Dossiê
Abrindo horizontes para uma perspectiva musicobiográfica:
um recorte analítico de uma pesquisa com três professores de música
OPENING HORIZONS FOR A MUSICOBIOGRAPHIC PERSPECTIVE: An analytical cut
of a research with three music
teachers
Haniel
Henrique Vieira de Queiroz¹ haniel.queiroz@unb.br
Universidade de Brasília, UnB, Brasil
Delmary
Vasconcelos de Abreu² delmaryabreu@unb.br
Universidade de Brasília, UnB, Brasil
Revista
Orfeu
Universidade do Estado de
Santa Catarina, Brasil
ISSN: 2525-5304
Periodicidade: Semestral
vol. 7, núm. 1, 2022
revistaorfeu@gmail.com
Recepção: 23 Fevereiro
2022
Aprovação: 30 Junho
2022
Autores mantém os
direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação.
Este trabalho está sob uma Licença Internacional Creative Commons Atribuição 4.0.
Resumo: Este
trabalho é um recorte de uma pesquisa concluída em nível de mestrado que teve
como objeto de estudo os processos de musicobiografização
de três professores de música a partir de suas pesquisas realizadas no mestrado.
O objetivo principal da pesquisa consistiu em compreender como esses
profissionais vêm refigurando-se com suas pesquisas
nas práticas músico-educativas. O referencial teórico esteve centrado na teoria
da tríplice mimese de Paul Ricoeur – prefiguração,
configuração e refiguração – no tempo e narrativa.
Como referencial metodológico, a pesquisa utilizou o método biográfico, tendo
como fonte as narrativas (auto)biográficas de professores. Para este artigo,
tomamos como objetivo apresentar uma síntese analítica da pesquisa concluída
destacando compreensões a respeito do conceito de musicobiografização
que foram se delineando com a pesquisa. Ao concluir a pesquisa, compreendemos
que os três coparticipantes da pesquisa engendram uma vida-formação refigurada. Assim, a reflexividade narrativa é constitutiva
de uma força potencial geradora de impactos nas práticas músico-educativas
desses profissionais.
Palavras-chave: Professores de música,
Narrativas (auto)biográficas, Musicobiografização.
Abstract: This work
is an excerpt
of a complete research at the master’s
level that had as its object
of study the musicobiographization
processes of music teachers from their
research carried out in the master’s degree.
The main objective of the research
is to understand
how these professionals have been reconfiguring themselves with their research in music-educational practices. The theoretical framework was centered on Paul Ricoeur’s theory of the triple mimesis
– prefiguration, configuration
and refiguration – in time and narrative. As a methodological reference, the research used
the biographical method, having as source the (auto) biographical narratives of teachers. For this article, we
have as main objective to present
an analytical synthesis of the
completed research, highlighting understandings about the concept
of musicobiographization that were outlined
with the research. At the conclusion of the
research, we understand that the three co-participants
in the research engender a reconfigured life-formation. Thus, narrative reflexivity constitutes a potential force that generates impacts on the
musician-educational practices
of these professionals.
Keywords: Music teachers,
(Auto)Biographical Narratives,
Musicobiographization.
Introdução
Este trabalho consiste em um recorte de uma pesquisa concluída
de mestrado que teve como objeto de estudo os processos de musicobiografização
de três professores de música a partir de suas pesquisas realizadas no Programa
de Pós-Graduação em Música da Universidade de Brasília – PPGMUS-UnB. Tomamos
como objetivo deste trabalho apresentar uma síntese analítica da pesquisa
concluída, destacando compreensões a respeito do conceito de musicobiografização que foram se delineando com a pesquisa.
Consideramos relevante destacar, em primeiro lugar, que
escolhemos trabalhar com professores de música que produziram pesquisas com
abordagem (auto) biográfica e que levam para seus contextos profissionais
saberes adquiridos com suas pesquisas. Assim, esses profissionais, egressos do
PPGMUS-UnB, buscam desenvolver uma docência em música permeada por elementos
advindos de suas pesquisas concluídas.
Uma vez que a construção do conceito de musicobiografização
tem por intuito “fazer aproximações no diálogo entre o campo da pesquisa
(auto)biográfica com o campo da Educação Musical” (ABREU, 2018, p. 10), a pesquisa colocou em
discussão como os três professores compreendem esse conceito em suas práticas
docentes.
Ultimamente, o Grupo de Pesquisa Educação Musical Escolar e
Autobiografia – GEMAB, tem feito um exercício epistemo-empírico
no qual a música como linguagem e expressão do humano é o mote para pensar o
sujeito e sua inscrição (auto)biográfica no mundo. O termo musico-bio-grafi-zação tem em sua
semântica noções fundadas na escrita da vida do sujeito que se forma com a
música. Porém, esses estudos têm tido avanços com os ensaios teóricos escritos
por Abreu (2022). Destaca-se que o termo
nocional tem entendido a música como o “elemento mediador da construção de
nossas histórias e experiências formativas que com ela foram registradas” (ABREU, 2022, p. 13).
O referencial teórico da pesquisa esteve centrado na teoria da
tríplice mimese de Paul Ricoeur
(1994) – prefiguração, configuração e refiguração
– no tempo e narrativa. Esse referencial foi também fundamental para o processo
de análise das narrativas dos professores coparticipantes da pesquisa, no qual
foi possível evidenciar suas compreensões a partir das experiências narradas
durante o processo de entrevista. A pesquisa utilizou o método biográfico, que
busca atribuir à subjetividade um valor de conhecimento científico, lendo a
realidade do ponto de vista de um indivíduo (FERRAROTTI,
2014, p. 32). Com esse método, os materiais biográficos se dividem em dois
grupos: primários e secundários Os materiais biográficos primários são
recolhidos de forma direta pelo investigador (face to face), enquanto que os materiais biográficos
secundários são “documentos biográficos” que não são possíveis de serem recolhidos
de forma primária como fotos, correspondência, recortes de jornais, etc. Para o
autor, é necessário que haja uma valorização dos materiais primários, que são
providos de uma “subjetividade explosiva” e que são capazes de estabelecer uma
comunicação interpessoal “complexa e recíproca entre o narrador e o
investigador” (FERRAROTI, 2014, p. 40).
Assim, estabelecemos como fonte primária a entrevista narrativa
(auto)biográfica.
Durante a pesquisa foram realizados encontros onde os
coparticipantes compartilharam relatos que nos ajudaram a compreender melhor a
formação deles como docentes de música e pertencentes ao “movimento
(auto)biográfico em educação musical” (ALMEIDA,
2022). Os materiais secundários, compostos pelos documentos e pelos
relatórios de práticas docentes desses professores, foram recursos
complementares para conhecermos o mundo dos coparticipantes, em especial suas
pesquisas e suas formas de lecionar.
Neste trabalho, as dimensões da musicobiografização,
à luz da tríplice mimese (RICOEUR,1994),
abriram horizontes para acompanhar os três profissionais na forma como eles
prefiguram suas experiências formativas com suas pesquisas, configurando-as em
suas práticas docentes e refigurando pela
reflexividade narrativa. Esses elementos da estrutura narrativa, na perspectiva
da tríplice mimese, adensados com a linguagem musical se combinam para
entendemos que a música está contextualizada no mundo da vida, carregada de
possibilidades de significações, tendo assim, um potencial formativo.
Convém salientar que, na pesquisa os sujeitos são chamados de
“coparticipantes”, termo cunhado por Suarez
(2015) que entende que os sujeitos da pesquisa participam no processo de
construção das informações. Logo, se formam por meio de suas narrativas, com os
relatos de experiência desta formação e, no processo da pesquisa, têm a possibilidade
de refigurar-se, ou seja, na medida que vão narrando
também lentificam a escuta de si e tem, neste momento
da entrevista, a oportunidade de organizar a trama narrativa tomando-a como um
dispositivo formativo, ao olhar para as suas próprias práticas elucidadas no
ato de narrar.
Os professores
coparticipantes e suas pesquisas
No processo de escolha desses sujeitos, observamos que no
semestre de 2019/2, três profissionais, integrantes do GEMAB, iniciaram uma
pesquisa-formação-ação no projeto de extensão denominado “A musicobiografização
na pesquisa-formação em Educação Musical”. O projeto tem como propósito
“conhecer e pôr em discussão alguns aportes teóricos e metodológicos da
pesquisa (auto) biográfica em educação musical com estudos da experiência pedagógico-musical
de professores de música” (ABREU, 2019 p.10).
Assim, compreendemos que a participação desses profissionais no
projeto de extensão supramencionado evidenciava o interesse deles em continuar
suas pesquisas, agora na prática, a fim de trazer novos resultados e
descobertas. Segundo a coordenadora desse projeto, a prioridade da extensão
universitária está tanto no apoio a resoluções de problemas educacionais, como
nas “ações construídas com os professores de música que atuam nos diferentes
espaços educacionais, em especial nas escolas de educação básica” (ABREU, 2018 p. 06). Dessa forma, os
participantes desse projeto de extensão buscavam acompanhar os desdobramentos
de suas pesquisas com a intencionalidade de gerar efeitos na prática com os
saberes adquiridos por meio delas.
Destacamos aqui, os coparticipantes da pesquisa com seus nomes
próprios e pela ordem alfabética. O primeiro professor, Edson Barbosa de
Oliveira, vem desenvolvendo alguns projetos com foco no violão de
acompanhamento, onde tem a oportunidade de pôr em prática conhecimentos
advindos de sua pesquisa. Além disso, atuou como professor substituto no
Departamento de Música da UnB, onde desenvolveu um projeto com estudantes do
curso de licenciatura em música em uma disciplina chamada de Seminário em
Educação Musical. Neste seminário, ele conta que colocou em prática os
princípios da pesquisa (auto)biográfica em educação musical, advindos de sua
pesquisa concluída.
Os outros dois professores, Gustavo Aguiar Malafaia de Araújo e
Hugo Leonardo Guimarães de Souza são professores de música concursados no
Instituto Federal de Brasília. O primeiro atua no campus Samambaia (IFB-CSAM) e
o segundo no campus Ceilândia (IFB-CCEI). Além da parceria no projeto de
extensão da UnB, ambos desenvolvem, concomitantemente, um projeto de extensão
promovido entre os dois Institutos em que atuam no modelo de “ateliê musicobiográfico”. Este modelo é fruto da pesquisa de Hugo
Leonardo Guimarães de Souza. (cf. SOUZA,
2018)
Para a realização desse trabalho, foi fundamental conhecermos as
pesquisas desenvolvidas pelos três coparticipantes da pesquisa – (ARAÚJO, 2017, SOUZA, 2018 e OLIVEIRA, 2018), pois possibilitou a
construção do objeto de estudo. A pesquisa do professor Gustavo tomou como
abordagem metodológica a “pesquisa-formação-ação” – PFA (ARAÚJO, 2017). O autor buscou compreender
como as experiências musicais podem contribuir no processo formativo de jovens
estudantes do ensino médio do IFB-CSAM. Logo, trouxe reflexões a construção do
sentido das experiências formativas com música. Para compreender como os
estudantes constroem sentidos com a música em suas experiências, práticas, usos
e valores simbólicos, ele conta que os participantes exercem e atribuem a suas
“recordações-referências” que, segundo Josso (2004), são símbolos daquilo que o participante
compreende como elemento constitutivo da sua formação.
A pesquisa do professor Hugo teve como foco as experiências
musicais do sujeito com o lugar (SOUZA,
2018). Para tanto, buscou na abordagem metodológica fazer uma transposição
do dispositivo formativo “ateliê biográfico” (DELORYMOMBERGER,
2006) para cunhar o termo Ateliê Musicobiográfico
de Projeto (AMBP). Nele, os sujeitos produzem e partilham narrativas escritas –
de forma que a música é utilizada como um instrumento semiótico na produção de
narrativas.
O professor Edson, por sua vez, trouxe em sua pesquisa reflexões
sobre a constituição da experiência do violonista acompanhador. Para tanto,
tomou como metodologia da pesquisa-formação-ação com foco na Documentação
Narrativa, proposta por Suarez (2015).
Considera-se que a pesquisa traz contribuições para a área da educação musical,
ao focar nas práticas de ensino do violão com destaque para os saberes constitutivos
do violonista acompanhador que são pensados, por ele em um decálogo de saberes,
como uma proposta pedagógico-musical. Tais especificidades levam o autor a
fazer aproximações do violonista acompanhador com o “professor acompanhador” (OLIVEIRA, 2018).
Assim, chegamos a alguns questionamentos que foram fundamentais
para o desenvolvimento da pesquisa que teve como “mote gerador o movimento
(auto) biográfico na região centro oeste e seus impactos” (QUEIROZ, 2021, p.
30). Dentre os questionamentos inquietava-nos saber: como esses profissionais
têm colocado em prática os resultados de suas pesquisas? Quais são, na
perspectiva deles, os efeitos gerados na prática? Como esses profissionais vêm refigurando-se com suas ações nos contextos em que atuam?
Na sequência, tomamos como objetivo geral da pesquisa
compreender como esses profissionais vêm refigurando-se
com suas pesquisas nas práticas músico-educativas. Os objetivos específicos
foram: elucidar conhecimentos que têm sido gerados em suas práticas
músico-educativas na perspectiva musico-biográfica e; mostrar como o conceito
de musicobiografização tem sido aprofundado na
prática, mediante a reflexividade narrativa dos coparticipantes. Para responder
as questões e objetivos, a pesquisa utilizou como fonte a entrevista narrativa
como materiais biográficos primários. Os materiais secundários, foram compostos
pelos seguintes documentos: dissertação de mestrado dos coparticipantes e
relatório das observações de algumas de suas aulas no contexto educacional em
que atuam ou atuaram, como é o caso do professor Edson Oliveira.
As narrativas evidenciaram os esforços dos coparticipantes em
continuar seus estudos e reflexões no GEMAB, buscando maiores compreensões
teóricas do conceito musicobiografização, que vem
sendo desenvolvido pelos membros do grupo. Esse conceito que vem se
constituindo nas pesquisas do grupo partem de concepções teóricas e propostas
metodológicas advindas da aproximação do campo da educação musical e pesquisa
(auto)biográfica.
Emergindo noções da musicobiografização
É possível compreender o termo nocional musicobiografização,
cunhado por Abreu (2017, 2018, 2019, 2020,
2021, 2022), no campo semântico da ação, por meio da tríplice mimese de Ricoeur (1994),
isto é, na prefiguração, configuração e refiguração,
sendo na prefiguração, “com noções fundadas na vida (bio)
com a música e no uso de instrumentos semióticos (grafias – estruturas e
símbolos)”, fazendo emergir noções a serem “configuradas e refiguradas
epistêmica e metodologicamente em objetos de estudos entrelaçados com
subjetividades, espaços, tempo, práticas musicais, saberes individuais e
sociais.” (ABREU 2017, p. 213).
Dessa forma, a construção desse conceito enxerga a música como
um instrumento semiótico narrativo possibilitando que o sujeito comunique
representações de si. Nas pesquisas de mestrado realizadas pelos
coparticipantes, é possível perceber que o entendimento da música como
linguagem tem sido um dos pontos elucubrados na construção de narrativas
(auto)biográficas dos sujeitos que se formam com a música.
Souza (2018) traz isso à
tona quando apresenta a intriga musical, descrevendo a forma como os sujeitos
de sua pesquisa narravam suas experiências com e por meio da música. Também em Araújo (2017), na forma como os sujeitos
partilham músicas carregadas de significados para sua vida e buscam um motivo
musical que represente sua história. Oliveira
(2018) corrobora com as ideias dos autores supramencionados quando apresenta
o tripé narrativo musicobiográfico. Diante do
exposto, os coparticipantes entendem que tanto eles como demais integrantes do
GEMAB já desenvolviam em suas pesquisas “narrativas em que a música faz a
mediação entre sujeitos e música” o que leva para essa perspectiva musicobiográfica (ABREU,
2022, p. 15).
Em um dos encontros para coleta dos materiais primários fizemos,
além das entrevistas individuais, uma roda de conversa com os três coparticipantes.
Na estruturação de suas narrativas, o professor Edson compartilha com os demais
coparticipantes algumas reflexões a respeito de como a musicobiografização
acontece na prática, especialmente, em suas práticas músico-educativas. O
professor Edson enxerga neste conceito elementos da semiótica que abrangem as
diferentes formas de linguagens. Outro nome dado por Santaella (2005, p.
01) para a semiótica é de que ela “quer dizer o modo pelo qual elementos se
combinam para formar unidades complexas”. Essa unidade complexa, que carrega em
si o termo musicobiografização, é compreendida pelo
professor Edson como primeiro elemento estruturante e central da palavra bio (vida). Isso significa que a música está
contextualizada no mundo da vida, em um âmbito cultural e socioindividual.
Fato este que caracteriza possibilidades de significações, logo, um potencial
formativo.
Caminhando junto com essa visão do professor Edson Oliveira, nos direcionamos com ele e as demais narrativas trazidas
pelos coparticipantes que se a vida está no centro da atenção do professor de
música, ou pesquisador da área de educação musical, compreendemos que a música
é um todo sonoro e que, aproximando-nos da visão de Blacking (2007),
esse todo sonoro é apoiado também em uma perspectiva antropológica da música.
Ou seja, a música, que aparece como outro elemento semiótico na palavra musicobiografização, é “dirigida” pela vida de alguém que
com ela se relaciona.
Entendemos, pois, com Blacking (2007) que se a natureza da música pode ser
entendida a partir de diferentes sistemas musicais estes são configurados “nas
diferentes percepções que as pessoas têm da música e da experiência musical,
por exemplo, nas diferentes maneiras pelas quais as pessoas produzem sentido
dos símbolos musicais” (BLACKING, 2007, p.
2002).
Apreendemos com o autor e também com o coparticipante da
pesquisa que, o que tem de ser levado em conta, é a percepção das pessoas e de
que essa experiência musical, com sua materialidade sonora, tem no centro o
indivíduo que torna possível que tal experiência musical seja carregada de
significantes que configuram uma experiência formativa. Se para Blacking (2007),
a música ocorre no fluir dessas dimensões culturais e sociais, compreendemos
com o coparticipante Edson Oliveira que essas dimensões são permeadas por
aquele sujeito que, nesses contextos, se biografiza
com a música.
Seguindo nessa direção, o professor Hugo Souza nos faz avançar
analiticamente pensando, com ele, que a musicobiografização,
na prática, consiste em “convidar os estudantes e nós mesmos a olhar para a
música dentro do espaço-tempo da nossa vida. Olhar para a música dentro da
nossa história, tanto como área do conhecimento, como obra de uma vida” (HUGO SOUZA, EN 2020). O professor compreende
que esse olhar de dentro para fora consiste em associar o conhecimento com
aquilo que nos constitui. Ele aprofunda essa narrativa considerando que: “a
sensibilidade estética, percepção musical” se configura como conhecimento,
quando olhamos os elementos musicais constitutivos com o “espaço de nossa
vida”, com o lugar, aspectos históricos, políticos, com aquilo que vivenciamos.
Ele conta que trouxe uma música para os alunos do gênero carimbó e, quando foi a Manaus em um evento da ABEM,
vivenciou aquela música cantada, tocada, dançada pelos nativos do lugar. Nisso
reside uma imersão não apenas “no ritmo carimbó que é
bem marcante nos instrumentos”, mas quando outros elementos regionais estão
envolvidos a dimensão se amplia e, com ele o professor entende que o lugar se
expande de tal forma que você “enxerga para além da música o contexto social, a
cultura, a culinária, a pobreza de alguns manauaras. Então, “a música não pode
estar desassociada de todo esse contexto cultural, social, político e econômico
para não se tornar artificial” (HUGO SOUZA,
EN 2020) Tanto que ele complementa que a musicobiografiação
é constitutiva com o lugar, como bem defende em sua pesquisa de mestrado.
Na perspectiva do coparticipante, parece ser inerente pensar a musicobiografização entrelaçada com uma área de
conhecimento que se amplia com a visão de quem a vive, fazendo assim da música
uma parte de sua vida como obra. Como tratou em sua pesquisa, esse “topoi musicobiográfico” faz com
que a música aprendida, apreciada, tocada, executada ou composta se torne parte
de uma “geografia da vida como obra” (HUGO
SOUZA, EN 2020). Nesses termos e, como nos esclarece Ferraz (2018, p. 152), “não existe
dualidades simplistas”. Portanto, “olhar para a música dentro do espaço de
nossas vidas”, como narra o professor Hugo é buscar na prefiguração sensações
que ficam armazenadas em nossa memória e, quando estimuladas pelo contexto
histórico, social, cultural, educacional e tantos outros podem configurar um
espaço de musicobiografização capaz de ampliar
horizontes e leituras que só adquirem sentidos no ato de refigurar-se.
No aspecto da linguagem é como se o “olhar para a música” fosse carregado de
significantes que só o sujeito nessa relação é capaz de atribuir sentidos.
Ampliando com Pitanga (2021,
p. 29), a compreensão de musicobiografização como
obra, é possível entender que o professor Hugo parte da ideia de “fazer de sua
vida uma obra, como uma instigante reflexão de que a vida como obra não é uma
estrutura fixa, mas que se estrutura a partir da intriga narrativa”. É nessa
intriga, que tanto discutiu o professor Hugo em sua pesquisa, que “construímos
conhecimentos e acessamos as nossas experiências de formação com a música” (PITANGA, 2021, p. 29). E essa formação
musical que o professor Hugo proporciona aos seus alunos se dá com
procedimentos musicobiográficos, conforme narra a
seguir:
Uma coisa que me
chama muita atenção é que acho difícil realizar qualquer atividade ou proposta
de aula que não seja um procedimento musicobiográfico.
Por exemplo: no último semestre, abordei com meus alunos os gêneros musicais
brasileiros. Quando falamos de alguns gêneros como maracatu, carimbo e ciranda,
e percebi uma tendência de a gente ouvir essa música como um gringo ouve. Como
se fosse distante de nós. Porém me chamou atenção o quanto estou próximo disso,
isso porque já enxergo como uma lente musicobiográfica.
Quando eu escuto, por exemplo, o maracatu, me vem à mente toda minha herança.
Meu pai é paraibano e sempre gostou da música nordestina. Assim, nas minhas
aulas sobre ritmos nordestinos, não tem como eu falar como um ser alheio,
distante daquilo. Esses gêneros fazem parte da minha história, da minha
ancestralidade (HUGO SOUZA, EN 2020).
Com essa narrativa, o professor Hugo traz a relevância de sua
formação com experiências advindas do mestrado, de forma que considera difícil
“realizar qualquer atividade ou proposta de aula que não seja um procedimento musicobiográfico” (HUGO
SOUZA, EN 2020). Para o professor, a perspectiva musicobiográfica
tem influenciado sua forma de enxergar sua atuação como professor. Isso se
torna evidente quando o professor cita o trabalho que desenvolveu em suas
turmas de Ensino Médio com a música popular brasileira. Para o professor, a musicobiografização, neste caso, se faz presente quando
instiga os estudantes a perceberem que aquelas músicas trabalhadas estão de
alguma forma ligadas com suas histórias de vida. O professor convida os
estudantes a olharem para a suas histórias e atentarem para a herança que essa
música pode ter deixado em suas histórias por meio da ancestralidade.
Para Pitanga (2021), a
memória da música popular brasileira, é um “patrimônio nacional que precisa ser
constantemente alimentado, acessado e divulgado” (PITANGA, 2021, p. 37). Essa concepção
remete aos estudos sobre o tempo discutido em Ricoeur
(1994) que colocam o ser humano constituído, ao mesmo tempo, pelos três tempos
– passado, presente e futuro, de forma que vivemos o presente alicerçado nas
lembranças (passado) e nas projeções (futuro). Dessa forma, trazer a memória da
música brasileira para as práticas músico-educativas é também colaborar para
uma compreensão da nossa história e de quem somos.
Em sentido semelhante, o professor Gustavo mostrou seu
entendimento por musicobiografização destacando o
trabalho que desenvolve em suas práticas com o registro de vida com a música.
Para ele, há uma cooperação mútua da música com as histórias de vida.
Eu compreendo que a
musicobiografização é escrita da vida com a música e
a reescrita quantas vezes forem necessárias para que seja refigurada.
Assim, penso que a música contribui para história de vida e vice-versa. A
música contribui para a história na medida em que traz sentimentos que não são
verbais e a biografia contribui com a música na medida em que sentidos da vida,
lugares em que a pessoa viveu podem ser expressos por meio da música tanto na
interpretação quanto na composição musical (GUSTAVO
ARAÚJO, EN 2020).
O professor Gustavo construiu essa narrativa no diálogo com os
demais coparticipantes da pesquisa, partindo dos estudos construídos com a
pesquisa e experimentados na prática de sala de aula. Fica claro que, para
eles, os conteúdos musicais previstos no programa de ensino de suas aulas são,
aquilo que Passeggi
(2021, p. 06) nos ensina, “materiais que na experiência automedial
abre um espaço de criação em que se encontram o movimento de uma busca sensível
exercida sobre o material e sobre o fazer da obra [musical]”.
Essa experiência automedial, conforme Abreu (2022), é de quem se narra com
música, valendo-se da linguagem musical em conexão sonora com música. Logo, a
música é tomada como medialidade nos processos de biografização, nas palavras da autora, “é um modo de
continuarmos a discutir maneiras e práticas musicais que levam o sujeito a
constituição de si com a qualidade daquilo que se torna recorrente na gestão de
sua musicobiograficidade” (ABREU, 2022, p. 05).
Os coparticipantes mostram nas narrativas, especificamente,
nesta do professor Gustavo que estão intencionalmente atentos a esse gesto
autobiográfico, em que a reflexão subjetiva que acompanha o gesto do fazer
musical é um trabalho sobre si, de um sujeito que age sobre ele mesmo ao agir
sobre os materiais externos, sonoros e musicais, que ele manipula e pratica em
sala de aula. Portanto, conforme narra o professor Gustavo “se a musicobiografização é a escrita da vida com a música e a
reescrita quantas vezes forem necessárias para que seja refigurada”
(GUSTAVO ARAÚJO, EN 2020). Esse é o
papel do professor, levar o aluno a essa experiência da formação com a música
de modo que ele faça da sua relação com a música configurações consigo mesmo,
um trabalho incessante de reflexão com materiais externos – linguagens, sons,
gestos – que seja “mediatizada por sistemas símbolos e entre eles a narrativa” (RICOEUR, 1994), sem isso não há experiência
musical, logo não há experiência formativa com a música.
Nesse sentido, retomamos a narrativa supramencionada do
professor Gustavo de que nisso “há uma cooperação mútua da música com as
histórias de vida” (GUSTAVO ARAÚJO, EN 2020).
Convém nos determos um pouco mais nesse coda final
“cooperação mútua” que o coparticipante nos ajuda a expandir, com ele,
compreensões para o campo da educação musical, na perspectiva musicobiográfica.
Essa noção de cooperação mútua foi ampliada em Abreu (2018, p. 04) por meio do princípio
das mônodas. A autora parte de um questionamento
pertinente aos pesquisadores do campo da educação musical: “como o sujeito da
narratividade (auto)biográfica constrói no circuito do narrar a sua história de
vida com a música?” Assim, sinaliza que “a palavra não está à mercê da escuta,
nem a escuta a serviço da palavra, mas ambas se ajustam no circuito do narrar
para que a histó-ria de vida passe a se exibir”.
Diante disso, as mônodas são significantes que se
cooperam formando uma nova ideia.
Pela narrativa do professor Gustavo, é possível visualizar essa
cooperação mútua entre a música e a história de vida, entendendo que a primeira
não está a serviço da segunda, ou vice-versa, mas ambas cooperam entre si no
processo de musicobiografização, de forma que, em
suas práticas docentes, seja possível trabalhar conteúdos musicais partindo de
elementos que constituem a história de vida do estudante e também possa
trabalhar essa história de vida partindo da músicas que são compostas ou
interpretadas pelos estudantes.
Nesse sentido, Rosa et al.
(2011) chama atenção para um “currículo narrativo”, que permite que
“diferentes trajetórias sejam realizadas quando relações pessoais e coletivas
se articulam, sem perder de vista a dimensão histórica e social do conhecimento
a ser construído”. Os autores entendem que esse entrecruzamento torna possível
a consolidação de experiências que, por meio da narrativa, articulam “saberes
das trajetórias de vidas individuais e o conhecimento socialmente instituído” (ROSA et al., 2011 p. 215).
As mônadas possibilitam a construção
de um conteúdo musical atento para as dimensões pessoais, sociais e históricas
do indivíduo. Para Rosa et al. (2011 p.
215) “um currículo permeado por histórias de vida avança além de processos
formativos prioritariamente focados em processos de racionalidades”. Dessa
forma, podemos perceber que tanto é possível que esses coparticipantes
desenvolvem metodologias de ensino a partir das histórias de vida em formação
com a música construídas pelos estudantes.
Isso significa pensar, com o sistema das mônodas,
que cada sujeito tem a sua ideia e nela contém a imagem do mundo que pode se
abrir em janelas para compor com o outro. Quando o professor olha para o seu
aluno como uma mônoda ele sabe que as janelas terão
de ser provocadas pela abertura de horizontes de expectativas mediadas por ele
e pelo conteúdo musical. Dessa forma, entendemos que esse olhar se direciona
para a potencialidade do aluno, nas relações que ele possa fazer com essa
especificidade que é a música que encontra nesse universo de singularidades que
é a sala de aula uma possibilidade de configurar totalidades.
É importante salientar que mesmo que no espaço-tempo da sala de
aula os professores e estudantes são percebidos e se percebem como separados
com suas histórias de vida e experiências singulares, isto também se constitui
como um todo, ou nos termos de Benjamim
(1994), parte-todo. Ou seja, a sala de aula abarca nesse espaço-tempo todas
as singularidades, todas as histórias de vida, unificadas pela música que está
sendo vivenciada, apropriada, executada ou criada. Na sala de aula, o professor
é capaz de provocar essa constante abertura de significações e de conexões
entre as mônodas.
O filósofo Walter Benjamin, que desenvolveu a partir de Leibniz,
esse pensa-mento das mônodas
como narrativas, mostra em seu texto “Infância em Berlim” a construção de uma
série de narrativas articulando o vivido e as esferas sociais mais amplas.
Aprendemos com Benjamin (1994) e também
com os coparticipantes da pesquisa que essa articulação que o professor faz em
sala de aula entre o vivido e as esferas que envolvem outras pessoas, outras
músicas podem e devem ser refiguradas com o olhar do
estudante. Nas palavras de Benjamin (1994,
p. 70), uma conexão que se faz à apropriação da imagem de si vista, a seu
modo, “num espelho do universo que harmoniza em si o infinito e o particular”.
Entendemos, pois, que isso pode ser melhor compreendido no campo da educação
musical pela perspectiva musicobiográfica.
Observando as narrativas dos coparticipantes, é possível
perceber que a noção de musicobiografizaçao pode ser
explorada tanto no âmbito conceitual como no âmbito prático, ou seja, como
dispositivo formativo. Se de um lado o professor Edson traz contribuições
conceituais chamando atenção para a vida (bio) que
está no centro da palavra musibiografização,
observamos de outro lado o professor Hugo trazendo esse conceito para a prática
quando trabalha com seus estudantes a escuta musical atenta para a história e
para a ancestralidade. Percebemos também a perspectiva do professor Gustavo que
traz a compreen-são mútua da
música com a história de vida, que pode ser levada para as práticas
músico-educativas e para as pesquisas em educação musical.
Diante disso, entendo que este é um (e)feito gerado pelas
pesquisas desses professores. Digo (e)efeito com destaque para o que está entre
parênteses, mas também fora dele, entendendo que seus feitos musicobiograficos são refigurados
na continuação dos seus estudos, na busca pela construção de um conceito para
que possam aprimorar suas compreensões teóricas e metodológicas que auxiliam,
tanto no desenvolvimento de pesquisas acadêmicas, quanto nas suas atuações como
docentes. Assim seus trabalhos têm gerado (e)feitos em suas práticas, na
reflexividade narrativa, podendo fertilizar teorias biográficas que venham a
contribuir com reflexões e proposições para os campos da pesquisa
(auto)biográfica e da educação musical.
Abrindo Horizontes para a
perspectiva musicobiográfica
Mediante as narrativas orais, transcritas, (re)escritas
e analisadas nos colocamos diante de uma teoria do texto biográfico. Entendemos
com Ricoeur
(2008) que em uma proposta da análise hermenêutica, “o que deve ser
interpretado, num texto, é uma proposição de mundo, de um mundo tal como posso
habitá-lo para nele projetar um de meus possíveis mais próximos” (RICOEUR, 2008, p. 66).
Compreendemos com o autor que nas narrativas analisadas tem-se o
tempo refigurado. E é nesse encontro, entre texto e
leitor, que existe um espaço privilegiado – horizontes – para fazer encontrar
neles a sua relação com o campo da educação musical.
A mediação operada pelo texto conduz o leitor à apropriação de
uma “proposição de mundo”, decorrente do encontro face-a-face com “o mundo da
obra”. Nas palavras de Ricoeur
(2008, p. 63), “[...] esta proposição não se
encontra atrás do texto, como uma espécie de intenção oculta, mas diante dele,
como aquilo que a obra desvenda, descobre, revela. Por conseguinte, compreender
é compreender-se diante do texto”. A capacidade de compreender não repousa
sobre o texto em si e sua capacidade finita de compreender, mas o sujeito, ao
expor-se ao texto recebe dele um si mais amplo (RICOUER, 2008, p. 68).
A produção de atividades musicobiográficas,
apresentadas neste texto median-te as pesquisas dos
coparticipantes, tem relação com a teoria de Ricoeur (1994) – Tempo e Narrativa: 1) Prefiguração 2)
Configuração; 3) Refiguração. A atividade musicobiográfica é estabelecida a partir da experiência do
estudante, impulsionada pelo tema em discussão, e os (e)feitos comprovados que
transformam um modo de existência. O ponto central é acessar a experiência
apresentando-a com seus (e)feitos produzidos. É uma atividade reflexiva cujas
memórias produzem um (e)feito experiencial e transformador para o assunto em
questão, qual seja: como a minha história de vida contribui para a minha
aprendizagem musical.
Nesse contexto em que a música será sempre sonora, é possível
dizer que o professor ao ouvir a sonoridade do outro fará com que entenda
melhor a sua própria e vice e versa. Cria-se, portanto, um ambiente que se
reconhece o outro respeitando as alteridades. Portanto, retomando a narrativa
do professor Edson Oliveira de que, “talvez um dos grandes efeitos da musicobiografização é o sentido” (EDSON OLIVEIRA, EM, 2020) concluímos, com
ele, que o sentido está no feito biográfico capaz de ampliar a percepção sonora
que se tinha antes de iniciar esse trabalho em sala de aula. Pensando a intriga
músico-educativa com os estudos de Ricoeur (1994, p. 89), entendemos que esta é uma
“competência que se pode chamar de compreensão prática”. Essa competência do
docente de música, que atua no campo da educação musical, como frisou o
professor Edson, “a gente consegue, de fato, ao construir uma educação musical que
faça sentido para além dos currículos ou meros conteúdos” E isso se constrói
tendo “o estudante como protagonista”.
O professor Edson Oliveira também problematiza nesta narrativa o
campo da educação musical que discute currículos e conteúdos.
Isso quer dizer que currículos e conteúdos musicais são associados pela
articulação que o professor faz em sala de aula. Uma coisa não está
desassociada da outra, pelo contrário, como nos esclarece Abreu (2011, p. 123), “a escola quer que o
aluno aprenda, o professor quer que o aluno aprenda, por isso, as estratégias
de ensino são utilizadas para que o aluno se deixe aprender, e isso o professor
conquista no tato pedagógico”.
Trazer o estudante como protagonista é um ponto que o professor
Edson Oliveira considera como fundamental em suas práticas. Ele entende que a
perspectiva musicobiográfica o ajudou a pensar uma
aprendizagem musical que faça sentido para o estudante, apesar dos currículos
que muitas vezes limitam esse trabalho. Por isso enxerga a necessidade partir
de músicas que “compõem a história” do estudante. Nesse sentido, Pereira (2014, p. 91) relaciona o
currículo com o “hábitus conservatorial”
entendendo que os professores de música muitas vezes se veem submetidos a
currículos que parecem desconsiderar a realidade das escolas e dos estudantes.
Em suas narrativas, o professor Edson Oliveira deu um exemplo de
como o currículo pode ser um empecilho para uma aprendizagem que faça sentido
para o estudante relatando o caso de uma aluna que tinha dedicado sua vida a
estudar o violão na perspectiva do concertista. Quando essa aluna recebeu uma
proposta de trabalhar acompanhando uma cantora popular, precisou de sua ajuda,
pois lhe faltavam conhecimentos básicos de ritmos populares brasileiros.
Com esse exemplo, o professor Edson demonstra o seu entendimento
de que, muitas vezes, o conteúdo musical proposto nos cursos de graduação em
música está distante da realidade dos estudantes. E como fazer essa
aproximação? Para ele, a musicobiografização
contribui nas práticas docentes se protagonizando como figura de ligação entre
o mundo da vida com o mundo acadêmico. Nos termos de Abreu (2011, p. 23), na relação de “saberes
relativos àquilo que é dado e que produz efeito”. A autora sugere que a
constituição desses “saberes da experiência” remete a “saberes singulares,
impossíveis de serem modelados de modo mecânico” e que, muitas vezes, continuam
sendo ignorados. Nesse sentido, o professor Hugo Souza sugeriu que professores
de música saibam escutar o estudante e compreendam seus anseios e expectativas
para, assim, ser um agente de (trans)formação naquele
ambiente.
Precisamos saber
transformar esse ambiente de ensino e aprendizagem em um ambiente de formação musicobiográfica onde um escute o outro, sabendo que o
estudante tem anseios e expectativas sobre o próprio projeto [de vida], pois
não estamos lá apenas para empurrar o conteúdo consolidado pela academia.
Apesar de ser difícil acompanhar a vida do aluno para pautar suas aulas, é
muito gratificante quando enxergamos os frutos disso. Quando terminei o
mestrado, eu estava em um conflito de como transformar minhas aulas em musicobiográficas e, então, fui me reconfigurando como
professor. Ainda temos muito que aprender, temos acertos, erros, desafios, mas
percebo que tenho trazido aos alunos um estímulo para que eles pensem sobre
eles mesmos e sobre suas relações com a música (HUGO SOUZA, EF, 2021).
Nos chama a atenção a narrativa do professor Hugo com a frase
inicial, “saber transformar esse ambiente de ensino e aprendizagem”. O que
seria esse saber transformar senão àquilo que trata Passeggi (2021)
um poder (auto)transformador. E isso é o que relata o professor ao destacar que
quando terminou o mestrado, a sua pesquisa trouxe, de forma inovadora, o
dispositivo formativo do ateliê musicobiográfico.
Inovar, no seu caso, é enxergar naquilo que está dado, algo que ainda não tinha
sido explorado, isto é, um saber-poder transformar suas aulas em práticas musicobiográficas. Para tanto, o professor tem consciência
de que é no ato de refigurar-se que esse poder (auto)transformador
acontece. Dito de outro modo, não basta configurar uma pesquisa sobre e com o
ateliê musicobiográfico, era preciso ir mais adiante
para sentir, na refiguração de si mesmo com um outro,
um professor que vive a pesquisa na prática, que coloca em movimento um
dispositivo formativo nessa perspectiva.
Ter um projeto de vida como professor, neste caso, um projeto
com a pesquisa musicobiográfica é trazer para a
prática os efeitos do vivido com a pesquisa, pois como relatou em sua pesquisa,
trata-se de assumir “como docente de música em uma instituição de educação
profissional e tecnológica, propostas e projetos formativos musicobiográficos,
indicando caminhos para uma formação musical que traga sentido no projeto de
vida do sujeito” (SOUZA, 2018, p. 07).
E, de fato, os efeitos da pesquisa parecem ainda reverberar na prática do
professor que, após três anos de formado no mestrado, está atento ao saber
escutar o seu estudante com suas “expectativas sobre os seus projetos de vida” (SOUZA, 2018, p. 08).
Trabalhar na perspectiva de projetos de vida é tão fundamental
que a própria Base Nacional Comum Curricular – BNCC para o novo ensino médio
tem enfatizado a importância de se partir e entrelaçar os itinerários
formativos dos estudantes. Porém, o que faz adensar essa proposta da BNCC é que
o professor de música, Hugo Souza, considera para “um ambiente de formação musicobiográfica”, aquele em que os estudantes “pensem
sobre eles mesmos e sobre suas relações com a música” levando-os, nos termos de
Ricoeur (1994),
a um refigurar-se com as possibilidades que o ensino
e a aprendizagem musical oferecem para a construção de projetos de si.
O professor Hugo chama a atenção, no ato de narrar, para aquele
docente de música que constrói um ambiente em sala de aula, cujo projeto de
vida do estudante seja o norte e não apenas os conteúdos pré-estabelecidos.
Também nos ensina que mais que acompanhar a vida do estudante é ver os efeitos
do vivido com a música, nas palavras dele, “os frutos disso” (SOUZA, 2018, p. 148).
Essa retroalimentação da sua formação com a pesquisa e, agora,
com a prática musicobriográfica em ambiente escolar é
uma estratégia, um tato pedagógico que tenha “a visada musicobriográfica
da formação musical [...] que traz a memória lembrança-musical para o processo
de formação e cria uma abertura para a reflexividade na configuração das
narrativas que visa o refigurar-se na práxis” (SOUZA, 2018, p. 149).
As narrativas do professor Hugo mostram sua preocupação em
proporcionar aos estudantes um “ambiente de formação” que os estimulem a
“pensar sobre eles mesmos e sobre suas relações com a música”. Quando utilizou
o próprio ambiente de trabalho em sua pesquisa para desenvolver o ateliê musicobiográfico, ele intencionava que aqueles estudantes
pensassem em vários aspectos de sua vida que pudessem relacionar com suas
experiências musicais. De modo que, o professor Hugo entendeu que o ateliê
seria um dispositivo formativo, um ambiente de formação musical que “tem seu
foco no sujeito e visa promover uma formação musical em que se apreenda outros
aspectos da vida para além do musical” (SOUZA,
2018, p. 180).
Desse modo, o professor retoma os aprendizados advindos de sua
pesquisa e manifesta o cuidado em mantê-la viva, buscando se reconfigurar como
professor e pensar numa prática que seja, de fato, musicobiográfica.
Porém, reconhece que enfrenta dificuldades para manter suas ideias presentes em
suas práticas, pois entende que seria mais fácil apenas “empurrar o conteúdo”
previsto para suas turmas e que, apesar de “erros e acertos” continua com a
convicção trazida de sua pesquisa de que as práticas musicobiográficas
não atrapalham o aprendizado do conteúdo e sim proporcionam uma “aprendizagem
biográfica” de forma que o conhecimento faça parte da vida do estudante.
Tenho utilizado as
obras do conteúdo previsto, mas antes de trazer essas obras, tenho proposto que
eles analisam as próprias músicas da vida deles que eles levam. Recentemente
propus uma atividade em que eles tinham que levar a música que era a top 1 da
playlist deles no ano de 2020 e aí utilizei ideias da teoria do espiral do Swanwick para que eles analisassem as músicas e gravassem
um podcast e, apesar de algumas dificuldades sobre o manuseio dos aplicativos
que envolveram a gravação, algumas gravações me surpreenderam muito pelo nível
de excelência trazendo análises a partir da perspectiva deles. Isso me
surpreende porque, às vezes, achamos que há somente uma forma de analisar a
música, atendendo os conteúdos previstos, mas quando os estudantes fazem uma
escuta ativa da música e conseguem extrair aquilo que eles consideram como
valioso, muitas vezes eles trazem aquilo que o professor pediu e muito mais,
nos surpreendendo. Uma aluna fez uma análise de “autumm
leaves” que nem eu faria, porque veio dela, da
história dela com a música. Assim, os saberes musicais vão aparecendo sem
necessariamente engessar o processo de formação. Dessa forma, eles se formam
não só musicalmente, mas como indivíduos, como cidadãos, por isso eu chamo de
formação musicobiográfica (HUGO SOUZA, EF, 2021).
O professor Hugo colocou em suas narrativas detalhamentos de sua
atuação como docente e que reforçam a ideia da aprendizagem biográfica. Ele
evidencia que a reflexividade musicobiográfica,
trazidas para suas práticas, auxiliam no aprendizado do conteúdo musical.
Inspirado na “teoria espiral do desenvolvimento musical” (SWANWICK, 2003), o professor trabalha a
análise de músicas levadas pelos próprios estudantes para que sejam extraídos
saberes musicais advindos dessas análises. Porém, se surpreende ao perceber
que, para além das teorias de análise musical, há aquelas teorias biográficas,
em que os estudantes, no caso, conseguem extrair aquilo que consideram como
valioso. Ou seja, “trazem o que o professor pediu e muito mais”. Esse “muito
mais” é explicado por Hugo como algo que só eles valoram que vivem ou viveram,
que está imbricado com a sua “própria história com a música”.
Nessa direção, compreendemos com Abreu (2020, p. 252) que é na valoração da
sua própria história com a música que “a força da sua história revela um modo
de se constituir”. Nesse sentido, a reflexividade musicobiográfica
se releva na prática musical, neste caso, no ato de analisar esta ou aquela
música. Sendo assim, a música que escolhemos, que tem relação com a nossa
história “nos intima e, ao mesmo tempo, ganha força na nossa história” (ABREU, 2020, p. 252). Para o professor
Hugo esses são “saberes musicais que vão aparecendo sem necessariamente
engessar o processo de formação”, ao contrário, “cria uma abertura para se
seguir em várias direções de reflexão e ação. Seja a valorização da lembrança
musical como acontecimento singular, como encontros memoráveis ou como estado
de coisas que levam ao processo de reflexividade” (SOUZA, 2018, p. 149). Esse estado de
coisas são operações que a tríplice mimese é capaz de enredar nas formas
simbólicas com narrativas musicais e narrativas biográficas em que eles se
formam não só musicalmente, mas como indivíduos, como cidadãos, o que nos leva
a intencionar isso como formação musicobiográfica, ou
musicobiografização.
Podemos inferir que essa “formação musicobiográfica”
nominada pelo professor Hugo consiste em conduzir os estudantes a uma “escuta
ativa” em que eles procuram, na força de suas histórias e escolha intencional,
perceber cada elemento da linguagem musical nas “próprias músicas da vida
deles”. Isso remete à escuta musical (auto)biográfica desenvolvida na pesquisa
de Edson Oliveira (2018) em que nela e
com ela “músicos, professores e estudantes de música, podem ter uma percepção
múltipla e plural que vai além da escuta musical” (OLIVEIRA, 2018, p.91). Por meio dessa
escuta, o professor Hugo estimula os alunos a escutarem não só elementos
musicais, mas também elementos que dizem respeito às suas histórias de vida.
Isso possibilita que os alunos entreguem uma análise musical com um nível
“surpreendente”, talvez, não pela profundidade que uma análise musical requer
em sí própria como linguagem, mas por diferentes
formas simbólicas que adensam esse processo analítico que vem da subjetividade
de cada estudante.
Esses saberes musicais trazem certa “convergência entre a
dimensão dos saberes musicais, já consagrada no âmbito do ensino e aprendizagem
de música, a dimensão da memória musical e as ideias acerca de aprendizagem e
formação biográfica” (SOUZA, 2018, p. 154).
Como autor, o professor Hugo entende em sua pesquisa de mestrado que a convergência
desses saberes musicais e biográficos levam “à construção de uma perspectiva “musicobiográfica” da formação musical” (ibid., p. 154).
Para ele, “esses momentos podem tornar-se palco de práticas musicais
individuais e coletivas, de exploração e descobertas musicais e de sonoridades,
de desenvolvimento de habilidades musicais” (SOUZA,
2018, p. 158).
Vemos que, tal coerência entre as narrativas do professor e
também como autor que “os efeitos de se expor à situação de formação [...]
podem levar o sujeito a compreender a si mesmo como um outro, sua temporalidade
e seus lugares de experiência, seus saberes musicais e sua memória
lembrança-musical reconfiguradas” (SOUZA,
2018, p. 168). É, portanto, uma forma de a música mediar, com a sua
“materialidade passiva sobre a qual age o artista [sujeito professor e
estudante]” (PASSEGGI, 2021, p. 06), a
elaboração de uma musicobiografização em que “o
sujeito se inscreve no mundo biografizando a sua
existência” (SOUZA, 2018, p. 168).
Diante do exposto é possível analisar que, nesse ambiente formativo
do qual trata o professor Hugo, este adquire novos aprendizados em suas
práticas docentes. Assim, os coparticipantes da pesquisa seguem convictos de
que é nesse processo de musicobiografização em sala
de aula que ampliam saberes e experiências como narra o professor Gustavo.
Outra observação
que eu acho muito interessante é que nesse processo musicobiográfico
eu tenho ampliado muito meu repertorio musical pelas músicas que os estudantes
levam. Assim, quando corrijo as atividades ouvindo os podcasts eu não apenas
conheço novas músicas, mas as conheço por meio de analises de alguém que
entende muitos elementos dessa música já que ela faz parte da vida dele. Então,
essa ideia da musicobiografização acaba
horizontalizando essa experiência. Afasta a ideia de que o professor é o
responsável por trazer a novidade ou a nova música e é mais do que valorizar o
repertório do aluno. É realmente compreender o repertório dele e o sentido que
emerge desse repertorio (HUGO SOUZA, EF,
2021).
Adensamos essa compreensão com Torres (2020) que considera o repertório
como uma playlist cujas escolhas musicais estão amalgamadas com momentos
significativos de vidas. Tais escolhas podem acompanhar nosso entendimento de
leitura das (auto)biografias como uma trilha sonora” (TORRES, 2020, p. 1598). A autora enfatiza
que “as narrativas musicais trazem grandes contribuições para área da educação
musical, pois apresenta uma perspectiva de aprendizado que valoriza e dá voz a
um repertório” e completa que “não apenas por sua representatividade dentro da
literatura musical, seus atributos de conteúdos técnicos, mas também pela
relação afetiva que estabelece com o ouvinte durante diferentes momentos de sua
vida [...] as playlists se constituem como autobiografias musicais pelas
lembranças das práticas musicais, das histórias de formação ou das melodias
escolhidas” (TORRES, 2020, p. 1611).
Percebe-se que esse “repertório” que o professor Hugo reconhece
que vem ampliando não é apenas um repertório musical, mas também um repertório
de novos conhecimentos. Isso porque cada estudante traz consigo uma história diferente,
carregada de sentidos que ele mesmo atribui. Assim, quando os estudantes levam
análises de músicas que “fazem parte da vida” deles, estão compartilhando
saberes advindos da experiência. Larrosa (2002, p. 26 e 27) sugere que a experiência é
uma espécie de mediação entre o conhecimento e a vida humana e, portanto, o
saber da experiência se dá na relação entre ambos. Dessa forma o conhecimento é
“ampliado” por meio de experiências musicais dos estudantes.
Esse fenômeno é entendido pelo professor Hugo como uma
possibilidade de horizontalizar o conhecimento e a experiência, pois “afasta a
ideia de que o professor é o responsável por trazer a novidade ou a nova
música”. Diante disso, entendemos que um dos (e)feitos da musicobiografização
que esses coparticipantes trabalham em suas práticas está na forma como se
promove um “ambiente formativo” tanto para estudantes, quanto para os próprios
professores. É um processo em que os estudantes se formam, com o que é levado
pelo professor e pelos colegas, e o professor se forma com o que é levado pelos
estudantes.
Como destaca o professor Hugo, isso vai além de valorizar o
repertório do estudante, pois o professor busca compreender esse repertório
envolto nas experiências musicais compartilhadas pelo estudante e nos sentidos
que eles atribuem a essas experiências de maneira que o próprio professor se
forma nesse processo “ampliando” seu repertório musical e, assim, novos
conhecimentos vão surgindo.
Nesse mesmo sentido, o professor Gustavo entende que ao
“compreender o repertório do outro” tem-se uma contribuição de que a musicobiografização uma vez que abarca estudos que tratam
da complexidade humana. E isso é o que interessa ao campo da educação musical,
no sentido dado por Kraemer
(2000), que se debruça sobre tais complexidades vistas sob os aspectos de
apropriação e transmissão musical. Esses são os problemas que interessam a esta
área de conhecimento. Por isso, o sujeito na sua relação com a música é a
figura central na produção de conhecimento. E essa produção de conhecimento
advém das relações e das experiências do indivíduo com a música sendo, pois,
uma das formas de compreender a totalidade do sujeito por aquilo que se deixa
narrar.
Pela subjetividade
da narrativa podemos contribuir inclusive com áreas fora da música. Diferente
do texto objetivo e direto, temos na música uma subjetividade; algo que
trabalha com sentimentos, memória afetiva. Percebemos que diversas áreas buscam
trabalhar o sujeito de forma integral. Então, acho que a musicobiografização
ajuda nesse sentido de compreender o sujeito, com seus sentimentos, suas
subjetividades, suas abstrações (GUSTAVO
ARAUJO, EF, 2021).
O que segue como base na narrativa do professor Gustavo é a
subjetividade narrativa. Essa base é, nos termos de Bruner (2014, p.96),
“o eu como produto de nosso contar e não uma essência a ser perscrutada”. Isso
significa dizer, com o coparticipante, que compreender o sujeito é perscrutar o
seu texto narrativo. Nele e com ele a subjetividade se levanta com sentimentos
e abstrações. O texto narrativo subjetivo é, pois, a “memória-lembrança”, como nos
lembra Souza (2018) e também a “memória
afetiva”, como relata o professor Gustavo. Essa memória afetiva como nos ensina
Passeggi (2021),
com os estudos de Marcel Proust na obra “Em busca do tempo perdido”, são
conexões dos sentidos – paladar, visão, tato, audição e olfato – no interior do
cérebro examinados pelas sensações experienciadas entre a impressão do vivido e
o sentido que queremos, podemos, desejamos ou sabemos atribuir” (PASSEGGI, 2021, p. 12).
De acordo com a autora e também com o coparticipante da pesquisa
é um ato narrativo subjetivo que nos leva a rememorar e carregar de sentidos
capazes de poder nos transformar. Portanto, esse ponto salientado pelo
professor Gustavo de que “temos na música uma subjetividade”, nos ajuda a
pensar que a memória afetiva, sentimentos e abstrações trabalhadas em sala de
aula pelo professor de música, ou outros profissionais que se utilizam da
música como meio, está ligado ao processo de musicobiografização,
cuja experiência vivida e a consciência de si estão intrinsicamente vinculadas
à reflexividade narrativa operacionalizada no ato de narrar ou de escutar –
tocando, cantando, compondo, apreciando ou lendo suas próprias experiências ou
as de outrem.
O professor Gustavo detalhou também em suas narrativas que as
práticas musicais que ele desenvolve no Ensino Médio, são intencionalmente
pensadas para que “a musicobiografização ajude a
compreender como estudante compreende, com seus sentimentos, suas
subjetividades, suas abstrações”. Uma das propostas de ensino elaboradas para o
terceiro ano do Ensino Médio é trabalhar com composições musicais tendo como
mote a recordação-referência de músicas que produzem sentidos para os
estudantes. Com isso, o professor entrelaça motivos musicais como padrões
ritmos, melódicos ou harmônicos com os motivos subjetivados pelos estudantes.
Essa proposta tem por objetivo trabalhar o conteúdo musical no qual o professor
auxilia o estudante a criar um motivo rítmico, melódico e harmônico com base em
sua biografização com a música.
Com exemplos práticos extraídos da pesquisa de Araújo (2017) buscamos aclarar o conceito musicobiografização que vimos empreendendo até aqui. Ao
tratar a música como linguagem em contextos escolares, Araújo (2017) trabalhou com as recordações
referências de estudantes do ensino médio, na perspectiva de Josso (2004). De
modo que, “os motivos musicais que combinam timbres, dinâmicas e sons em
determinada forma musical” são identificados pelos sujeitos a partir das
“narrativas (auto)biográficas produzidas com a música trazida de sua
recordação-referência” (ARAÚJO, 2017, p.
111).
Nesse “percurso singular de composição, com a narrativa de
formação musical, os estudantes negociam sentimentos de si próprios e formas
musicais próprias, desenvolvendo sentidos na relação com o outro e com a
música” (ARAÚJO, 2017, p. 112). Esta
relação, da qual trata o autor, refere-se ao que aprendemos com a experiência
formativa com o outro com base nas estruturas e interpretações das narrativas
que escuta. Provém daí aquilo que Passeggi (2020, p. 69) denomina como “potencialidade
didática das narrativas”, nos termos de Araújo
(2017), um processo de musicobiografização
desenvolvido na pesquisa-formação-ação. Para o autor, a musicobiografização
“abre-se um leque de possibilidades de formação do participante com determinados
motivos musicais que se configuram como recursos pedagógicos e composicionais
pelos quais o participante pode expressar-se em sua narrativa musical,
utilizando-se deles, conscientemente, para expressar o que eles lhe
representam”. Isso significa que “são por meio dos acontecimentos
significativos em suas vidas, trazidos nos episódios narrados, que passam a
reconhecer também os motivos musicais” (ARAÚJO,
2017, p. 93-96).
Esses motivos musicais associados aos sentidos atribuídos pelos
estudantes são exemplificados nas transcrições musicais feitas pelo autor, com
narrativas de estudantes do Ensino Médio, seus alunos.
Figura 1
“As entradas com o violão da música Dom Quixote me lembram
bastante as viagens que eu fazia com a minha família”. Nesse trecho podemos
identificar um motivo rítmico e melódico que se repete, no trecho o qual o
participante se refere. E tal motivo torna-se recorrente em outra música
recordação-referência de Matuzalem que é o Leãozinho.
(ARAÚJO, 2017: 94)
Figura 2
E assim seguem as outras músicas, compostas por outros
compositores de décadas anteriores ao seu nascimento, mas que o participante identifica-se com elas em consonância, pois as escutava em
sua infância por causa de seus pais. Compreendendo para si que, “se são músicas
de velho... Eu me considero um velho aos 15 anos.” (ARAÚTIO, 2017: 94)
Figura 3
Na música “A Desconhecida”, o motivo retorna para o violão em
sua introdução. Como pode ser observado, além do motivo estar presente na
introdução do violão, nos dois últimos compassos dela o contrabaixo elétrico
desenvolve sua melodia com o mesmo motivo durante toda a música. Dessa maneira,
percebemos um acontecimento musical se tornar motivo recorrente nas músicas
relatadas pelo participante. Que, ao se dar conta disso, empodera-se para
compreender os motivos estéticos daquilo que escuta, a partir da
pesquisa-formação-ação. A partir daí, outros motivos
recorrentes foram percebidos, entrelaçando outras músicas de sua vida. (ARAÚJO, 2017: 94-96)
Diante desses exemplos elaborados pelo autor, com os efeitos
vividos com essa pesquisa em sala de aula e agora como coparticipante da
pesquisa, a sua reflexividade narrativa impacta em sua prática quando mostra o
aprofundamento de suas elucubrações colocando em prática e vendo nela os
resultados da práxis.
Entendemos com o coparticipante uma inversão de fluxos
complementares: por um lado a intenção de trabalhar o conteúdo musical,
partindo das experiências e da subjetividade dos estudantes e, por outro lado,
a intencionalidade de que essa subjetividade seja o mote para empenhar-se na
aprendizagem do conteúdo musical.
Assim, compreedemos que a narrativa do
professor Gustavo demonstra que sua pesquisa gerou efeitos em sua formação,
pois despertou nele novas visões a respeito do que é ser professor de música,
de quais atribuições esse professor tem, como pode contribuir para a formação
musical e ética dos estudantes, como seu trabalho pode trazer contribuições
para a sua comunidade escolar como também, em um âmbito de maior alcance, para
o campo da educação musical.
Essas concepções presentes nas narrativas do professor Gustavo é
uma demonstração do que esse encontro com os coparticipantes representou: um
momento em que eles refletiram sobre suas próprias práticas e sobre efeitos da musicobiografização que podem ser observados tanto na
formação musical, como na formação ética dos estudantes que impactam, também,
na formação do professor, ao horizontalizar o conhecimento e a experiência.
Segundo os coparticipantes, esse encontro promovido com os três
foi formativo, pois os pontos levantados ajudaram no avanço da construção do
conceito de musicobiografização, como narrou o
professor Edson:
Participar desse
encontro está sendo formativo para mim, porque a gente traz à tona, para além
de quem somos, quem “estamos sendo” nesse momento. Somos sujeitos aprendentes,
sempre em transformação e trazer essa possibilidade de pensar em “quem estamos
sendo” é importante para pensarmos nossa prática (EDSON OLIVEIRA, EF, 2021).
A percepção do professor Edson de que o encontro “está sendo
formativo” mostra o que é no ato narrativo que acontece a formação. Pensando
com Delory-Momberger
(2012, p. 535), empreendemos nesse encontro os protocolos
teórico-metodológicos da pesquisa (auto)biográfica. Nesse circuito da
narratividade, os coparticipantes se colocaram em ação na compreensão de si e
do outro. O princípio formativo calcado no agir – “estamos sendo” – é um modo
de se colocar em constante movimento, trilhando “os caminhos de uma
hermenêutica da relação” (DELORY-MOMBERGER,
2012, p. 535) em que, neste caso, pesquisadores e professores empreendem um
trabalho de autoria. De modo que, o efeito produzido é apreendido no texto
narrativo, no ato de contar. Como pesquisadores, nos cabe “contar aquilo que
contam os relatos dos outros. É pouco e é muito, é o preço de uma ciência humana”,
uma ciência da educação musical na perspectiva musicobiográfica.
E, parafraseando Delory-Momberger
(2012, p. 535), “é esse o seu tesouro”.
Nesse mesmo sentido, Passeggi (2021, p. 2), sugere que a pessoa que narra
“reconstitui uma versão de si ao repensar suas relações com o outro e com o
mundo da vida”. A autora também entende que “a ação de narrar e de refletir
sobre as experiências vividas, ou em devir, permite dar sentidos ao que
aconteceu, ao que está acontecendo, ao que pode mudar ou permanecer
inalterável” (p. 2). Nesse sentido, esse encontro com os coparticipantes foi um
momento em que puderam exercer a reflexividade narrativa, na refiguração de si com aquilo que fazem em suas práticas.
Por fim, como nos esclarece Abreu
(2019, p. 246-247), os pressupostos teóricos e metodológicos da pesquisa
(auto)biográfica e sua representatividade no campo da educação musical nos
ajuda com compreensões de que a perspectiva musicobiografica
produz conhecimentos educativo-musicais quando estes são entrelaçados com os
(e)feitos do vivido por aqueles que contam os seus feitos musicobiográficos.
Algumas Considerações
Ao concluir a pesquisa, compreendiemos
que os três coparticipantes da pesquisa engendram uma vida-formação refigurada. Assim, a reflexividade narrativa é constitutiva
de uma força potencial geradora de impactos nas práticas músico-educativas
desses profissionais. Isso acontece quando mostram o aprofundamento de suas
elucubrações vendo com elas os resultados da práxis.
Nessa perspectiva, a intriga é mediadora por ter seus caracteres temporais
próprios. É a intriga, configurada em narrativa oral, escrita ou musical que
faz da ligação entre as dimensões temporais o papel importante para o sentido
da narrativa.
As experiências do mestrado foram permeadas pelas reflexões e
descobertas, junto ao grupo de pesquisa em que esses professores participam.
Esse conjunto de ações formativas geraram conhecimentos que, hoje, são
concebidos em suas práticas profissionais. Assim, como construto resultante da
pesquisa, trago o entendimento de que as dimensões musicobiográficas,
advindas das narrativas (auto)biográficas geraram uma análise que se configurou
mediante a cooperação mútua dos três coparticipantes nas ações
músico-educativas com os (e)feitos da formação com a pesquisa. Tais (e)feitos
são capazes de fazer emergir um si mesmo como um outro na alteridade, como é o
caso da cooperação mútua entre o campo da educação musical e da pesquisa
(auto)biográfica – campos fertilizadores de teorias biográficas para a formação
musical dos indivíduos.
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Notas
1. Mestre em Educação
Musical UnB, com graduação em Música na mesma instituição. É professor
substituto no curso de Licenciatura em Música no Departamento de Música da UnB,
professor de trompete na Escola de Música de Brasília e membro do grupo de
pesquisa Educação Musical e Autobiografia.
2. Docente de música da
UnB, com doutorado em música pela UFRGS, mestrado em linguagem pela UFMT,
graduação em letras pela UNEMAT/UFMT e graduação em música pelo IPA/RS. Possuiu
pós-doutorado em educação na linha cultura, escrita e linguagens pela UFPel. É coordenadora do Programa de Pós-Graduação em
Música da UnB e líder do grupo de pesquisa Educação Musical e Autobiografia.