Dossiê

 

Abrindo horizontes para uma perspectiva musicobiográfica: um recorte analítico de uma pesquisa com três professores de música

OPENING HORIZONS FOR A MUSICOBIOGRAPHIC PERSPECTIVE: An analytical cut of a research with three music teachers

 Haniel Henrique Vieira de Queiroz¹

Universidade de Brasília, UnB, Brasil

 

 Delmary Vasconcelos de Abreu²

Universidade de Brasília, UnB, Brasil

 

Revista Orfeu

Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil

ISSN: 2525-5304

Periodicidade: Semestral

vol. 7, núm. 1, 2022

revistaorfeu@gmail.com

Recepção: 23 Fevereiro 2022

Aprovação: 30 Junho 2022

 

URL: https://periodicos.udesc.br/index.php/orfeu/article/view/21745 

DOI: https://doi.org/10.5965/2525530407012022e0112

Autores mantém os direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação.


Este trabalho está sob uma Licença Internacional Creative Commons Atribuição 4.0.

Resumo: Este trabalho é um recorte de uma pesquisa concluída em nível de mestrado que teve como objeto de estudo os processos de musicobiografização de três professores de música a partir de suas pesquisas realizadas no mestrado. O objetivo principal da pesquisa consistiu em compreender como esses profissionais vêm refigurando-se com suas pesquisas nas práticas músico-educativas. O referencial teórico esteve centrado na teoria da tríplice mimese de Paul Ricoeur – prefiguração, configuração e refiguração – no tempo e narrativa. Como referencial metodológico, a pesquisa utilizou o método biográfico, tendo como fonte as narrativas (auto)biográficas de professores. Para este artigo, tomamos como objetivo apresentar uma síntese analítica da pesquisa concluída destacando compreensões a respeito do conceito de musicobiografização que foram se delineando com a pesquisa. Ao concluir a pesquisa, compreendemos que os três coparticipantes da pesquisa engendram uma vida-formação refigurada. Assim, a reflexividade narrativa é constitutiva de uma força potencial geradora de impactos nas práticas músico-educativas desses profissionais.

Palavras-chave: Professores de música, Narrativas (auto)biográficas, Musicobiografização.

Abstract: This work is an excerpt of a complete research at the master’s level that had as its object of study the musicobiographization processes of music teachers from their research carried out in the master’s degree. The main objective of the research is to understand how these professionals have been reconfiguring themselves with their research in music-educational practices. The theoretical framework was centered on Paul Ricoeur’s theory of the triple mimesisprefiguration, configuration and refiguration – in time and narrative. As a methodological reference, the research used the biographical method, having as source the (auto) biographical narratives of teachers. For this article, we have as main objective to present an analytical synthesis of the completed research, highlighting understandings about the concept of musicobiographization that were outlined with the research. At the conclusion of the research, we understand that the three co-participants in the research engender a reconfigured life-formation. Thus, narrative reflexivity constitutes a potential force that generates impacts on the musician-educational practices of these professionals.

Keywords: Music teachers, (Auto)Biographical Narratives, Musicobiographization.

Introdução

Este trabalho consiste em um recorte de uma pesquisa concluída de mestrado que teve como objeto de estudo os processos de musicobiografização de três professores de música a partir de suas pesquisas realizadas no Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade de Brasília – PPGMUS-UnB. Tomamos como objetivo deste trabalho apresentar uma síntese analítica da pesquisa concluída, destacando compreensões a respeito do conceito de musicobiografização que foram se delineando com a pesquisa.

Consideramos relevante destacar, em primeiro lugar, que escolhemos trabalhar com professores de música que produziram pesquisas com abordagem (auto) biográfica e que levam para seus contextos profissionais saberes adquiridos com suas pesquisas. Assim, esses profissionais, egressos do PPGMUS-UnB, buscam desenvolver uma docência em música permeada por elementos advindos de suas pesquisas concluídas.

Uma vez que a construção do conceito de musicobiografização tem por intuito “fazer aproximações no diálogo entre o campo da pesquisa (auto)biográfica com o campo da Educação Musical” (ABREU, 2018, p. 10), a pesquisa colocou em discussão como os três professores compreendem esse conceito em suas práticas docentes.

Ultimamente, o Grupo de Pesquisa Educação Musical Escolar e Autobiografia – GEMAB, tem feito um exercício epistemo-empírico no qual a música como linguagem e expressão do humano é o mote para pensar o sujeito e sua inscrição (auto)biográfica no mundo. O termo musico-bio-grafi-zação tem em sua semântica noções fundadas na escrita da vida do sujeito que se forma com a música. Porém, esses estudos têm tido avanços com os ensaios teóricos escritos por Abreu (2022). Destaca-se que o termo nocional tem entendido a música como o “elemento mediador da construção de nossas histórias e experiências formativas que com ela foram registradas” (ABREU, 2022, p. 13).

O referencial teórico da pesquisa esteve centrado na teoria da tríplice mimese de Paul Ricoeur (1994) – prefiguração, configuração e refiguração – no tempo e narrativa. Esse referencial foi também fundamental para o processo de análise das narrativas dos professores coparticipantes da pesquisa, no qual foi possível evidenciar suas compreensões a partir das experiências narradas durante o processo de entrevista. A pesquisa utilizou o método biográfico, que busca atribuir à subjetividade um valor de conhecimento científico, lendo a realidade do ponto de vista de um indivíduo (FERRAROTTI, 2014, p. 32). Com esse método, os materiais biográficos se dividem em dois grupos: primários e secundários Os materiais biográficos primários são recolhidos de forma direta pelo investigador (face to face), enquanto que os materiais biográficos secundários são “documentos biográficos” que não são possíveis de serem recolhidos de forma primária como fotos, correspondência, recortes de jornais, etc. Para o autor, é necessário que haja uma valorização dos materiais primários, que são providos de uma “subjetividade explosiva” e que são capazes de estabelecer uma comunicação interpessoal “complexa e recíproca entre o narrador e o investigador” (FERRAROTI, 2014, p. 40). Assim, estabelecemos como fonte primária a entrevista narrativa (auto)biográfica.

Durante a pesquisa foram realizados encontros onde os coparticipantes compartilharam relatos que nos ajudaram a compreender melhor a formação deles como docentes de música e pertencentes ao “movimento (auto)biográfico em educação musical” (ALMEIDA, 2022). Os materiais secundários, compostos pelos documentos e pelos relatórios de práticas docentes desses professores, foram recursos complementares para conhecermos o mundo dos coparticipantes, em especial suas pesquisas e suas formas de lecionar.

Neste trabalho, as dimensões da musicobiografização, à luz da tríplice mimese (RICOEUR,1994), abriram horizontes para acompanhar os três profissionais na forma como eles prefiguram suas experiências formativas com suas pesquisas, configurando-as em suas práticas docentes e refigurando pela reflexividade narrativa. Esses elementos da estrutura narrativa, na perspectiva da tríplice mimese, adensados com a linguagem musical se combinam para entendemos que a música está contextualizada no mundo da vida, carregada de possibilidades de significações, tendo assim, um potencial formativo.

Convém salientar que, na pesquisa os sujeitos são chamados de “coparticipantes”, termo cunhado por Suarez (2015) que entende que os sujeitos da pesquisa participam no processo de construção das informações. Logo, se formam por meio de suas narrativas, com os relatos de experiência desta formação e, no processo da pesquisa, têm a possibilidade de refigurar-se, ou seja, na medida que vão narrando também lentificam a escuta de si e tem, neste momento da entrevista, a oportunidade de organizar a trama narrativa tomando-a como um dispositivo formativo, ao olhar para as suas próprias práticas elucidadas no ato de narrar.

Os professores coparticipantes e suas pesquisas

No processo de escolha desses sujeitos, observamos que no semestre de 2019/2, três profissionais, integrantes do GEMAB, iniciaram uma pesquisa-formação-ação no projeto de extensão denominado “A musicobiografização na pesquisa-formação em Educação Musical”. O projeto tem como propósito “conhecer e pôr em discussão alguns aportes teóricos e metodológicos da pesquisa (auto) biográfica em educação musical com estudos da experiência pedagógico-musical de professores de música” (ABREU, 2019 p.10).

Assim, compreendemos que a participação desses profissionais no projeto de extensão supramencionado evidenciava o interesse deles em continuar suas pesquisas, agora na prática, a fim de trazer novos resultados e descobertas. Segundo a coordenadora desse projeto, a prioridade da extensão universitária está tanto no apoio a resoluções de problemas educacionais, como nas “ações construídas com os professores de música que atuam nos diferentes espaços educacionais, em especial nas escolas de educação básica” (ABREU, 2018 p. 06). Dessa forma, os participantes desse projeto de extensão buscavam acompanhar os desdobramentos de suas pesquisas com a intencionalidade de gerar efeitos na prática com os saberes adquiridos por meio delas.

Destacamos aqui, os coparticipantes da pesquisa com seus nomes próprios e pela ordem alfabética. O primeiro professor, Edson Barbosa de Oliveira, vem desenvolvendo alguns projetos com foco no violão de acompanhamento, onde tem a oportunidade de pôr em prática conhecimentos advindos de sua pesquisa. Além disso, atuou como professor substituto no Departamento de Música da UnB, onde desenvolveu um projeto com estudantes do curso de licenciatura em música em uma disciplina chamada de Seminário em Educação Musical. Neste seminário, ele conta que colocou em prática os princípios da pesquisa (auto)biográfica em educação musical, advindos de sua pesquisa concluída.

Os outros dois professores, Gustavo Aguiar Malafaia de Araújo e Hugo Leonardo Guimarães de Souza são professores de música concursados no Instituto Federal de Brasília. O primeiro atua no campus Samambaia (IFB-CSAM) e o segundo no campus Ceilândia (IFB-CCEI). Além da parceria no projeto de extensão da UnB, ambos desenvolvem, concomitantemente, um projeto de extensão promovido entre os dois Institutos em que atuam no modelo de “ateliê musicobiográfico”. Este modelo é fruto da pesquisa de Hugo Leonardo Guimarães de Souza. (cf. SOUZA, 2018)

Para a realização desse trabalho, foi fundamental conhecermos as pesquisas desenvolvidas pelos três coparticipantes da pesquisa – (ARAÚJO, 2017, SOUZA, 2018 e OLIVEIRA, 2018), pois possibilitou a construção do objeto de estudo. A pesquisa do professor Gustavo tomou como abordagem metodológica a “pesquisa-formação-ação” – PFA (ARAÚJO, 2017). O autor buscou compreender como as experiências musicais podem contribuir no processo formativo de jovens estudantes do ensino médio do IFB-CSAM. Logo, trouxe reflexões a construção do sentido das experiências formativas com música. Para compreender como os estudantes constroem sentidos com a música em suas experiências, práticas, usos e valores simbólicos, ele conta que os participantes exercem e atribuem a suas “recordações-referências” que, segundo Josso (2004), são símbolos daquilo que o participante compreende como elemento constitutivo da sua formação.

A pesquisa do professor Hugo teve como foco as experiências musicais do sujeito com o lugar (SOUZA, 2018). Para tanto, buscou na abordagem metodológica fazer uma transposição do dispositivo formativo “ateliê biográfico” (DELORYMOMBERGER, 2006) para cunhar o termo Ateliê Musicobiográfico de Projeto (AMBP). Nele, os sujeitos produzem e partilham narrativas escritas – de forma que a música é utilizada como um instrumento semiótico na produção de narrativas.

O professor Edson, por sua vez, trouxe em sua pesquisa reflexões sobre a constituição da experiência do violonista acompanhador. Para tanto, tomou como metodologia da pesquisa-formação-ação com foco na Documentação Narrativa, proposta por Suarez (2015). Considera-se que a pesquisa traz contribuições para a área da educação musical, ao focar nas práticas de ensino do violão com destaque para os saberes constitutivos do violonista acompanhador que são pensados, por ele em um decálogo de saberes, como uma proposta pedagógico-musical. Tais especificidades levam o autor a fazer aproximações do violonista acompanhador com o “professor acompanhador” (OLIVEIRA, 2018).

Assim, chegamos a alguns questionamentos que foram fundamentais para o desenvolvimento da pesquisa que teve como “mote gerador o movimento (auto) biográfico na região centro oeste e seus impactos” (QUEIROZ, 2021, p. 30). Dentre os questionamentos inquietava-nos saber: como esses profissionais têm colocado em prática os resultados de suas pesquisas? Quais são, na perspectiva deles, os efeitos gerados na prática? Como esses profissionais vêm refigurando-se com suas ações nos contextos em que atuam?

Na sequência, tomamos como objetivo geral da pesquisa compreender como esses profissionais vêm refigurando-se com suas pesquisas nas práticas músico-educativas. Os objetivos específicos foram: elucidar conhecimentos que têm sido gerados em suas práticas músico-educativas na perspectiva musico-biográfica e; mostrar como o conceito de musicobiografização tem sido aprofundado na prática, mediante a reflexividade narrativa dos coparticipantes. Para responder as questões e objetivos, a pesquisa utilizou como fonte a entrevista narrativa como materiais biográficos primários. Os materiais secundários, foram compostos pelos seguintes documentos: dissertação de mestrado dos coparticipantes e relatório das observações de algumas de suas aulas no contexto educacional em que atuam ou atuaram, como é o caso do professor Edson Oliveira.

As narrativas evidenciaram os esforços dos coparticipantes em continuar seus estudos e reflexões no GEMAB, buscando maiores compreensões teóricas do conceito musicobiografização, que vem sendo desenvolvido pelos membros do grupo. Esse conceito que vem se constituindo nas pesquisas do grupo partem de concepções teóricas e propostas metodológicas advindas da aproximação do campo da educação musical e pesquisa (auto)biográfica.

Emergindo noções da musicobiografização

É possível compreender o termo nocional musicobiografização, cunhado por Abreu (2017, 2018, 2019, 2020, 2021, 2022), no campo semântico da ação, por meio da tríplice mimese de Ricoeur (1994), isto é, na prefiguração, configuração e refiguração, sendo na prefiguração, “com noções fundadas na vida (bio) com a música e no uso de instrumentos semióticos (grafias – estruturas e símbolos)”, fazendo emergir noções a serem “configuradas e refiguradas epistêmica e metodologicamente em objetos de estudos entrelaçados com subjetividades, espaços, tempo, práticas musicais, saberes individuais e sociais.” (ABREU 2017, p. 213).

Dessa forma, a construção desse conceito enxerga a música como um instrumento semiótico narrativo possibilitando que o sujeito comunique representações de si. Nas pesquisas de mestrado realizadas pelos coparticipantes, é possível perceber que o entendimento da música como linguagem tem sido um dos pontos elucubrados na construção de narrativas (auto)biográficas dos sujeitos que se formam com a música.

Souza (2018) traz isso à tona quando apresenta a intriga musical, descrevendo a forma como os sujeitos de sua pesquisa narravam suas experiências com e por meio da música. Também em Araújo (2017), na forma como os sujeitos partilham músicas carregadas de significados para sua vida e buscam um motivo musical que represente sua história. Oliveira (2018) corrobora com as ideias dos autores supramencionados quando apresenta o tripé narrativo musicobiográfico. Diante do exposto, os coparticipantes entendem que tanto eles como demais integrantes do GEMAB já desenvolviam em suas pesquisas “narrativas em que a música faz a mediação entre sujeitos e música” o que leva para essa perspectiva musicobiográfica (ABREU, 2022, p. 15).

Em um dos encontros para coleta dos materiais primários fizemos, além das entrevistas individuais, uma roda de conversa com os três coparticipantes. Na estruturação de suas narrativas, o professor Edson compartilha com os demais coparticipantes algumas reflexões a respeito de como a musicobiografização acontece na prática, especialmente, em suas práticas músico-educativas. O professor Edson enxerga neste conceito elementos da semiótica que abrangem as diferentes formas de linguagens. Outro nome dado por Santaella (2005, p. 01) para a semiótica é de que ela “quer dizer o modo pelo qual elementos se combinam para formar unidades complexas”. Essa unidade complexa, que carrega em si o termo musicobiografização, é compreendida pelo professor Edson como primeiro elemento estruturante e central da palavra bio (vida). Isso significa que a música está contextualizada no mundo da vida, em um âmbito cultural e socioindividual. Fato este que caracteriza possibilidades de significações, logo, um potencial formativo.

Caminhando junto com essa visão do professor Edson Oliveira, nos direcionamos com ele e as demais narrativas trazidas pelos coparticipantes que se a vida está no centro da atenção do professor de música, ou pesquisador da área de educação musical, compreendemos que a música é um todo sonoro e que, aproximando-nos da visão de Blacking (2007), esse todo sonoro é apoiado também em uma perspectiva antropológica da música. Ou seja, a música, que aparece como outro elemento semiótico na palavra musicobiografização, é “dirigida” pela vida de alguém que com ela se relaciona.

Entendemos, pois, com Blacking (2007) que se a natureza da música pode ser entendida a partir de diferentes sistemas musicais estes são configurados “nas diferentes percepções que as pessoas têm da música e da experiência musical, por exemplo, nas diferentes maneiras pelas quais as pessoas produzem sentido dos símbolos musicais” (BLACKING, 2007, p. 2002).

Apreendemos com o autor e também com o coparticipante da pesquisa que, o que tem de ser levado em conta, é a percepção das pessoas e de que essa experiência musical, com sua materialidade sonora, tem no centro o indivíduo que torna possível que tal experiência musical seja carregada de significantes que configuram uma experiência formativa. Se para Blacking (2007), a música ocorre no fluir dessas dimensões culturais e sociais, compreendemos com o coparticipante Edson Oliveira que essas dimensões são permeadas por aquele sujeito que, nesses contextos, se biografiza com a música.

Seguindo nessa direção, o professor Hugo Souza nos faz avançar analiticamente pensando, com ele, que a musicobiografização, na prática, consiste em “convidar os estudantes e nós mesmos a olhar para a música dentro do espaço-tempo da nossa vida. Olhar para a música dentro da nossa história, tanto como área do conhecimento, como obra de uma vida” (HUGO SOUZA, EN 2020). O professor compreende que esse olhar de dentro para fora consiste em associar o conhecimento com aquilo que nos constitui. Ele aprofunda essa narrativa considerando que: “a sensibilidade estética, percepção musical” se configura como conhecimento, quando olhamos os elementos musicais constitutivos com o “espaço de nossa vida”, com o lugar, aspectos históricos, políticos, com aquilo que vivenciamos.

Ele conta que trouxe uma música para os alunos do gênero carimbó e, quando foi a Manaus em um evento da ABEM, vivenciou aquela música cantada, tocada, dançada pelos nativos do lugar. Nisso reside uma imersão não apenas “no ritmo carimbó que é bem marcante nos instrumentos”, mas quando outros elementos regionais estão envolvidos a dimensão se amplia e, com ele o professor entende que o lugar se expande de tal forma que você “enxerga para além da música o contexto social, a cultura, a culinária, a pobreza de alguns manauaras. Então, “a música não pode estar desassociada de todo esse contexto cultural, social, político e econômico para não se tornar artificial” (HUGO SOUZA, EN 2020) Tanto que ele complementa que a musicobiografiação é constitutiva com o lugar, como bem defende em sua pesquisa de mestrado.

Na perspectiva do coparticipante, parece ser inerente pensar a musicobiografização entrelaçada com uma área de conhecimento que se amplia com a visão de quem a vive, fazendo assim da música uma parte de sua vida como obra. Como tratou em sua pesquisa, esse “topoi musicobiográfico” faz com que a música aprendida, apreciada, tocada, executada ou composta se torne parte de uma “geografia da vida como obra” (HUGO SOUZA, EN 2020). Nesses termos e, como nos esclarece Ferraz (2018, p. 152), “não existe dualidades simplistas”. Portanto, “olhar para a música dentro do espaço de nossas vidas”, como narra o professor Hugo é buscar na prefiguração sensações que ficam armazenadas em nossa memória e, quando estimuladas pelo contexto histórico, social, cultural, educacional e tantos outros podem configurar um espaço de musicobiografização capaz de ampliar horizontes e leituras que só adquirem sentidos no ato de refigurar-se. No aspecto da linguagem é como se o “olhar para a música” fosse carregado de significantes que só o sujeito nessa relação é capaz de atribuir sentidos.

Ampliando com Pitanga (2021, p. 29), a compreensão de musicobiografização como obra, é possível entender que o professor Hugo parte da ideia de “fazer de sua vida uma obra, como uma instigante reflexão de que a vida como obra não é uma estrutura fixa, mas que se estrutura a partir da intriga narrativa”. É nessa intriga, que tanto discutiu o professor Hugo em sua pesquisa, que “construímos conhecimentos e acessamos as nossas experiências de formação com a música” (PITANGA, 2021, p. 29). E essa formação musical que o professor Hugo proporciona aos seus alunos se dá com procedimentos musicobiográficos, conforme narra a seguir:

Uma coisa que me chama muita atenção é que acho difícil realizar qualquer atividade ou proposta de aula que não seja um procedimento musicobiográfico. Por exemplo: no último semestre, abordei com meus alunos os gêneros musicais brasileiros. Quando falamos de alguns gêneros como maracatu, carimbo e ciranda, e percebi uma tendência de a gente ouvir essa música como um gringo ouve. Como se fosse distante de nós. Porém me chamou atenção o quanto estou próximo disso, isso porque já enxergo como uma lente musicobiográfica. Quando eu escuto, por exemplo, o maracatu, me vem à mente toda minha herança. Meu pai é paraibano e sempre gostou da música nordestina. Assim, nas minhas aulas sobre ritmos nordestinos, não tem como eu falar como um ser alheio, distante daquilo. Esses gêneros fazem parte da minha história, da minha ancestralidade (HUGO SOUZA, EN 2020).

Com essa narrativa, o professor Hugo traz a relevância de sua formação com experiências advindas do mestrado, de forma que considera difícil “realizar qualquer atividade ou proposta de aula que não seja um procedimento musicobiográfico(HUGO SOUZA, EN 2020). Para o professor, a perspectiva musicobiográfica tem influenciado sua forma de enxergar sua atuação como professor. Isso se torna evidente quando o professor cita o trabalho que desenvolveu em suas turmas de Ensino Médio com a música popular brasileira. Para o professor, a musicobiografização, neste caso, se faz presente quando instiga os estudantes a perceberem que aquelas músicas trabalhadas estão de alguma forma ligadas com suas histórias de vida. O professor convida os estudantes a olharem para a suas histórias e atentarem para a herança que essa música pode ter deixado em suas histórias por meio da ancestralidade.

Para Pitanga (2021), a memória da música popular brasileira, é um “patrimônio nacional que precisa ser constantemente alimentado, acessado e divulgado” (PITANGA, 2021, p. 37). Essa concepção remete aos estudos sobre o tempo discutido em Ricoeur (1994) que colocam o ser humano constituído, ao mesmo tempo, pelos três tempos – passado, presente e futuro, de forma que vivemos o presente alicerçado nas lembranças (passado) e nas projeções (futuro). Dessa forma, trazer a memória da música brasileira para as práticas músico-educativas é também colaborar para uma compreensão da nossa história e de quem somos.

Em sentido semelhante, o professor Gustavo mostrou seu entendimento por musicobiografização destacando o trabalho que desenvolve em suas práticas com o registro de vida com a música. Para ele, há uma cooperação mútua da música com as histórias de vida.

Eu compreendo que a musicobiografização é escrita da vida com a música e a reescrita quantas vezes forem necessárias para que seja refigurada. Assim, penso que a música contribui para história de vida e vice-versa. A música contribui para a história na medida em que traz sentimentos que não são verbais e a biografia contribui com a música na medida em que sentidos da vida, lugares em que a pessoa viveu podem ser expressos por meio da música tanto na interpretação quanto na composição musical (GUSTAVO ARAÚJO, EN 2020).

O professor Gustavo construiu essa narrativa no diálogo com os demais coparticipantes da pesquisa, partindo dos estudos construídos com a pesquisa e experimentados na prática de sala de aula. Fica claro que, para eles, os conteúdos musicais previstos no programa de ensino de suas aulas são, aquilo que Passeggi (2021, p. 06) nos ensina, “materiais que na experiência automedial abre um espaço de criação em que se encontram o movimento de uma busca sensível exercida sobre o material e sobre o fazer da obra [musical]”.

Essa experiência automedial, conforme Abreu (2022), é de quem se narra com música, valendo-se da linguagem musical em conexão sonora com música. Logo, a música é tomada como medialidade nos processos de biografização, nas palavras da autora, “é um modo de continuarmos a discutir maneiras e práticas musicais que levam o sujeito a constituição de si com a qualidade daquilo que se torna recorrente na gestão de sua musicobiograficidade(ABREU, 2022, p. 05).

Os coparticipantes mostram nas narrativas, especificamente, nesta do professor Gustavo que estão intencionalmente atentos a esse gesto autobiográfico, em que a reflexão subjetiva que acompanha o gesto do fazer musical é um trabalho sobre si, de um sujeito que age sobre ele mesmo ao agir sobre os materiais externos, sonoros e musicais, que ele manipula e pratica em sala de aula. Portanto, conforme narra o professor Gustavo “se a musicobiografização é a escrita da vida com a música e a reescrita quantas vezes forem necessárias para que seja refigurada(GUSTAVO ARAÚJO, EN 2020). Esse é o papel do professor, levar o aluno a essa experiência da formação com a música de modo que ele faça da sua relação com a música configurações consigo mesmo, um trabalho incessante de reflexão com materiais externos – linguagens, sons, gestos – que seja “mediatizada por sistemas símbolos e entre eles a narrativa” (RICOEUR, 1994), sem isso não há experiência musical, logo não há experiência formativa com a música.

Nesse sentido, retomamos a narrativa supramencionada do professor Gustavo de que nisso “há uma cooperação mútua da música com as histórias de vida” (GUSTAVO ARAÚJO, EN 2020). Convém nos determos um pouco mais nesse coda final “cooperação mútua” que o coparticipante nos ajuda a expandir, com ele, compreensões para o campo da educação musical, na perspectiva musicobiográfica.

Essa noção de cooperação mútua foi ampliada em Abreu (2018, p. 04) por meio do princípio das mônodas. A autora parte de um questionamento pertinente aos pesquisadores do campo da educação musical: “como o sujeito da narratividade (auto)biográfica constrói no circuito do narrar a sua história de vida com a música?” Assim, sinaliza que “a palavra não está à mercê da escuta, nem a escuta a serviço da palavra, mas ambas se ajustam no circuito do narrar para que a histó-ria de vida passe a se exibir”. Diante disso, as mônodas são significantes que se cooperam formando uma nova ideia.

Pela narrativa do professor Gustavo, é possível visualizar essa cooperação mútua entre a música e a história de vida, entendendo que a primeira não está a serviço da segunda, ou vice-versa, mas ambas cooperam entre si no processo de musicobiografização, de forma que, em suas práticas docentes, seja possível trabalhar conteúdos musicais partindo de elementos que constituem a história de vida do estudante e também possa trabalhar essa história de vida partindo da músicas que são compostas ou interpretadas pelos estudantes.

Nesse sentido, Rosa et al. (2011) chama atenção para um “currículo narrativo”, que permite que “diferentes trajetórias sejam realizadas quando relações pessoais e coletivas se articulam, sem perder de vista a dimensão histórica e social do conhecimento a ser construído”. Os autores entendem que esse entrecruzamento torna possível a consolidação de experiências que, por meio da narrativa, articulam “saberes das trajetórias de vidas individuais e o conhecimento socialmente instituído” (ROSA et al., 2011 p. 215).

As mônadas possibilitam a construção de um conteúdo musical atento para as dimensões pessoais, sociais e históricas do indivíduo. Para Rosa et al. (2011 p. 215) “um currículo permeado por histórias de vida avança além de processos formativos prioritariamente focados em processos de racionalidades”. Dessa forma, podemos perceber que tanto é possível que esses coparticipantes desenvolvem metodologias de ensino a partir das histórias de vida em formação com a música construídas pelos estudantes.

Isso significa pensar, com o sistema das mônodas, que cada sujeito tem a sua ideia e nela contém a imagem do mundo que pode se abrir em janelas para compor com o outro. Quando o professor olha para o seu aluno como uma mônoda ele sabe que as janelas terão de ser provocadas pela abertura de horizontes de expectativas mediadas por ele e pelo conteúdo musical. Dessa forma, entendemos que esse olhar se direciona para a potencialidade do aluno, nas relações que ele possa fazer com essa especificidade que é a música que encontra nesse universo de singularidades que é a sala de aula uma possibilidade de configurar totalidades.

É importante salientar que mesmo que no espaço-tempo da sala de aula os professores e estudantes são percebidos e se percebem como separados com suas histórias de vida e experiências singulares, isto também se constitui como um todo, ou nos termos de Benjamim (1994), parte-todo. Ou seja, a sala de aula abarca nesse espaço-tempo todas as singularidades, todas as histórias de vida, unificadas pela música que está sendo vivenciada, apropriada, executada ou criada. Na sala de aula, o professor é capaz de provocar essa constante abertura de significações e de conexões entre as mônodas.

O filósofo Walter Benjamin, que desenvolveu a partir de Leibniz, esse pensa-mento das mônodas como narrativas, mostra em seu texto “Infância em Berlim” a construção de uma série de narrativas articulando o vivido e as esferas sociais mais amplas. Aprendemos com Benjamin (1994) e também com os coparticipantes da pesquisa que essa articulação que o professor faz em sala de aula entre o vivido e as esferas que envolvem outras pessoas, outras músicas podem e devem ser refiguradas com o olhar do estudante. Nas palavras de Benjamin (1994, p. 70), uma conexão que se faz à apropriação da imagem de si vista, a seu modo, “num espelho do universo que harmoniza em si o infinito e o particular”. Entendemos, pois, que isso pode ser melhor compreendido no campo da educação musical pela perspectiva musicobiográfica.

Observando as narrativas dos coparticipantes, é possível perceber que a noção de musicobiografizaçao pode ser explorada tanto no âmbito conceitual como no âmbito prático, ou seja, como dispositivo formativo. Se de um lado o professor Edson traz contribuições conceituais chamando atenção para a vida (bio) que está no centro da palavra musibiografização, observamos de outro lado o professor Hugo trazendo esse conceito para a prática quando trabalha com seus estudantes a escuta musical atenta para a história e para a ancestralidade. Percebemos também a perspectiva do professor Gustavo que traz a compreen-são mútua da música com a história de vida, que pode ser levada para as práticas músico-educativas e para as pesquisas em educação musical.

Diante disso, entendo que este é um (e)feito gerado pelas pesquisas desses professores. Digo (e)efeito com destaque para o que está entre parênteses, mas também fora dele, entendendo que seus feitos musicobiograficos são refigurados na continuação dos seus estudos, na busca pela construção de um conceito para que possam aprimorar suas compreensões teóricas e metodológicas que auxiliam, tanto no desenvolvimento de pesquisas acadêmicas, quanto nas suas atuações como docentes. Assim seus trabalhos têm gerado (e)feitos em suas práticas, na reflexividade narrativa, podendo fertilizar teorias biográficas que venham a contribuir com reflexões e proposições para os campos da pesquisa (auto)biográfica e da educação musical.

Abrindo Horizontes para a perspectiva musicobiográfica

Mediante as narrativas orais, transcritas, (re)escritas e analisadas nos colocamos diante de uma teoria do texto biográfico. Entendemos com Ricoeur (2008) que em uma proposta da análise hermenêutica, “o que deve ser interpretado, num texto, é uma proposição de mundo, de um mundo tal como posso habitá-lo para nele projetar um de meus possíveis mais próximos” (RICOEUR, 2008, p. 66).

Compreendemos com o autor que nas narrativas analisadas tem-se o tempo refigurado. E é nesse encontro, entre texto e leitor, que existe um espaço privilegiado – horizontes – para fazer encontrar neles a sua relação com o campo da educação musical.

A mediação operada pelo texto conduz o leitor à apropriação de uma “proposição de mundo”, decorrente do encontro face-a-face com “o mundo da obra”. Nas palavras de Ricoeur (2008, p. 63), “[...] esta proposição não se encontra atrás do texto, como uma espécie de intenção oculta, mas diante dele, como aquilo que a obra desvenda, descobre, revela. Por conseguinte, compreender é compreender-se diante do texto”. A capacidade de compreender não repousa sobre o texto em si e sua capacidade finita de compreender, mas o sujeito, ao expor-se ao texto recebe dele um si mais amplo (RICOUER, 2008, p. 68).

A produção de atividades musicobiográficas, apresentadas neste texto median-te as pesquisas dos coparticipantes, tem relação com a teoria de Ricoeur (1994) – Tempo e Narrativa: 1) Prefiguração 2) Configuração; 3) Refiguração. A atividade musicobiográfica é estabelecida a partir da experiência do estudante, impulsionada pelo tema em discussão, e os (e)feitos comprovados que transformam um modo de existência. O ponto central é acessar a experiência apresentando-a com seus (e)feitos produzidos. É uma atividade reflexiva cujas memórias produzem um (e)feito experiencial e transformador para o assunto em questão, qual seja: como a minha história de vida contribui para a minha aprendizagem musical.

Nesse contexto em que a música será sempre sonora, é possível dizer que o professor ao ouvir a sonoridade do outro fará com que entenda melhor a sua própria e vice e versa. Cria-se, portanto, um ambiente que se reconhece o outro respeitando as alteridades. Portanto, retomando a narrativa do professor Edson Oliveira de que, “talvez um dos grandes efeitos da musicobiografização é o sentido” (EDSON OLIVEIRA, EM, 2020) concluímos, com ele, que o sentido está no feito biográfico capaz de ampliar a percepção sonora que se tinha antes de iniciar esse trabalho em sala de aula. Pensando a intriga músico-educativa com os estudos de Ricoeur (1994, p. 89), entendemos que esta é uma “competência que se pode chamar de compreensão prática”. Essa competência do docente de música, que atua no campo da educação musical, como frisou o professor Edson, “a gente consegue, de fato, ao construir uma educação musical que faça sentido para além dos currículos ou meros conteúdos” E isso se constrói tendo “o estudante como protagonista”.

O professor Edson Oliveira também problematiza nesta narrativa o campo da educação musical que discute currículos e conteúdos. Isso quer dizer que currículos e conteúdos musicais são associados pela articulação que o professor faz em sala de aula. Uma coisa não está desassociada da outra, pelo contrário, como nos esclarece Abreu (2011, p. 123), “a escola quer que o aluno aprenda, o professor quer que o aluno aprenda, por isso, as estratégias de ensino são utilizadas para que o aluno se deixe aprender, e isso o professor conquista no tato pedagógico”.

Trazer o estudante como protagonista é um ponto que o professor Edson Oliveira considera como fundamental em suas práticas. Ele entende que a perspectiva musicobiográfica o ajudou a pensar uma aprendizagem musical que faça sentido para o estudante, apesar dos currículos que muitas vezes limitam esse trabalho. Por isso enxerga a necessidade partir de músicas que “compõem a história” do estudante. Nesse sentido, Pereira (2014, p. 91) relaciona o currículo com o “hábitus conservatorial” entendendo que os professores de música muitas vezes se veem submetidos a currículos que parecem desconsiderar a realidade das escolas e dos estudantes.

Em suas narrativas, o professor Edson Oliveira deu um exemplo de como o currículo pode ser um empecilho para uma aprendizagem que faça sentido para o estudante relatando o caso de uma aluna que tinha dedicado sua vida a estudar o violão na perspectiva do concertista. Quando essa aluna recebeu uma proposta de trabalhar acompanhando uma cantora popular, precisou de sua ajuda, pois lhe faltavam conhecimentos básicos de ritmos populares brasileiros.

Com esse exemplo, o professor Edson demonstra o seu entendimento de que, muitas vezes, o conteúdo musical proposto nos cursos de graduação em música está distante da realidade dos estudantes. E como fazer essa aproximação? Para ele, a musicobiografização contribui nas práticas docentes se protagonizando como figura de ligação entre o mundo da vida com o mundo acadêmico. Nos termos de Abreu (2011, p. 23), na relação de “saberes relativos àquilo que é dado e que produz efeito”. A autora sugere que a constituição desses “saberes da experiência” remete a “saberes singulares, impossíveis de serem modelados de modo mecânico” e que, muitas vezes, continuam sendo ignorados. Nesse sentido, o professor Hugo Souza sugeriu que professores de música saibam escutar o estudante e compreendam seus anseios e expectativas para, assim, ser um agente de (trans)formação naquele ambiente.

Precisamos saber transformar esse ambiente de ensino e aprendizagem em um ambiente de formação musicobiográfica onde um escute o outro, sabendo que o estudante tem anseios e expectativas sobre o próprio projeto [de vida], pois não estamos lá apenas para empurrar o conteúdo consolidado pela academia. Apesar de ser difícil acompanhar a vida do aluno para pautar suas aulas, é muito gratificante quando enxergamos os frutos disso. Quando terminei o mestrado, eu estava em um conflito de como transformar minhas aulas em musicobiográficas e, então, fui me reconfigurando como professor. Ainda temos muito que aprender, temos acertos, erros, desafios, mas percebo que tenho trazido aos alunos um estímulo para que eles pensem sobre eles mesmos e sobre suas relações com a música (HUGO SOUZA, EF, 2021).

Nos chama a atenção a narrativa do professor Hugo com a frase inicial, “saber transformar esse ambiente de ensino e aprendizagem”. O que seria esse saber transformar senão àquilo que trata Passeggi (2021) um poder (auto)transformador. E isso é o que relata o professor ao destacar que quando terminou o mestrado, a sua pesquisa trouxe, de forma inovadora, o dispositivo formativo do ateliê musicobiográfico. Inovar, no seu caso, é enxergar naquilo que está dado, algo que ainda não tinha sido explorado, isto é, um saber-poder transformar suas aulas em práticas musicobiográficas. Para tanto, o professor tem consciência de que é no ato de refigurar-se que esse poder (auto)transformador acontece. Dito de outro modo, não basta configurar uma pesquisa sobre e com o ateliê musicobiográfico, era preciso ir mais adiante para sentir, na refiguração de si mesmo com um outro, um professor que vive a pesquisa na prática, que coloca em movimento um dispositivo formativo nessa perspectiva.

Ter um projeto de vida como professor, neste caso, um projeto com a pesquisa musicobiográfica é trazer para a prática os efeitos do vivido com a pesquisa, pois como relatou em sua pesquisa, trata-se de assumir “como docente de música em uma instituição de educação profissional e tecnológica, propostas e projetos formativos musicobiográficos, indicando caminhos para uma formação musical que traga sentido no projeto de vida do sujeito” (SOUZA, 2018, p. 07). E, de fato, os efeitos da pesquisa parecem ainda reverberar na prática do professor que, após três anos de formado no mestrado, está atento ao saber escutar o seu estudante com suas “expectativas sobre os seus projetos de vida” (SOUZA, 2018, p. 08).

Trabalhar na perspectiva de projetos de vida é tão fundamental que a própria Base Nacional Comum Curricular – BNCC para o novo ensino médio tem enfatizado a importância de se partir e entrelaçar os itinerários formativos dos estudantes. Porém, o que faz adensar essa proposta da BNCC é que o professor de música, Hugo Souza, considera para “um ambiente de formação musicobiográfica”, aquele em que os estudantes “pensem sobre eles mesmos e sobre suas relações com a música” levando-os, nos termos de Ricoeur (1994), a um refigurar-se com as possibilidades que o ensino e a aprendizagem musical oferecem para a construção de projetos de si.

O professor Hugo chama a atenção, no ato de narrar, para aquele docente de música que constrói um ambiente em sala de aula, cujo projeto de vida do estudante seja o norte e não apenas os conteúdos pré-estabelecidos. Também nos ensina que mais que acompanhar a vida do estudante é ver os efeitos do vivido com a música, nas palavras dele, “os frutos disso” (SOUZA, 2018, p. 148).

Essa retroalimentação da sua formação com a pesquisa e, agora, com a prática musicobriográfica em ambiente escolar é uma estratégia, um tato pedagógico que tenha “a visada musicobriográfica da formação musical [...] que traz a memória lembrança-musical para o processo de formação e cria uma abertura para a reflexividade na configuração das narrativas que visa o refigurar-se na práxis” (SOUZA, 2018, p. 149).

As narrativas do professor Hugo mostram sua preocupação em proporcionar aos estudantes um “ambiente de formação” que os estimulem a “pensar sobre eles mesmos e sobre suas relações com a música”. Quando utilizou o próprio ambiente de trabalho em sua pesquisa para desenvolver o ateliê musicobiográfico, ele intencionava que aqueles estudantes pensassem em vários aspectos de sua vida que pudessem relacionar com suas experiências musicais. De modo que, o professor Hugo entendeu que o ateliê seria um dispositivo formativo, um ambiente de formação musical que “tem seu foco no sujeito e visa promover uma formação musical em que se apreenda outros aspectos da vida para além do musical” (SOUZA, 2018, p. 180).

Desse modo, o professor retoma os aprendizados advindos de sua pesquisa e manifesta o cuidado em mantê-la viva, buscando se reconfigurar como professor e pensar numa prática que seja, de fato, musicobiográfica. Porém, reconhece que enfrenta dificuldades para manter suas ideias presentes em suas práticas, pois entende que seria mais fácil apenas “empurrar o conteúdo” previsto para suas turmas e que, apesar de “erros e acertos” continua com a convicção trazida de sua pesquisa de que as práticas musicobiográficas não atrapalham o aprendizado do conteúdo e sim proporcionam uma “aprendizagem biográfica” de forma que o conhecimento faça parte da vida do estudante.

Tenho utilizado as obras do conteúdo previsto, mas antes de trazer essas obras, tenho proposto que eles analisam as próprias músicas da vida deles que eles levam. Recentemente propus uma atividade em que eles tinham que levar a música que era a top 1 da playlist deles no ano de 2020 e aí utilizei ideias da teoria do espiral do Swanwick para que eles analisassem as músicas e gravassem um podcast e, apesar de algumas dificuldades sobre o manuseio dos aplicativos que envolveram a gravação, algumas gravações me surpreenderam muito pelo nível de excelência trazendo análises a partir da perspectiva deles. Isso me surpreende porque, às vezes, achamos que há somente uma forma de analisar a música, atendendo os conteúdos previstos, mas quando os estudantes fazem uma escuta ativa da música e conseguem extrair aquilo que eles consideram como valioso, muitas vezes eles trazem aquilo que o professor pediu e muito mais, nos surpreendendo. Uma aluna fez uma análise de “autumm leaves” que nem eu faria, porque veio dela, da história dela com a música. Assim, os saberes musicais vão aparecendo sem necessariamente engessar o processo de formação. Dessa forma, eles se formam não só musicalmente, mas como indivíduos, como cidadãos, por isso eu chamo de formação musicobiográfica (HUGO SOUZA, EF, 2021).

O professor Hugo colocou em suas narrativas detalhamentos de sua atuação como docente e que reforçam a ideia da aprendizagem biográfica. Ele evidencia que a reflexividade musicobiográfica, trazidas para suas práticas, auxiliam no aprendizado do conteúdo musical. Inspirado na “teoria espiral do desenvolvimento musical” (SWANWICK, 2003), o professor trabalha a análise de músicas levadas pelos próprios estudantes para que sejam extraídos saberes musicais advindos dessas análises. Porém, se surpreende ao perceber que, para além das teorias de análise musical, há aquelas teorias biográficas, em que os estudantes, no caso, conseguem extrair aquilo que consideram como valioso. Ou seja, “trazem o que o professor pediu e muito mais”. Esse “muito mais” é explicado por Hugo como algo que só eles valoram que vivem ou viveram, que está imbricado com a sua “própria história com a música”.

Nessa direção, compreendemos com Abreu (2020, p. 252) que é na valoração da sua própria história com a música que “a força da sua história revela um modo de se constituir”. Nesse sentido, a reflexividade musicobiográfica se releva na prática musical, neste caso, no ato de analisar esta ou aquela música. Sendo assim, a música que escolhemos, que tem relação com a nossa história “nos intima e, ao mesmo tempo, ganha força na nossa história” (ABREU, 2020, p. 252). Para o professor Hugo esses são “saberes musicais que vão aparecendo sem necessariamente engessar o processo de formação”, ao contrário, “cria uma abertura para se seguir em várias direções de reflexão e ação. Seja a valorização da lembrança musical como acontecimento singular, como encontros memoráveis ou como estado de coisas que levam ao processo de reflexividade” (SOUZA, 2018, p. 149). Esse estado de coisas são operações que a tríplice mimese é capaz de enredar nas formas simbólicas com narrativas musicais e narrativas biográficas em que eles se formam não só musicalmente, mas como indivíduos, como cidadãos, o que nos leva a intencionar isso como formação musicobiográfica, ou musicobiografização.

Podemos inferir que essa “formação musicobiográfica” nominada pelo professor Hugo consiste em conduzir os estudantes a uma “escuta ativa” em que eles procuram, na força de suas histórias e escolha intencional, perceber cada elemento da linguagem musical nas “próprias músicas da vida deles”. Isso remete à escuta musical (auto)biográfica desenvolvida na pesquisa de Edson Oliveira (2018) em que nela e com ela “músicos, professores e estudantes de música, podem ter uma percepção múltipla e plural que vai além da escuta musical” (OLIVEIRA, 2018, p.91). Por meio dessa escuta, o professor Hugo estimula os alunos a escutarem não só elementos musicais, mas também elementos que dizem respeito às suas histórias de vida. Isso possibilita que os alunos entreguem uma análise musical com um nível “surpreendente”, talvez, não pela profundidade que uma análise musical requer em própria como linguagem, mas por diferentes formas simbólicas que adensam esse processo analítico que vem da subjetividade de cada estudante.

Esses saberes musicais trazem certa “convergência entre a dimensão dos saberes musicais, já consagrada no âmbito do ensino e aprendizagem de música, a dimensão da memória musical e as ideias acerca de aprendizagem e formação biográfica” (SOUZA, 2018, p. 154). Como autor, o professor Hugo entende em sua pesquisa de mestrado que a convergência desses saberes musicais e biográficos levam “à construção de uma perspectiva “musicobiográfica” da formação musical” (ibid., p. 154). Para ele, “esses momentos podem tornar-se palco de práticas musicais individuais e coletivas, de exploração e descobertas musicais e de sonoridades, de desenvolvimento de habilidades musicais” (SOUZA, 2018, p. 158).

Vemos que, tal coerência entre as narrativas do professor e também como autor que “os efeitos de se expor à situação de formação [...] podem levar o sujeito a compreender a si mesmo como um outro, sua temporalidade e seus lugares de experiência, seus saberes musicais e sua memória lembrança-musical reconfiguradas” (SOUZA, 2018, p. 168). É, portanto, uma forma de a música mediar, com a sua “materialidade passiva sobre a qual age o artista [sujeito professor e estudante]” (PASSEGGI, 2021, p. 06), a elaboração de uma musicobiografização em que “o sujeito se inscreve no mundo biografizando a sua existência” (SOUZA, 2018, p. 168).

Diante do exposto é possível analisar que, nesse ambiente formativo do qual trata o professor Hugo, este adquire novos aprendizados em suas práticas docentes. Assim, os coparticipantes da pesquisa seguem convictos de que é nesse processo de musicobiografização em sala de aula que ampliam saberes e experiências como narra o professor Gustavo.

Outra observação que eu acho muito interessante é que nesse processo musicobiográfico eu tenho ampliado muito meu repertorio musical pelas músicas que os estudantes levam. Assim, quando corrijo as atividades ouvindo os podcasts eu não apenas conheço novas músicas, mas as conheço por meio de analises de alguém que entende muitos elementos dessa música já que ela faz parte da vida dele. Então, essa ideia da musicobiografização acaba horizontalizando essa experiência. Afasta a ideia de que o professor é o responsável por trazer a novidade ou a nova música e é mais do que valorizar o repertório do aluno. É realmente compreender o repertório dele e o sentido que emerge desse repertorio (HUGO SOUZA, EF, 2021).

Adensamos essa compreensão com Torres (2020) que considera o repertório como uma playlist cujas escolhas musicais estão amalgamadas com momentos significativos de vidas. Tais escolhas podem acompanhar nosso entendimento de leitura das (auto)biografias como uma trilha sonora” (TORRES, 2020, p. 1598). A autora enfatiza que “as narrativas musicais trazem grandes contribuições para área da educação musical, pois apresenta uma perspectiva de aprendizado que valoriza e dá voz a um repertório” e completa que “não apenas por sua representatividade dentro da literatura musical, seus atributos de conteúdos técnicos, mas também pela relação afetiva que estabelece com o ouvinte durante diferentes momentos de sua vida [...] as playlists se constituem como autobiografias musicais pelas lembranças das práticas musicais, das histórias de formação ou das melodias escolhidas” (TORRES, 2020, p. 1611).

Percebe-se que esse “repertório” que o professor Hugo reconhece que vem ampliando não é apenas um repertório musical, mas também um repertório de novos conhecimentos. Isso porque cada estudante traz consigo uma história diferente, carregada de sentidos que ele mesmo atribui. Assim, quando os estudantes levam análises de músicas que “fazem parte da vida” deles, estão compartilhando saberes advindos da experiência. Larrosa (2002, p. 26 e 27) sugere que a experiência é uma espécie de mediação entre o conhecimento e a vida humana e, portanto, o saber da experiência se dá na relação entre ambos. Dessa forma o conhecimento é “ampliado” por meio de experiências musicais dos estudantes.

Esse fenômeno é entendido pelo professor Hugo como uma possibilidade de horizontalizar o conhecimento e a experiência, pois “afasta a ideia de que o professor é o responsável por trazer a novidade ou a nova música”. Diante disso, entendemos que um dos (e)feitos da musicobiografização que esses coparticipantes trabalham em suas práticas está na forma como se promove um “ambiente formativo” tanto para estudantes, quanto para os próprios professores. É um processo em que os estudantes se formam, com o que é levado pelo professor e pelos colegas, e o professor se forma com o que é levado pelos estudantes.

Como destaca o professor Hugo, isso vai além de valorizar o repertório do estudante, pois o professor busca compreender esse repertório envolto nas experiências musicais compartilhadas pelo estudante e nos sentidos que eles atribuem a essas experiências de maneira que o próprio professor se forma nesse processo “ampliando” seu repertório musical e, assim, novos conhecimentos vão surgindo.

Nesse mesmo sentido, o professor Gustavo entende que ao “compreender o repertório do outro” tem-se uma contribuição de que a musicobiografização uma vez que abarca estudos que tratam da complexidade humana. E isso é o que interessa ao campo da educação musical, no sentido dado por Kraemer (2000), que se debruça sobre tais complexidades vistas sob os aspectos de apropriação e transmissão musical. Esses são os problemas que interessam a esta área de conhecimento. Por isso, o sujeito na sua relação com a música é a figura central na produção de conhecimento. E essa produção de conhecimento advém das relações e das experiências do indivíduo com a música sendo, pois, uma das formas de compreender a totalidade do sujeito por aquilo que se deixa narrar.

Pela subjetividade da narrativa podemos contribuir inclusive com áreas fora da música. Diferente do texto objetivo e direto, temos na música uma subjetividade; algo que trabalha com sentimentos, memória afetiva. Percebemos que diversas áreas buscam trabalhar o sujeito de forma integral. Então, acho que a musicobiografização ajuda nesse sentido de compreender o sujeito, com seus sentimentos, suas subjetividades, suas abstrações (GUSTAVO ARAUJO, EF, 2021).

O que segue como base na narrativa do professor Gustavo é a subjetividade narrativa. Essa base é, nos termos de Bruner (2014, p.96), “o eu como produto de nosso contar e não uma essência a ser perscrutada”. Isso significa dizer, com o coparticipante, que compreender o sujeito é perscrutar o seu texto narrativo. Nele e com ele a subjetividade se levanta com sentimentos e abstrações. O texto narrativo subjetivo é, pois, a “memória-lembrança”, como nos lembra Souza (2018) e também a “memória afetiva”, como relata o professor Gustavo. Essa memória afetiva como nos ensina Passeggi (2021), com os estudos de Marcel Proust na obra “Em busca do tempo perdido”, são conexões dos sentidos – paladar, visão, tato, audição e olfato – no interior do cérebro examinados pelas sensações experienciadas entre a impressão do vivido e o sentido que queremos, podemos, desejamos ou sabemos atribuir” (PASSEGGI, 2021, p. 12).

De acordo com a autora e também com o coparticipante da pesquisa é um ato narrativo subjetivo que nos leva a rememorar e carregar de sentidos capazes de poder nos transformar. Portanto, esse ponto salientado pelo professor Gustavo de que “temos na música uma subjetividade”, nos ajuda a pensar que a memória afetiva, sentimentos e abstrações trabalhadas em sala de aula pelo professor de música, ou outros profissionais que se utilizam da música como meio, está ligado ao processo de musicobiografização, cuja experiência vivida e a consciência de si estão intrinsicamente vinculadas à reflexividade narrativa operacionalizada no ato de narrar ou de escutar – tocando, cantando, compondo, apreciando ou lendo suas próprias experiências ou as de outrem.

O professor Gustavo detalhou também em suas narrativas que as práticas musicais que ele desenvolve no Ensino Médio, são intencionalmente pensadas para que “a musicobiografização ajude a compreender como estudante compreende, com seus sentimentos, suas subjetividades, suas abstrações”. Uma das propostas de ensino elaboradas para o terceiro ano do Ensino Médio é trabalhar com composições musicais tendo como mote a recordação-referência de músicas que produzem sentidos para os estudantes. Com isso, o professor entrelaça motivos musicais como padrões ritmos, melódicos ou harmônicos com os motivos subjetivados pelos estudantes. Essa proposta tem por objetivo trabalhar o conteúdo musical no qual o professor auxilia o estudante a criar um motivo rítmico, melódico e harmônico com base em sua biografização com a música.

Com exemplos práticos extraídos da pesquisa de Araújo (2017) buscamos aclarar o conceito musicobiografização que vimos empreendendo até aqui. Ao tratar a música como linguagem em contextos escolares, Araújo (2017) trabalhou com as recordações referências de estudantes do ensino médio, na perspectiva de Josso (2004). De modo que, “os motivos musicais que combinam timbres, dinâmicas e sons em determinada forma musical” são identificados pelos sujeitos a partir das “narrativas (auto)biográficas produzidas com a música trazida de sua recordação-referência” (ARAÚJO, 2017, p. 111).

Nesse “percurso singular de composição, com a narrativa de formação musical, os estudantes negociam sentimentos de si próprios e formas musicais próprias, desenvolvendo sentidos na relação com o outro e com a música” (ARAÚJO, 2017, p. 112). Esta relação, da qual trata o autor, refere-se ao que aprendemos com a experiência formativa com o outro com base nas estruturas e interpretações das narrativas que escuta. Provém daí aquilo que Passeggi (2020, p. 69) denomina como “potencialidade didática das narrativas”, nos termos de Araújo (2017), um processo de musicobiografização desenvolvido na pesquisa-formação-ação. Para o autor, a musicobiografização “abre-se um leque de possibilidades de formação do participante com determinados motivos musicais que se configuram como recursos pedagógicos e composicionais pelos quais o participante pode expressar-se em sua narrativa musical, utilizando-se deles, conscientemente, para expressar o que eles lhe representam”. Isso significa que “são por meio dos acontecimentos significativos em suas vidas, trazidos nos episódios narrados, que passam a reconhecer também os motivos musicais” (ARAÚJO, 2017, p. 93-96).

Esses motivos musicais associados aos sentidos atribuídos pelos estudantes são exemplificados nas transcrições musicais feitas pelo autor, com narrativas de estudantes do Ensino Médio, seus alunos.


Figura 1
Trecho transcrito da música Dom Quixote

“As entradas com o violão da música Dom Quixote me lembram bastante as viagens que eu fazia com a minha família”. Nesse trecho podemos identificar um motivo rítmico e melódico que se repete, no trecho o qual o participante se refere. E tal motivo torna-se recorrente em outra música recordação-referência de Matuzalem que é o Leãozinho. (ARAÚJO, 2017: 94)


Figura 2
Trecho transcrito da Leaozinho

E assim seguem as outras músicas, compostas por outros compositores de décadas anteriores ao seu nascimento, mas que o participante identifica-se com elas em consonância, pois as escutava em sua infância por causa de seus pais. Compreendendo para si que, “se são músicas de velho... Eu me considero um velho aos 15 anos.” (ARAÚTIO, 2017: 94)


Figura 3
Trecho transcrito da música A Desconhecida

Na música “A Desconhecida”, o motivo retorna para o violão em sua introdução. Como pode ser observado, além do motivo estar presente na introdução do violão, nos dois últimos compassos dela o contrabaixo elétrico desenvolve sua melodia com o mesmo motivo durante toda a música. Dessa maneira, percebemos um acontecimento musical se tornar motivo recorrente nas músicas relatadas pelo participante. Que, ao se dar conta disso, empodera-se para compreender os motivos estéticos daquilo que escuta, a partir da pesquisa-formação-ação. A partir daí, outros motivos recorrentes foram percebidos, entrelaçando outras músicas de sua vida. (ARAÚJO, 2017: 94-96)

Diante desses exemplos elaborados pelo autor, com os efeitos vividos com essa pesquisa em sala de aula e agora como coparticipante da pesquisa, a sua reflexividade narrativa impacta em sua prática quando mostra o aprofundamento de suas elucubrações colocando em prática e vendo nela os resultados da práxis.

Entendemos com o coparticipante uma inversão de fluxos complementares: por um lado a intenção de trabalhar o conteúdo musical, partindo das experiências e da subjetividade dos estudantes e, por outro lado, a intencionalidade de que essa subjetividade seja o mote para empenhar-se na aprendizagem do conteúdo musical.

Assim, compreedemos que a narrativa do professor Gustavo demonstra que sua pesquisa gerou efeitos em sua formação, pois despertou nele novas visões a respeito do que é ser professor de música, de quais atribuições esse professor tem, como pode contribuir para a formação musical e ética dos estudantes, como seu trabalho pode trazer contribuições para a sua comunidade escolar como também, em um âmbito de maior alcance, para o campo da educação musical.

Essas concepções presentes nas narrativas do professor Gustavo é uma demonstração do que esse encontro com os coparticipantes representou: um momento em que eles refletiram sobre suas próprias práticas e sobre efeitos da musicobiografização que podem ser observados tanto na formação musical, como na formação ética dos estudantes que impactam, também, na formação do professor, ao horizontalizar o conhecimento e a experiência.

Segundo os coparticipantes, esse encontro promovido com os três foi formativo, pois os pontos levantados ajudaram no avanço da construção do conceito de musicobiografização, como narrou o professor Edson:

Participar desse encontro está sendo formativo para mim, porque a gente traz à tona, para além de quem somos, quem “estamos sendo” nesse momento. Somos sujeitos aprendentes, sempre em transformação e trazer essa possibilidade de pensar em “quem estamos sendo” é importante para pensarmos nossa prática (EDSON OLIVEIRA, EF, 2021).

A percepção do professor Edson de que o encontro “está sendo formativo” mostra o que é no ato narrativo que acontece a formação. Pensando com Delory-Momberger (2012, p. 535), empreendemos nesse encontro os protocolos teórico-metodológicos da pesquisa (auto)biográfica. Nesse circuito da narratividade, os coparticipantes se colocaram em ação na compreensão de si e do outro. O princípio formativo calcado no agir – “estamos sendo” – é um modo de se colocar em constante movimento, trilhando “os caminhos de uma hermenêutica da relação” (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 535) em que, neste caso, pesquisadores e professores empreendem um trabalho de autoria. De modo que, o efeito produzido é apreendido no texto narrativo, no ato de contar. Como pesquisadores, nos cabe “contar aquilo que contam os relatos dos outros. É pouco e é muito, é o preço de uma ciência humana”, uma ciência da educação musical na perspectiva musicobiográfica. E, parafraseando Delory-Momberger (2012, p. 535), “é esse o seu tesouro”.

Nesse mesmo sentido, Passeggi (2021, p. 2), sugere que a pessoa que narra “reconstitui uma versão de si ao repensar suas relações com o outro e com o mundo da vida”. A autora também entende que “a ação de narrar e de refletir sobre as experiências vividas, ou em devir, permite dar sentidos ao que aconteceu, ao que está acontecendo, ao que pode mudar ou permanecer inalterável” (p. 2). Nesse sentido, esse encontro com os coparticipantes foi um momento em que puderam exercer a reflexividade narrativa, na refiguração de si com aquilo que fazem em suas práticas.

Por fim, como nos esclarece Abreu (2019, p. 246-247), os pressupostos teóricos e metodológicos da pesquisa (auto)biográfica e sua representatividade no campo da educação musical nos ajuda com compreensões de que a perspectiva musicobiografica produz conhecimentos educativo-musicais quando estes são entrelaçados com os (e)feitos do vivido por aqueles que contam os seus feitos musicobiográficos.

Algumas Considerações

Ao concluir a pesquisa, compreendiemos que os três coparticipantes da pesquisa engendram uma vida-formação refigurada. Assim, a reflexividade narrativa é constitutiva de uma força potencial geradora de impactos nas práticas músico-educativas desses profissionais. Isso acontece quando mostram o aprofundamento de suas elucubrações vendo com elas os resultados da práxis. Nessa perspectiva, a intriga é mediadora por ter seus caracteres temporais próprios. É a intriga, configurada em narrativa oral, escrita ou musical que faz da ligação entre as dimensões temporais o papel importante para o sentido da narrativa.

As experiências do mestrado foram permeadas pelas reflexões e descobertas, junto ao grupo de pesquisa em que esses professores participam. Esse conjunto de ações formativas geraram conhecimentos que, hoje, são concebidos em suas práticas profissionais. Assim, como construto resultante da pesquisa, trago o entendimento de que as dimensões musicobiográficas, advindas das narrativas (auto)biográficas geraram uma análise que se configurou mediante a cooperação mútua dos três coparticipantes nas ações músico-educativas com os (e)feitos da formação com a pesquisa. Tais (e)feitos são capazes de fazer emergir um si mesmo como um outro na alteridade, como é o caso da cooperação mútua entre o campo da educação musical e da pesquisa (auto)biográfica – campos fertilizadores de teorias biográficas para a formação musical dos indivíduos.

 

REFERÊNCIAS

ABREU, Delmary Vasconcelos. A musicobiografização como intriga narrativa: um ensaio teórico entre pesquisa (auto)biográfica e educação musical. ORFEU, Florianópolis, v. 7, n. 1, p. 2-22, abr. 2022.

ABREU, Delmary Vasconcelos. História de Vida de uma intelectual brasileira: Jusamara Souza e seus desafios epistemológicos com a educação musical. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica, Salvador, v. 05, n. 13: 243-260, jan./abr. 2020.

ABREU, Delmary Vasconcelos. A historia de vida aguçada pelos biografemas: um recorte da história de vida de Jusamara Souza com o campo da educação musical. Revista da Abem, v. 27, n. 43:150-167, jul/dez, 2019.

ABREU, Delmary Vasconcelos. A história de vida de Jusamara Souza com a Educação Musical. Projeto de pesquisa de pós-doutorado em Educação. Universidade de Pelotas, 2018.

ABREU, Delmary Vasconcelos de. A construção da educação musical no Distrito Federal: histórias de vida na perspectiva epistêmico-metodológica. In: MIGNOT, Ana Chrystina; MORAES, Dislane Zerbinatti; MARTINS, Raimundo (Orgs.). Atos de Biografar: Narrativas Digitais, História, Literatura e Artes na Pesquisa (Auto) Biográfica. Volume 2. São Paulo: Editora CRV, Janeiro, 2018, p. 313-335.

ABREU, Delmary Vasconcelos. História de vida e sua representatividade no campo da educação musical: um estudo com dois educadores musicais do Distrito Federal. Revista Intermeio. Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande/MS, 2017.

ABREU, Delmary Vasconcelos de. Tornar-se professor de música na educação básica: um estudo a partir de narrativas de professores. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Artes. Programa de Pós-graduação em Música. 2011.

ALMEIDA, Jéssica. Perspectivas da pesquisa (auto)biográfica para a educação musical: um exercício metanarrativo. ORFEU, Florianópolis, v. 7, n. 1, p. 2 – 24, abr. 2022.

ARAÚJO, Gustavo Aguiar Malafaia. Construindo sentidos na Educação Musical: pesquisa-formação-ação com estudantes da primeira turma de ensino médiointegrado do IFB-CESAM. Dissertação de mestrado. PPG – MUS/UnB, 2017.

BENJAMIN, W. Obras Escolhidas I – Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. 7 ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

BLACKING, John. Música, cultura e experiência. Cadernos De Campo (São Paulo 1991), 16(16), 201-218. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133. v16i16p201-218.

BRUNER, Jerome. Fabricando histórias. Direito, Literatura, Vida. Tradução Fernando Cássio. São Paulo: Letra e Voz, 2014.

DELORY-MOMBERGER, Christine. Formação e Socialização: os ateliês biográficos de projeto. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 32, n. 2, p. 359-371, maio/ago. 2006.

DELORY-MOMBERGER, Christine. Christine. Abordagens metodológicas na pesquisa biográfica. Revista Brasileira de Educação, Vol. 17, nº 51, set./ dez., 2012.

FERRAROTTI, F. Sobre a autonomia do método biográfico. In: (Orgs)NÓVOA, Antônio. FINGER, Matthias. O método (auto) biográfico e formação. Natal. UFRN: EDUFRN, 2014.

FERRAZ, C. B. Em busca da Geografia perdida: poética, narrativa e paisagem em Marcel Proust. Revista Geografia, Literatura E Arte, 1(1), 148-170. 2018.

JOSSO, Marie-Christine. Experiências de Vida e Formação. São Paulo: Cortez, 2004.

KRAEMER, R.-D. Dimensões e Funções do Conhecimento Pedagógico-Musical. Trad. Jusamara Souza. Revista Em Pauta, v.11, n. 16/17, p.48-73, 2000.

LAROSSA, B. J. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 19 (2002): 20-28.

OLIVEIRA, Edson Barbosa de. A constituição da experiência de três violonistas acompanhadores: um estudo com documentação narrativa. Dissertação de mestrado. PPG – MUS/UnB, 2018.

PASSEGGI, M. C. Refexividade narrativa e poder (auto)transformador. Praxis educacional (ONLINE), v. 17, p. 1-21, 2021.

PEREIRA, Marcus Vinícius Medeiros. Licenciatura em músia e Habitus conservatorial: analisando o currículo. Revista da ABEM, v. 22, p. 90-103, 2014.

PITANGA, Daniel Martins. Candeeiro Musical: três histórias de vida em formação com a música e a construção de memórias na cultura popular. Dissertação de mestrado. PPG – MUS/UnB, 2021.

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Tomo I. Tradução de Constança Marcondes Cesar. Campinas: Papirus, 1994 (1983).

RICOEUR, Paul. Hermenêutica e Ideologias. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

ROSA, M. I. P.; RAMOS, T. A.; CORRÊA, B.R.; ALMEIDA JR, A.S.A. Narrativas E Mônadas: potencialidades para uma outra compreensão de currículo. Currículo sem Fronteiras, v.11, n.1, pp.198-217, Jan/Jun 2011.

SANTAELLA, Lucia. Matrizes da linguagem e pensamento: sonora, visual, verbal. São Paulo: Fapesp, 2005.

SOUZA, Hugo Guimarães. O Ateliê Musicobiográfico como projeto formativo: um estudo com estudantes do Instituto Federal de Brasília – Campus Ceilândia. Dissertação (Mestrado em Música). Programa de Pós-Graduação Música em Contexto. Universidade de Brasília, 2018.

SUÁREZ, Daniel H. Los docentes escriben para investigar e formarse. La red de documentación narrativa em Argentina. Revista Trayectoria, n. 3. 2015.

SWANWICK, Keith. Ensinando música musicalmente. São Paulo: Moderna, 2003.

TORRES, Maria Cecília Araújo Rodrigues. Playlists em tempos de pandemia da covid19: narrativas de educadores e educadoras musicais integrantes de um grupo de estudos. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica, Salvador, v. 05, n. 16: 1595-1613, Edição Especial, 2020.

Notas

1. Mestre em Educação Musical UnB, com graduação em Música na mesma instituição. É professor substituto no curso de Licenciatura em Música no Departamento de Música da UnB, professor de trompete na Escola de Música de Brasília e membro do grupo de pesquisa Educação Musical e Autobiografia.

2. Docente de música da UnB, com doutorado em música pela UFRGS, mestrado em linguagem pela UFMT, graduação em letras pela UNEMAT/UFMT e graduação em música pelo IPA/RS. Possuiu pós-doutorado em educação na linha cultura, escrita e linguagens pela UFPel. É coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Música da UnB e líder do grupo de pesquisa Educação Musical e Autobiografia.