades, como a falta de
respaldo às suas funções nos contextos sociais dos quais fazem parte. Uma
professora, especificamente, relatou suas vivências no contexto da educação
básica:
Quando eu entrei na faculdade, eu entrei no
PIBID. Pois então, graças a deus eu entrei no PIBID, porque foi o lugar onde me
fez enxergar muitas coisas importantes sobre a questão da docência. E,
principalmente, ver um lado negativo que eu sempre soube, mas sabe quando a
gente meio tapa o olho? Que é você ser professora de música em uma escola
pública e não ter ferramenta nenhuma, nenhum material, nada. e nem é respeitado
pelos seus colegas. É tipo, as pessoas só acham que você é a pessoa que vai
distrair os alunos. “Ah! Brinca aí com eles! Canta aí com eles”. E não é isso.
A gente também está ali para ensinar, o nosso ensino também é tão importante
quanto português e matemática e assim por diante. (Professora 4, p. 14).
As perspectivas apontadas por essa professora contradizem a
idealização romântica e a fetichização da pessoa do músico, idealização
concebida pelo senso comum e absorvida, inclusive, por algumas pessoas da própria
área musical. Essa ideia considera o músico dotado de habilidades
extraordinárias e respalda a própria concepção de performance utilizada aberta
ou veladamente. Conforme vimos na pesquisa, a precarização das atividades
musicais se reflete, também, na área orquestral e leva muitos músicos a assumir
as funções docentes sem serem essas decisões deliberadas ou fundadas por suas
escolhas acadêmicas. A falta de mercado de trabalho nos ambientes orquestrais
pode ser facilmente compreendida quando observamos, por exemplo, que em 2021,
em um concurso da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA), 53 candidatos ao
cargo de violoncelista se inscreveram para disputar uma única vaga7.
A escolha por cursar as ênfases acadêmicas relacionadas ao
Bacharelado ou à Licenciatura em Música foi citada três vezes como sendo a
única opção possível na cidade onde os professores residiam, também como uma
opção não deliberada. Seis dos doze entrevistados cursam ou cursaram o
Bacharelado, cinco a Licenciatura em Música, e um a Pedagogia. O relato pela
opção não deliberada ocorreu nos casos onde a escolha aconteceu pelo curso de
Licenciatura em Música. Os demais professores não citaram as razões das suas
escolhas, tanto os seis professores que optaram pelo Bacharelado quanto os
outros dois que optaram pela Licenciatura.
As entrevistas evidenciaram, no entanto, que a escolha por dar
aulas não aconteceu, necessariamente, pela escolha direcionada pelo curso
universitário e sim, pelos acontecimentos da vida e pelas demandas do mercado
de trabalho. As situações mais citadas foram a falta de professores nas cidades
onde residiam, o que os impulsionava a cumprir essa função para auxiliar
estudantes mais iniciantes, a falta de empregos em outros setores, como nos setores
orquestrais, e a necessidade de complementação de renda.
Também sobre as suas formações, todos os professores citaram que
iniciaram suas atividades profissionais ligadas à Música antes do término dos
seus cursos de Graduação, sendo que dez deles citaram atividades docentes. Foi
possível perceber nas entrevistas que a formação tardia dos indivíduos enquanto
professores pode acarretar a manutenção de padrões de formação semelhantes aos
aplicados em sua formação enquanto estudantes, conforme apontado pelos próprios
entrevistados. Essa atuação ocorre, inicialmente, de maneira emergencial, com
os recursos que eles dispõem. Após essa fase inicial, a procura e busca por
aperfeiçoamento se estrutura mais consistentemente:
Tem quatro anos que eu me dedico, exclusivamente,
para essa parte pedagógica, que realmente é uma reinvenção total, porque toda a
minha formação foi estruturada para ser uma musicista de orquestra, por
exemplo. E aí está sendo todo um desafio para mim até hoje, esse novo olhar
para a música, né? (Professora 11, p. 63).
Foi um desafio também [dar aulas nesse espaço
musical], porque é uma parte que eu não tenho tanta experiência, de dar aulas
para tanta diversidade. Aqui tem aula para alunos mais iniciantes, alunos mais
avançados, pessoas que trabalham e não podem estudar muito, pessoas que podem
estudar bastante, de todas as classes sociais...Está sendo muito interessante,
eu tenho que lembrar de coisas de quando eu estava aprendendo violoncelo,
estratégias que eu já vi na universidade em aulas de pedagogia de cordas. Está
sendo muito enriquecedor nessa parte, eu estou aprendendo muito. É uma parte
que eu nunca tinha feito tanto, eu nunca tinha dado tantas aulas e me dedicado
só a dar aulas. O máximo que eu tinha feito, eu dei meio ano de aulas em um
projeto, mas eram duas vezes por semana à tarde, então, era pouco. Naquela
época, não era o meu foco. O meu foco era orquestra. É a primeira vez que está
sendo o meu foco dar aulas (Professor 5, p. 23-24).
A profissionalização tem sido vista, inclusive, como parte da
formação dos professores, e essas duas ideias se mesclam em suas falas:
Comecei a tocar na orquestra sinfônica e em
2015 eu passei no vestibular para fazer Pedagogia. Só que em 2017, eu mudei para
o curso de Música. Aí, estou lá até agora. Em 2016, eu comecei a dar aulas de
violoncelo num projeto social da universidade, eu era bolsista. E aí eu dava
aula nesse projeto social, dei durante um ano, em 2016. Eram aulas
particulares, eu e o aluno, e em 2017 eu comecei a dar aulas na extensão, na
universidade, com aulas coletivas. Aí, de 2017 até agora eu estou dando aulas
coletivas (Professora 9, p. 51-52).
A pesquisa apontou que um dos motivos pelos quais ocorre a
profissionalização precoce é a carência de professores em determinados locais,
sendo que estudantes mais avançados assumem as funções docentes de estudantes
iniciantes. Entre os entrevistados da pesquisa, apenas dois professores se
deslocaram para outros estados e regiões do país para se adequar a essa
demanda. Dos professores que fizeram esse deslocamento, um deles possui grande
número de turmas e estudantes e o outro possui vínculo formal com um espaço
público universitário. Ambas as atuações dos professores revelam que suas
atividades eram viáveis economicamente para propiciar a mudança de residência.
Em relação à performance, dois professores abordaram,
especificamente, ideias de “preparação para a performance”. Essas ideias são
bastante comuns no universo dos músicos instrumentistas e consideram o
apresentar-se em público como estressante e não natural, necessitando, assim,
de um processo de preparação próprio. Os professores relataram diferentes
possibilidades de preparação. Um deles citou a observação de performances de
outras áreas artísticas, como o Teatro e a Dança, considerando importante se
apropriar das formas de relacionar-se com as performances dessas áreas:
Uma matéria, que era com a professora de
violino, era sobre como se portar no palco e, ao mesmo tempo, ela relacionou
muito com outras Artes. A gente assistiu aulas de Dança, a gente assistiu aulas
de Teatro. Ela conversava: “ah, vocês viram como o pessoal do Teatro se porta?”
Eles são mais tranquilos que a gente. A gente cria essa expectativa tão grande,
de fazer tudo certo. Observando, também, as outras Artes, foi muito
interessante. Ver como que um bailarino se porta na aula dança e ver como a
gente se porta na aula com os professores. É muito diferente. O tanto que a
gente se cobra na música é muito mais. A gente se põe uma pressão muito maior.
A nossa relação com os nossos professores é muito diferente do que nas outras
Artes, então, foi muito interessante. A gente fez essas aulas, ela fazia várias
coisas, para você encenar na frente, para você se sentir bem, postura, de tudo
(Professor 5, p. 25).
Outro professor considera que a presença de colegas
violoncelistas em práticas que simulam apresentar-se a um grande público gera
um nível de estresse que é benéfico aos estudantes. Em ambos os relatos, o
estresse, ou o que vem sendo denominado como ansiedade de performance, aparece
como algo a ser manejado e incorporado nas atuações musicais:
Nós, enquanto violoncelistas, sabemos que,
certamente, o público mais ingrato para a gente é tocar para um colega que toca
o mesmo instrumento que você. Porque ele sabe exatamente tudo o que você fez
não tão bom assim, tudo o que você fez de bom também. Muitas vezes, tocar para
quem é leigo é muito mais simples. Então, essa parte do treino da performance
pública é algo que quando eu estou sozinho em sala de aula é impossível
trabalhar...Por isso que eu acho que a mistura do processo individual também
com o ensino coletivo é bastante importante (Professor 10, p. 59-60).
É possível perceber, ainda, pelos dados produzidos na pesquisa,
que se mantêm nas estruturas dos espaços musicais estudados certas demarcações
entre artistas e não artistas, apontadas por Boal
(2009) e Clark (1965) como
artificiais. Boal (2009),
especialmente, apresenta que a manutenção da crença em sua falsa existência
apoia e potencializa os processos de desumanização e subjugação das
singularidades nas performances impostas pelos sistemas vigentes. Muitas vezes,
o estudo de música vem sendo pensado como uma oportunidade concedida aos
estudantes ao invés de ser adotado como parte dos direitos sociais e humanos.
Ao sustentar essa demarcação, mesmo que de maneira não consciente, são
reforçadas a divisão arbitrária e a falsa ideia de formação de plateia, a
romantização e a fetichização da ideia de músico, e a precarização das
atividades laborais relacionadas à música.
Uma das coisas que sempre me chamou muito a
atenção [foi] que sempre me senti muito em dívida com todas as oportunidades
que surgiram para mim. E eu acho que quando você tem tantas oportunidades boas
como eu tive, você precisa de alguma forma retribuir isso para a sociedade.
Então, uma coisa que sempre me fascinou, porque foi daí que eu vim, foram os
projetos sociais. Então, quando eu voltei [da pós-graduação], uma das primeiras
coisas que eu fiz foi dar um jeito de me engajar em algum projeto social
(Professor 10, p. 56).
Dez dos doze entrevistados citaram, também, algum tipo de
dificuldade relativa ao início de sua aprendizagem. As dificuldades descritas
foram a falta de professores nas cidades onde residiam e processos de ensino
não adequados à sua faixa etária, percepção que partiu da visão pessoal de cada
um deles. Nos relatos dos professores é revelado, no entanto, um forte sentido
de empoderamento para empreender seus estudos musicais, para suplantar as
dificuldades e desafios enfrentados durante suas trajetórias enquanto
estudantes.
Eu iniciei em 2005 na turma do meu professor,
quando ele veio do exterior para a minha cidade, e eu fui a primeira aluna que
ele deu aula aqui. Então, durante esse período de cinco anos que ele morou na
minha cidade eu tive aulas com ele. Mas antes disso eu já estudava sozinha,
procurava ouvir muito, eu ouvia muito as gravações do Yo-Yo Ma, Jacqueline
Dupré, assistia vídeos no Youtube. Eu lembro que eu não sabia pegar no arco e
não tinha ninguém para dizer como era. E aí por uma foto de uma capa de cd do
Yo-Yo Ma que eu ganhei eu via ele segurando o arco, né? Eu pegava toda torta,
sabe, e eu via ele todo certinho segurando o arco. E aí eu fiquei um dia
inteiro estudando para tentar fazer igual à foto da capa (Professora 3, p. 8).
A busca e a procura por soluções às suas necessidades de
vivenciar a Arte possibilitaram que os professores criassem performances
autênticas de aprender e existir. Algumas vezes, no entanto, são novamente
achatadas quando assumem a função docente pela necessidade de organizar essa
aprendizagem em moldes curriculares homogêneos. Essa homogeneidade de ações foi
percebida nas aulas observadas, apesar dos contextos geográficos e dos
musicares distintos. É possível pensar o engessamento condicionado por essa
homogeneidade como silenciamento ou subjugação de determinadas existências em relação
a outras (ICLE, 2013).
Eu gosto muito, eu não falava isso na época de
faculdade, né, porque os professores iam me condenar (risos). O que eu me sinto
muito bem tocando, principalmente porque você entra em contato com as pessoas,
eu consigo conectar com as pessoas, por exemplo, é tocando um tema de filme, um
tema de novela. E eu me sinto bem tocando. Eu não me sinto mal, porque eu acho
que o que importa é, se eu tocar, seja um tema de filme, seja um tema de
novela, seja um concerto, eu tocar com a melhor qualidade que eu possa. Isso,
para mim, é o que importa. Então, antes eu não falaria isso, com certeza, e
talvez os professores da faculdade, os mais de teoria, me condenariam por falar
isso, porque eles falam da indústria da cultura, etc... Mas hoje em dia eu não
me importo porque é o que eu gosto... A melhor forma de criar esses laços com
as pessoas é tocar as músicas que elas gostam e que eu gosto também. Ela é uma
melodia bonita. Qual o problema disso? Não tem mesmo uma harmonia complexa, um
grande contraponto, não tem, mas é uma melodia bonita. Eu me sinto bem tocando
e eu sinto que eu estou deixando alguém feliz, então, eu gosto muito desse
estilo de música, tipo tema de filme, música mais popular, tema de novela, eu
gosto bastante. (Professor 5, p. 28)
Foi apontado pela pesquisa que os professores buscam novamente
novas formas de colocar-se diante de suas Performances com Musicares. Se
ressalta a necessidade de pensar de que maneira as atividades musicais estariam
fazendo parte desse silenciamento como parte da padronização e domesticação dos
corpos, e delimitando formas de agir e existir (PINEAU, 2010). Sendo assim, não se
trataria apenas de rever os currículos, na intenção de que assim seriam
possíveis todas as possibilidades de existir, mas pensá-las como formas de
saberes e de conhecimentos compartilhados (ICLE,
2013).
Apesar de relatarem formas distintas de pensar a música em suas
relações com seus instrumentos e seus musicares, todos os professores
entrevistados abordaram formas homogêneas de ensino com seus estudantes. De uma
ou outra maneira, relataram que suas aulas se estruturam com base em preceitos
técnicos determinados para aquele momento em especial, conforme as concepções
dos espaços musicais, e que o repertório visa se adequar a esses preceitos. O
repertório, segundo eles, é mais variável, com exceção de dois espaços musicais
nos quais os professores relataram situações distintas. Um deles relatou que
utiliza um método específico que não engloba nenhum tipo de repertório e outro,
que utiliza repertório orquestral com seus alunos, o que não foi comprovado na
observação prática, mas parece ser a ideia do espaço estudado.
No entanto, é marcante a frase, mais de uma vez citada, que o
objetivo de tocar violoncelo (e da vida) “não é o concerto de Haydn”. Essa peça
parece ser uma das principais referências de padronização das performances dos
violoncelistas, conforme os interlocutores entrevistados. No entanto, eles
enumeraram outros objetivos para as atividades musicais, principalmente as
relações interpessoais, e consideraram que músicas que se conectam com suas
formas de sentir, pensar e se comunicar com o outro são as que permeiam de
sentido os seus fazeres:
Eu gosto de tocar músicas que a minha filha
gosta de ouvir porque deixam ela muito feliz. E aí é o que resignifica
diariamente o porquê que eu toco cello. Não é para tocar o Concerto de Haydn em
Ré, embora isso seja muito importante. É para deixar as pessoas felizes, seja a
minha filha, a minha esposa, os meus alunos ou gente que eu nem conheço
(Professor 10, p. 61).
As conexões com a vida parecem estar evidentes nas falas dos
professores, porém, ainda aparecem de forma tímida em suas atuações, o que
aponta para a falta de apropriação de suas ideias e o possível apagamento de
suas concepções nas realizações e práticas de suas atividades. Por essa razão,
essas ideias foram consideradas performances em devir, próprias de musicares em
processo de desmanchar-se e construir-se em novas configurações, e a pesquisa
foi considerada como uma cartografia desses processos. A verbalização e escrita
desse texto se constitui como parte desse processo coletivo em construção
contínua.
Considerações
As ideias de performance apresentadas neste texto possibilitam
pensar as práticas musicais como práticas de performance que fazem parte dos
contextos sociais e espetacularizados aos quais se integram. Concebê-las como
práticas artísticas e em sua visão antropológica acrescenta sentidos e
possibilidades às suas manifestações e costuram caminhos conjuntos para
percebê-las como veículos potentes de transformação das realidades das
singularidades envolvidas em seus processos. Assim, os musicares se tornam
cartografáveis por serem mutáveis e parte de configurações relacionais,
abarcando as subjetividades e as formas de atuação de cada singularidade.
Conforme é possível observar nos dados da pesquisa realizada, os
musicares que constroem cada performance permeiam contextos sobrepostos e
dialógicos. As Performances com Musicares são construídas ao longo de um vasto
período de tempo e não apenas no momento de se expor aos seus espectadores em
um evento determinado. Por sua vez, os espectadores também são múltiplos,
distintos, plurais e em conexão com realidades diversas. O que se costuma
denominar, habitualmente, como preparação para a performance termo, inclusive,
abordado pelos interlocutores da pesquisa e que enfraquece a participação dos
performers no seu tempo presente pode ser concebido como uma performance em si,
ou partes de uma Performance com Musicares, tanto na concepção artística quanto
antropológica. As Performances, sob esse ponto de vista, consideram o devir
contínuo, sendo que seu início e final podem ser demarcados apenas por
convenções arbitrárias.
Um ponto a ser abordado em relação à ficcionalidade da realidade
é que as Performances com Musicares dela fazem parte. É possível pensar que
essa ficcionalidade se apresenta nos aspectos relacionais do musicar, ou do
performar, talvez mais do que no conteúdo sonoro, o que aprofunda a necessidade
de pensarmos nessas direções. Podemos pensar, por exemplo, que ao concebermos
que determinado musicar diz respeito a uma camada social específica, sem
permeabilidade, reforçamos a ficção da realidade já estabelecida pelas forças
que constituem os mecanismos dos sistemas de opressão, subjugação e
desumanização.
Podemos recordar de um fato ocorrido em 2020, quando um
violoncelista da Orquestra da Grota, da cidade de Niterói, Rio de Janeiro, foi
preso injustamente por reconhecimento facial. A prisão desse violoncelista,
jovem preto da região periférica da cidade, repercutiu nas mídias e redes
sociais de todo o Brasil, entre “músicos” e “não músicos”. Um dos argumentos
utilizados para justificar a arbitrariedade da prisão era a ideia de que um
jovem que toca um instrumento orquestral, como o violoncelo, jamais seria capaz
de cometer qualquer tipo de crime. Essa posição foi igualmente contestada, alegando-se
que se o jovem tocasse pandeiro ou fosse um músico de rap, por exemplo, não
receberia o mesmo destaque e apoio da mídia e da população. Nesse caso, o fato
de o jovem tocar violoncelo conferia à realidade e aos imaginários um grau de
ficcionalidade que associam a música produzida por este instrumento com
determinados padrões de comportamento.
Mais ou menos na mesma época do fato ocorrido, uma reportagem8 no Portal de notícias on-line UOL apresentava relatos
de um outro jovem violoncelista preto que alegava que, a cada vez que ele
assistia a concertos na Sala São Paulo, levava junto seu instrumento, caso
contrário, recebia, frequentemente, olhares de reprovação associados por ele a
cunhos racistas. Nesse caso, a presença desse músico nesse espaço só era
legitimada quando ele portava seu violoncelo, como uma espécie de escudo
social. Esses exemplos deixam evidente que o próprio instrumento violoncelo
carrega um grau de ficcionalidade representativa dos musicares a ele
condicionados.
Para manter a ficcionalidade, o que Pineau (2010) denominou como
“escolarização dos corpos” dos estudantes de música tem se configurado como uma
das estratégias. É possível perceber que esses corpos são condicionados a
representar, nos espaços musicais, o papel do que se considera como músicos
instrumentistas, abrindo mão de sua natureza infantil ou juvenil, sua
localização no espaço geográfico no qual habita e suas singularidades. Em
contrapartida, se abdicarmos da padronização dos corpos, poderíamos pensá-los
como territórios não sujeitos a subjugação, abrindo mão da ideia dicotômica
corpo x mente.
Além disso, esses corpos refletem em suas performances tanto as
experiências libertadoras quanto as opressões vividas. Suas Performances com
Musicares também são reflexos dessas experiências e das máscaras sociais por
eles experimentadas. Ao nos depararmos com os conflitos e fricções, as
Performances com Musicares são, assim como proposto por Schechner (2006) e Boal (2009), laboratórios que permeiam a
vida possibilitando exercitar, optar e realizar diferentes futuros.
Outro ponto a ser levantado e que foi, também, abordado pelos
interlocutores é a ênfase colocada sobre a formação orquestral, tendo em vista
a incompatibilidade entre o número de projetos musicais orquestrais e o número
efetivo de orquestras profissionais existentes no Brasil. Essa
incompatibilidade não permite que todo o contingente de pessoas formadas nesses
projetos seja absorvido pelo mercado de trabalho. Propaga-se a ideia de que os
“não músicos” oriundos desses espaços se destinariam a se configurar como
“espectadores”, empregando-se a ideia de formação de plateia. Essas ideias se
contrapõem à concepção de Boal (2009)
que aponta a motivação hegemônica de separar a arte do sujeito, convertendo-os
apenas em espectadores e criando a separação artificial e proposital entre
artistas e não artistas.
Também é relevante a ênfase colocada nas relações dos
professores, enquanto estudantes, com seus próprios professores. Sendo os
professores performers os formadores de novos professores performers, podemos
nos apropriar das diversas possibilidades que constituem as práticas de
performances e suas relações com a Educação para criarmos espaços onde possam
ser desenvolvidas como propostas de emergência de existências conectadas com as
realidades daqueles que delas participam, e como forma de diminuir os
engessamentos das máscaras sociais a elas impostas.
É desafiador aos professores, porém, manter as atividades
docentes como prioridade, principalmente, em função dos contextos sociais do
país. Como vimos na pesquisa, a formação e posterior atuação docente não era a
primeira opção de trabalho dos interlocutores da pesquisa. No entanto, conceber
a docência enquanto performance e prática estética pode amplificar a necessária
atenção ao papel do professor propositor performer como mobilizador de
Performances com Musicares enquanto Performances de Existência. Isso não
significa, no entanto, retornar a pensar a Educação e Performance centradas
exclusivamente na figura do professor, mas percebê-lo como parte fundamental da
Performances com Musicares dos estudantes.
Conceber as Performances com Musicares enquanto Performances de
Existência amplia, também, a responsabilidade sobre o que performamos. Ao
pensá-las assim, as percebemos como disparadoras de configurações sociais e das
subjetividades das singularidades nelas envolvidas. Elas amplificam e mobilizam
as existências, conscientes de suas formas de interação no mundo de maneira não
fraccionada, e o vivenciar da experiência musical em suas diversas potências
criativas.
REFERÊNCIAS
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do Oprimido. Rio de Janeiro: Editora Garamond Ltda, 2009
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uma introdução crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009
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FREIRE, Paulo. Pedagogia
do Oprimido. 69. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Terra e Paz, 2019
FONTERRADA, Marisa Trench
de Oliveira. De tramas e fios: Um ensaio sobre música e educação. 2 ed. São Paulo:
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Notas
1 Mestra e Doutoranda
em Artes pela Universidade de São Paulo (bolsista CAPES), professora
violoncelista performer.
2 Mestre em Música pela
Universidade Federal da Paraíba, Doutor em Música pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Professor Doutor na Universidade Federal do Rio Grande do
Norte.
3 Mestre em Música pela
Julliard School, Doutor em Música pela Universidade Estadual de Campinas,
Professor Doutor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Professor
Colaborador na Universidade de São Paulo e na Universidade Federal do Rio de
Janeiro, professor violoncelista performer.
4 Formato de ensino
digital que emprega tecnologias desenvolvidas para videoconferências e
conversas on-line, além de algumas propostas assíncronas. Apesar de ter sido
adotado em larga escala durante a pandemia de Covid-19 não apresenta as mesmas
potencialidades da Educação à Distância, que conta com planejamento antecipado,
utiliza recursos de aulas pré-gravadas e a disponibilização dos conteúdos em
formatos digitais (GOHN, 2020, p. 157).
5 Proposta desenvolvida
pelo violinista japonês Shinichi Suzuki na década de 50 do século XX e
largamente adotada no Brasil. Possui como base a aprendizagem da língua materna
(FONTERRADA, 2008, p. 165). A proposta de Suzuki foi adaptada para diversos
instrumentos e adaptada, inclusive, para o violoncelo por Pablo Casals.
6 Proposta desenvolvida
pelo violonista Paul Rolland na década de 60 do século XX e que concebia a
percepção e a preparação do corpo e dos movimentos de forma global, o que
difere das propostas da sua época que pensavam os movimentos isoladamente (YING, 2007, p. 96).
7 Informação divulgada
pelo Portal Fundatec no item Concursos-Homologação das InscriçõesFundação Orquestra
Sinfônica de Porto Alegre FOSCPA pelo link: https://fundatec.org.br/portal/
concursos/publicacao/homologados/homologados.php?concurso=615&codpub=32519&idpub=484303&tela=1.
Acesso em 06 de novembro de 2021.
8 Reportagem disponível
em https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2020/08/26/em-movimento-inedito-orquestras-e-maestros-debatem-apagamento-de-negros.htm.
Acesso em 15 de abril de 2022.