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Reescrever a pandemia em cena como direito de
recordar em
A Sociedade dos Anticorpos
Agatha Batista
Angelene Lazzareti
Para citar este artigo:
BATISTA, Agatha; LAZZARETI, Angelene. Reescrever a
pandemia em cena como direito de recordar em
A Sociedade
dos Anticorpos
.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 4, n. 53, dez. 2024.
DOI: 10.5965/1414573104532024e206
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Reescrever a pandemia em cena como direito de recordar em
A Sociedade dos Anticorpos
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Agatha Batista2
Angelene Lazzareti3
Resumo
Partindo do trauma pandêmico da Covid-19, o presente artigo reflete sobre o espetáculo
teatral
A Sociedade dos Anticorpos
, realizado em 2023, pelo coletivo Poéticas do ENTRE,
sobretudo o
Sintoma Luto
, cena que reivindica reescrever a história da pandemia a partir
da evocação das ausências e apagamentos decorrentes das disputas de poder em
relação ao direito à memória. O trabalho também contextualiza o período pandêmico
brasileiro e as
necropolíticas
, conceito de Achille Mbembe, que junto com Ileana Dieguez,
Amílcar Borges de Barros, Michael Pollak, Leda Maria Martins e Emerson Pereti
referenciam a reflexão.
Palavras-chave
: A Sociedade dos Anticorpos. Luto. Pandemia de Covid-19.
Rewriting the pandemic on stage as a right to remember in
A Sociedade dos Anticorpos
Abstract
Starting from the traumatic experience of the Covid-19 pandemic, this article reflects on
the theatrical performance
A Sociedade dos Anticorpos
(The Society of Antibodies),
staged in 2023, by the collective Poéticas do ENTRE, particularly the scene
Sintoma Luto
(Mourning Symptom), which seeks to rewrite the history of the pandemic by evoking the
absences and erasures resulting from power struggles over the right to memory. The
article also contextualizes the Brazilian pandemic period and the necropolitics, a concept
by Achille Mbembe, which, together with the ideas of Ileana Dieguez, Amílcar Borges de
Barros, Michael Pollak, Leda Maria Martins, and Emerson Pereti, informs the reflection.
Keywords:
The Society of Antibodies. Mourning. Covid-19 Pandemic.
Reescribir la pandemia en escena como derecho a recordar en
A Sociedade dos Anticorpos
Resumen
A partir del trauma de la pandemia de Covid-19, este artículo reflexiona sobre el
espectáculo teatral
A Sociedade dos Anticorpos
, realizado en 2023 por el colectivo
Poéticas do ENTRE, especialmente el
Sintoma Luto
, escena que pretende reescribir la
historia de la pandemia a través de la evocación de las ausencias y borraduras
resultantes de las luchas de poder en relación al derecho a la memoria. El texto también
contextualiza el período de la pandemia brasileña y las
necropolíticas
, concepto de
Achille Mbembe, quien junto a Ileana Dieguez, Amílcar Borges de Barros, Michael Pollak,
Leda Maria Martins y Emerson Pereti referencian la reflexión.
Palabras clave
: La Sociedad de Anticuerpos. Duelo. Pandemia de Covid-19.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por João Victor Concer Corrêa, graduado em
Letras - Inglês pela Universidade Católica de Santos (2018) e em Letras- Artes e Mediação Cultural pela
Universidade Federal da Integração Latino-Americana (2022).
2 Mestranda em História na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Bolsista CNPq.
Graduação em História pela UNILA e performer do coletivo Poéticas do ENTRE. agatha.unila@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/8909914953684461 https://orcid.org/0009-0007-1188-4381
3 Artista e docente da Área de Artes do Instituto Latino-Americano de Arte, Cultura e História da Universidade
Federal da Integração Latino-Americana. Atua com foco em Processos de criação artística, Estudos do corpo,
e Poéticas do "entre" e da escuta, trabalhando na intersecção entre diferentes linguagens como artes da
cena, performance e audiovisual. É diretora do coletivo Poéticas do ENTRE. angilazzareti@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-1539-7843
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En tiempos de tanta densidad fúnebre tal vez el arte
ha devenido, por su modo de producción
fantasmático, un lugar para evocar en vez de un
lugar para representar.
(Ileana Diéguez)
O presente artigo reflete sobre a experiência da construção dramatúrgica e
da encenação do espetáculo teatral
A Sociedade dos Anticorpos
, realizado em
2023, pelo coletivo Poéticas do ENTRE. O grupo é formado por artistas
multidisciplinares do Brasil, Argentina, Paraguai, Bolívia, México, Colômbia e
Venezuela, e está localizado em Foz do Iguaçu, na Tríplice Fronteira entre Brasil,
Paraguai e Argentina. O coletivo, criado em 2019, é coordenado por Angelene
Lazzareti e Fabio Salvatti, e busca promover a integração latino-americana,
valorizando as questões socioculturais destes territórios ao incorporá-las em suas
proposições artísticas e pedagógicas. A sede do Poéticas do ENTRE é a
Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Transitando entre o
Teatro, a Performance, o Audiovisual e os Estudos do Corpo, o Poéticas do ENTRE
se articula desde a interação entre estas linguagens, a partir de uma pesquisa
coletiva e continuada que resulta em processos criativos e obras, encontros com
artistas, publicações de artigos e livros, incubadora de projetos culturais e
promoção de oficinas e residências artísticas.
A Sociedade dos Anticorpos,
obra teatral concebida coletivamente em 2023,
é apresentada da seguinte forma no programa do espetáculo:
O espetáculo teatral A Sociedade dos Anticorpos aborda diversos eventos
históricos marcados por epidemias em diferentes localidades e épocas,
fazendo menção a um tempo espiralar que traz de volta ao presente
acontecimentos do passado de forma cíclica. Também são abordadas as
questões relativas ao luto pelos 700.000 mortos por Covid-19 no Brasil,
considerando a necessidade de reverência à memória dessas pessoas,
seus afetos e legados. As culturais digitais, junto à sobrecarga do universo
virtual (características do isolamento social) são abordadas a partir de
referências às lives, home office, reuniões remotas e estudos online. A
dimensão do contágio é trabalhada corporalmente a partir do estudo da
epidemiologia e das diferentes formas de transmissão dos vírus.
Depoimentos que narram experiências vividas durante a pandemia são
compartilhados em cena no intuito de colocar em relação diferentes
realidades sociais, culturais e econômicas atravessadas por esse
fenômeno. Por fim, temas como corporeidade, natureza e antropoceno
também são evocados cenicamente com o objetivo de projetar previsões
para o futuro. (Lazzareti; Salvatti, 2023).
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A encenação entrelaça o teatro, a performance, a dança, a música e o
audiovisual, fazendo jus à linguagem híbrida desenvolvida pelo coletivo Poéticas
do ENTRE. As principais referências para a construção dramatúrgica são as vozes
de Ailton Krenak, Albert Camus, Antonin Artaud, Bunseki Fu-Kiau, Byung-Chul Han,
Davi Kopenawa, Emanuele Coccia, Jota Mombaça, Leda Maria Martins, Lisa Nelson
e Paul B. Preciado. A montagem ainda trabalha com a captação e edição de
imagens em tempo real, projetadas em uma grande tela que compõe o cenário.
No total, a montagem envolve 20 profissionais de distintos países latino-
americanos atuando em áreas como direção, dramaturgia, atuação, operação
técnica, criação sonora, criação audiovisual, coreografia e direção de arte.
No presente artigo, nos deteremos em
Sintoma Luto,
cena que nos permite
resgatar a vivência da pandemia de Covid-19 no Brasil em meio às polarizações
políticas que levaram a incontáveis mortes que poderiam ter sido evitadas.
Lamentamos que o conjunto de narrativas dominantes que escrevem a história da
pandemia em nosso país recorra em uma série de apagamentos, que marcam
também, não por acaso, os processos históricos da América Latina. Nesse
contexto, acreditamos que o teatro pode ser praticado desde seu aspecto político
como agente crítico, questionando como a história nos é contada e ousando
reescrevê-la em cena. Desse modo, os artistas envolvidos colaboram com a
desafiadora tarefa de refletir sobre o nosso tempo sem desvinculá-lo do passado
como caminho de aprendizado para que apagamentos e deturpações não voltem
a se repetir. A revisão cuidadosa e sensível de um passado muito recente nos
parece necessária, ainda que a lógica de “O Brasil não pode parar”4, incutida
durante e após a pandemia, tenha nos feito retornar às atividades cotidianas a
partir do modelo produtivista que rege grande parte de nossas rotinas. Como
consequência, seguimos em exaustão, sem tempo e nem condições específicas
para refletir profundamente sobre o que vivemos durante a pandemia como
evento histórico.
Ainda assim, entendemos a necessidade da elaboração coletiva sobre a
pandemia de Covid-19 como um compromisso social. Para que possamos lidar
4 Para ler a respeito da campanha “O Brasil não pode parar” lançada pelo governo em questão, sugerimos a
leitura de: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/governo-lanca-campanha-brasil-nao-pode-parar-contra-
medidas-de-isolamento/
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com os desdobramentos presentes e futuros da Covid-19 é necessário que, como
comunidade, façamos o trabalho de elaborar emocional e cognitivamente os
acontecimentos vividos desde narrativas plurais capazes de reescrever essa
história lançando luz às suas sombras, exclusões e silenciamentos. O
compartilhamento de experiências, incluindo sensações, medos, perdas,
frustrações, sonhos, afetos, reinvenções e descobertas, se realizado de forma
coletiva, pode nos proporcionar consciência histórica. Ao nos posicionarmos como
narradores de nossas experiências, nos tornamos autores da História que será
repassada adiante para as próximas gerações. Dessa forma, realizamos um
trabalho de valorização da memória como dimensão singular e coletiva, honrando
as vidas perdidas nesse processo e integrando os aprendizados gerados a partir
das alterações vividas durante os diferentes processos da pandemia.
Posicionamos o teatro como um dos responsáveis por questionar as versões
“oficiais” sobre esse período a partir do olhar atento às vozes silenciadas e aos
corpos apagados, evocando-os para reescrever a história conosco, em cena.
A partir dessa contextualização, refletiremos sobre
Sintoma Luto
à luz dos
seguintes temas e noções:
necropolítica
,
de Achille Mbembe (2016); a alegoria
como evocação da pandemia, abordada por Emerson Pereti (2022); o direito ao
luto e o teatro como lugar de memória, a partir das pesquisas de Ileana Diéguez
(2013); as
memórias subterrâneas
, de Michel Pollak (1989);
tempo espiralar
, de Leda
Maria Martins (2021); e a
arqueologia corporal,
desde os pensamentos de Amílcar
Borges de Barros (2011). Estabelecendo um paralelo com o contexto brasileiro, em
seguida, retomaremos a potencialidade do teatro como agente político capaz de
reescrever as histórias oficiais.
A pandemia no Brasil
No final de 2019, o mundo se deparou com uma ameaça invisível, porém letal:
o Coronavírus SARS-CoV-2, também conhecido como Covid-19. A partir daí, tudo
mudou. Um clima de medo e tensão foi instaurado quando foi declarada a
pandemia mundial. Houve a necessidade de que os países desenvolvessem
protocolos de proteção para as suas populações (ou ao menos era o que se
esperava). No Brasil, a doença se tornou uma questão política, uma vez que o
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então presidente da república, Jair Messias Bolsonaro, desacreditou a ciência
repetidas vezes e, em muitos momentos, não seguiu as orientações da
Organização Mundial da Saúde (OMS).
As atitudes do dirigente do país, assim como seus seguidores e muitos
setores da classe empresarial preocupada com lucros, por exemplo, levaram a
uma sucessão de eventos catastróficos, dentre eles o desrespeito à quarentena,
deboche de jornalistas, a disseminação de informações falsas, o atraso na compra
de vacinas e a troca de quatro ministros da saúde durante a pandemia. Dentre as
declarações de maior impacto do então presidente, citamos a afirmação de que a
maioria das pessoas seria imune ao vírus, a defesa da imunidade de rebanho, a
crítica do isolamento social utilizando a crise econômica como justificativa, a
crítica ao uso de máscaras sugerindo que elas poderiam reduzir a oxigenação, a
distorção de diretrizes da OMS, a indicação de medicamentos ineficazes para o
tratamento da doença, e o levantamento de suspeitas infundadas sobre as
vacinas, questionando sua eficácia e necessidade5. Essas declarações, advindas de
um presidente com grande influência, desdobraram-se em inúmeras
fake-news
de adeptos e seguidores que contribuíram para a deturpação das narrativas
geradas e difundidas sobre a pandemia. Dentre as informações falsas mais
danosas estão a série de publicações com boatos sobre caixões sendo enterrados
vazios para enganar a população, tendo como intuito desacreditar as mortes por
Covid-196. Tais fatos agravaram a situação sanitária vivenciada no país, o que
culminou com a morte de mais de 700 mil pessoas no Brasil, desdobrando-se em
um luto nacional imensurável, que diversas dessas mortes poderiam ter sido
evitadas.
Deste modo, a ação do agente estatal levou a uma situação deveras
traumática, e por conseguinte diversas mortes que não puderam ser veladas, ou
seja, muitas pessoas não puderam sequer se despedir de maneira digna de seus
entes queridos. No auge da pandemia, incontáveis vítimas morreram sozinhas,
5 Jair Bolsonaro responde atualmente a dois inquéritos no Supremo Tribunal Federal por conta das inverdades
difundidas durante e após a pandemia. Maiores informações sobre as declarações citadas com links de
checagem podem ser conferidas na seguinte matéria da UOL: https://noticias.uol.com.br/confere/ultimas-
noticias/2022/12/28/covid-vacina-e-eleicoes-as-mentiras-que-marcaram-o-mandato-de-bolsonaro.htm
6 Conferir em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52584458
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enterradas com caixões lacrados em valas improvisadas e coletivas, sem direito a
um velório. Somado à falta de sociabilidade compulsória, porém necessária, e à
privação de despedidas que honrassem a memória do ente querido, as marcas
deixadas pela pandemia são incalculáveis. O apagamento dessas vidas é uma das
marcas mais extremas da pandemia, considerando que a aproximação mais
difundida de tais fatalidades foi a contagem numérica (muitas vezes adulterada
pela correspondente gestão brasileira), ou seja, no imaginário popular as mortes
se transformaram em um número. Nesse processo, muitos corpos foram
apagados e muitas vozes foram silenciadas e ainda não contamos com a real
responsabilização e julgamento dos sujeitos envolvidos.
A negação da grave realidade da pandemia foi o discurso constante de
Bolsonaro e de seus adeptos, construído a partir da manipulação política de
narrativas. A negação dessa história se aproxima da atenuação (e até da negação)
da ditadura civil-militar brasileira, que também vimos circular recentemente. Esses
fatos não são exceção quando pensamos na deturpação, desinformação ou
desconhecimento das bases estruturantes da América Latina. Infelizmente, a
história oficial ainda difundida recorre no apagamento das atrocidades cometidas
contra comunidades originárias. Podemos refletir, então, como o teatro pode
contribuir para a retomada do direito sobre a própria história, desde uma conduta
ética de reescrita das narrativas dominantes a partir da presença de corpos e
vozes plurais que questionem discursos hegemônicos. Nesse sentido, inúmeros
grupos e artistas produziram obras e materiais diversos durante e após a pandemia
desde um trabalho cuidadoso com a memória. Incluímos o Poéticas do ENTRE
nessa comunidade, que a partir da criação coletiva, construiu o espetáculo teatral
A Sociedade dos Anticorpos,
que estreou em outubro de 2023, em Foz do Iguaçu.
No ano seguinte, o espetáculo circulou pelas cidades de Puerto Iguazú (Argentina),
Ciudad del Este (Paraguai), Medianeira e Cascavel (Brasil). Definido pelo coletivo
através da sinopse da obra:
O espetáculo teatral A Sociedade dos Anticorpos está pensado como
luto, como memória, como forma de não esquecer. Sociedade dos
Anticorpos também como ecossistema digital. A consagração da
colonização algorítmica. Mas também como utopia, coletiva. Na
Sociedade dos Anticorpos evocamos o tempo circular, como
retrospectiva do futuro, como nostalgia do presente, como o pássaro
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morto por Exu. A Sociedade dos Anticorpos como testemunho, como
intimidade, mas também como jogo de cena. Como disputa pelo
território, pela sorologia, pela saliva, pelo contágio. A Sociedade dos
Anticorpos como rastro, como convite, como abertura, como sim
(Programa do Espetáculo e Portfólio Poéticas do ENTRE, 2023).
A Sociedade dos Anticorpos
é composta por nove momentos cênicos
chamados de
sintomas
ao invés de
cenas
. Os sintomas são: Temperatura;
Amanhã, ontem e hoje; Remoto Controle; Arruda; Luto; Corpo-Árvore; Contágio; O
sonho do Vice-Rei; e Yo viviré.
Sintoma Luto
As memórias e o trauma causados pela pandemia de Coronavírus SARS-CoV-
2 no Brasil levaram a mais de 700 mil mortes7, tais dados estão presentes no
espetáculo teatral
A Sociedade dos Anticorpos
, mais especificamente no
Sintoma
Luto
. Descreveremos a cena em questão para melhor exemplificação da análise
que será realizada a seguir.
Uma atriz entra em cena carregando uma cadeira nas costas, que representa
seus mortos e antepassados. O ato de carregar os mortos nas costas é uma alusão
ao
butô,
dança japonesa concebida por Kazuo Ohno e Tatsumi Hijikata, que inclui
em sua filosofia a reverência aos mortos que nos habitam, sendo comum a
postura arqueada dos dançarinos, que carregam em suas costas um gigantesco
peso: o de seus ancestrais8. A atriz posiciona a cadeira vazia no centro do palco,
onde um foco de luz que permanece aceso ao longo de toda a cena,
simbolizando o lugar da ausência. Ela retira de suas costas um par de sapatos, faz
uma reverência levando-os até a altura dos olhos, depois os posiciona em frente
a cadeira e sai de cena.
7 Dados retirados do Ministério da Saúde Brasileiro. Disponível em https://covid.saude.gov.br/
8 Para acessar mais informações acerca do tema, sugerimos a pesquisa de Edén Peretta sobre butô. Peretta,
2015, p. 61.
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Figura 1:
Sintoma Luto
com a atriz Zary Yonari Hernandez.
Foto: John Alex. Arquivo do coletivo Poéticas do ENTRE, 2024.
Figura 2:
Sintoma Luto
com a atriz Zary Yonari Hernandez.
Foto: John Alex. Arquivo do coletivo Poéticas do ENTRE, 2023.
Adentrando o material cênico e dramatúrgico da peça ora analisada, uma
primeira observação refere-se a procedimentos cênicos desenvolvidos no Núcleo
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Fundo em um primeiro momento, de caráter investigativo e teórico.
Figura 3:
Sintoma Luto
com elenco em cena.
Foto de John Alex. Arquivo do coletivo Poéticas do ENTRE, 2024.
A trilha sonora segue ao mencionar “Célia Regina Nechi, 60 anos”. Outra atriz
entra em cena com mais um par de sapatos e repete a ação. A trilha aumenta
progressivamente enquanto são proferidos 400 nomes e idades de vítimas reais
da Covid-19. As vozes foram gravadas pelos performers do coletivo e vão se
sobrepondo umas às outras construindo a ideia de multidão. A cena segue, até
que o espaço todo seja preenchido por sapatos no chão. Então, uma atriz entra
em cena com uma placa que anuncia “Sintoma Luto”, e a segura por um minuto
encarando a plateia, cercada de sapatos vazios, enquanto os demais performers
entram em grupos e cada vez mais rápido conforme o volume e a quantidade de
nomes entoados na trilha sonora aumentam.
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Figura 4 -
Sintoma Luto
com elenco em cena, destaque para a atriz Guadalupe Anaya,
que segura a placa “Sintoma Luto”. Foto: John Alex.
Arquivo do coletivo Poéticas do ENTRE, 2024.
A frequência vertiginosa com que os treze atores entram e saem de cena
com sapatos cresce em consonância com o ritmo das vozes. A trilha sonora possui
uma crescente, o ritmo de vozes fica mais e mais frenético de modo que, em
determinado momento da cena, é quase impossível distinguir os nomes e idades
faladas. De igual modo, os pares de sapatos são colocados até que se torna quase
impossível caminhar em meio a tantos corpos, representados pelos sapatos. A
sonoridade vai diminuindo, mas os atores continuam entrando em cena com
sapatos vazios ainda durante o silêncio, que perdura solenemente. Este momento
da cena é uma alusão às mortes não contabilizadas e aos inúmeros mortos sem
registros ou desaparecidos.
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Figura 5 - Registro do
Sintoma Luto
.
Foto: John Alex. Arquivo do coletivo Poéticas do ENTRE, 2024.
Black out
, as luzes se apagam, e entra em cena uma atriz que utiliza um
blazer cheio de olhos e segura uma câmera, esta personagem nomeada como
corpo-câmera
passa com uma lanterna no meio dos calçados focando um por um
e dando a visão do todo. Enquanto a imagem é projetada na tela, a plateia
consegue acompanhar em tempo real o que é gravado pela câmera, de modo que
se possa enxergar a multidão de sapatos. O
corpo-câmera
enfoca a placa “Sintoma
Luto” e segue mostrando a imensidão de cadáveres até que por fim cruza todo o
palco e sai de cena.
Figura 6 - Espetáculo
A Sociedade dos Anticorpos
, com a atriz Cybèle Verazain
como
corpo-câmera
. Foto: John Alex. Arquivo do coletivo Poéticas do ENTRE, 2024.
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Luzes brancas muito claras se acendem de maneira abrupta enquanto
entram em cena três performers marchando em uníssono, atravessando o palco
utilizando uma faixa de tecido com estampa camuflada verde, coturnos e
carregando rodos apoiados sobre o ombro direito, como quem carrega armas. A
primeira performer vai em direção a cadeira e em seguida a placa, recolhendo-as
com violência. Os demais aguardam a primeira sair de cena, para que então
comecem a limpeza: com os rodos empurram de maneira violenta os sapatos que
estão em cena atravessando o palco, até que a pilha seja escondida na coxia. Uma
única passada de rodo não é suficiente, então, voltam enquanto ainda há sapatos
e os jogam para fora; repetem esse movimento com violência até que não haja
mais nada no palco.
Reescrevendo a história e disputando narrativas a partir do
teatro
Elaborar um espetáculo que trata de um trauma coletivo brasileiro velado e
ainda recente, também revela o desejo de disputar a narrativa presente na
necropolítica que foi legitimada pelo Estado brasileiro. Em um cotidiano marcado
por um governo genocida, que agencia a violência diante da deturpação de
informações durante uma pandemia desse porte, nos perguntamos como o teatro
pode se tornar lugar de reescrita da história. O modo de governar do então
presidente da república pode ser pensado desde a
necropolítica do poder
, noção
de Achille Mbembe (2016). O autor debate sobre como o autoritarismo e o poder
centralizado nas mãos de poucos, acabam por decidir quem pode ou não
sobreviver: “Nesse caso, a soberania é a capacidade de definir quem importa e
quem não importa, quem é ‘des-cartável’ e quem não é” (Mbembe, 2016, p. 135). A
exemplo disso, as ações deliberadas do governo incentivaram a crença na
“imunidade de rebanho”, levando a diversas mortes, transformando o Brasil em
um pseudo-laboratório a céu aberto.
As técnicas de policiamento e disciplina, além da escolha entre
obediência e simulação que caracterizou o potentado colonial e pós-
colonial, estão gradualmente sendo substituídas por uma alternativa mais
trágica, dado o seu extremismo. Tecnologias de destruição tornaram-se
mais táteis, mais anatômicas e sensoriais, dentro de um contexto no qual
a escolha se entre a vida e a morte [...], as novas tecnologias de
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destruição estão menos preocupadas com inscrição de corpos em
aparatos disciplinares do que em inscrevê-los, no momento oportuno, na
ordem da economia máxima, agora representada pelo “massacre”
(Mbembe, 2016, p. 141).
Os pesquisadores em políticas públicas e estudiosos da obra de Mbembe,
André Sena e Mariana Rodrigues, relacionam a pandemia e o Estado necropolítico
brasileiro, enfocando o agravamento das vulnerabilidades da população negra
frente ao Covid-19:
Enfatizamos que a necropolítica de Estado, potencializada pelo racismo
estrutural que baliza nossa sociedade, não foi arrefecida pela errônea
leitura de que o vírus teria um caráter democrático ao atingir ricos ou
pobres, brancos ou pretos. Pelo contrário, o contexto tem revelado que
ações necropolíticas e racistas foram aprofundadas. A necropolítica
aparece justamente no fato de que o vírus não afeta a todos de maneira
igual. Em entrevista concedida em março de 2020, Mbembe afirma que
o sistema capitalista e, por conseguinte, a lógica neoliberal são baseados
na distribuição desigual de oportunidade de viver e morrer (Sena;
Rodrigues, 2021, p.135).
Para tratar das disparidades da pandemia, citamos também o
Sintoma Arruda
de
A Sociedade dos Anticorpos
, cena em que muitos depoimentos são partilhados
com o objetivo de retratar as diferentes experiências vivenciadas nesse período
por sujeitos em distintas classes sociais e situações de vida. Como exemplo, há o
depoimento de um homem em situação de privação de liberdade, que partilha
situações extremas vivenciadas durante a pandemia no sistema carcerário. O
depoimento foi construído a partir da aproximação efetiva com pessoas em
privação de liberdade na penitenciária de Foz do Iguaçu. Além deste,
depoimentos de uma enfermeira em estado de sobrecarga, de uma auxiliar de
cozinha em situação de vulnerabilidade e de uma estudante que presenciou o
assassinato de Marcelo Arruda, crime político ocorrido em Foz do Iguaçu, em 2022.
No evento em questão, um bolsonarista invadiu a festa de aniversário de Marcelo
Arruda, cuja decoração fazia alusão ao PT, e disparou contra ele repetidas vezes.
O crime marcou a região da Tríplice Fronteira e nos leva a pensar não na epidemia
de Covid-19, mas na epidemia de ódio que marca nosso país9. Ainda recorrendo
aos aportes de Mbembe, a pesquisadora do teatro Ileana Dieguez destaca que as
9 Para conferir a respeito: https://www.h2foz.com.br/politica/ha-um-ano-marcelo-arruda-era-vitima-da-
politica-contaminada-pelo-odio/
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“leis da sociedade”, as mesmas que reiteram e propagam desigualdades sociais,
perseverando dinâmicas de ódio e de subalternização, se inscrevem em nossos
corpos, deixando marcas como um tipo de escritura tão íntima quanto pública:
La ley de la sociedad queda inscrita en sus cuerpos. La memoria de la ley
es ejercida como escritura corporal. Tal y como sucede con los cuerpos
bajo el poder soberano que decide quién vive o quien muere (Mbembe,
2006, 30). Los cuerpos hablan a través de la sevicia escritural ejercida
sobre ellos. La ley decide el tipo de escritura y de superficie en la cual se
imprimirá (Dieguez, 2013, p.21).
Que discursos e narrativas estão inscritos em nossos corpos quando se trata
da pandemia de Covid-19? Que narrativas e histórias foram apagadas junto com
as mortes de 700.000 vítimas dessa tragédia? Seria possível tatearmos, desde uma
escritura cênica, a evocação dessas inscrições, não desde a presença desses
corpos, mas desde a ênfase em suas ausências? O pesquisador de teatro Amilcar
Borges de Barros (2011) reflete sobre a memória como inscrição nos corpos,
incluindo marcas, trajetos e vestígios que se manifestam em cena. Segundo ele, o
corpo é um poderoso arquivo mnemônico que, em cena, faz da inscrição corporal
um procedimento de criação, borrando os limites e as normas entre a esfera
privada e a pública - em ação revelam-se cicatrizes, marcas subjetivas e traços
genealógicos.
Una repetición diferenciada donde el cuerpo del actor es el que inscribe,
revela y denuncia en el espacio escénico los conflictos humanos; es
justamente en el cuerpo del actor donde se debe embestir en el re-
descubrimiento y/o re-lectura cartográfica de las cicatrices, rastros o
vestigios dejados por la percepción y la experiencia. Como un jeroglífico
sonoro sensitivo, la acción manifestada en el cuerpo puede fluir y
desplazarse entre las dinámicas del sentido. En la palabra del cuerpo
ocurre una cierta arqueologia corporal [...] (Barros, 2011, p. 86).
A partir dessa inspiração, ao pensar em uma arqueologia corporal desde a
noção de uma memória inscrita nos corpos capaz de realizar denúncias no espaço
cênico, nos perguntamos mais uma vez: como evocar essas inscrições desde a
ausência? Retornando ao
Sintoma Luto
, a alegoria dos sapatos vazios relaciona-
se com os desejos de evocar os mortos enfatizando sua ausência, e de apresentá-
los aos espectadores também desde a grafia de seus nomes no espaço. Segundo
o professor Emerson Pereti (2022, p. 41) “enquanto o símbolo aponta para a
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eternidade da beleza, a alegoria ressalta a impossibilidade de um sentido absoluto
e a necessidade de perseverar na temporalidade para constituir significações,
ainda que transitórias”. Ainda que tenhamos tido acesso apenas a contagens
numéricas dessas perdas, ao nominar cada uma das 400 pessoas, a cena resgata
o fato de que cada uma delas tem o direito de ser nomeada, para que seus legados,
afetos e caminhos sejam legitimados. Ver diariamente nos jornais os gráficos
numéricos de mortes subir exponencialmente talvez tenha nos anestesiado,
impedindo que considerássemos efetivamente que cada número se tratava de
uma vida. Segundo Mbembe, na necropolítica “corpos sem vida são rapidamente
reduzidos à condição de simples esqueletos. Sua morfologia doravante os inscreve
no registo da generalidade indiferenciada” (Mbembe, 2016, p. 142).
Também é objetivo da cena recuperar a dimensão coletiva do luto, que foi
impossibilitada durante o período de isolamento social e que culminou em
processos de enlutamento incompletos, que a dimensão individual, sozinha, não
possui condições de consolidar tais processos. Nesse sentido, os sapatos evocam
um modo de rememorar nossos mortos e de reverenciar suas vidas, como uma
forma de realizar um velório coletivo para todos aqueles que não puderam se
despedir. Lembramos que essas vidas, em sua complexidade, sofreram repetidas
tentativas de apagamento como dado histórico por um presidente que não apenas
contribuiu para seu elevado número e para a deturpação dos dados oficiais, mas
que as negligenciou em tom de deboche ao afirmar não ser coveiro10. Como revolta
e contraposição a essa situação, o
Sintoma Luto
busca por uma escritura cênica
da ausência, como forma de proporcionar uma vivência coletiva de luto nacional:
Las tensiones que inevitablemente genera una escritura en torno a la
ausencia y a lo que ha sido nombrado como un cuerpo espectral, son
también las que erosionan cualquier discurso en torno al duelo. Tal vez
en el obrar de esa escritura espectral sobre espectros- se juegue una
posibilidad de duelo (Dieguez, 2013, p.17).
É preciso reivindicar os espaços de memória que nos foram tomados ou
atropelados em consequência da gestão da pandemia e da lógica de “O Brasil não
pode parar”. O teatro, se pensado e vivido como um lugar de memória, participa
10 Para conferir a declaração: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/20/nao-sou-coveiro-ta-diz-
bolsonaro-ao-responder-sobre-mortos-por-coronavirus.ghtml
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das disputas de narrativas através das artes, questionando e reescrevendo
histórias oficiais compostas por apagamentos e deturpações. Nesse sentido,
Diéguez afirma que:
A fuerza de amnesias y borraduras, los acontecimientos de la vida de una
comunidad, de un país, suelen ser desterrados de la historia para pasar a
formar parte del conjunto de mitologías y relatos que desde los terrenos
del arte hacen el trabajo de la memoria a contrapelo (Diéguez, 2013, p.
211).
Em sua obra, “Cuerpos sin duelo” (2013), Diéguez reflete sobre uma série de
manifestações teatrais e performáticas que, ao resgatarem e homenagearem os
mortos, vítimas de distintos eventos sócio-políticos, tratam de reescrever a
história em cena sem recorrer em desaparecimentos e apagamentos intencionais.
Segundo a autora, nesses casos: “a veces se hace teatro para los muertos, para
los ausentes” (p. 212). Desde essa lente, pensamos que o
Sintoma Luto
age em
consonância com tal propósito ao incluir os nomes e as memórias daqueles que
não estão como parte da história que desejamos que seja contada. Dieguez
(2013, p. 213) enfatiza que: “El arte como figura de duelo es siempre una alegoría
que opera a través de los fragmentos, de los olvidos y desechos de memorias,
como si intentara un trazo residual, una reescritura de restos.” A ideia de
reescritura de restos nos soa como uma importante contribuição para refletirmos
o papel do teatro frente a situações traumáticas como a pandemia de Covid-19.
Ante la propuesta para imaginar, como sugiere Jean-Luc Nancy, “una
escritura de los muertos”, en el sentido de una “escritura de la
horizontalidad de los muertos en cuanto nacimiento de la extensión de
todos nuestros cuerpos” (2003, 44), debemos pensar también la urgencia
de imaginar una escritura de los cuerpos no encontrados; una escritura
de aquellos cuerpos que no se sabe dónde están (Dieguez, 2013, p.171).
No
Sintoma Luto
, uma parte importante da cena ocorre quando a trilha
sonora que nomeia os mortos por Covid-19 termina, e desde o silêncio absoluto
ainda entram em cena diversos performers carregando pares de sapatos vazios
para corpos sem nome, não contabilizados ou desaparecidos. A mesma
disparidade social e necropolítica que faz com que diferentes camadas da
população tenham vivido a pandemia de formas muito distintas também assola a
comunidade indígena brasileira. Nosso país foi terreno de graves violações de
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direitos humanos no que tange aos povos originários no decorrer da pandemia de
Covid-19. Citamos, como exemplo, as mães Yanomami de Roraima, cujos bebês
teriam sido contaminados por Covid-19 no hospital superlotado onde foram
internados com sintomas de pneumonia. Desde então, os corpos de seus filhos
desapareceram, sem que ninguém soubesse dizer se houve diagnóstico de Covid-
19, quais protocolos foram adotados e em qual local os corpos teriam sido
enterrados11. Para esses corpos desaparecidos se faz necessária uma escritura
cênica da ausência, como ação urgente e inescapável se quisermos construir uma
história que reflita em dignidade para as comunidades mais vulneráveis atingidas
pela pandemia.
Quebrando o silêncio, o som dos sapatos sendo empurrados violentamente
para fora da cena no
Sintoma Luto
em
A Sociedade dos Anticorpos
é
ensurdecedor, fazendo alusão ao encobrimento, apagamento e negligência em
relação às vítimas da pandemia de Covid-19. São militares que marcham com suas
armas (rodos de limpeza) os responsáveis por retirar os corpos da cena. Essa
referência cênica demarca a responsabilidade dos militares em diversas ações
bolsonaristas durante e após o mandato de Jair Bolsonaro. Observando os trajetos
históricos de nosso país como território, podemos dizer que o Brasil possui um
sério problema em lidar com seus mortos. Infelizmente, o autoritarismo segue
fazendo vítimas diariamente, seja pela anistia de outrora, seja pela política de
apagamento das memórias recentes relativas a Covid-19. O professor Emerson
Pereti traça o seguinte paralelo entre a pandemia e o período da ditadura civil-
militar no Brasil:
Falo na relação, aparentemente inusitada, entre o desaparecimento de
corpos humanos empreendido pelos agentes da ditadura cívico-militar
no Brasil e as políticas da morte adotadas por seus herdeiros diretos,
agora, durante a pandemia do Covid 19. Antes o posso falar de outra
coisa a não ser da própria condição ruinosa dessa tentativa de
escritura. Quando a história migra para o cenário da ação, dizia Benjamin,
ela o faz sob a forma de escrita. O que significa gravar essa
historicidade no rosto da natureza com caracteres da transitoriedade,
ou seja, com a própria escritura, ela também uma ruína da voz e dos
pensamentos condenada à decrepitude e à desolação. Assim
registrada, a história não se revela como processo de uma vida eterna,
sublime e inefável, mas antes como o progredir de um inevitável declínio
11 Para consultar a respeito do caso sugerimos a leitura de https://brasil.elpais.com/brasil/2020-06-24/maes-
yanomami-imploram-pelos-corpos-de-seus-bebes.html
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19
(Pereti, 2022, p. 42).
Como uma escritura de ruínas, destacamos a dificuldade de uma escrita
sobre essa história, que a pandemia de Covid-19 foi tema de uma polarização
política no Brasil: acreditar ou não na existência do vírus poderia corresponder a
posicionar-se à direita ou à esquerda. Isso fez com que as medidas de proteção
fossem vivenciadas de maneiras diferentes pela população, até mesmo a questão
da vacina tornou-se questão de disputa partidária. Ainda refletindo sobre a
aproximação realizada por Pereti, entre a pandemia de Covid-19 e a ditadura civil-
militar no Brasil temos o encontro ou o retorno de diferentes tempos de nossa
história. Durante o processo de construção dramatúrgica e de encenação de
A
Sociedade dos Anticorpos,
o coletivo Poéticas do ENTRE recorre a diversos
momentos históricos acometidos por epidemias, desde as pestes que vieram com
as caravelas. Refletindo sobre o movimento de escrever e reescrever uma história
que retorna, abordamos a ideia de
tempo espiralar,
presente nos estudos de Leda
Maria Martins:
A primazia do movimento ancestral, fonte de inspiração, matiza as curvas
de uma temporalidade espiralada, na qual os eventos, desvestidos de
uma cronologia linear, estão em processo de uma perene transformação.
Nas espirais do tempo, tudo vai e tudo volta (Martins, 2003, p. 78-79).
Aqui, retomamos a sinopse do espetáculo que evoca o pássaro que Exu
matou ontem como uma pedra que jogou hoje, nas palavras do provérbio
africano.
Por fim, fazemos menção à ideia de
memórias subterrâneas
de Michel Pollak
(1989), que nos aponta um caminho para trazer à superfície as reminiscências dos
corpos negligenciados no processo da pandemia de Covid-19 no Brasil: nesse
contexto “a memória entra em disputa” (Pollak, 1989, p. 2). O autor debate sobre
as disputas de narrativas e de como certas memórias são soterradas com o intuito
de que não sejam revividas, justamente porque quem detém o poder comanda o
que pode ou não ser debatido e elaborado.
Essa memória "proibida" e portanto "clandestina" ocupa toda a cena
cultural, o setor editorial, os meios de comunicação, o cinema e a pintura,
comprovando, caso seja necessário, o fosso que separa de fato a
sociedade civil e a ideologia oficial de um partido e de um Estado que
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pretende a dominação hegemônica. Uma vez rompido o tabu, uma vez
que as memórias subterrâneas conseguem invadir o espaço público,
reivindicações múltiplas e dificilmente previsíveis se acoplam a essa
disputa da memória [...] (Pollak, 1989, p. 3).
As
memórias subterrâneas,
segundo Pollak, são instrumento de luta de uma
cena cultural que se propõe a disputar as narrativas hegemônicas, evocando
memórias adormecidas ou silenciadas. A partir dessa contribuição, incluímos o
teatro como agente político capaz de reescrever a história oficial em cena, desde
trabalhos atentos à memória como dimensão singular e coletiva. O
Sintoma Luto
,
cena do espetáculo teatral
A Sociedade dos Anticorpos
traz para o centro do
debate o trauma nacional vivenciado em decorrência da pandemia de Covid-19 a
partir do convite ao luto desde sua dimensão coletiva. Em cena, o coletivo de
artistas Poéticas do ENTRE, ao evocar nominalmente 400 vítimas reais da Covid-
19, não apenas recorda a vida de cada uma delas, mas também reflete sobre o
papel do Estado brasileiro como agente do esquecimento. Reescrever a história
em cena desde as cicatrizes inscritas em nossos corpos é parte de um processo
extenso e coletivo de disputa de narrativas em prol de uma história plural que diga
de nós. Os corpos apagados e as vozes silenciadas nesse processo são o foco de
um trabalho que nos relembra que o número “setecentos mil” representa pessoas
com trajetos complexos, legados e afetos que não tiveram a possibilidade de
seguir escrevendo suas histórias. Suas ausências, entretanto, ainda escrevem, e
inscrevem no espaço cênico denúncias capazes de estremecer discursos
hegemônicos.
Referências
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Recebido em: 20/09/2024
Aprovado em: 20/11/2024
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