1
Poética
de terreiro: um olhar sobre a macumba
cênica da Semente Cia de Teatro
Valdeci Moreira de Souza
Para citar este artigo:
SOUZA, Valdeci Moreira de. Poética de terreiro: um
olhar sobre a macumba cênica da Semente Cia de
Teatro.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 4, n. 53, dez. 2024.
DOI: 10.5965/1414573104532024e302
Este artigo passou pelo
Plagiarism Detection Software
| iThenticate
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Poética de terreiro: um olhar sobre a macumba cênica da Semente Cia de Teatro
Valdeci Moreira de Souza
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-21, dez. 2024
2
Poética de terreiro: um olhar sobre a macumba cênica da Semente Cia de Teatro1
Valdeci Moreira de Souza2
Resumo
Este artigo lança uma luz sobre a proposta teatral praticada pela Semente Cia. de
Teatro, a partir de um trabalho cênico que busca sacralizar a atividade teatral por meio
da incorporação de elementos candomblecistas na diegese dramatúrgica. Em duas
montagens, propõe-se uma incorporação cênica que torna atores e atrizes “cavalos”
de seus personagens. Essa proposta de Teatro de Terreiro é um simulacro, assim
como era o
Deus Ex Machina
no teatro grego, e traz ao proscênio caboclos, padês,
ayós, ogãs com seus atabaques, além de referências à estética de terreiro. O grupo
trabalha a corpo-oralidade de atores e atrizes, respeitando a gramática gestual e
sensual que compõe a linguagem corporal da negritude.
Palavras-chave
: Teatro periférico. Terreiro. Teatro ritual. Espaço Semente.
Kizomba poetics: a look at the scenic macumba of Semente Cia de Teatro
Abstract
This paper addresses the theatrical conception proposed by Semente Cia. de Teatro,
based on a scenic approach that seeks to sacralize the theatrical activity through the
incorporation of elements from Candomblé into the dramaturgical diegesis. In two
productions, a scenic embodiment is proposed in which actors and actresses become
“vessels” for their characters. This Terreiro Theatre proposal serves as a simulacrum,
akin to the
Deus Ex Machina
in Greek theatre, and brings to the stage caboclos, padês,
ayós, ogãs with their atabaques, alongside references to terreiro aesthetics. The group
works with the body-orality of the actors and actresses, respecting the gestural and
sensual grammar that constitutes the corporeal language of Black identity.
Keywords
: Peripheral theatre. Terreiro. Ritual theatre. Espaço Semente.
Poética kizomba: una mirada a la macumba escénica de Semente Cia de Teatro
Resumen
Este artículo aborda la concepción teatral propuesta por Semente Cia. de Teatro,
basada en un trabajo escénico que busca sacralizar la actividad teatral mediante la
incorporación de elementos del candomblé en la diegesis dramatúrgica. En dos
montajes, se propone una incorporación escénica que convierte a los actores y actrices
en "monturas" de sus personajes. Esta propuesta de Teatro de Terreiro actúa como un
simulacro, al igual que el Deus Ex Machina en el teatro griego, y trae al proscenio
caboclos, padês, ayós, ogãs con sus atabaques, además de referencias a la estética de
terreiro. El grupo trabaja la cuerpo-oralidad de los actores y actrices, respetando la
gramática gestual y sensual que compone el lenguaje corporal de la negritud.
Palabras clave:
Teatro periférico. Terreiro. Teatro ritual. Espacio Semilla.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Juliana Campos Lobo. Licenciatura em
Letras e bacharelado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
2 Doutorando em Artes Cênicas pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Mestrado em Artes
pela Universidade de Brasília (UnB). Graduação - Licenciatura em Educação Artística com Habilitação em
Artes Cênicas pela UnB. Professor da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal, ator e diretor
teatral. valdecimsouza@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/0592996761159001 https://orcid.org/0000-0002-7611-6195
Poética de terreiro: um olhar sobre a macumba cênica da Semente Cia de Teatro
Valdeci Moreira de Souza
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-21, dez. 2024
3
Introdução
Gama, uma Semente plantada no terreiro periférico
A Semente Cia de Teatro surgiu em 2006, na cidade do Gama, periferia de
Brasília. Sua sede é o Espaço Semente, um teatro de arena localizado no centro
da cidade. O Gama, que foi reconhecido como o
celeiro das artes
do Distrito
Federal, tem uma rica história nas artes cênicas e a Semente é fruto dessa
tradição. Encabeçado por dois diretores negros e candomblecistas, a Semente
adotou uma estética de terreiro em sua poética dramatúrgica e uma ética dos
quilombos em sua composição como grupo. Ao invocar o axé de Exu, a energia
transformadora desse orixá primordial, a Semente terreirizou o seu teatro,
macumbizando a cena periférica com suas incorporações cênicas e sua
mandinga teatralizada: a Semente é um espaço encantado.
Comecemos pela cidade. O Gama, fundado em 1960, é uma das cidades-
satélites criadas para abrigar os operários que trabalharam na construção de
Brasília. Até os anos 1970, o lugar era um amontoado de barracos de madeira,
sem asfalto, sem saneamento e com iluminação pública precária. Entre as
décadas de 1970 e 1980, o Gama era uma das cidades mais violentas do Distrito
Federal, com uma juventude ociosa por falta de empregos e sem equipamentos
públicos de esporte, cultura e lazer. A violência estava se tornando um grande
espetáculo, até que o teatro cruzou esse caminho, abrindo novas perspectivas
para a juventude, fazendo-a observar e refletir sobre a sua realidade, e
convertendo jovens atores e atrizes em agentes sociais de transformação.
Ainda no final dos anos 1970, surgiu o primeiro grupo de teatro na cidade,
chamado GTG Grupo Teatro do Gama –, que trabalhava dramaturgias próprias,
realistas, criticando a repressão e a opressão do período ditatorial e falando
sobre a dura realidade da gente pobre que migrava para aquele fim de mundo. O
diretor do GTG, Jesuíno Feitosa conhecido como Jegofe –, um policial civil
marxista, foi quem introduziu os rudimentos do teatro para aquela garotada,
trazendo livros e dando palestras. O grupo foi se formando e se informando por
meio dessas leituras; em seguida, passou-se aos exercícios cênicos e, depois, à
Poética de terreiro: um olhar sobre a macumba cênica da Semente Cia de Teatro
Valdeci Moreira de Souza
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-21, dez. 2024
4
montagem de espetáculos.
A sede do GTG era o auditório de uma escola pública. Seus membros eram,
em sua maioria, adolescentes. As primeiras peças montadas pelo grupo
chamaram a atenção da cidade, atraindo um público que vinha de fora do
ambiente escolar. Dessa forma, o GTG conseguiu baixar os muros da escola e
trazer a comunidade para dentro. Logo, outras escolas adotaram o método do
GTG e o teatro se espalhou pela cidade.
A partir daí, o teatro passou a ser uma válvula de escape para os moradores
do Gama. A juventude encontrou nos palcos uma maneira de driblar o
determinismo social que os imobilizava e fugir do aliciamento dos criminosos.
Nesse período, os palcos eram as praças e os auditórios das escolas; e o público,
carente de tudo, passou a se interessar por aquelas histórias que retratavam o
seu cotidiano. Para se ter uma ideia, cerca de dez mil pessoas assistiram à peça
Candangos aos Trancos e Barrancos, que teve de se estender por várias
temporadas para dar conta da demanda.
De para cá, o Gama contabilizou quarenta companhias teatrais em
atividade. A Semente Cia de Teatro é fruto dessa tradição. Mas, antes de falar da
companhia, falemos do espaço.
Semente, um espaço encantado
O Espaço Semente é um teatro de arena, em formato circular, ocupado
pela Semente Cia de Teatro, com medida de 15mx10m de área interna e
20mx15m de área externa, onde um jardim gramado. O prédio, que estava
degradado, abandonado e era ocupado por usuários de droga, prostitutas e
pessoas em situação de rua, foi cedido ao Semente como uma concessão
pública, que precisa ser renovada todos os anos. Coube à companhia teatral
periférica a responsabilidade pela restauração do prédio. Uma ampla reforma foi
feita pelo grupo, com recursos próprios e com a ajuda da comunidade. O prédio,
que era perigoso, feio, sujo e escuro, saiu da invisibilidade e hoje é um farol a
emanar cultura.
Poética de terreiro: um olhar sobre a macumba cênica da Semente Cia de Teatro
Valdeci Moreira de Souza
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-21, dez. 2024
5
O Espaço Semente fica em um dos quatro cantos de uma encruzilhada3, no
Setor Central da cidade do Gama, periferia de Brasília. Nos outros três cantos,
temos uma rodoviária, uma escola e o comércio local. A área, por ser central, é a
zona nevrálgica da cidade, lugar para onde afluem todos e todas. O tráfego de
ônibus e automóveis é frenético; ali, também, o fórum da cidade, uma
delegacia de polícia e um local de ensaio da escola de samba. O hospital não fica
muito longe, portanto, é uma zona por onde transitam toda a sorte de
transeuntes: juízes e réus, advogados e promotores, policiais e prisioneiros,
médicas(os) e enfermeiros(as), enfermos e convalescentes, passistas e mestres-
salas, estudantes e professores(as), trabalhadores e trabalhadoras,
aposentados(as), pedintes, alcoólatras, desempregados em busca de emprego,
pessoas em situação de rua, malandros de toda espécie.
O Espaço Semente é a sede onde a Semente Cia de Teatro realiza o seu
Teatro de Terreiro. É nessa encruzilhada que acontece a macumba cênica. A
intenção da Semente Cia de Teatro é que toda essa gente transitante, que
perambula pelo centro, tenha acesso à arte realizada naquele espaço; os
espetáculos são sempre gratuitos. O Espaço Semente também se configura
como um local de múltiplas funções, ou de múltiplos fazeres artísticos. Além do
teatro, ali também ocorrem sessões de cinema, lançamento de livros, aulas de
habilidade específica (para candidatos ao vestibular da UnB), roda de conversa,
saraus.
O Espaço Semente evocou Exu4 para ser o abre alas daquela encruzilhada,
convertendo o lugar em um quilombo urbano, um centro cultural de
acolhimento das artes e dos artistas negros periféricos. A área está aberta a
todos e todas que estejam abertos ao aquilombamento.
3 Uma encruzilhada é o lugar onde dois caminhos se encontram, um na horizontal e outro na vertical. É o
ponto onde estradas, vias, ruas e atalhos se cruzam.
4 Exu Entidade Ketu. Senhor dos caminhos, tido como mensageiro dos orixás, preside a fecundidade, as
encruzilhadas, os caminhos perigosos e escuros. Antes de qualquer cerimônia, é o primeiro a ser
reverenciado nos rituais.
Poética de terreiro: um olhar sobre a macumba cênica da Semente Cia de Teatro
Valdeci Moreira de Souza
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-21, dez. 2024
6
A Semente e sua kizomba periférica
Fundado em 2006, a Semente Cia de Teatro optou por não encenar peças
clássicas que falam de reis e rainhas que viveram em outros climas e outras
paisagens. O teatro da Semente é sobre a realidade brasileira e, sobretudo, sobre
os dramas que envolvem as sujeitas e sujeitos periféricos (D’Andrea, 2022). Por
isso mesmo, sua dramaturgia propõe escrevivências5, porque se debruça sobre a
dura realidade da periferia. Quando a companhia adapta obras literárias do
modernismo brasileiro, ela busca fazer algumas reparações, como no caso das
duas adaptações feitas da obra de João Guimarães Rosa, das quais trataremos
logo a seguir.
O teatro realizado pela Semente Cia de Teatro busca a descolonização dos
corpos negros e negras, libertando-os para exercerem de forma pura e genuína a
sua corpo-oralidade, num processo de descolonização mental, corporal,
espiritual, poética e estética, na qual é acessada e ativada a ancestralidade por
meio do diálogo com os elementos do Candomblé. Essa proposta estética é
também uma proposição ética, pois os terreiros ensinam o bem viver coletivo, o
respeito à ancestralidade, o apego às coisas numinosas como forma de
sacralização das existências, corpo e espírito, na composição de um terreiro,
estando em íntima conexão; ali, os encantados atuam como mediadores que
ligam o Orum6 ao Àyé7.
Teatro e candomblé não são indissociáveis (Barbosa, 2021). Nos terreiros, os
corpos negros e negras meneiam-se numa mandingueira ginga ancestral, em que
a dança é também uma forma de comunicação, uma vez que os corpos
bailantes descrevem signos gestuais cuja linguagem se articula em um elaborado
5 Escrevivência é um neologismo cunhado pela escritora mineira Conceição Evaristo. Escrevivência é essa
escrita marcada pela vivência, pela sua experiência, a escrita de um corpo, de uma condição. A leitura
antecede e nutre as escritas. Ler é também arquivar a si, pois se selecionam momentos e estratégias de
elaboração do passado, o qual compõe as cenas vividas. Os três elementos formadores da escrevivência
são: corpo, condição e experiência (Duarte et al., 2016).
6 Que podemos traduzir como o céu, o espaço sagrado onde habitam os seres numinosos.
7 Que podemos traduzir como a terra, o espaço físico onde os viventes vivem sua vida material e corpórea.
Poética de terreiro: um olhar sobre a macumba cênica da Semente Cia de Teatro
Valdeci Moreira de Souza
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-21, dez. 2024
7
sistema de comunicação que engloba mãos, braços, pés e pernas, troncos e
quadris, cabeça, esgares de boca e piscada de olhos. É a corpo-oralidade. As
tramas dos corpos que se abraçam e se acotovelam nos bailados suados se
configuram em um vasto léxico, em que corpo e gesto se convertem ao mesmo
tempo em significante e significado.
A gramática dos corpos negros é aprendida e apreendida no cotidiano, nos
terreiros, nos sambas, nos carnavais, nos bailes
blacks
, nas rodas de capoeira.
Ela também se expressa no caminhar, no requebrado, na forma de fintar no
futebol etc. Os terreiros são a síntese de todos esses gestuais de rua, que ali
os corpos se expressam em sua inteira integralidade.
Na preparação do elenco, a Semente propõe como exercício o maculelê, a
capoeira, o samba de roda, a gira; a energia exuística como a força motriz que
estimula e orienta o movimento dos corpos negros.
Assim, o corpo rasura as determinações impostas pelo substantivo
racial para se inscrever como suporte que resguarda saberes e
possibilidades intermináveis. Nas bandas de do Atlântico, os corpos
inventores da vida enquanto possibilidades são corpos cruzados e
imantados como amuletos que reivindicam e assentam a memória e o
axé ancestral. Nessa perspectiva, transgridem-se os limites impostos
pela dicotomia colonial: o corpo não é nem sagrado, nem profano, o
corpo é uno, é um SIM vibrando no mundo, é um otá, que assenta as
forças cósmicas que impulsionam a vida e a experiência em todas as
suas dimensões (Rufino, 2019, p. 150).
O aquilombamento do Espaço Semente o configura como um lugar de
resistência. O sociólogo Clovis Moura (1981, p. 87) nos diz que “o quilombo foi,
incontestavelmente, a unidade básica de resistência do escravo”, mas não
apenas de resistência quanto à opressão da Casa Grande, mas de resistência no
sentido de preservação de um modo de vida comunitário e coletivo que as
pessoas afrodiaspóricas traziam na memória, como prescrevera a historiadora
sergipana Beatriz Nascimento (2006, p. 48), que via o quilombo como uma
extensão de um modo de vida africano replicado na diáspora e como um
símbolo de “resistência étnica e política”. Logo, o quilombo é o lugar onde a
ancestralidade africana pulsa, é onde a gente negra se encontra consigo mesma
e vida às suas reminiscências: ancestralidade, linguagem, organização social,
Poética de terreiro: um olhar sobre a macumba cênica da Semente Cia de Teatro
Valdeci Moreira de Souza
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-21, dez. 2024
8
cosmovisão e religiosidade.
No entanto, o quilombo não é somente um espaço físico, mas, enquanto
resistência decolonial, também ocupa espaço na psiquê da gente negra. Não nos
esqueçamos que a colonialidade é, antes de tudo, uma estrutura de apagamento
e de silenciamento, de memoricídio8 em uma palavra. Manter viva as raízes
africanas e resgatar as memórias afrodiaspóricas é a resposta decolonial
aprendida nos quilombos.
Foi Beatriz Nascimento (2006) quem fez o deslocamento do termo
quilombo, desterritorializando-o. Se antes o quilombo era visto como um local
para onde afluíam as pessoas que fugiam da opressão colonial em busca de
reencontrar seu modo de vida ancestral, com a autora, ele é uma expressão de
liberdade e comunitarismo, já que “cada cabeça é um quilombo”, mostrando que
se aquilombar é mais do que buscar o quilombo físico, é tornar-se fisicamente
um quilombo, é assumir uma posição contra-hegemônica e anticolonial, fazendo
o movimento sancófico de tornar o passado presente como forma de construir o
futuro. Dessa forma, introjeta-se o conceito de descolonização do ser e do saber
como prática social, como uma “ação inventora de novos seres e de
reencantamento do mundo” (Rufino, 2019, p. 12).
Aquilombar é criar espaços coletivos de afetos, acolhimento e cuidado,
tornando-os, ainda, locais de resgate de memórias silenciadas, lugar sagrado por
onde se pode exercitar o retorno ao útero epistêmico da negritude, lugar de
praticar a afrocentricidade, de pensar a religião, a cultura, os afetos, o trabalho e
a sociabilidade fora da episteme ocidental.
É nesse sentido que, com sua estética, sua ética e sua poética de terreiro, a
Semente Cia de Teatro propõe um teatro quilombístico e exuístico. Ora, se a
terreirização lança a Semente numa esfera sagrada, o aquilombamento a situa
em uma encruzilhada política, e tudo isso é teatro. O teatro grego, o pai do teatro
ocidental, nasce dos folguedos em homenagem ao deus Dionísio, que era um
culto festivo em que brincantes mascarados bebiam vinho e celebravam a vida,
estreitando os espaços entre sagrado e profano. A luta de Antígona para enterrar
8 Apagamento de histórias ancestrais como projeto de dominação colonial.
Poética de terreiro: um olhar sobre a macumba cênica da Semente Cia de Teatro
Valdeci Moreira de Souza
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-21, dez. 2024
9
o irmão partia de uma crença de que o rito de passagem garantira paz àquele
espírito. O
Deus Ex Machina
é uma entidade etérea que se corporifica em cena.
fantasma no teatro ocidental; o espírito dos mortos, volta e meia, retorna à
cena.
A separação entre corpo e espírito, sagrado e profano, proposto pelo
racionalismo europeu, é uma invenção relativamente nova. A Semente não está a
inventar uma nova forma de fazer teatro, apenas o está fazendo a partir de
outros códigos epistemológicos. Na Semente Cia de Teatro não se culta Dionísio,
aqui é o espaço dos encantados afro-ameríndios. Aqui cultua-se Exu, o senhor
da sabedoria: “Ele é a primeira estrela, o primeiro a ser criado e, também, o que
o tom do acabamento nas dinâmicas que encruzam os mundos [...] Exu é a
conexão entre tudo, o princípio de tudo...” (Rodrigues Júnior, 2017, p. 186). Laroyê
Exu!
Os guardiões da encruzilhada
O Espaço Semente é dirigido por Valdeci Moreira, homem negro periférico,
candomblecista e doutor em Arte Cênica pela Universidade do Estado de Santa
Catarina UDESC, e, também, por Ricardo César, babalorixá e mestre em Artes
Cênicas pela Universidade de Brasília - UnB; ambos são professores concursados
da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal. Portanto, esses
diretores são pessoas de dentro dos terreiros, que tratam o sagrado com
respeito e reverência. Eles não invocam santos para a cena teatral, mas
teatralizam uma gira, encenam uma incorporação: o teatro de terreiro é um
simulacro, uma referência, uma analogia. Contudo, a energia do sagrado encanta
o espaço. Por isso, sempre se pede licença aos encantados antes de começarem
os trabalhos. A energia do terreiro se mantém viva e pulsante naquele lugar. A
Semente Cia de Teatro é mais um terreiro no terreno periférico, um terreiro
cênico.
A Semente, portanto, faz um teatro que prima por colocar corpos negros e
negras em cena, encenando a sua negritude, respeitando a gramática desses
corpos, estimulando a sua ginga, o seu rebolado, a sua corpo-oralidade. A
Poética de terreiro: um olhar sobre a macumba cênica da Semente Cia de Teatro
Valdeci Moreira de Souza
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-21, dez. 2024
10
estética de terreiro implantada pela Semente traz elementos do candomblé para
a diegese cênica, referenciando e reverenciando a ancestralidade dos corpos em
cena, incorporando práticas de terreiro tanto na construção de dramaturgias
quanto na preparação vocal e corporal do elenco.
É bom lembrar que os corpos negros entram em cena, no teatro brasileiro,
longe das estereotipias do passado. Isso acontecia nos anos ’20, com o
surgimento da Companhia Negra de Revista, capitaneada pelo ator, diretor e
dramaturgo De Chocolat, no tempo do Teatro de Revistas, quando se destacou,
entre outros, o talento do Pequeno Otelo, o pré-adolescente que mais tarde se
tornaria um ícone nacional conhecido como Grande Otelo.
Foi
O Imperador Jones
, do dramaturgo estadunidense Eugene O’Neil, que
inspirou, nos anos 1940, o intelectual e ativista Abdias Nascimento a criar o
Teatro Experimental do Negro9. O TEN foi uma resposta de Nascimento a uma
encenação da peça de O’Neil que ele viu, com desgosto e revolta, na capital do
Peru, onde o personagem negro era representado por um ator branco com a
cara besuntada de preto, em um descarado e ofensivo
blackface
. Embora tenha
dado voz a artistas negros e colocado o corpo negro em cena de forma
humanizada, tanto o TEN quanto a Companhia Negra de Revistas ainda estavam
presos a uma estrutura canônica, eurocêntrica, a uma forma de teatro elaborada
para outros corpos, não pensada para os corpos negros, sem construir uma
linguagem teatral afrocentrada.
9 O TEN fez sua estreia em 1945, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com a peça
O Imperador Jones
.
Poética de terreiro: um olhar sobre a macumba cênica da Semente Cia de Teatro
Valdeci Moreira de Souza
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-21, dez. 2024
11
Figura 1 - Padê de Exu. Foto: Ogan Luiz Alves
A Semente, por sua vez, trouxe à cena a luz, os adereços, os atabaques, as
velas, a vestimenta e uma infinidade de elementos visuais e sonoros que fazem
referência direta ao universo negro e à sua ancestralidade. Por isso mesmo, a
macumba cênica da Semente Cia de Teatro se apresenta como uma proposta
decolonial.
Semente em cena
A Semente Cia de Teatro, por sua vez, afrocentriza-se, macumbiza-se,
enegrece de corpo e alma o teatro que faz e busca construir um Teatro Ritual10,
incorporando na diegese o batuque dos ogãs e a presença dos orixás, por meio
da incorporação cênica. “O Teatro Ritual é o entrelaçamento rito e cena [...],
trata-se de um teatro atávico, primevo, ancestral, no qual rito e cena estão em
espaço fronteiriço e de encruzilhamento” (Barbosa, 2021, p. 28).
Ao trazer a presença dramatizada de seres encantados para dentro da
diegese cênica, busca-se incorporar a força desses arquétipos, reativar memórias
e reavivar mitos.
10 Teatro ritual é o entrelaçamento entre rito e cena.
Poética de terreiro: um olhar sobre a macumba cênica da Semente Cia de Teatro
Valdeci Moreira de Souza
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-21, dez. 2024
12
Figura 2 - Oxóssi se preparando para caçar. Foto: Ogan Luiz Alves
A potência dramática dessas incorporações cênicas está no
reconhecimento e na identificação por parte da plateia que, uma vez tendo a
memória ativada, passa a enxergar o mito como a encarnação de um arquétipo,
a representação de um tipo. Por exemplo, uma Pomba-gira, dentro de uma cena
teatral, é, ao mesmo tempo, um orixá e um arquétipo da mulher livre, alegre,
fagueira, segura, sensualmente liberta, corporalmente dona de si e verbalmente
afrontosa. Se “baixa” Omolu no teatro, com ele assenta-se o curandeiro da
aldeia, a benzedeira da esquina, o vendedor de garrafada da rodoviária, a cigana
fabricante de óleos e unguentos, ou seja, o arquétipo do esculápio sem jaleco, do
quimbanda11 e do milagreiro, figuras tão comuns e tão presentes nas quebradas
periféricas. É que entra a ativação da memória, é quando mito e arquétipo se
entrelaçam e se entrecruzam. Nesse momento, o espectador se surpreende e se
assombra com a sua expectativa.
11 Em Angola, quimbanda é o nome que se dá ao curandeiro.
Poética de terreiro: um olhar sobre a macumba cênica da Semente Cia de Teatro
Valdeci Moreira de Souza
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-21, dez. 2024
13
Figura 3 Otacília Interpretada por Cleire Zaran. Foto: Ogan Luiz Alves
A Semente Cia de Teatro busca estimular a ativação da memória por meio
da incorporação cênica, procurando atrair uma sinergia entre os atuantes, os
espectadores e a obra encenada. Nesse encruzilhamento entre teatro e terreiro,
a Semente Cia de Teatro propõe um diálogo que envolve esses dois universos,
fundindo-os sem confundi-los. Busca-se, também, uma relação dialógica com o
público, de modo que a plateia não fique passiva diante da epifania cênica, e que
ela seja arrebatada. A intenção da Semente é colocar a plateia no papel de
funâmbulo, que se equilibra na corda bamba entre o teatro e o terreiro: ora ele
acreditará que está em um, ora se verá em outro. De forma dialógica, propõe-se
que o público consiga perceber que tudo é uma questão de como encaramos o
que vemos. Cada um vivencia a sua própria experiência.
Poética de terreiro: um olhar sobre a macumba cênica da Semente Cia de Teatro
Valdeci Moreira de Souza
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-21, dez. 2024
14
Figura 4 Benzedeira - Foto: Ogan Luiz Alves
Os terreiros, desde sempre, estão localizados nas periferias, na maioria das
vezes à margem das periferias, isolados, marginalizados. O fato do Espaço
Semente está no centro da cidade se configura como uma provocação e um ato
de resistência afrontosa. Os sons dos atabaques, as gargalhadas das pombas-
gira, as exaltações aos orixás são interferências sonoras inusitadas. Esses são
sons que as pessoas se acostumaram a ouvir de longe, pois são sons abafados
pela distância, quase silenciados.
Na poética ritualística da Semente Cia de Teatro, a ancestralidade é
conceito e prática (Oliveira, 2007) na encruzilhada onde se assenta o Espaço
Semente. O terreiro é o centro da periferia, é a casa de espetáculos onde a gente
negra exibe, com orgulho, a sua negritude. Nos exemplos que exibiremos a
seguir, a partir das montagens de
Miguilim Inacabado
e
Grande Sertão
,
uma
Kizomba Periférica
, mostraremos como a estética de terreiro é incorporada pela
Semente Cia de Teatro.
Poética de terreiro: um olhar sobre a macumba cênica da Semente Cia de Teatro
Valdeci Moreira de Souza
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-21, dez. 2024
15
O teatro de terreiro
Na montagem de
Miguilim
12, adaptação do conto de Guimarães Rosa,
rebatizada de Miguilim Inacabado, a Semente Cia de Teatro traz elementos do
candomblé para dentro da cena, reconfigurando o universo matuto imaginado
por Rosa. Em
Miguilim Inacabado
, o Mutum, lugarejo onde se a jornada do
pequeno Miguilim, surgir no seio de suas matas uma personagem incorporada
em um orixá. Mãitina, a personagem negra que Guimarães Rosa tratou de forma
rasa e estereotipada, aqui se reveste de um arquétipo mítico. Ela surge como
Omolu, deixando fora de cena, em sua obra, a ancestralidade africana, que é a
mulher negra expressando a sua magia e o seu encantamento místico.
Figura 5 - Azê de Omolu - Cena morte de Dito. Foto: Ogan Luiz Alves
O personagem Dito, quando cai em enfermidade, é socorrido por Mãitina,
que surge na cena no papel de cavalo de Omolu, entidade que domina os
12 Obra pertence ao livro Campo Geral, de 1956.
Poética de terreiro: um olhar sobre a macumba cênica da Semente Cia de Teatro
Valdeci Moreira de Souza
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-21, dez. 2024
16
territórios da enfermidade e da cura. Mãitina, na versão de Guimarães Rosa,
aparece como uma preta velha desbocada, cachaceira e que fala uma “língua
estranha”. Aqui, ela é uma anciã guardiã dos mistérios sagrados que incorpora o
arquétipo de um quimbanda, do curandeiro da aldeia. Em cena, a atriz, numa
incorporação cênica coreografada, encena um ritual de cura aos moldes dos
terreiros, numa poética cênica que busca fazer uma releitura da personagem
Mãitina, tida como secundária na obra de Rosa e convertida em personagem
“dona da cena” na versão da Semente, tratando a religião dessa mulher negra
com dignidade e respeito.
Mãitina é o contraponto da avó branca e beata de Miguilim, que ora está
orando, ora está praguejando, tratando a mulher negra com preconceito religioso
e racial. Em
Miguilim Inacabado
, Mãitina representa a religião que acolhe, dialoga
e cura. Na primeira cena do espetáculo, Miguilim aparece dentro de uma bacia
cheia d’água e, com uma cuia, Mãitina lhe um banho de ervas, afastando o
mal olhado e os maus espíritos. Ela é a ação prática, a intervenção benfazeja, a
possibilidade da cura. Com ela, os ogãs fazem rufar os tambores, anunciando um
ritual mágico. Logo, os personagens cantam um ponto em reverência; Mãitina,
com uma garrafa de cachaça na mão, inicia uma dança performática, emite sons
guturais e grunhidos graves, veste uma máscara (azé de Omolu), tremula,
requebra as cadeiras e incorpora. Ei-la em sua encenação ritual, plena absoluta,
dona da cena.
O público, ar suspenso, percebe o transe e acompanha a sua evolução no
terreiro que se instala. A atmosfera se transforma, pois há todo um clima de gira,
de encenação ritualística. A incorporação performática introjeta a ancestralidade
na cena e a encenação mito-poética se faz presente. Essa Mãitina representa
também todas as mulheres negras silenciadas e/ou estereotipadas no teatro e
na literatura brasileira. Ela é a redenção da mulher negra em cena.
Poética de terreiro: um olhar sobre a macumba cênica da Semente Cia de Teatro
Valdeci Moreira de Souza
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-21, dez. 2024
17
Figura 6 - Pontos riscados setas. Foto: Ogan Luiz Alves
É assim que a Semente Cia de Teatro busca a realização de uma
performance negra consciente de sua dimensão estética, política e ideológica,
construindo personagens negras com dimensão humana, a partir de um olhar
negro sobre a realidade, adotando gestos, maneirismos e coreografias que
respeitam a dinâmica dos corpos negros e negras. Se, na obra original de Rosa, a
Mãitina é descrita como uma preta velha que bebe cachaça e fala uma língua
estranha, no
Miguilim Inacabado
, ela é uma mulher negra dotada de poderes
mágicos que fala Iorubá. A personagem é, portanto, ressignificada e reumanizada.
O teatro ritual, estabelece o meio espacial não apenas como uma área
física para eventos simulados, mas como uma contração gerenciável do
envelope cósmico dentro do qual o ser humano não importa quão
profundamente enterrada essa consciência tenha se tornado
ultimamente temerosamente existe. E essa tentativa de administrar a
imensidão de sua consciência espacial torna manifestadamente, o
teatro ritual, um paradigma para a condição humana cósmica. O teatro
ritual visa refletir, através de meios físicos e simbólicos, a luta
arquetípica do ser mortal contra forças exteriores (Soyinka, 1976, p. 4 -5
apud Barbosa, 2021, p. 28).
na adaptação de
Grande Sertão: Veredas
, a Semente Cia de Teatro faz
uma releitura da personagem Otacília, que é apresentada como uma cigana
Poética de terreiro: um olhar sobre a macumba cênica da Semente Cia de Teatro
Valdeci Moreira de Souza
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-21, dez. 2024
18
cartomante na obra original. Aqui ela aparece de saia rodada, batom vermelho,
requebrante, incorporada em uma Pomba-gira: a mulher destemida e
gargalhante que se movimenta ao som de um ponto de macumba. Quando os
atabaques rufam, a atmosfera se transforma. Na montagem da Semente Cia de
Teatro, todos os personagens de
Grande Sertão - Uma Kizomba Periférica
tomam um cálice da Jurema sagrada, entrando em encantamento cênico. O
curioso é que os personagens oferecem a Jurema para a plateia, colocando
aqueles que aceitam a bebida no mesmo transe, terreirizando o teatro.
Claro que no cântaro de barro tem apenas água, por isso, ao beber a bebida
oferecida pelos personagens, o público acaba por compreender que aquela
incorporação é um recurso cênico, sendo sugestionados a receber aquele
encantamento de forma consensual.
Na batalha do Sussuarão, uma nova releitura é feita. Os jagunços se
digladiam usando não as costumeiras espingardas e bacamartes, mas sacando
da cinta verdejantes Espadas de São Jorge13. Os jagunços também usam cabeças
de boi como máscaras. No chão, eles riscam com giz os símbolos dos orixás
(pontos riscados). Dessa forma, o sertão se converte em um grande terreiro,
repleto de seres encantados.
O teatro encantado
No Espaço Semente, “o ritual se transforma em teatro(Ligiéro, 2019, p. 35),
numa plástica conexão com o sagrado. Compreende-se aqui, por conexão, que é
um alimento orgânico e subjetivo que restaura as energias que jorraram em
nossas origens. São energias primordiais (ancestral) que remontam aos tempos
espiralais e engendram novas epistemologias e cosmovisões. Esse encontro
cênico-curativo revela ainda outra dimensão do teatro: a sua ligação à vida
cotidiana, tal como as referidas encenações ritualísticas dos ameríndios e demais
povos africanos. Essas encenações são como um desdobramento de
celebrações e reatualização das potências integradoras que nos enraízam às
nossas gerações tribais ancestrais.
13 Planta que faz referência a Ogum o orixá guerreiro.
Poética de terreiro: um olhar sobre a macumba cênica da Semente Cia de Teatro
Valdeci Moreira de Souza
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-21, dez. 2024
19
[...] elementos da dança e suas complexas coreografias, o uso de
máscaras, os elaborados desenhos corporais, a arte plumária, o canto,
as brincadeiras e a dramatização de animais selvagens e seres
encantados mitológicos, além do profundo sentido ritualístico (Ligiéro,
2011, p. 72).
Essa conexão afro-ameríndia tem a função de ativar memórias, resgatar
saberes, referenciar e reverenciar os seres ancestrais tanto africanos quanto
ameríndios.
Figura 7- O Roncó Espaço Sagrado Limpeza. Foto: Ogan Luiz Alves
É bom lembrar que noções consideradas comuns, numa perspetiva
eurocêntrica de teatro, como corpos em cena, cenografiaou “apresentação de
personagens, também perpassavam a estética cênica ameríndia (Ligiéro, 2011,
2019).
Considerações finais
Como vimos, a Semente Cia de Teatro, incorporando caboclos e orixás em
cena, busca construir uma narrativa afro-ameríndia, ativando a memória dos
sujeitos e sujeitas periféricas por meio de elementos acústicos e cenográficos,
trazendo para o centro as narrativas marginalizadas. É uma perspectiva teatral
Poética de terreiro: um olhar sobre a macumba cênica da Semente Cia de Teatro
Valdeci Moreira de Souza
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-21, dez. 2024
20
diferente daquela que estamos habituados a conceituar, que é o teatro das
grandes salas de espetáculos, montado para entreter uma plateia erudita, de
gosto refinado.
O teatro aqui apresentado é um teatro periférico, cru, autêntico em sua
pureza e revolucionário em sua forma. É um teatro de efetividade popular,
ecológico e sagrado. Trata-se de um teatro inteiramente voltado à comunidade
em que se situa, que celebra deuses, deusas e acontece no meio do povo. Não
paredes que separam público e plateia, porque acontece, também, do “lado
de dentroda natureza. E esse lado de dentro ainda se refere às ruas, às praças e
em volta da fogueira.
É claro que não estamos aqui a hierarquizar um ou outro modo de fazer
teatral, mas propomos mostrar que formas teatralizadas que se diferem da
perspetiva ocidental, e ambas são válidas. Ao permitir a corpo-oralidade em cena,
o teatro de terreiro da Semente Cia de Teatro, em sua poética14 cênica, incorpora
a ética dos quilombos e a estética dos terreiros, possibilitando que a gramática
dos corpos negros se expresse em sua integridade.
Referências
BARBOSA, Fernanda Júlia (Onisajé).
Teatro preto de candomblé
: uma construção
ético-poética de encenação e atuação. Salvador: UFBA, 2021.
D’ANDREA, Pablo (Tiaraju).
A Formação das Sujeitas e dos Sujeitos Periféricos
.
São Paulo: Ed. Dandara, 2022.
DUARTE, Constância Lima; CORTÊS, Cristiane; PEREIRA, Maria do Rosário A.
(orgs.).
Escrevivências. Identidade, gênero e violência na obra de Conceição
Evaristo
. Rio de Janeiro: Editora Malê, 2016.
LIGIÉRO, Zeca.
Corpo a corpo
: estudos das performances brasileiras. Rio de
Janeiro: Garamond, 2011.
LIGIÉRO, Zeca.
Teatro das origens
: estudos das performances afro-ameríndias.
Rio de Janeiro: Garamond, 2019. 296 p.
14 A poética é programa de arte, declarado num manifesto, numa retórica ou mesmo implícito no próprio
exercício da atividade artística ela traduz em termos normativos e operativos um determinado gosto, que,
por sua vez, é toda a espiritualidade de uma pessoa ou de uma época projetada no campo da arte
(Pareyson,1977, p. 11 apud Barbosa, 2021, p. 2).
Poética de terreiro: um olhar sobre a macumba cênica da Semente Cia de Teatro
Valdeci Moreira de Souza
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-21, dez. 2024
21
MOURA, Clovis.
Rebeliões na Senzala. Quilombos, insurreições, guerrilhas
. São
Paulo: Editora Ciências Humanas, 1981.
NASCIMENTO, Beatriz. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra. In:
RATTS, Alex.
Eu sou atlântica
. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006.
OLIVEIRA, Eduardo David de.
Filosofia da Ancestralidade
: corpo e mito na filosofia
da educação brasileira. Curitiba: Gráfica e Editora Popular, 2007.
RODRIGUES JÚNIOR, Luiz Rufino.
Exu e a pedagogia das encruzilhadas
. 2017. 231f.
Tese (Doutorado em Educação) Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2017.
RUFINO, Luiz.
Pedagogia das Encruzilhadas
. 1. ed. Rio de Janeiro: Mórula, 2019.
Recebido em: 20/09/2024
Aprovado em: 23/11/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br