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Corpos/as negros/as, ritos em performances e a
encruzilhada como potência de poéticas de cenas
Entrevista com Benjamin Abras
Concedida ao Taata dya Nkisi Tássio Ferreira
Para citar este artigo:
ABRAS, Benjamin. Corpos/as negros/as, ritos em
performances e a encruzilhada como potência de
poéticas de cenas. [entrevista concedida ao] Taata dya
Nkisi Tássio Ferreira. Urdimento Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v. 4, n. 53, dez. 2024.
DOI: 10.5965/1414573104532024e0502
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Corpos/as negros/as, ritos em performances e a encruzilhada como potência de poéticas de cenas
Entrevista com Benjamin Abras - Concedida ao Taata dya Nkisi Tássio Ferreira
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-16, dez. 2024
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Corpos/as negros/as, ritos em performances e a encruzilhada como potência de poéticas de
cenas1
Entrevista com Benjamin Abras2
Concedida ao Taata dya Nkisi3 Tássio Ferreira4
Resumo
A partir dos estudos em performance negra ritual, considerando o candomblé Congo-Angola
como eixo filosófico centralizador da metodologia de investigação desta pesquisa, interessa
adensar o debate sobre o corpo negro na contemporaneidade, no sentido de produzir
poéticas que desloquem o lugar da pessoa negra no âmbito da estrutura hegemônica que
nos subalterniza. Este xirê dançado-cantado-riscado-contado-tocado-expandido para o
centro da roda nesta conversa, alinhava o lugar da encruzilhada como potência da
transdisciplinaridade e dos sentidos do corpo negro em diferentes esferas nacionais e
internacionais.
Palavras-Chave: Performance Negra ritual. Corpo negro. Cena expandida. Tradições negro-
africanas. Ancestralidades.
Black Bodies, Rites in Performances and the Crossroads as a Power of Poetics of Scenes
Abstract
From the studies in black ritual performance, considering the Congo-Angola candomblé as
the centralizing philosophical axis of the research methodology of this research, it is
interesting to deepen the debate on the black body in contemporaneity, in the sense of
producing poetics that displace the place of the black person within the scope of the
hegemonic structure that subordinates us. This xirê danced-sung-scratched-told-touched-
played-expanded to the center of the circle in this conversation, aligned the place of the
crossroads as a power of transdisciplinarity and the meanings of the black body in different
national and international spheres.
Keywords: Black ritual performance. Black body. Expanded Scene. Negro-African traditions.
Ancestry.
Cuerpos Negros, Ritos en Performances y la Encrucijada como Potencia de Poética de Escenas
Resumen
A partir de los estudios sobre la performance ritual negra, considerando el candomblé
Congo-Angola como eje filosófico centralizador de la metodología de investigación de esta
investigación, resulta interesante profundizar el debate sobre el cuerpo negro en la
contemporaneidad, en el sentido de producir poéticas que desplazan el lugar de la persona
negra dentro del ámbito de la estructura hegemónica que nos subordina. Esta xirê bailó-
cantó-rayó-contó-tocó-ju-expandió hasta el centro del círculo en esta conversación,
alineó el lugar de la encrucijada como potencia de la transdisciplinariedad y los significados
del cuerpo negro en diferentes ámbitos nacionales e internacionales.
Palabras clave: Actuación ritual negra. Cuerpo negro. Escena expandida. Tradiciones negro-
africanas. Ascendencia.
1 Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Fabiana Carneiro da Silva, Doutora em Teoria Literária e Literatura
Comparada pela Universidade de São Paulo (USP).
2 Artista contemporâneo interdisciplinar. Poeta, ensaísta, dramaturgo, pintor, ator-dançarino, diretor de dança teatro. Artista
interdisciplinar, performer, criador de instalações, objetos, desenhos e pinturas que refletem suas experiências nas
tradições afro-brasileiras do Candomblé e da Capoeira de Angola. Atuou, realizou exposições e participou de residências
artísticas no Reino Unido, na Dinamarca, na Índia, Tunísia, França e no Senegal.
3 Taata dya Nkisi - Sacerdote Afro na nação Angola, Ngaanga (encantador das energias sagradas), popularmente conhecido
no Brasil como Zelador de Santo.
4 Doutorado em Artes Cênicas em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor Adjunto do Centro
de Formação em Artes e Comunicação da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).
tassio.ferreira@gfe.ufsb.edu.br
http://lattes.cnpq.br/7621981862186278 https://orcid.org/0000-0002-7907-4058
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As pessoas que me conhecem sabem do meu atrás
com a academia e vou dizer por quê: hoje a gente tem
muitos doutores, muitos mestres, muitos acadêmicos,
muita gente com suas ias antropologia, etnologia e
tudo mais quanto for “ia” que escarafunchou negro e
índio. Para mim essas disciplinas foram criadas para
nos conhecer e nos dominar. Até agora nada das teses
que foram escritas, nada do que foi feito modificou a
nossa situação: a gente até hoje luta para que a nossa
sociedade respeite nossas crenças, respeite a nossa
humanidade, e muitas das imagens que foram
veiculadas, inclusive, não fizeram bem, fizeram mal
(Makota Valdina, 2020).
Figura 1Benjamin Abras na
Performance Padê de Exu libertador
, Festival de Arte Negra (FAN)
de Belo Horizonte, 2006. Acervo: Benjamin Abras
Kumbanda ngira!
Peço licença a
Pambu Nzila
e
Vangira
, divindades guardião
e guardiã dos caminhos, das encruzas, mobilizador/a das comunicações e dos
saberes que circulam pelo
Nza
(mundo). Barrunfo nos quatro cantos marafo, para
perfumar e guiar nossa caminhada.
Kiuá! Laroyê!
Sopro para dentro desta gira a
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noção de encruza enquanto paradigma conceitual de abertura de caminhos
qualitativos e epistemológicos que possibilitam a travessia de pesquisas que
partem da filosofia africana, ou da inversão do pensamento ocidental, para que
sejam compreendidas na diáspora, neste tempo com todas as suas
complexidades.
Neste sentido, proponho o rompimento com hegemonia dogmática
brancocêntrica que nos incutiu apenas uma perspectiva para as coisas – inclusive
nos dizendo o que é Arte, condenando todo o resto fraturando a nossa cultura
e modos de pensar, implicando em desorganização de nossa produção intelectual.
Encruzilhar é possível se considerarmos a nossa experiência negra como
partida para uma concepção de vida coletivizada. Assim, ter a possibilidade de
traçar diálogos ou o transpassar de/com outras matrizes culturais.
Para a branquitude, ao riscar duas linhas no chão teremos uma encruza: a
imagem (a cruz) por eles vista conta de um lugar passagem, daquilo que cruzou,
daquilo que tem caminhos distintos, possibilidades ou o lugar do fim, da redenção.
Para a negritude, a encruzilhada é justamente o inverso. Não é o fim é o início,
lugar de partida, princípio fundante. Não obstante o nosso tempo é compreendido
de modo contrário ao tempo ocidental, em nossas rodas nos
jamberesu
(celebrações religiosas dos Candomblé
bakongo
) dançamos no sentido ‘anti-
horário’, reiterando a cosmopercepção como conectivo de um tempo continuado
(Martins, 2021), que não se finda no ciclo material - espiralar. Dois riscos
acontecem porque duas ou mais forças se encontraram, geraram movimento
(Kalunga5). Deste movimento são organizados caminhos, irradiações a partir do
encontro de energia.
Pambu Nzila
, a energia masculina e Vangira, a energia
feminina, se inscrevem na encruzilhada afim de potencializar essa máxima
filosófica
bakongo
. Os iorubás tem
Exu
como divindade correlata, que atua
essencialmente no campo da comunicação, da movimentação, da capacidade de
conectar o ontem-hoje-amanhã, dobrando o nosso tempo.
5 Kalunga Mar, marés, águas salgadas, a grande e ancestral, símbolo de espiritualidade, a energia superior
completa, segundo Fu-Kiau (1991) (Ferreira, 2019, p.41)
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Essas noções são fundamentais para preparar a esteira para a conversa que
seguirá.
Seguindo as atividades do projeto de pesquisa Afrocênica, desenvolvido em
triangulação com o grupo de pesquisa Aldeia Núcleo de Pesquisas afro-
brasileiras em Artes, Ensinagens e Tradições na diáspora (UFSB/CNPq) e dos
programas de pós-graduação que atuo neste momento: Artes Cênicas
(PPGAC/UFBA) e Artes (PPGArtes/UFSB), persigo a máxima de compreender a
performance negra ritual na cena contemporânea, desde as poéticas criadoras que
emergem desta experiência, até o protagonismo de outros léxicos da cena em
ritual que protagonizem os saberes territoriais. Nesta trilha, observo as expressões
das tradições que protagonizam o corpo como mobilizador e conector com
energias superiores, expandindo o sentido de Arte que a colonialidade baliza: os
candomblés, os batuques, congadas, capoeiras, rodas de samba, nego fugido,
marujadas, dentro outras. Esses/as corpos/as ritualizam a existência em
performances que se inscrevem em camadas complexas de suas identidades,
conectivos de imani (fé) e a relação de cuidado com o mundo natural. Nesse balaio
epistemológico pluriversal, compreendo a performance negra ritual assentada no
cuidado essencial do corpo como parte da natureza (território), entendendo sua
relação direta com esta, com a continuidade do tempo e com o exercício da ética
coletiva.
O projeto de pesquisa se interessa pelos morões que fundamentam o
barracão das Artes negras brasileiras partindo das expressões do corpo em 3
camadas: identidade, ancestralidade e territorialidade. Neste sentido, é
fundamental compreender as reverberações do pensamento negro-africano neste
trânsito-atlântico que marca a diáspora como um cognitivo cultural (Gilroy, 2012)
e de polinização de conhecimento fundamental como matéria para provocação de
pensamentos disruptivos contra coloniais neste tempo
Entrevista
Tássio - Como apresentar o entrevistado diante de tanta complexidade que
a sua existência me coloca a pensar? Benjamin Abras, artista de alta sensibilidade
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que empresta seu corpo para potencializar a nzayi (memória) coletivizada de sua
vida em todas as obras que se propõe a se deixar atravessar. Homem negro, de
fala mansa, típica dos mineiros natural de Belo Horizonte-MG), interpelado pelas
forças divinas de diferentes matrizes culturais, possui uma capacidade
problematizadora do campo da cena a partir de um amplo repertório. Sua
presença é manifesta de muitas camadas, texturas, cheiros, andanças,
espiritualidades. Artista contemporâneo interdisciplinar que congrega num
movimento poesias expressas por imagens, palavras, pinturas, performances,
teatros e danças.
Deste modo eu compreendo sua presença e importância para as artes da
cena no Brasil e em outros cantos do mundo. Mas, seria interessante que você
contasse um pouco de sua trajetória. Que produção de Arte você faz neste
momento? Que nome você dá (Performance, Teatro, Dança, Tradições)?
Benjamin - A benção Taata Tássio?
Tássio - Kisimbi abençoe! Sua benção, irmão?
Benjamin - Que meu Pai Exu lhe abençoe e estenda essa benção a todes que
acolhem a leitura do nosso diálogo. Sou Benjamin Abras, artista contemporâneo
interdisciplinar afro-brasileiro com uma formação artística profissional que se
inicia nas artes visuais como cenografista de teatro e cinema. Este caminho me
levou às artes cênicas, a música, a dança afro-brasileira tradicional e
contemporânea, em um processo de formação empírica. Após duas formações
em história da arte, optei por mergulhar em minha própria investigação por
perceber as universidades como espaços coloniais. Adentrar nas tradições foi uma
escolha minha de que elas seriam minha universidade.
Venho trilhando, assim, a minha carreira ao longo de 36 anos como artista
pesquisador independente, com o foco em uma filosofia de arte com a herança
africana como sol central para constelar diálogos com outras experiências
culturais. Atualmente estou morando na França, na cidade de Rennes, na Bretanha,
e trabalho principalmente em três projetos. Um livro de ensaios sobre as técnicas
de minhas pesquisas teóricas e práticas do AfroButoh, analisando exatamente o
contexto de aplicação dos meus métodos nos espetáculos que dirigi no Brasil e
Norte da África, Tunísia, onde atuei como professor de consciência corporal e
Professor AfroButoh. E o segundo trata de uma obra de Arte Contemporânea ‘Pax
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Romana’6. A base é à análise histórica da palavra Negro. São criações filosóficas
interdisciplinares, pinturas, esculturas, objetos e
sketches
de Dança-Teatro
performativo, as quais envolvem minhas pesquisas sobre a semiótica
afrodiaspórica e africana. E um livro de poesia concreta performável.
Figura 2 -
Performance Padê de Exu libertador
, Festival de Arte Negra de
Belo Horizonte (FAN), 2006. Acervo pessoal Benjamin Abras.
Tássio - Nas minhas pesquisas encruzilhando o Candomblé Bakongo com os
estudos do corpo em cena, destaco o ‘Corpo-Pambu Nzila’ (Santana, 2019) como
potência de um atuante, intérprete da cena, como queira chamar. Este estágio de
desenvolvimento corporal inspirando na divindade mítica Pambu Nzila expressa
um corpo em estado completo e complexo de disponibilidade a saber dos
diferentes processos energéticos e de trabalho físico que as pessoas de
candomblé vivenciam em seu cotidiano. Quando eu lembro de você,
6 Pax Romana working progress Investigação sobre elementos históricos do tráfico negreiro e suas
ressonâncias sociológicas. Referencias bibliográficas - 1 Jornal De La Trata des Negre, 1823/James Baldwin
No name in the street 1972 Franz Fanon ŒUVRES, 2011.
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imediatamente recorro à sua performance como um exemplo refinado do que
esta pesquisa aponta. A primeira que assisti foi ‘Padê de Exu Libertador’,
performance que homenageou os 100 anos do Abdias do Nascimento, e dali já se
estabeleceu o encantamento de um corpo que se articula e desarticula, que é
signo e significado, que não está para se fazer presente ou que se faz presente
para não ser vazio.
Corpo-Pambu Nzila
, transdisciplinaridade e Corpo em devir-
negro como essas pernas de encruza desembocam no seu estudo de
Gira
Oblíqua?
Benjamin
- Experiencio o corpo como um portal. Ele é um entrelugar. As artes
japonesa e chinesa herdam da índia certos conceitos, que em suas entranhas
forjaram à filosofia Zen, e reverberam no Xintoísmo. E em certos aspectos eles
tem similaridades com a nossa herança Afro-asiática. Na língua japonesa, a palavra
MA é a presentificação de uma destas similaridades. O meu solo ‘Masemba’, nasce
do progresso destes estudos para o ‘Padê de Exu Libertador’. Essa gira oblíqua é
resultado da compreensão de que estas similaridades empoderam a filosofia de
nosso cotidiano, pois nossas corporeidades não estão apenas em uma dimensão.
É por isso desde o título do espetáculo crio um jogo de palavras. ‘Masemba’
se escreve originariamente ‘Massemba’. Minha provocação sutil, Ma () Semba é
uma evocação desta especificidade da nossa filosofia, muito bem figurada no
poema
Souffles
de Birago Diop “...os mortos não estão mortos...', e na nossa
máxima "não mexe comigo queu não ando só" [sabedoria negrodiaspórica
brasileira], um lugar filosófico que assenta vários aspectos de nosso corpo-político.
Então, é precisamente pelo acolhimento criativo de tudo que estas pernas de
encruza impulsionam, que eu experimento interseccionar as poéticas que habitam
as entrelinhas de nosso modo de vida. Firmando o corpo enquanto encruza, em
deslocamentos coerentes para produzir Afro-fricções.
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Figura 3 - Espetáculo de dança teatro performativo em linguagem AfroButoh Masemba. Direção
dramaturgia e performance: Benjamin Abras. Pintura corporal: Lorena Rocha, 2012.
Foto: Daniel Protzner.
Tássio
- Na realidade, nós somos feitos de muitas camadas. A colonialidade
tem essa mania de divisão da vida em setores que caminham para o isolamento,
fraturamento do pensar e das poéticas sociais. Essa última reflexão que você traz
assinala essa perspectiva do corpo como lugar de centralidade transpassado,
poroso, ventilado por diferentes perspectivas de expressão. Além do trabalho
corporificado em cena expandida, conheço alguns de seus trabalhos com
grafismos, desenhos, pinturas, confluências de técnicas ligadas às visualidades.
Vejo impresso no papel através de sua mão – que dança – outra forma de diálogo
ou de potência com o discurso corporal que você investiga. Lembro dos pontos
riscados, das pinturas corporais dos
yàwós
(pessoas iniciadas no candomblé
Iorubá),
azenza
(pessoas iniciadas no candomblé bantu), indígenas ao relacionar a
este trabalho. Todo esse repertório gráfico que se sobrepõe em camadas ao corpo
negro, inspiram este trabalho que você desenvolve?
Benjamin
- O encantamento que tenho pela poieses da epistemologia gráfica
das tradições foi o que acendeu em mim o desejo de compreender a semiótica
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internalizada nesta relação visual. E que não se trata de meras "representações",
e sim da presentificação de outras vias relacionais com as energias e a transmissão
de conhecimentos. Entre o
vèvè
7 e os pontos riscados existe um universo
epistemológico de corporeidades aguardando uma imersibilidade investigativa que
somente pessoas iniciadas podem realizar. É preciso descolonizar nosso modo de
ver tão demarcado por conceitos visuais coloniais para se relacionar com este
tecido.
Figura 4 -
Poemas Performáveis
- Poema Escultura Maleável, autoria de
Benjamin Abras, 2022. Acervo: Benjamin Abras
Trabalho de forma minuciosa em meus grafismos, para acessar a evocação
de vibrações especificas. Tais evocações produzem e despertam em cada pessoa
que se a relação com os signos o que eu acredito ser um impulso psico-
cognitivo sutil. Para tal é preciso que a pessoa se dê ao tempo ritual.
Em minha prática de AfroButoh, trabalhar o olhar e ser atravessado pelas
metáforas existentes e evocadas pelos grafismos é um processo de irradiação
interna, no qual eu desejo sensibilizar a poética do olhar e a literatura gráfica que
habita nessa forma de escrita e de presentificação das filosofias ancestrais. Nesse
7 Vèvè são os pontos riscados da tradição Voodou vivida na Martinica, Haiti herdeiras do Voodou do Benin.
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início de século XXI a contemplação é tomar posse do tempo ritual.
Figura 5 - O Corpo enquanto Ponto Riscado série, autoria Benjamin Abras, 2023.
Acervo: Benjamin Abras
Tássio -
Durante a pandemia da COVID-19 você concedeu uma entrevista
pública no programa ‘Kalundu saberes afrodiaspóricos em debate’ promovido
pelo Coletivo AFRO(en)CENA. Nesta ocasião você disse a seguinte frase:
Corporeidades não são campos vibracionais formatados, são campos de
poiesies personal em evolução
”. É possível relacionar esta perspectiva à sua
investigação do que você chama de AfroButoh?
Benjamin -
Sim, minha resposta está totalmente associada a uma
experimentação riquíssima de Afrobutoh neste período na Tunísia.
No processo criativo do espetáculo Campos Elétricos Humanos, um processo
imersivo de um ano com as alunas/os sirianas/os, marroquinas/os, tunisianas/os
utilizei as motrizes performativas de AfroButoh para acender uma qualidade de
presença e de vibração nos atuantes para atender a dramaturgia escrita por mim.
Investigamos os conceitos de racismo, machismo e morte e o como somos
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atravessadas pela inevitabilidade da vida em meio a morte. O trabalho funcionou
tão bem como quando trabalhei nos espetáculos
Madame Satan
ou
Corpo
Catimbó
(Projeto Porto Piracema, 2017-18, Ceará) com artistas afro-brasileiros
engajados, e alguns até iniciados na tradição afro-brasileira.
Figura 6 - Grafismos em Pinturas Performativas Espetáculo Terreiro Contemporâneo
‘Maravalhas’. Dramaturgia, Direção e Performance Benjamin Abras, Rodrigo Peres, Marta Neves.
Belo Horizonte, 2016. Foto: Samuel Mendes.
A interação corporal destes estudantes de outras culturas essencialmente
muçulmanas - atravessadas pela colonialidade francesa e muçulmana - em suas
matrizes, as motrizes, desvelaram o quanto as técnicas aplicadas corretamente
não se limitam ao fato de que venham de matrizes afro-brasileiras.
Elas convidam outros corpos às suas águas, movendo-as nesse tempo ritual,
nessa qualidade de construção que está muito mais identificável em nosso modo
de vida do que no modo de vida de pessoas de outra cultura.
Então, a corporeidade dentro também do conceito de corpo em
deslocamento, atua como produtor, fruição e conexão de outras filosofias ou
experiências à experiencia corporal dos diálogos profundos que se realizam em
minha travessia artística e pessoal.
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Tássio -
Nesta caminhada encruzilhada artística sendo filho de Exu, foi
necessário atravessar diferentes territórios pelo mundo? Como as experiências de
negritude fora do Brasil impactam em seu trabalho hoje e como você pensa a cena
negra contemporânea fora do seu lugar matricial?
Benjamin -
Sim, na realidade outros territórios do mundo vieram a mim no
início de minha formação artística. Estudei pintura Zen (Sumi-ê Zen) dos 14 aos 16
anos com o Mestre ceramista Sebastião Pimenta, que viveu no Japão e na
Mongólia. Ele me iniciou nos fundamentos da pintura asiática e foi um dos
estímulos à estudar inglês para poder ler textos de D.T.Suzuki sobre a filosofia
desta cultura. Foi um dos primeiros presentes de Exu. Daí aos 30 anos com minha
carreira como performer, dançarino e diretor, comecei a viajar internacionalmente.
Europa, África, Asia e simultaneamente pelo Brasil. Todos os atravessamentos
destas viagens ampliaram meu mapa interno a respeito da poética particular nas
corporeidades das comunidades com as quais tomei contato. Encontrei muitos
corpos-políticos insurgentes contra os processos coloniais contemporâneo, o que
empoderou meu engajamento filosófico afro-centrado. Falar outras línguas nos
ajuda a descontruir os estereótipos que são propagados pelas médias de massa.
As relações humanas diretas são à base para que possamos empoderar o sonho
de uma outra civilização. Estas viagens me trazem à profunda crença da riqueza
de nossas diferenças.
Apesar de diversificadas experiências, trata-se de uma vivência complexa e
delicada, pois a diferenças continentais na experiência de negritude. E
também uma separação geracional entre mim, que sou uma pessoa nascida no
final do Sec. XX e sou periférico, de demais pessoas afrodescendentes e Africanas
que vivem uma vida "privilegiada" na Europa ou na África. Nestes dois casos, falo
de uma geração, por exemplo, na Tunísia, que não se entende como africana, e
me lembrou os brasileiros que não se consideram latinos. Este tipo de ignorância
histórica pode ser confrontada com educação. E na África do Norte, talvez
somente na Argélia possa haver algum movimento neste sentido. Tive uma troca
poderosa no Marrocos e Na Tunísia com as tradições
Gnawa
(Marrocos) e
Stambeli
(Tunísia) uma cultura de transe similar à Umbanda. Um rastro das Culturas da
África Central e Sul, por conta do tráfico negreiro Árabe que ocorreu bem antes do
comércio triangular para as américas.
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Figura 7 - Espetáculo Campos Elétricos Humanos, Teatro Nacional da Tunísia, 2020.
Foto: Benjamin Abras.
Engajamento criativo na cena encontrei na Martinica – terra de Franz Fanon,
Aimé Césaire, Édouard Glissant junto ao Festival Internacional de Performace
(FIAP), dirigido por Annabel Gueredrat e Henri Taulard, com o quais formamos um
coletivo de pesquisa: o TechnOrishas, se trata de um núcleo através do qual
partilhamos as relações entre tecnologias e tradição. Tenho amigos em Angola
como o Performer Cabuenha que faz do estudo da Capoeira e das artes marciais
Angolanas à base de suas pesquisas; e Jelili Atiku na Nigéria que constrói
performances se valendo do culto ancestral yoruba8.
Em termos de teatro, meu desejo é encontrar artistas que vivenciaram o
Teatro Elinga em Luanda um espaço de produção crítica e resistência política
dirigido por José Mena Abrantes. No entanto ainda não tive a chance.
Achille Mbembe criou um termo sobre a gerações de afrodescendentes que
se encontram nos grandes centros da afrodiáspora (mas o termo me parece
restringir-se aos privilegiados não aos periféricos)
afropolitanos
. Na realidade
cruzei com um afropolitano de Berlim que me convidou para propor uma
8 Grupo étnico africano tradicional que tem seu lugar de potência na África ocidental, mais precisamente na
Nigéria.
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publicação na revista online Ground. O sujeito se posicionava assim como filósofo
Afropolitano. Contudo, quando tentei lhe explicar à perspectiva da experiência de
negritude no Brasil, ele me atacou textualmente de forma violenta, apagou toda à
nossa conversa e me bloqueou. Fiquei em choque... mas, como diz o provérbio:
nem todo mano é mano.
Figura 8 - Grafismos em Pinturas Performativas Espetáculo Terreiro Contemporâneo
‘Maravalhas’. Dramaturgia, Direção e Performance: Benjamin Abras, Rodrigo Peres, Marta Neves.
Belo Horizonte, 2016. Foto: Samuel Mendes.
Acredito que no Brasil estamos muito mais avançados em termos de
elaboração intelectual acerca das relações de negritude, pelo fato de que vivemos
sob um genocídio silenciado. É uma luta histórica que vai da educação básica às
artes visuais, cênicas e outros campos de conhecimento. Somos referência
inclusive para a autora americana Ângela Davis, que disse isso em conferências
dela que tive oportunidade de assistir. Estou feliz em ter deixado uma semente na
Tunísia com meus estudantes que hoje se compreendem africanos e que
prosseguem estudando suas raízes ancestrais, empoderando o sonho de uma
nova humanidade onde as pessoas sejam empoderadas através dos diálogos
respeitosos com a diversidade.
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Referências
FU-KIAU, Kimbwandende Kia Bunseki.
A visão ntu Kôngo da sacralidade do
mundo natura
l. Trad. Valdina O. Pinto in FU-KIAU, K. K. B. Self-Healing Power and
Therapy. New York: Vantage Press, 1991. Disponível em:
http://www.acbantu.org.br/img/Pdfs/sacralidadedomundonatural.pdf Acesso em: 08 abr.2019.
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O Atlântico Negro
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Recebido em: 28/04/2024
Aprovado em: 20/09/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br