
Meu corpo não é um só: corpo, culturas cênicas negro-brasileiras e questões curriculares
Alexandra Gouvea Dumas
Florianópolis, v.3, n.56, p.1-24, dez. 2025
[...] a temporalidade em que se inscreve o destino é próprio da
ancestralidade, isto é, da vigência ética do discurso de fundação do
grupo, em que se enlaçam origem e fim. Pode-se conceber aí um nível
de história, relativo ao conjunto de fatos e feitos humanos, mas
elaborado como uma articulação de passado, presente e futuro pelo
culto ao ancestral (Sodré, 2017, p. 128).
A professora Sandra Haydée Petit toma como exemplo um conhecimento
cultural afro-brasileiro: a capoeira. Nela, há um conjunto de valores e
fundamentos gestados e paridos por e em corpos negros. Petit identifica ações
vinculadas à cosmologia da capoeira e as apresenta como valores da
ancestralidade: “[...] senhoridade, mestria, iniciação, respeito, espiritualidade,
relação comunitária, intergeracionalidade, etc., repassados no chamado ritual da
capoeira, e obviamente toda a movimentação que a capoeira exige como luta
dançante [...]” (Petit, 2015, p. 177).
Entre os valores frequentemente associados à ancestralidade nas culturas
negras, o comunitarismo ocupa lugar central. Vanda Machado, professora e
Egbome do Terreiro Ilê Axé Opo Afonjá, compartilha experiências e reflexões
provenientes do Irê Ayó, projeto pedagógico criado e desenvolvido por ela na
Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos, situada no referido terreiro, em
Salvador, Bahia. A partir do vivido no chão da escola e do terreiro, Machado
destaca valores do “pensamento africano recriado na diáspora”. A vida comunal é
um dos elementos postos em relevo:
Ensina-se pelo
emi
, o sopro do encantamento da palavra e do outro.
Nesse contexto, é necessária a presença do outro que nos constrói. Eu
preciso do outro para ensinar, para encantar, para ser colocado no seu
caminho, que é também o meu caminho. Das aprendências do outro
depende a continuidade da tradição, da redistribuição da força da
espiritualidade gerada pela entrega de saberes necessários à condição
de ser e com-viver na comunidade (Machado, 2017, p. 26).
É interessante perceber em vivências e reflexões gestadas e nascidas em
grande parte das culturas negras que essa perspectiva comunitária não destitui o
corpo do seu sentido individual e único. Sodré, no que se refere ao que ele
chama de corpo-território, afirma:
Todo indivíduo percebe o mundo e suas coisas a partir de si mesmo, de
um campo que lhe é próprio e que se resume, em última instância, a
seu corpo. O corpo é lugar-zero do campo perceptivo, é um limite a
partir do qual se define um outro, seja coisa ou pessoa. O corpo serve-