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Os códigos melodramáticos aplicados ao
Enamorados do espetáculo
Do Fundo do Baú
Welerson Freitas Filho
Para citar este artigo:
FREITAS FILHO, Welerson. Os códigos melodramáticos
aplicados ao Enamorados do espetáculo Do Fundo do Baú.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 3, n. 56, dez. 2025.
DOI: 10.5965/1414573103562025e0204
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Os códigos melodramáticos aplicados ao Enamorados do espetáculo
Do Fundo do Baú
Welerson Freitas Filho
Florianópolis, v.3, n.56, p.1-19, dez. 2025
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Os códigos melodramáticos aplicados ao Enamorados do espetáculo Do Fundo
do Baú1
Welerson Freitas Filho2
Resumo
O artigo analisa o espetáculo
Do Fundo do Baú
, da companhia Os Mascaratis,
investigando como os códigos melodramáticos se articulam à commedia dell’arte
na construção dos enamorados. A pesquisa adota uma abordagem qualitativa e
análise de processo criativo, estabelecendo diálogos com Thomasseau, Tiche Vianna
e Lecoq. Nos enamorados, o lirismo e o ridículo se entrelaçam, revelando tensões
entre a solenidade melodramática e a comicidade farsesca. Conclui-se que a
vitalidade dessas linguagens reside em sua capacidade de reinvenção em novos
contextos cênicos.
Palavras-chave
: Commedia dell’Arte. Enamorados. Melodrama.
Melodramatic Codes Applied to the Lovers in the Play
Do Fundo do Baú
Abstract
The article analyzes the performance
Do Fundo do Baú
, by the company Os
Mascaratis, investigating how melodramatic codes intersect with commedia dell’arte
in the construction of the lovers. The study adopts a qualitative approach and a
creative process analysis, engaging with the works of Thomasseau, Tiche Vianna, and
Lecoq. In the lovers, lyricism and the ridiculous intertwine, revealing tensions
between melodramatic solemnity and farcical comedy. It is concluded that the
vitality of these languages lies in their capacity for reinvention in new scenic contexts.
Keywords:
Commedia dell’Arte. Lovers. Melodrama.
Los códigos melodramáticos aplicados a los Enamorados del espectáculo
Do
Fundo do Baú
Resumen
El artículo analiza el espectáculo
Do Fundo do Baú
, de la compañía Os Mascaratis,
investigando mo los códigos melodramáticos se articulan con la commedia
dell’arte en la construcción de los enamorados. La investigación adopta un enfoque
cualitativo y un análisis del proceso creativo, estableciendo diálogos con
Thomasseau, Tiche Vianna y Lecoq. En los enamorados, el lirismo y lo ridículo se
entrelazan, revelando tensiones entre la solemnidad melodramática y la comedia
fársica. Se concluye que la vitalidad de estas lenguas reside en su capacidad de
reinvención en nuevos contextos escénicos.
Palabras clave
: Commedia dell’Arte. Enamorados. Melodrama.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por José Mauro Fernando. Graduação em
Letras pela Faculdade de Ciências e Letras de Araras.
2 Doutorado em Artes Cênicas pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Mestrado em Artes
Cênicas, Bacharelado e Licenciatura em Teatro pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Ator, diretor
e professor de teatro. werso.ufu@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/3419036151085172 https://orcid.org/0000-0003-1569-2882
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Introdução
O processo de criação do espetáculo
Do Fundo do Baú3
, primeira montagem
da Cia. Os Mascaratis (MG)4, teve início em 2015, tomando como ponto de partida
o texto
Tem Caroço Nesse Angu
, desenvolvido por Lucas Mali, integrante da
companhia, e a pesquisa sobre os
Ciarlatani5
, médicos e mercadores populares da
antiguidade que ofereciam remédios e elixires milagrosos. Esses personagens
foram incorporados mais diretamente ao processo no ano seguinte, após serem
apresentados pelo professor Roberto Tessari, da Universidade de Torino (Itália), em
uma disciplina modular do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da
Universidade Federal de Uberlândia, da qual participaram alguns membros da
companhia.
Estreado em 2017, o espetáculo
Do Fundo do Baú
leva à cena um grupo de
ciarlatani
que, em sua tentativa de atrair e conquistar a receptividade do público,
apresentam eles próprios uma encenação de
commedia dell’ arte
. Trata-se,
portanto, de um espetáculo dentro do espetáculo, em que esses charlatães e
charlatonas representam figuras típicas do gênero. É nesse jogo metateatral que
se desenrola a trama do casal de enamorados Isabela e Flávio, que,
impossibilitados de se comunicarem devido à ausência de rede
wi-fi
e enfrentando
a desaprovação do relacionamento por seus pais, Pantalone e Tartaglia,
respectivamente, os leva a atravessar uma série de desafios e quiproquós para
permanecerem juntos.
3
Ficha Técnica
(2024): Elenco - Camila Faleiros, Emanuelle Anne, Fernando Bruno, Kleber Maronezi, Lucas
Mali, Thaísea Mazza e Welerson Filho / Inspirado na obra Tem Caroço Nesse Angu de Lucas Mali / Direção -
Welerson Filho / Dramaturgia - Os Mascaratis / Cenografia e Figurino - Welerson Filho / Iluminação - Mario
Leonardo / Máscaras - Thaísea Mazza / Direção Musical - Lucas Mali / Produção - Os Mascaratis / Design
gráfico - Rafael Michalichem.
4 A Cia. Os Mascaratis foi fundada em 2015 como desdobramento do Grupo de Pesquisa em Máscaras do
Curso de Teatro da Universidade Federal de Uberlândia, surgindo em paralelo à montagem de Do Fundo do
Baú. Desde então, a companhia dedica-se exclusivamente ao Teatro de Máscaras e a vertentes do Teatro
de Animação. Em seu repertório, além de Do Fundo do Baú, conta com o espetáculo Você sabe com quem
está falando? e prepara uma nova criação com estreia prevista para 2026. Paralelamente às produções
artísticas, o grupo também realiza workshops e oficinas voltados à iniciação e à prática da atuação com
máscaras teatrais.
5 “Os charlatões contavam histórias e cantavam
frotolle
/cançonetas, propunham aos espectadores jogos de
azar e improvisaram comédias e farsas (os mais ricos contratavam também comediantes profissionais);
entre um jogo e outro, vendiam as garrafadas dos ‘segredos’ das célebres milagrosas virtudes: os
bussoli
(Camporesi apud Tessari, 2013, p. 49).
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Inspirado nas manifestações do teatro popular,
Do Fundo do Baú
mescla
elementos da
commedia dell’arte
, do charlatanismo e de outras referências
cênicas populares. Contudo, no que se refere aos personagens enamorados, ganha
especial destaque a incorporação de códigos e recursos próprios do melodrama.
Assim, além dos elementos característicos da
commedia dell’arte
, a construção
de Isabela e Flávio recorreu a procedimentos melodramáticos, como o exagero
expressivo, o círculo melodramático e a convenção conhecida como “Povo de
Paris”. É justamente nessa articulação entre
commedia dell’arte
e o melodrama
que o presente texto concentra sua análise, investigando como tais códigos
melodramáticos foram utilizados na criação das cenas e na caracterização dos
enamorados nesse espetáculo em particular.
Gli Innamorati
Historicamente, na
commedia dell’arte
, os enamorados (
innamorati
) eram
jovens integrantes das trupes que, em geral, atuavam usando seus próprios nomes
e mostrando seus rostos, frequentemente ocupando posições de destaque nas
companhias. Em um período em que as mulheres ainda eram majoritariamente
proibidas nos palcos, com exceção da própria
commedia dell’arte
, a figura da
enamorada assumia um papel de grande prestígio. Um exemplo notável é Isabella
Andreini, considerada a
prima donna
da companhia Gelosi, reconhecida por sua
atuação, beleza e elegância, e que inspirou não somente o nome da enamorada
do espetáculo
Do Fundo do Baú
, mas a enamorada de muitos outros espetáculos
ao longo da história. Entre os nomes mais recorrentes das enamoradas
encontram-se além de Isabela, Flaminia, Lavinia, Camila, Vitória e Sílvia; os
enamorados costumam receber nomes como Flávio, Lélio, Fabrício, Horácio e
Otávio.
Independentemente da nomenclatura, os enamorados, na maioria dos casos,
não possuem características próprias que os distinguem como arquétipos6 fixos,
6 O termo arquétipo provém da psicologia analítica de Carl Gustav Jung, designando formas primordiais do
imaginário coletivo, imagens universais que atravessam culturas e épocas (Jung, 2000). No campo teatral,
especialmente nos estudos da
commedia dell’arte
, a noção de arquétipo é empregada para designar tipos
estruturais e recorrentes de personagens, como o servo astuto (
zanni
), o velho avarento (Pantalone) ou o
fanfarrão (Capitano) que condensam traços sociais, emocionais e comportamentais reconhecíveis,
funcionando como matrizes simbólicas de criação e de recepção cênica.
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diferentemente das demais máscaras da
commedia dell’arte
. Além de não uso das
máscaras físicas, definem-se sobretudo pelo estado de estarem apaixonados,
funcionando menos como personagens de traços particulares e mais como a
personificação de um sentimento universal: a paixão amorosa. Essa
particularidade os diferenciava nitidamente dos demais personagens, como os
servos (
zanni
), reconhecidos por sua fala exagerada e estridente e gestos
acrobáticos; os velhos (
vecchi
), marcados pela avareza ou à erudição pedante; ou
ainda o Capitano, cuja fanfarronice era constantemente ridicularizada. Enquanto
esses tipos são reconhecíveis por seus comportamentos exagerados e
características sociais bem definidas, os enamorados permanecem como figuras
idealizadas, jovens belos e elegantes, quase abstratos, cuja presença serve como
motor da intriga e, em alguns casos, como ponto de contraste com a comicidade
dos demais tipos.
Figura 1 -
Isabella
(1600) de Maurice Sand Figura 2 -
Lelio
(1726) de Maurice Sand
(gravura colorida manualmente). (gravura colorida manualmente).
Fonte: Sand, 1862, v. 2, p. 175. Fonte: Sand, 1862, v. 1, p. 338.
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6
Figura 3 -
Silvia
(1716) de Maurice Sand Figura 4
-
Ottavio
(1688) de Maurice Sand
(gravura colorida manualmente). (gravura colorida manualmente).
Fonte: Sand, 1862, v. 2, p. 192. Fonte: Sand, 1862, v. 1, p. 338.
Na maioria dos roteiros, cabe aos enamorados desencadear a ação
dramática: podendo eles apaixonarem-se entre si, tornarem-se objeto do desejo
de outros personagens (como Capitano ou Pantalone) ou ainda enfrentar
obstáculos que retardam a união amorosa. No espetáculo
Do Fundo do Baú
, por
exemplo, o enredo é movido pelo amor mútuo entre os dois enamorados, cujo
relacionamento é impedido devido a desaprovação dos pais. Essa busca ou fuga
amorosa, seja por paixão ou matrimônio arranjado, estrutura grande parte dos
canovacci
, os roteiros básicos que orientam a ação da peça.
Como mencionado anteriormente, em alguns casos, os enamorados são
considerados os personagens ‘sérios’, servindo de contraponto às figuras cômicas,
enquanto lutam ou são ajudados por outros personagens em busca de seu amor.
Entretanto, na maioria dos casos suas ações são tão exageradas quanto as de
outros tipos como Arlecchino, Pantalone, Servetta, pois, pelo fato de estarem
imersos em suas paixões, podem chegar a extremos cômicos ou ridículos em
nome do sentimento. Como descreve o estudioso francês Pierre-Louis Duchartre
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os enamorados eram sempre elegantes, atraentes e,
ao mesmo tempo, um tanto ridículos [...]. Apesar de suas declarações
apaixonadas serem capazes de derreter um coração de pedra, sempre
parecia haver um lado cômico em tudo o que dizem. Pergunta-se se a
explicação não estaria no fato de que o amor frequentemente rouba do
amante qualquer senso do próprio ridículo, ainda que ele possa ser, em
circunstâncias comuns, o mais racional dos homens. Talvez, nesse caso,
a razão fosse que, no Renascimento, o deus do amor não era tão
formidável quanto antes, mas havia se degradado em um mero pequeno
brincalhão. Ou, ainda, que em um teatro devotado à comédia era
impossível levar qualquer coisa a sério, exceto a farsa (Duchartre, 1966, p.
286)7.
O figurino dos enamorados caracteriza-se pela extrema elegância,
acompanhando a moda das classes altas e as tendências mais recentes. Essa
escolha não apenas ressalta sua juventude, mas também evidencia o status social
e econômico de suas famílias, que, em muitas situações, tratam-se de filhos e
filhas dos velhos Pantalone, Dottore ou Tartaglia. Seu linguajar segue o mesmo
padrão refinado, repleto de metáforas barrocas e palavras corteses. Dominam de
cor longos trechos de poemas, dedicando “atenção especial à dicção e a uma
emissão suave e harmoniosa, em nítido contraste com a fala rude e dialetal dos
zanni
. Eram especialistas nas artes da “corte”, da “retórica amorosa”, do “amor feliz
e infeliz” (Giacomo, 1968, p 166)8.
Dentro da Cia. Os Mascaratis, o trabalho com os enamorados e demais tipos
da
commedia dell’arte
, embora se inspire em referências históricas e na prática
de outros intérpretes, não segue uma matriz corporal ou vocal pré-determinada.
Em vez disso, é desenvolvido de forma colaborativa, a partir das propostas e
experimentações dos próprios atores e atrizes da companhia. Essa abordagem
segue os preceitos das práticas da Profa. Dra. Vilma Campos dos Santos Leite9,
7 [...] just a trifle ridiculous. [...] Through their protestations would melt a heart of stone, there always seems
to be a comic side to everything they say. One wonders if the explanation does not lie in the fact that love
often robs the lover of all sense of his own absurdity, even though he may be the most rational of living men
under ordinary circumstances. Perhaps in this case the reason is that in the days of the Renaissance the
god of love was no longer as formidable as he used to be, but had deteriorated into a mere little practical
joker. Or, again, it may have been simply that in a theatre devoted to comedy it was impossible to take
anything seriously save farce (Duchartre, 1966, p. 286). (Tradução nossa)
8 [...] particular heed to diction and a soft harmonious delivery, in striking contrast to the rough dialect speech
of the
zanni.
They were experts in the arts of ‘courtship’, of ‘amorous rhetoric’, of ‘happy and unhappy love’
(Giacomo, 1968, p 116). (Tradução nossa)
9 Docente aposentada do curso de Teatro da UFU, atualmente professora visitante e colaboradora do
Mestrado Profissional e Acadêmico da instituição. Pós-doutorado em Artes da Cena (IA/UNICAMP), doutora
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responsável pela iniciação e formação na arte das máscaras da maior parte dos
integrantes do grupo. Vilma, por sua vez, integra uma linha de sucessão pedagógica
consolidada no teatro de máscara brasileiro, descendendo diretamente de Tiche
Vianna10, uma das figuras centrais na difusão e sistematização dessa linguagem
cênica no país. De acordo com Vianna,
um dos grandes equívocos no estudo e na compreensão da Commedia
dell’Arte é justamente copiar imagens dos corpos-máscaras registradas
em livros ou criadas por outros artistas em sua atuação cênica. Esse
procedimento fixa uma forma física e destrói a potência do arquétipo,
pois essa atitude o aprisiona dentro de um de seus símbolos. Imitar um
modelo pode ser o princípio, um meio ou estratégia de aproximação de
nosso corpo físico das formas experimentadas por um corpo-máscara,
mas não pode sustentar a crença de que, para recriar uma máscara desse
gênero, é preciso reproduzir em seu próprio corpo as mesmas formas
realizadas anteriormente. Nada seria pior do que isso para impossibilitar
a atualização desse fenômeno teatral (Vianna, 2023, p. 71).
Em consonância com a reflexão de Vianna, o grupo Os Mascaratis, no
processo de criação dos corpos-máscaras, recorre em determinados momentos
a iconografias ou a produções de outros(as) artistas, mas sempre como
disparadores criativos, e não como matrizes a serem rigidamente reproduzidas.
Essa escolha metodológica, como enfatiza Vianna, evita a cristalização de formas
e garante a vitalidade do trabalho, permitindo que cada intérprete desenvolva sua
própria proposição corpóreo-vocal para cada arquétipo.
No caso específico da composição dos enamorados, além do recurso às
iconografias históricas, o grupo, em suas cenas e espetáculos, parte de elementos
centrais que definem a essência desses personagens, como o estado de paixão
amorosa. Para isso, aproxima-se de procedimentos presentes na pedagogia de
Jacques Lecoq (2010), que propunha a observação dos elementos da natureza
como ponto de partida para a criação cênica. Nos ensinamentos de Lecoq, os
movimentos do fogo, da água, da terra e do ar não eram imitados de forma literal,
em História (ISA/Havana), mestre em Pedagogia do Teatro (ECA-USP), com formação em teatro e graduação
em Letras. Trinta e dois anos de experiência como artista e artista-educadora, e vinte anos na coordenação
de projetos artísticos e acadêmicos.
10 Atriz, diretora e pesquisadora de teatro formada pela Escola de Arte Dramática da Universidade de São
Paulo (EAD-USP). Especializou-se na linguagem das máscaras na Universidegli Studi di Bologna e no Atelier
Firenze of Papier Mâché, na Itália. Em 1998, fundou o Barracão Teatro, em Campinas, com Ésio Magalhães,
onde desenvolveu uma metodologia própria de ensino e criação cênica baseada na
commedia dell’arte
e no
teatro popular. É doutora em Artes da Cena pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e, em 2025,
celebrou 40 anos de pesquisas sobre máscaras teatrais.
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mas serviam como metáforas corporais, capazes de inspirar qualidades de energia,
ritmo e intensidade no corpo do ator e da atriz. Assim, a natureza se tornava uma
fonte inesgotável de imagens e dinâmicas, favorecendo a invenção de formas vivas
e expressivas.
Inspirados por essa abordagem, os e as integrantes d’Os Mascaratis vêm
investigando tanto em processos anteriores quanto em criações recentes - quais
elementos poderiam melhor corporificar o estado apaixonado dos enamorados.
Nas experimentações, que se renovam a cada espetáculo e cena, destaca-se a
associação recorrente aos elementos ar e fogo, tomados como matrizes de
movimento e energia. O ar, com sua leveza e fluidez, remete ao sonho, à
idealização e ao aspecto etéreo do amor; enquanto o fogo, com sua intensidade e
imprevisibilidade, traduz a força do desejo, a combustão emocional e o caráter
arrebatador da paixão.
A partir dessa combinação, os enamorados ganham uma fisicalidade própria:
ora suspensa e etérea, como se sempre prestes a flutuar, ora explosiva e vibrante,
deixando escapar a intensidade desmedida do sentimento. Assim, não são apenas
representados como jovens belos e elegantes, mas como corpos atravessados por
forças contraditórias, que oscilam entre o sublime e o ridículo característica
que os aproxima da comicidade, mesmo quando sua função dramática é marcada
pela seriedade.
Além das intensidades e qualidades do movimento, também se destacam as
formas corporais e as posturas assumidas pelos e pelas artistas da companhia
para esses arquétipos. Por exemplo, observa-se a tendência ao uso de um corpo
longilíneo, com o plexo projetado na diagonal para o alto e à frente, como se
buscasse alcançar os céus. Essa verticalidade é reforçada pelo uso da meia-ponta,
em um ou ambos os pés, e pelos braços semiabertos, semelhantes a asas,
contribuindo para estabilizar o movimento. Ao mesmo tempo, a bacia e as pernas
mantêm o corpo “preso” ao chão, simbolizando os desafios que impedem a plena
sublimação desse amor. Outro aspecto relevante são os jogos de contradição
entre tórax e quadris. Em certos momentos, o tórax dos enamorados se inclina
um em direção ao outro, gesto que sugere a busca de um amor idealizado, “que
mal cabe no peito”, enquanto o quadril se afasta, expressando o desejo de manter
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a pureza desse sentimento. Em outros momentos ocorre o inverso: os quadris se
aproximam, revelando o impulso do desejo, enquanto o tórax se afasta,
representando o recuo emocional. Tendencialmente, apenas no desfecho da
trama, quando os obstáculos são superados e a união é reconhecida, ambos os
centros do corpo se alinham, simbolizando a integração entre amor e desejo. Os
jogos de contradição ampliam a expressividade corporal dos enamorados.
Enquanto se afastam para cumprir os obstáculos da trama, o corpo ainda revela
sua intenção de proximidade: uma mão que permanece estendida para trás,
tentando um último toque; um olhar que não se desconecta do parceiro, mesmo
ao sair de cena; ombros e tórax que se voltam discretamente na direção do outro.
Esses gestos mantêm viva a tensão entre desejo e impossibilidade, transformando
cada movimento em uma narrativa corporal sutil, em que afastamento e
aproximação coexistem simultaneamente, reforçando a dimensão emocional da
paixão presentes nesses arquétipos.
Assim como a
commedia dell’arte
forneceu um repertório tipológico e gestual
para a construção dos enamorados no espetáculo
Do Fundo do Baú
, outra vertente
teatral também se mostrou decisiva nesse processo criativo d’Os Mascaratis: o
melodrama. Se, de um lado, os enamorados herdam da tradição italiana um estado
idealizado de paixão, de outro, sua fisicalidade e expressividade ganham novos
contornos ao dialogar com códigos melodramáticos. É nesse ponto de
convergência que se insere o próximo eixo de análise: compreender como o
melodrama em sua história, seus princípios estéticos e sua trajetória no Brasil
atravessa o trabalho do grupo e influencia a criação das cenas e dos arquétipos
de Isabela e Flávio.
O diálogo com o melodrama
Como mencionado anteriormente, Os Mascaratis surge em um contexto
universitário no qual os integrantes tiverem também seu primeiro contato com o
melodrama, modalidade artística fomentada principalmente pelo Prof. Dr. Paulo
Ricardo Merisio, que atuou como docente do Curso de Teatro da UFU até 2010.
Posteriormente, o conhecimento e os procedimentos melodramáticos foram
mantidos vivos por seus ex-alunos(as) e ex-orientandos(as), entre os quais se
inclui o autor deste artigo, responsável também pela direção do espetáculo
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analisado.
O melodrama, embora comumente associado ao exagero, ao
sentimentalismo e a situações intensas, constitui uma estética teatral complexa,
combinando elementos narrativos, performativos e musicais. Segundo o professor
e pesquisador francês Jean-Marie Thomasseau (2005), a palavra melodrama deriva
da junção do termo grego
mélos
(melodia, canto, música) com
drama
, surgindo no
século XVII na Itália para designar obras inteiramente cantadas. Na França do
século XVIII, passou a nomear espetáculos que rompiam com as normas clássicas
e utilizavam música para sublinhar momentos dramáticos. Charles Guilbert de
Pixérécourt é considerado o principal formulador das bases do melodrama
moderno, consolidando a estética que valoriza fortemente a expressividade
corporal, a gestualidade ampliada, cenários impactantes e figurinos solenes.
No Brasil, o melodrama chega aos palcos ainda no século XIX, período em
que o teatro buscava consolidar uma identidade própria, mas estruturava-se
principalmente a partir dos repertórios europeus. Com o avanço do
realismo/naturalismo e do teatro cômico-musicado, o gênero perdeu espaço nas
salas tradicionais, encontrando novos terrenos no circo, onde se combinavam
números de variedades e repertórios teatrais melodramas11, dramas sacros e
comédias. no século XX, a plasticidade do melodrama permitiu sua expansão
para os meios de comunicação de massa, como radionovelas, telenovelas e
cinema, demonstrando sua adaptabilidade e permanência na cultura
contemporânea (Huppes, 2000).
A estrutura narrativa do melodrama é geralmente bipolar, contrapondo
personagens guiados pela virtude a outros conduzidos pelo vício, pelo bem e pelo
mal. Tematicamente, privilegia a reparação da justiça ou a realização amorosa
obstaculizada por barreiras sociais, morais ou familiares, sustentando a tensão
dramática por meio da elasticidade da trama e da “surpresa iminente”, marcada
por reviravoltas inesperadas e desfechos nem sempre felizes (Huppes, 2000). Para
11 Daniele Pimenta (2017), professora e pesquisadora, observa que, no contexto do circo-teatro, os artistas não
se referiam às suas apresentações como melodramas. Eles denominavam suas peças simplesmente como
dramas, e quando essas obras se estendiam em duração ou intensidade, eram chamadas de dramalhões. A
classificação dessas encenações como melodrama decorre da análise histórica realizada por estudiosos,
que identificam a influência das referências europeias trazidas para o Brasil, especialmente na dramaturgia
e na construção textual das peças.
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organizar essa dinâmica, o gênero estabelece personagens-tipo, como o vilão ou
vilã, o herói ou heroína, o(a) sofredor(a) e o(a) cômico(a), cujas funções narrativas
são codificadas e facilmente reconhecíveis pelo público.
O herói e heroína, ou mocinho e a mocinha, ocupam posição central no
melodrama. Suas trajetórias articulam virtude, inocência e sofrimento,
frequentemente colocando-os em condição de vítimas de adversidades, injustiças
ou maldades de antagonistas. Essas situações intensificam a tensão dramática e
mobilizam a empatia do público. A mocinha/heroína caracterizada pela pureza,
coragem e delicadeza, enquanto o herói demonstra integridade moral, coragem e
dedicação à preservação da justiça e à proteção dos inocentes. Ambos enfrentam
obstáculos que testam sua determinação e revelam simultaneamente sua
vulnerabilidade, criando uma narrativa de heroísmo permeada por sofrimento e
por vezes, superação. Como observa Thomasseau (2005, p. 43), a “característica
essencial de todo herói de melodrama é a de ser puro e sem manchas, e de opor
às obscuras intenções do vilão uma virtude sem defeitos”.
A caracterização desses personagens reforça sua função simbólica: a
gestualidade ampliada, a expressividade corporal e os figurinos, frequentemente
em cores claras, enfatizam a nobreza e a pureza dos sentimentos tornam-nos
imediatamente reconhecíveis como emblemas do bem e do ideal romântico. A
condição de vítimas, imposta pelos vilões e vilãs, permite que o público
acompanhe de perto suas dificuldades, torça por sua superação e se envolva
emocionalmente na trama. Essa combinação de heroísmo e vulnerabilidade é uma
marca definidora do melodrama, evidenciando a tensão entre desejo, perigo e
moralidade que move a história.
É interessante notar que, nesse aspecto, a relação entre herói e heroína no
melodrama estabelece um paralelo direto com os enamorados da
commedia
dell’arte
. Assim como os protagonistas melodramáticos, os enamorados são
movidos pelo amor e frequentemente submetidos a obstáculos que dificultam sua
união. No melodrama, esses obstáculos assumem uma dimensão mais dramática
e intensa, enquanto na
commedia dell’arte
, o amor dos enamorados se manifesta
de forma idealizada e, muitas vezes, cômica. Em ambos os casos, porém, a
presença desses personagens centra a ação, sustenta a tensão narrativa e articula
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as demais figuras da trama em torno de sua união ou separação, estabelecendo
uma conexão estrutural entre as duas linguagens teatrais.
Elementos melodramáticos e a construção dos enamorados em
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Antes de mais nada, é importante salientar que, em
Do Fundo do Baú
, não se
buscou mimetizar de forma literal os elementos e códigos do melodrama, mas
sim potencializar o aspecto cômico dos enamorados dentro do espetáculo. Nesse
sentido, a construção de Flávio e Isabela partiu da articulação entre os arquétipos
dos enamorados da
commedia dell’arte
e os tipos do mocinho e da mocinha do
melodrama, combinando referências distintas para acentuar o efeito pretendido.
Essa fusão ampliou a gestualidade naturalmente exagerada e típica dos
enamorados, intensificando a expressividade corporal e vocal dos personagens ao
longo das cenas. As vozes melodiosas e a gestualidade expansiva evocam o lirismo
e a idealização amorosa dessas modalidades, mas, ao mesmo tempo, introduzem
uma comicidade deliberada: o exagero, reforçado pelas contramáscaras, recurso
da
commedia dell’arte
que apresenta gestos ou tons opostos à máscara principal.
Por exemplo, em um trecho do espetáculo, Flávio tenta tirar uma foto do busto
de Isabela com seu celular enquanto ela está distraída, e em outro demonstra
timidez ao receber uma tentativa de beijo da personagem, enquanto Isabela tenta
extrair um beijo forçado dele. Nesses momentos, elementos de timidez ou
lascividade surgem como contramáscaras que contrastam com a pureza,
ingenuidade e heroísmo típicos dos mocinhos e mocinhas, evidenciando a
vulnerabilidade dos personagens e criando contrastes que intensificam o efeito
cômico das cenas.
Mesmo nas passagens mais líricas, esse exagero gera efeitos de comicidade
involuntária para o público contemporâneo. Gestos amplos, vozes enfáticas e
situações maniqueístas, originalmente planejados para mobilizar empatia, podem
soar exagerados ou distantes das convenções naturalistas atuais, provocando riso
não pelo conteúdo em si, mas pelo contraste entre a solenidade pretendida e a
percepção moderna do excesso.
Na primeira cena do “espetáculo” anunciado pelos charlatões e charlatonas,
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Do Fundo do Baú
Welerson Freitas Filho
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isto é, a primeira cena do espetáculo dentro do espetáculo, ocorre o encontro
entre Flávio e Isabela. Diferentemente do que se observa comumente nas entradas
dos enamorados, em que falas e declamações ganham destaque, nessa cena
optou-se por um uso mínimo e pontual da palavra, construindo as interações dos
dois personagens de forma predominantemente corporal, acompanhadas de
músicas executadas e cantadas pelos demais atores e atrizes. Essa escolha apoia-
se em duas referências principais, sendo a primeira o melodrama clássico francês.
De acordo com Thomasseau (2005), na França as personagens centrais do
melodrama clássico eram caracterizadas por uma representação muda altamente
codificada, acompanhada de uma frase musical específica que anunciava e
sublinhava sua entrada em cena. Tal predileção pelos personagens mudos refletia
uma ética dramatúrgica simplificada, em que a linguagem pantomímica era central
para a expressão das emoções e para a construção do sentido. A segunda ideia
que fundamenta o uso restrito da palavra pelos enamorados está vinculada aos
modos de comunicação contemporâneos, fortemente influenciados pelas novas
tecnologias. Assim na cena, mesmo estando frente a frente, Flávio e Isabela
interagem predominantemente por meio de seus celulares, trocando mensagens
de texto e áudios.
Figura 5 - Cena do espetáculo
Do Fundo do Baú
(Os Mascaratis/MG): Flávio
declara-se a Isabela por mensagem de texto no celular. Acervo do grupo.
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Outros dois códigos do melodrama clássico francês inspirados na
École
Philippe Gaulier12
módulo melodrama e incorporados aos enamorados no
processo criativo de
Do Fundo do Baú
, foram o
Povo de Paris
e o
Círculo
Melodramático
. O primeiro remonta a uma prática ao início do século XVIII, quando
os melodramas eram apresentados na França no
Boulevard du Crime
. Nesse
contexto, a classe mais baixa da sociedade, composta principalmente por
trabalhadores e famílias, ocupava o lugar mais alto do teatro, conhecido como
“paraíso”. Os atores e as atrizes, conscientes da presença desse público específico,
que, além de numeroso, era também o mais efusivo e interativo em relação ao
que acontecia em cena direcionavam seus olhares e gestos para essa área como
forma de autoafirmação e cumplicidade, criando uma conexão direta com os
espectadores, o que com o passar do tempo acabou-se tornando um código
dentro da linguagem. Trata-se de uma técnica semelhante à triangulação típica da
commedia dell’arte
, mas, no melodrama, voltada a uma parcela específica do
público.
Figura 6 - Cena do espetáculo
Do Fundo do Baú
(Os Mascaratis/MG):
Flávio e Brighella. Acervo do grupo.
12 O Prof. Dr. Paulo Merisio realizou estágio/sanduíche em Paris durante seu doutorado, onde cursou o módulo
“Melodrama” oferecido pela
École Philippe Gaulier
; a experiência com Gaulier serviu de base para a
introdução e adaptação dessas práticas pedagógicas no Curso de Teatro da UFU e, posteriormente, em
disciplinas e projetos desenvolvidos por Merisio em outras instituições.
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Essa lógica de endereçamento seletivo ao público também orientou algumas
cenas de
Do Fundo do Baú
. Em vez de simplesmente reproduzir a triangulação no
nível do horizonte, Flávio e Isabela incorporam o gesto do “Povo de Paris” ao
direcionarem, nos momentos mais expressivos ou de interação, seus olhares para
a diagonal superior, simulando a comunicação com esse público imaginário. Ao
fazer isso, o espetáculo não apenas cita um código histórico, mas o reinscreve em
um novo contexto, marcada pela emoção intensa e pela busca de uma
comunicação quase sublime, refletindo também a idealização do amor entre os
dois personagens.
O segundo código incorporado é o
Círculo Melodramático
, que descreve a
forma como os atores e atrizes se deslocam no palco. Diferente da estética
realista, onde o movimento de um ponto a outro da área cênica é tendencialmente
linear e funcional, no melodrama o deslocamento é circular. Existem algumas
teorias para a origem desse código, sendo a primeira a possibilidade de o ator e a
atriz permaneçam mais tempo no foco da cena e criando um ritmo próprio para
a narrativa. Outra interpretação sugere que o deslocamento circular tinha também
uma função prática: manter os personagens dentro do proscênio, a área mais
visível e iluminada do palco. Essa estratégia era especialmente importante em
contextos históricos em que a iluminação era precária, baseada em ribaltas e
velas, garantindo assim que a ação permanecesse visível ao público. Em
Do Fundo
do Baú
, essa convenção é retomada: os enamorados deslocam-se na maior parte
do espetáculo com trajetórias circulares, mimetizando a técnica e, assim,
enfatizando a teatralidade da ação, afastando-se da naturalidade e reforçando a
movimentação estilizada dessas personagens.
Considerações finais
A análise do processo criativo de
Do Fundo do Baú
evidencia que a
originalidade do espetáculo não reside apenas na apropriação de códigos
melodramáticos, mas, sobretudo, na forma como esses códigos dialogam e se
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entrelaçam com a tradição da
commedia dell’arte
. O grupo Os Mascaratis não
buscou uma reprodução fiel de modelos históricos, mas construiu uma linguagem
híbrida, em que a solenidade do melodrama e a irreverência da
commedia
se
encontram em chave paródica, ampliando tanto o potencial cômico quanto a
vitalidade dos enamorados.
Na
commedia dell’arte
, os
innamorati
ocupam uma posição singular: não
usam máscaras, são figuras idealizadas, personificações da paixão amorosa, e ao
mesmo tempo oscilam entre o sublime e o ridículo, pois seu excesso de
sentimentalismo frequentemente os torna alvo de comicidade. Esse terreno fértil
para o exagero foi intensificado pelo diálogo com o melodrama, em que o par de
mocinho e mocinha se constrói a partir de gestualidade codificada, heroísmo
idealizado e situações de sofrimento exacerbado. Ao combinar essas duas
matrizes, o espetáculo encontrou uma via para reforçar tanto o lirismo quanto o
ridículo, preservando a tradição do teatro de máscaras e, ao mesmo tempo,
expandindo suas possibilidades expressivas.
Nesse sentido, a utilização de códigos melodramáticos foi decisiva. O “Povo
de Paris”, incorporado ao olhar dos enamorados, ressignifica a triangulação típica
da
commedia dell’arte
, ampliando a comunicação com o público e sublinhando a
idealização amorosa. O “Círculo Melodramático”, que organiza deslocamentos
circulares pelo palco, se alia ao dinamismo físico característico das máscaras,
reforçando a teatralidade e afastando qualquer pretensão naturalista. A
representação muda acompanhada de música, inspirada no melodrama francês
clássico, foi retomada no primeiro encontro entre Flávio e Isabela, mas com um
desvio cômico, que sua comunicação se por celulares em meio a gestos
idealizados. a gestualidade ampliada e enfática, quando atravessada pelo
recurso da contramáscara próprio da
commedia dell’arte
—, transforma a
solenidade melodramática em comicidade, revelando fragilidades, timidez e até
certa lascívia nas personagens.
Essa intersecção mostra que a comicidade de
Do Fundo do Baú
não surge
apenas do ridículo involuntário que os gestos melodramáticos podem provocar
em uma sensibilidade contemporânea, mas principalmente da colisão entre duas
tradições teatrais: de um lado, o melodrama, com sua busca pela emoção sublime,
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e de outro, a
commedia dell’arte
, com sua lógica grotesca. O encontro desses dois
registros faz com que os enamorados não sejam apenas figuras idealizadas, mas
corpos atravessados por contradições, capazes de oscilar entre lirismo e sátira,
entre heroísmo e fragilidade, entre o sublime e o grotesco.
Assim, o espetáculo demonstra que tanto o melodrama quanto a
commedia
dell’arte
permanecem vivos não apenas pela preservação de seus códigos, mas
pela possibilidade de serem atualizados, cruzados e reinventados em novos
contextos.
Do Fundo do Baú
demonstra, portanto, que o riso pode nascer tanto do
excesso melodramático quanto do jogo irreverente da
commedia
, e que no diálogo
entre essas duas tradições os enamorados podem encontrar outras potências e
possibilidades estéticas.
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Welerson Freitas Filho
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THOMASSEAU, Jean-Marie.
O Melodrama
. São Paulo: Editora Perspectiva, 2005.
VIANNA, Tiche.
Além da Commedia dell’Arte
: a aventura de um barracão de
máscaras. São Paulo: Perspectiva, 2023..
Recebido em: 03/10/2025
Aprovado em: 02/11/2025
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