1
Corpo-que-escreve
Diogo Liberano
Para citar este artigo:
LIBERANO, Diogo. Corpo-que-escreve. Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 4,
n. 53, dez. 2024.
DOI: 10.5965/1414573104532024e111
Este artigo passou pelo Plagiarism Detection Software | iThenticate
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Corpo-que-escreve
Diogo Liberano
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-41, dez. 2024
2
Corpo1-que-escreve2
Diogo Liberano3
Resumo
Ao reconhecer que, para além de ações, uma dramaturgia é também um trabalho
que trama paixões, este artigo propõe o corpo-que-escreve como uma prática da
disponibilidade que antecede o texto que virá. Para tal, inspira-se no processo de
criação de azevedo (2022-2023), uma publicação literária portuguesa, traçando
relações com a teoria da afecção (Spinoza) e com as noções de programa
performativo (Fabião) e inoperosidade (Agamben).
Palavras-chave: Corpo-que-escreve. Dramaturgia. Trabalho das paixões. Programa
performativo. Disponibilidade.
Body-that-writes
Abstract
Recognizing that, beyond actions, a dramaturgy is also a work that weaves passions,
this article proposes the body-that-writes as a practice of availability that precedes
the text to come. To this end, it draws on the creation process of azevedo (2022-
2023), a Portuguese literary publication, establishing connections with the theory of
affection (Spinoza) and the notions of performative program (Fabião) and in
operativity (Agamben).
Keywords: Body-that-writes. Dramaturgy. Work of passions. Performative program.
Availability.
Cuerpo-que-escribe
Resumen
Al reconocer que, más allá de las acciones, una dramaturgia es también un trabajo
que trama pasiones, este artículo propone el cuerpo-que-escribe como una práctica
de disponibilidad que precede al texto que vendrá. Para ello, se inspira en el proceso
de creación de azevedo (2022-2023), una publicación literaria portuguesa, trazando
relaciones con la teoría de la afección (Spinoza) y con las nociones de programa
performativo (Fabião) e inoperosidad (Agamben).
Palabras clave: Cuerpo-que-escribe. Dramaturgia. Trabajo de las pasiones. Programa
performativo. Disponibilidad.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por André Vechi Torres. Doutorado em
Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Mestrado em Teoria e Experimentação em Artes pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Graduação em Artes Plásticas pela Universidade de Brasília (UnB).
2 Este artigo resulta em 76% de minha tese denominada “A dramaturgia fora de si”. Defendida no Programa
de pós-graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade na Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro (PUC-Rio), sob orientação de Rosana Kohl Bines, em 2022.
3 Doutorado em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio). Mestrado em Artes da Cena pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Graduação em Artes Cênicas: Direção Teatral (UFRJ). diogoliberano@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/4428311746610195 https://orcid.org/0000-0003-3984-0528
Corpo-que-escreve
Diogo Liberano
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-41, dez. 2024
3
Em Dramaturgia O Trabalho das Ações, texto escrito pelo encenador teatral
Eugenio Barba em colaboração com o pesquisador Nicola Savarese, a palavra
“texto” é referida ao trabalho de tecer junto, logo, aquilo “que está relacionado ao
‘texto’ tessitura) do espetáculo pode ser definido como ‘dramaturgia’, ou seja,
drama-ergon, o ‘trabalho das ações’ no espetáculo” (Barba, 2012, p.66). Para o
encenador, no momento em que ele escreveu tal verbete, início da década de
1980, tornava-se cada vez mais difícil discernir ou separar a escrita do texto
daquela feita pela cena teatral: “essa distinção é clara em um teatro que deseja
ser a interpretação de um texto escrito” que, quando assistimos a uma
encenação teatral, “ação (ou seja, tudo o que está relacionado à dramaturgia) não
é apenas o que é dito ou feito pelos diversos atores, mas também os sons, os
ruídos, as luzes, as mudanças do espaço” (Barba, 2012, p.66).
Com Barba, reconhecemos mais elementos agindo na escrita teatral do que
apenas palavras escritas por uma autora para serem ditas em cena. Perceber o
quanto mais e mais agentes escrevem e compõem a escritura cênica é
determinante para que a atividade da escrita possa se expandir para além da
autoridade de quem escreve, assim como da própria palavra, muitas vezes vista
como a destinação final de todo o ato de escrever.
O encenador sugere que ão é “tudo o que age diretamente sobre a atenção
do espectador, sobre sua compreensão, sua emotividade e sua cinestesia [...]”
(Barba, 2012, p.66, grifo nosso) e, por extensão, nos convida a pensar no trabalho
dramatúrgico de ações que é feito por inúmeras outras práticas artísticas. Ao
estudarmos, portanto, dramaturgia pelo ponto de vista de um encenador teatral,
tanto perdemos o que é dramaturgia como encontramos outros caminhos para
aquilo que ela pode vir a ser.
Por agora, então, acreditaremos que dramaturgia é um trabalho que compõe
um tecido ou uma trama de ações que agem sobre a atenção da espectadora, sua
compreensão, emotividade e cinestesia. Dramaturgia, portanto, como um trabalho
que agrega uma diversidade de ações inscritas por meio de diferentes agentes ou
elementos sendo a palavra apenas um deles. Com esta definição, Barba marca a
diferença entre um teatro tradicional (baseado num texto escrito previamente à
cena texto a priori e que serviria de matriz para o nascimento da encenação)
Corpo-que-escreve
Diogo Liberano
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-41, dez. 2024
4
e um teatro, naquela época, novo (no qual a dramaturgia é um arranjo de ações
que não pode ser transcrito em palavras e posto no papel porque tal arranjo ou
texto é propriamente o acontecimento teatral, ou seja, o performance text): “seria
tautológico afirmar que o performance text (que é o espetáculo) pode ser
transmitido pelo espetáculo” (Barba, 2012, p.67).
Só há dramaturgia, no entanto, quando as ações começam a formar tramas.
A trama é o modo pelo qual as ações trabalham juntas, tal como a reunião das
linhas que, arranjadas coletivamente, formam um tecido. Interessado nos tipos de
trama que um espetáculo teatral pode compor, Barba sugere dois modos de
tramar ações: via concatenação (ou encadeamento) e via simultaneidade: “O
primeiro tipo de trama tem a ver com o desenvolvimento das ações no tempo,
através de uma concatenação de causas e efeitos”, enquanto o “segundo tipo de
trama [simultaneidade] tem a ver com a presença simultânea de várias ações”
(Barba, 2012, p.66). Tais dimensões concatenação e simultaneidade constituem
o texto do acontecimento teatral e “através de sua tensão ou de sua dialética,
determinam o espetáculo e sua vida: o trabalho das ações a dramaturgia” (Barba,
2012, p.67). A relação entre tais polos não se dá por contradição, ele afirma, e sim
por uma espécie de oposição dialética, que “o problema é o equilíbrio entre o
polo de concatenação e polo de simultaneidade” (Barba, 2012, p.67)4.
Em muitos casos, quanto mais difícil é para uma espectadora “interpretar ou
avaliar imediatamente o sentido do que acontece diante de seus olhos e de sua
mente, mais forte é a sensação de viver uma experiência”, ou ainda, “mais forte é
a experiência de uma experiência” (Barba, 2012, p.67). Barba acredita que a
dramaturgia, o trabalho das ações, deve equilibrar os dois polos, que “a perda
do equilíbrio a favor da trama por concatenação leva a peça ao torpor de um
reconhecimento confortável” enquanto a perda do equilíbrio a favor da
simultaneidade “pode resultar na arbitrariedade, no caos” (Barba, 2012, p.68).
Mas se o encenador arrancou a dramaturgia do texto escrito e a transformou
4 “Empobrecer o polo da simultaneidade é o mesmo que limitar as possibilidades de fazer brotar significados
complexos no espetáculo. Esses significados não derivam de uma complexa concatenação de ações, e sim
do entrelaçamento de várias ações dramáticas, cada uma delas dotada de um significado’ próprio e simples.
[...] E, assim, o significado [...] de um fragmento da peça não é determinado apenas pelo que o precede e
pelo que virá depois, mas também por uma multiplicidade de facetas, por uma sua presença, digamos
assim, tridimensional, que faz com que ele viva no presente com uma vida própria.” (Barba, 2012, p.67)
Corpo-que-escreve
Diogo Liberano
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-41, dez. 2024
5
numa escritura cênica, podemos arrancá-la da cena para trazê-la de volta ao
trabalho de composição de dramaturgias feito exclusivamente por palavras
escritas no papel. Não se trata de recusar as expansões dramatúrgicas, nem de
um saudosismo a um modo tradicional de escrever, mas de um jogo através do
qual injetamos na escrita de dramaturgias provocações oriundas da cena e que a
convocariam a experimentar ainda mais a sua maquinaria literária. Se eu,
dramaturga, confio que dramaturgia é um trabalho que trama ações que não
apenas aquelas derivadas da palavra escrita no papel e/ou dita em cena, o que
isso modifica no meu processo criativo? O que isso modifica no meu corpo e no
do texto que escrevo tendo em vista uma dramaturgia ser feita por mais ações
do que aquelas que eu, autora, intencionei e escrevi?
Será que, ainda agora, dramaturgia diz respeito apenas ao trabalho das ações,
como sugere Barba? Ou será que no trabalho de criação dramatúrgica, para além
de tudo o que age sobre a espectadora (leitora?), há também outros ingredientes
que influem na escrita justamente porque afetam o corpo de quem escreve? Tais
indagações se confirmam ao percebermos o quanto a criação de dramaturgias
feita hoje em dia parece dedicada a responder a desafios que, em muitos casos,
derivam de algo exterior aos corpos de quem escreve e do próprio texto
dramatúrgico que é escrito (seja ele cênico, textual, performativo etc.).
Em sua Ética, o filósofo Benedictus de Spinoza traça definições relativas ao
agir e ao padecer humanos. Para tal, ele define que uma “causa adequada” é aquela
cujo efeito pode ser percebido de maneira evidente que, de certo modo, são
adequadas porque guiadas pela razão e compreensão apurada do que estamos
fazendo (Spinoza, 2014). A partir dessa primeira definição, ele sugere que “agimos
quando, em nós ou fora de nós, sucede algo de que somos a causa adequada” e,
de modo contrário, “que padecemos quando, em nós, sucede algo, ou quando de
nossa natureza se segue algo de que não somos causa senão parcial” (Spinoza,
2014, p.98). Para pensar o agir e o padecer humanos, destacamos, portanto, a
existência ou ausência de uma intencionalidade consciente e fundamentada em
nosso raciocínio.
Investigando a origem e a natureza dos afetos, Spinoza define o seguinte:
Corpo-que-escreve
Diogo Liberano
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-41, dez. 2024
6
3. Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência
de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo
tempo, as ideias dessas afecções.
Explicação. Assim, quando podemos ser a causa adequada de alguma
dessas afecções, por afeto compreendo, então, uma ação; em caso
contrário, uma paixão (Spinoza, 2014, p.98).
Defendemos, portanto, a possibilidade de lermos ações como aquilo que
agimos (escrevemos) com intenção e, por outro lado, paixões como afetações das
quais não somos causa senão parcial, que se inscrevem sobre a nossa
sensibilidade. Essa diferença pode nos estimular a reconhecer e valorizar
existências exteriores à dramaturgia. Se confiarmos que uma dramaturg(i)a é
capaz de se interessar por algo que não provém dela própria, então podemos nos
perguntar: não seria o caso de lermos dramaturgia também como um trabalho
das paixões? Dramaturgia enquanto um trabalho também dedicado a tramar o
que não parte da intencionalidade de quem a escreve?
Imaginar dramaturgia como um trabalho das paixões direciona a composição
dramatúrgica para uma vasta rede de afetações que, mesmo externas a ela, ainda
assim a afetam e modificam. Neste ensaio, portanto, pensaremos sobre o corpo
de quem escreve como ação que se realiza antes de qualquer discussão sobre
autorias, cenas e dramaturgias escritas. Aqui, nos interessa especular sobre a
possibilidade de um corpo que escreve ser lido como um praticante ou um
conjunto de práticas da e para a disponibilidade.
Corpo-que-escreve
Diogo Liberano
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-41, dez. 2024
7
azevedo
A coreografia dos pássaros. Os
pássaros têm uma coreografia que só
eles sabem. A coreografia dos
autocarros. Os autocarros também têm
lá sua dança, movimentos curvilíneos e
retilíneos, seus fluxos e suas paragens,
às vezes alguma colisão. Esta linha de
autocarros, linha 400, faz um caminho
aparentemente curto. Se estás neste
autocarro é porque vais em direção a
Azevedo ou vais embora de lá. Certo? A
festa que o sol faz quando encontra a
Corpo-que-escreve
Diogo Liberano
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-41, dez. 2024
8
pele, a beleza singela que nasce entre
as pedras, as ruínas, algum silêncio e o
verde da relva, o azul do céu, o latido
dos cães, o rangido dos carros e as
muitas árvores de Azevedo. Sim, sim,
preciso confessar: em Azevedo sinto-
me diferente. Não sei explicar. Tudo o
que me disseram sobre Azevedo foi dito
antes mesmo de eu conhecer Azevedo.
Disseram-me que Azevedo estava à
margem. Eu perguntei: à margem do
quê? Ninguém me respondeu. Azevedo
está à margem de quem? Não
responderam. Então peguei o autocarro,
linha 400, e embarquei rumo a Azevedo.
A rotunda na Estrada da Circunvalação
que permite o acesso a Azevedo tem
uma placa com o nome Azevedo
seguido de uma seta. Olhe com
atenção. Está escrito Azevedo e logo ao
lado tem uma seta: Azevedo e >.
Acredito, Azevedo, que deverias sim
receber mais atenção e cuidado. Ah, o
Progresso! Políticos falam do progresso
como se ele fosse uma estrada de mão
única. Deveríamos perguntar não sobre
aquilo que o progresso pode trazer,
mas sobre aquilo que o progresso
rouba de nós. É melhor não falarmos
Corpo-que-escreve
Diogo Liberano
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-41, dez. 2024
9
do progresso. Alguém deveria nos
apresentar um ao outro. Eu (quem
escreve estas palavras) e tu (que pode
estar a lê-las). Alguém deveria ter-nos
apresentado uma à outra: eu, quem
escreve palavras, e tu, Azevedo, que me
faz escrevê-las. Sinto que algum poema
começa em ti, Azevedo. Tenho a
sensação de que tu inauguras algum
poema que ainda não nasceu. Ali onde
estou, sentada sobre aquela pedra, há
muito a acontecer: de um lado, passa
uma estrada com carros indo e
voltando; do outro, um imenso parque.
Tenho a sensação de que mesmo que
eu conheça este parque, ainda assim
não conseguirei conhecê-lo todo.
Amanhã estarei naquela esquina.
Descerei a rua, aquela rua, com calma e
lentidão. Quando chegar ao fim da rua,
lá embaixo, ainda será dia e o sol estará
brilhando. Amanhã estarei naquele
parque. Descerei o monte, aquele
monte, com rapidez e habilidade.
Quando chegar à saída do parque,
esperarei pelo autocarro na paragem
cujo nome é Parque Oriental. Amanhã
eu passarei a mão em ti, Azevedo.
Esfregarei o meu corpo por toda a tua
Corpo-que-escreve
Diogo Liberano
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-41, dez. 2024
10
extensão. Como quem nada deseja,
quando estiver cruzando uma rua tua,
pararei e meterei os dedos nas pedras
de um muro teu. Depois, como quem
pensa ser invisível, pararei um cão e lhe
farei confidências amorosas. Mas não
só isso: ao caminhar por tuas ruas,
sentar-me-ei na pedra e nela
encostarei minha cabeça: deitado ao
chão, orelhas à pedra, tentarei ouvir os
teus segredos, Azevedo. Ao longe, cães
conversam. Há cães em Azevedo. Por
que não há cães na Avenida dos
Aliados? Há cães em Azevedo, é
possível ver, ouvir, eles estão por todos
os lados. E eu também. Eu estou aqui.
Azevedo é Porto, disse-me a senhora
ontem. Mas a fala dita ontem ainda hoje
é repetida. Azevedo é Porto, eu mesmo
direi esta frase amanhã. Tu és Porto,
Azevedo, esta não é a questão, mas
será que Porto sabe que tu também és
parte dele? Azevedo, se eu pudesse te
perguntar algo eu perguntaria se és
solteiro ou casado. Eu me apaixonaria
por ti, Azevedo, juro que eu me
apaixonaria por ti. Caminho por tuas
ruas. Passo por algumas pessoas, umas
me olham, outras não me enxergam,
Corpo-que-escreve
Diogo Liberano
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-41, dez. 2024
11
sigo caminhando e ao caminhar olho
para tudo e para todos. Como posso
estar em ti, Azevedo, sem olhar-te com
atenção? Chegando em ti, chegando lá
em Azevedo ou aqui em Azevedo,
dentro do autocarro em movimento, é
possível espiar os quintais de algumas
casas. É possível ver plantações,
pequenas hortas, nada demais, mas
alguma agricultura a florescer. Fiquei
com vontade de te perguntar, Azevedo,
sobre o que é produzido por ti. O que
Azevedo produz? Além desta paz, o que
mais tu produzes, Azevedo? Chego em
ti com carinho e respeito. Sou assim,
venho de fora, devo pedir licença e
chegar com calma. Como devo chamar-
te? É o Azevedo ou a Azevedo? Como é
possível que dentro de uma cidade
exista outra cidade? Tenho a sensação
de que será preciso algum tempo até
eu poder dizer que te conheço. Até lá,
conservo o mistério do nosso encontro.
E continuarei chamando de cura,
provisoriamente, chamarei de cura isto
entre nós, isto que entre nós continua,
isto que tu provocas em mim, Azevedo:
sim, alguma cura. É o que sinto agora
que já não é o agora daquele dia em
Corpo-que-escreve
Diogo Liberano
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-41, dez. 2024
12
que passei um tempo sobre uma
grande pedra num parque teu. O agora
deste instante já não é o agora daquele
céu azul, mas talvez ainda seja o agora
daquele início de tarde quando o
autocarro (este) estava cheio de
pessoas. Daqui onde estou, dentro do
autocarro, parado a uma paragem, vejo
um jovem e uma senhora retirando os
casacos para aproveitar o sol que hoje
nos esquenta a todos. Mas o autocarro
segue em movimento, portanto, daqui
onde estou agora, o que vejo é apenas
uma estrada ao longe. Caso olhe para
os lados, talvez tu me encontres. Eu
estou de banho tomado e todo
perfumado. Estou assim para te ver.
Tudo isto para conhecer-te. Disseram-
me muito. Sei coisas sobre ti que não vi
de perto, que não toquei, que não li no
teu olhar, coisas que apenas me
disseram, coisas que ouvi. Serão
verdade, Azevedo? Deveríamos dar uma
festa e parabéns aos motoristas logo
após eles passarem com o autocarro
naquela rua espremida que parece ter
apenas 10 centímetros de largura a
mais do que a própria largura do
autocarro. É um sufoco! Hoje foi preciso
Corpo-que-escreve
Diogo Liberano
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-41, dez. 2024
13
parar, dar a ré e tentar novamente, mas
conseguimos. Parabéns, seu motorista!
Qual é o teu nome? Duas senhoras
passam caminhando. Estou deitado à
pedra e entreouço uma delas dizendo
que tem uma cor de rosa logo ali
embaixo. Mais tarde, quando estiver
saindo do parque, passarei novamente
por aquelas senhoras e as duas estarão
a levar mudas de plantas em suas
mãos. Elas falam das plantas como se
em ti, Azevedo, houvesse prendas
escondidas. Como se tu, Azevedo,
fosses um reino cheio de raras
especiarias. Talvez sim, Azevedo, talvez
cada pessoa encontre em ti (em si?) a
cura que necessita. A senhora
aproximou-se de mim, olhando-me e
perguntando se eu sabia em quantos
minutos passaria o próximo autocarro.
Eu lhe perguntei: da linha 400? Ela riu e
respondeu: há outra linha? Eu caminhei
com ela até a paragem e consultei o
quadro que nos informou que em 20
minutos passaria um novo autocarro da
linha 400 em direção a Porto. Ela me
olhou, olhos arregalados, e disse-me:
aqui é Porto! É como alguma cura. É
como se em ti eu fosse deslocado de
Corpo-que-escreve
Diogo Liberano
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-41, dez. 2024
14
um sítio que mais me faz mal do que
eu consigo perceber. Percebes? É como
se tu fosses e pudesses ser um abrigo,
uma espécie de casaco, um imenso
casaco de moletom e flanelado, com
uma cor de relva bem verdinha. É como
uma cura. Tu és uma cura para mim. E
o silêncio? Há um silêncio misterioso
aqui ou lá. Quando digo aqui é em
Azevedo. Quando digo lá é também em
Azevedo. Azevedo está em todos os
sítios. Ela, a senhora que está comigo
nesta paragem aguardando o próximo
autocarro da linha 400, ela fala-me a
palavra periferia como quem sabe os
limites que uma palavra é capaz de
impor ao corpo que ela nomeia. Ela,
então, decidiu contar-me sobre a
própria vida. Já é outro dia que não
ontem. Encontrei-me com aquela
senhora tantas vezes que posso
encontrá-la também em sonho. No
encontro deste agora, quer ele seja de
hoje ou de antes, ela conta-me sobre a
própria vida. Diz-me que vive em
Azevedo desde pequenina. Eu digo que
moro lá no Porto. Eu digo bem assim:
eu moro lá no Porto, ao que a senhora
responde: aqui é Porto! Azevedo é
Corpo-que-escreve
Diogo Liberano
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-41, dez. 2024
15
Porto! Depois ela explica-me que aqui é
a periferia. Entro no autocarro só para
te encontrar, Azevedo. Embarco para te
conhecer. Só há uma linha de autocarro
que me levaria a ti. Bendita linha 400!
Cruzando ruas, entre céu e pedras,
cruzando casas e pessoas, caminho por
tuas ruas, Azevedo, sem saber onde
estou nem onde pousarei. Escrevo
aquilo que escorre para além das
palavras. As manhãs e tardes em que
vim até ti, Azevedo. Nossas longas
conversas e confidências. Como
escrevê-las? Ajude-me. Imaginemos
que existem pessoas dentro de um
autocarro que acabaram de receber um
pequeno livreto, um jornal ou folheto,
no qual há um punhado de palavras
que narram encontros de um homem
não com outra pessoa, mas encontros
de um homem com um sítio específico.
Não mais sobre o amor entre um ser
humano e outro, mas sobre o amor de
uma pessoa com um lugar. O amor
entre mim (quem escreve estas
palavras) e Azevedo (que me põe a
escrevê-las). Eu estava caminhando
pelas ruas de lá, como costumo fazer,
pelas ruas de lá ou daqui, e logo após