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Corpo, escrita e performance na obra de quatro
artistas latino-americanas
Francisco de Paulo D'Avila nior
Taís Chaves Prestes
Para citar este artigo:
D’AVILA JÚNIOR, Francisco de Paulo; PRESTES, Taís
Chaves. Corpo, escrita e performance na obra de quatro
artistas latino-americanas.
Urdimento
Revista de
Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 4, n. 53, dez.
2024.
DOI: 10.5965/1414573104532024e110
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Corpo, escrita e performance na obra de quatro artistas latino-americanas
Francisco de Paulo D'Avila Junior | Taís Chaves Prestes
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-27, dez. 2024
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Corpo, escrita e performance na obra de quatro artistas latino-americanas1
Francisco de Paulo D'Avila Júnior2
Taís Chaves Prestes3
Resumo
Este artigo investiga o corpo como textualidade nas obras de quatro artistas latino-
americanas: Ana Mendieta, Regina José Galindo, Lygia Clark e Priscila Rezende. A análise
baseia-se nas reflexões teóricas de Leda Maria Martins e Sueli Rolnik, que permitem
interpretar as múltiplas camadas de significação dessas produções. Além disso, o estudo
dialoga com a história da performance art, em especial a body art, com suporte nos estudos
de Roselee Goldberg. A partir dessas abordagens, destaca-se a centralidade das questões do
feminino e os métodos singulares com que cada artista trata o corpo em suas práticas
artísticas.
Palavras-chave
: Corpo. Performance. Body art. Textualidade.
Body, writing and performance in the work of four Latin American artists
Abstract
This article investigates the body as textuality in the works of four Latin American artists: Ana
Mendieta, Regina José Galindo, Lygia Clark and Priscila Rezende. The analysis is based on the
theoretical reflections of Leda Maria Martins and Sueli Rolnik, which allow us to interpret the
multiple layers of meaning of these productions. Furthermore, the study dialogues with the
history of performance art, especially body art, supported by the studies of Roselee Goldberg.
From these approaches, the centrality of feminine issues and the unique methods with which
each artist treats the body in their artistic practices stand out.
Keywords:
Body. Performance. Body art. Textuality.
Cuerpo, escritura y performance en la obra de cuatro artistas latinoamericanas
Resumen
Este artículo investiga el cuerpo como textualidad en las obras de cuatro artistas
latinoamericanas: Ana Mendieta, Regina José Galindo, Lygia Clark y Priscila Rezende. El
análisis se basa en las reflexiones teóricas de Leda Maria Martins y Sueli Rolnik, que permiten
interpretar las múltiples capas de significado de estas producciones. Además, el estudio
dialoga con la historia del arte performance, especialmente el arte corporal, apoyado en los
estudios de Roselee Goldberg. De estos enfoques se destaca la centralidad de las cuestiones
femeninas y los métodos únicos con los que cada artista trata el cuerpo en sus prácticas
artísticas.
Palabras clave
Cuerpo. Actuación. Arte corporal. Textualidad.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Alexandre Henrique Silveira. Mestrado em
Letras: Estudos da Linguagem pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Licenciatura em Letras
Língua Portuguesa pela UFOP.
2 Doutorando em Educação na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestrado em Artes pela Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). Bolsista Capes-Proex 2024-2028. professorfrancescoartes@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/1804150373311243 https://orcid.org/0000-0003-2140-1674
3 Doutoranda em Letras na Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Mestrado e Especialização em Educação
pelo Instituto Federal Sul Rio Grandense (IFSul). Licenciatura em Dança pela UFPel. Professora de Dança na
rede Básica de Ensino. chavesprestes@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/4095169665585683 https://orcid.org/0000-0003-1520-4703
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Preâmbulo
O corpo na contemporaneidade é lugar privilegiado para se pensar as
principais problemáticas que nos atravessam, sejam elas de caráter ambiental,
político, filosófico, estético e tecnológico, pois é no corpo que se inscrevem as
marcas capazes de o transformar em território de resistência, expressão e criação.
No entanto, de que corpo estamos falando? E o que no corpo, afinal, nos interessa?
Respondendo à primeira pergunta, ao nos interessarmos pela prática artística
de quatro artistas latino-americanas, pelas obras da cubana Ana Mendieta, da
guatemalteca Regina José Galindo e das brasileiras Lygia Clark e Priscila Rezende,
colocamos em perspectiva o corpo feminino latino-americano, envoltos por uma
série de problemáticas sociopolíticas, econômicas, culturais e ambientais, e,
sobretudo, corpos que se tornaram campos de resistência e contestação das
normas de gênero.
Para responder à segunda pergunta, será necessário introduzir uma das
principais ideias que movem a escrita deste texto. De acordo com o pensamento
de uma das maiores pensadoras do tema no Brasil, entendemos o corpo como
textualidade. Em sua vasta produção, que inclui livros, ensaios e artigos, a
pesquisadora, dramaturga, rainha congadeira e poeta Leda Maria Martins nos
apresenta uma discussão aprofundada sobre a relação do corpo com a escrita.
Leda compartilha a ideia de
graphen
grego, que, segundo a autora, “nos
remete a muitas outras formas e procedimentos de inscrição e grafia, dentre elas
a que o corpo, como portal de alteridades, dionisiacamente nos remete” (Martins,
2003, p.64). No entanto, ao confrontar as seculares seleções semânticas
perpetuadas pelo Ocidente, afirma:
Em uma das línguas Bantu, do Congo, da mesma raiz,
ntanga
, derivam os
verbos escrever e dançar, que realçam variantes sentidos moventes que
nos remetem a outras fontes possíveis de inscrição, resguardo,
transmissão e transcriação de conhecimento, práticas procedimentos
ancorados no e pelo corpo em performance (Martins, 2003, p. 64).
Na perspectiva de Leda, ao pensar o corpo em performance, é necessário
recrutar um dos conceitos apresentados pela pesquisadora, a
oralitura
. Ao
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desenvolver sua teoria performativa, a autora reflete sobre a falsa dicotomia entre
a palavra escrita e a palavra oral, criada pelo pensamento cultural ocidental, e que
valoriza apenas o discurso escrito como forma legítima de conhecimento. Com
isso, desconsidera-se a potência das poéticas orais, que se manifestam pela
expansão do corpo e da voz. Para Leda, “o gesto e a voz modulam no corpo a
grafia dos saberes de várias ordens e de naturezas das mais diversas” (Martins,
2021, p. 41). Segundo Martins (2021, p. 41):
Conceitual e metodologicamente, oralitura designa a complexa textura
das performances orais e corporais, seu funcionamento, os processos,
procedimentos, meios e sistemas de inscrição dos saberes fundados e
fundantes das epistemes corporais destacando neles o trânsito da
memória, da história, das cosmovisões que pelas corporeidades se
processam. E alude também à grafia desses saberes, como inscrições
performáticas e rasura da dicotomia entre oralidade e escrita.
O corpo latino-americano que buscamos evidenciar a partir da escolha das
artistas aqui analisadas encontra eco nos escritos de Leda, pois fazem parte de
um contexto de colonização cruel, que buscou, inclusive através da escrita, a
dominação e o apagamento. “A civilização da escrita, do livro, se impunha, como
se fora única, verdadeira e universal em seu desejo de dominação e de hegemonia
[...] E visava ao desaparecimento simbólico ou literal do outro, seu apagamento”
(Martins, 2021, p.35).
Entender o corpo como um território de inscrição nos permite ampliar essa
ideia para pensar como as relações de poder e os discursos opressores atuam
sobre ele. Nesse contexto, o corpo se torna alvo de diversas forças, como o
controle mercadológico e as dinâmicas de opressão discursiva, que buscam
moldar e regular sua presença e expressão. Reflexões dessa natureza, no Brasil,
têm a professora, filósofa e teórica dos estudos do corpo, Suely Rolnik, como uma
de suas expoentes.
Com o conceito de
corpo
vibrátil
, passamos a perceber o corpo não como
uma entidade estática, mas receptível às forças e aos fluxos do mundo ao seu
redor. Rolnik conceitua a ideia de corpo vibrátil a partir de uma análise crítica da
obra de Lygia Clark, e, de acordo com a autora,
é a partir da escuta do corpo vibrátil e suas mutações, que o artista,
desassossegado pelo conflito entre a nova realidade sensível e as
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referências antigas de que dispõe para orientar-se na existência, sente-
se compelido a criar uma cartografia para o mundo que se anuncia, a
qual ganha corpo em sua obra e dele se autonomiza (Rolnik, 2000, p.2).
Nesse sentido, o corpo vibrátil é aquele que, em contato contínuo com o
outro, humano ou não, mobiliza afetos variados que configuram a alteridade. Esses
afetos geram uma realidade sensível e corpórea, invisível, mas tão real quanto a
realidade visível.
Na perspectiva do corpo vibrátil, são os conceitos
marca
e
devir
-
outro
,
propostos por Rolnik, que mais interessam a esta pesquisa. Rolnik faz a
constatação de que, ao longo de toda a vida, estamos inseridos em diversos
ambientes, inclusive os não humanos, e que, no limiar de todas as experiências,
sejam nos âmbitos visíveis e invisíveis, “são gerados em nós estados inéditos,
inteiramente estranhos em relação àquilo de que é feita a consistência subjetiva
de nossa atual figura” (Rolnik, 1993, p.2). Tais rupturas, segundo a autora, geram
marca:
Ora, o que estou chamando de marca são exatamente estes estados
inéditos que se produzem em nosso corpo, a partir das composições que
vamos vivendo. Cada um destes estados constitui uma diferença que
instaura uma abertura para a criação de um novo corpo, o que significa
que as marcas são sempre gênese de um devir (Rolnik, 1993, p. 2).
Por conseguinte, aprofunda-se a ideia de que o corpo que escreve é também
um campo sensível, atravessado por forças políticas, econômicas e culturais, que
tentam controlar e limitar sua expressão. A ideia de marca reforça o entendimento
de que essas forças deixam vestígios no corpo, ao mesmo tempo em que ele
resiste e responde com suas próprias inscrições. No campo da arte, esse processo
de subjetivação, perpetuado por artistas como Ana Mendieta, Regina José Galindo,
Lygia Clark e Priscila Rezende, está de acordo com o pensamento proposto por
Rolnik de que o sujeito pode:
deixar-se estranhar pelas marcas que se fazem em seu corpo, é tentar
criar sentido que permita sua existencialização - e quanto mais consegue
fazê-lo, provavelmente maior é o grau de potência com que a vida se
afirma em sua existência (Rolnik, 1993, p.3).
Diante dessas perspectivas sobre corpos que escrevem e dialogando com as
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práticas das quatro artistas, as experimentações performáticas que têm o corpo
como plataforma, a
body art,
perpetuadas desde a década de 1960, constituem
nosso aporte teórico e metodológico para pensar a grafia dos corpos das artistas
aqui elencadas.
Ao observarmos as obras das quatro artistas, nosso objetivo é investigar
como elas desenvolvem suas pesquisas, percebendo o corpo como uma
plataforma de criação e expressão. Nossa análise também busca revelar os
discursos implícitos presentes nessas obras, entendendo o corpo como um
espaço de textualização que vai além da escrita tradicional.
Cara (o) leitora (o), o presente texto está estruturado em duas partes. Em
“Quando o dizer ganha corpo”, traremos para o debate uma discussão sobre body
art, experimentações de artistas que utilizam o corpo como plataforma de criação
e performance. No item “O que dizem e como dizem as artistas”, apresentaremos
as quatro artistas e analisaremos, de forma interpretativa/subjetiva, com eventuais
citações das próprias artistas e outras referências bibliográficas, as seguintes
obras:
Sem Título (1974)
de Ana Mendieta;
Tierra
(2013) de Regina José Galindo;
Baba Antropofágica
(1975) de Lygia Clark; e
Bombril
(2010) de Priscila Rezende.
Quando o dizer ganha corpo:
Body Art
Com a chegada do século XX, o corpo passou a ocupar um novo papel nas
artes, tornando-se ele mesmo uma plataforma de criação. A
performance art
e a
body art
permitiram que artistas transformassem o corpo em um espaço vivo de
experimentação, reflexão e ruptura com as convenções tradicionais da arte. Mais
do que isso, o corpo, experimentado como meio de criação e comunicação,
tornou-se palco de conflitos e tensões políticas. Ao inscrever no corpo a relação
conflituosa com discursos opressivos –de gênero, raça e identidade –, essas
práticas revelaram o corpo como um território de resistência, onde o artista
escreve, performa e desafia as narrativas hegemônicas, expondo as contradições
e os limites impostos pelo poder.
Aliás, os dois maiores conflitos bélicos, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918)
e a Segunda Guerra Mundial (1933-1945), foram eventos que modificaram as
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percepções dos artistas sobre seus próprios corpos, visto que estavam
mergulhados no terror e na violência sem sentido. Desde as Vanguardas Artísticas
do Século XX, das elaborações conceituais dos manifestos futuristas até as
experimentações mais contemporâneas, se constituiu uma tradição de artistas
que passaram a optar “pela performance ao vivo como meio de expressar suas
ideias” (Goldberg, 2012, p. 7).
A teórica Roselee Goldberg traça, através do seu livro
A Arte da Performance
,
uma linha do tempo dos eventos que levaram a
performance art
ser percebida
como linguagem artística independente na década de 1970. Segundo a autora:
A performance passou a ser reconhecida como um meio de expressão
artística independente na década de 1970. Nessa época, a arte
conceptual, que privilegiava uma arte das ideias, em detrimento do
produto, uma arte que não se destinasse a ser comprada ou vendida,
estava no seu apogeu (Goldberg, 2012, p. 7).
Embora a performance tenha sido reconhecida como uma linguagem artística
apenas na década de 1970, Goldberg aponta para a presença de elementos
performativos nas vanguardas do começo do século. As discussões e as
experimentações em relação ao corpo, mesmo que tímidas, foram parte integrante
das práticas dos artistas do movimento Futurista, levadas a cabo a partir de 1909
na Itália. O primeiro Sarau Futurista aconteceu em 1909, a partir da apresentação
no Teatro Alfieri, em Turim-IT, da peça
Poupées électriques
, de Filippo Tommaso
Marinetti (1876-1944), também autor do primeiro manifesto futurista.
Na visão de Marinetti, naquela altura, o corpo exercia um papel
excessivamente estático na prática de um recitador, vinculando-o como suporte
simbólico das palavras. Tal desvinculação foi proposta no
Manifesto da
Declamação Dinâmica e Sinóptica
, proposto em 1909 por Marinetti. Tal manifesto
se configurou como instrução de como realizar uma performance. No essencial:
“[o] declamador futurista, insistia ele, devia declamar tanto com as suas pernas
como com os seus braços. As mãos do declamador deviam, além disso, brandir
vários instrumentos ruidosos” (Goldberg, 2012, p. 24).
As investigações sobre o corpo como elemento de criação também foram
exploradas pelos artistas da Bauhaus, atingindo um alto nível de rigor que
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culminou na formulação de uma teoria da performance, desenvolvida por Oskar
Schlemmer (1888- 1943). A escola de design, arte e arquitetura, fundada por Walter
Gropius (1883-1969) em 1919, foi uma escola de ensino artístico, localizada em
Weimar-DE, e que promovia a união das artes como parte da recuperação cultural
da Alemanha pós-guerra. Nessa conjuntura, as práticas de Schlemmer, redefiniram
os rumos da performance arte na década de 1920.
Trabalhando na dualidade entre teoria e prática, na obra
Dança dos Gestos
,
encenada em 1926, “Schlemmer criou um esquema para ilustrar essas teorias
abstratas. Primeiro, concebeu um sistema de notação que permitia registrar
graficamente as trajectórias lineares do movimento e o avanço dos bailarinos”
(Goldberg, 2012, p. 130).
Essa demonstração intencionalmente didáctica revelava, ao mesmo
tempo, a transição metódica de Schlemmer de um meio de expressão
para outro da superfície bidimensional (notação e pintura) para
plasticidade (relevos e esculturas), e daí para a arte intensamente plástica
do corpo humano (Goldberg, 2012, p. 130).
Os estudos artísticos promovidos pela Bauhaus e por Schlemman
prepararam terreno para experimentações do corpo em performances ao vivo,
que, a partir de 1960, se tornaram mais frequentes. Houve um maior interesse, por
parte desses artistas, em investigar o corpo a partir da relação com o espaço, o
que incluía, eventualmente, a participação direta do público na performance. Um
dos exemplos mais significativos foi o
happening
18 happenings in 6 parts.
Proposto por Allan Kaprow (1927-2006), a performance de 1959 dividia o público
em três salas, onde diferentes ações, como sons, movimentos e leituras, ocorriam
simultaneamente. A participação do público nesse
happening
foi interativa e
imersiva, e, antes mesmo do início do evento, todos sabiam, pois Kaprow enviou
vários convites que incluíam a seguinte afirmação: “O público fará parte integrante
dos happenings. Irá vivenciá-los simultaneamente” (Goldberg, 2012, p. 161).
O que dizer ganhou corpo, com contornos mais decisivos a partir da década
de 1960, com uma tradição de artistas, que desenvolveram a
body art
como uma
vertente da performance art. Na
body art
, o corpo se tornou a principal
materialidade da criação e da expressão desses artistas, que não somente
passaram a perceber seus corpos como obras de arte, mas propuseram um
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movimento radical de aproximação da arte e da vida em suas produções.
A relevância do corpo enquanto meio de escrita pode ser percebida em
artistas como Vito Aconcci (1940-2017). Em 1969, “Acconci usou o suporte do seu
corpo como alternativa ao suporte da página, que utilizara enquanto poeta.
Segundo ele, era uma maneira de se focar a si próprio como imagem e de relegar
as palavras” (Goldberg, 2012, p. 198). Outro artista que contribuiu na questão foi
Dennis Oppenheim (1938-2011), um dos precursores da
body art
, e que a via como
“um meio virado para o objetificador o criador e não para o objecto em si”
(Goldberg, 2012, p. 200). Como narra a autora,
Oppenheim aprofundou essas experiências numa obra que criou em
Jones Beach, Long Island. Hanging Position for a Second Degree Burn
baseava-se na noção de mudança de cor, uma preocupação tradicional
dos pintores, que neste caso era sua própria pele que se convertia em
pigmento. Deitado na praia com um livro sobre o peito nu, Oppenheim
aliou-se ao sol queimar a área exposta, efectuando uma mudança de cor
da maneira mais simples (Goldberg, 2012, p.200).
“Contrariamente às performances que lidavam com as propriedades formais
do corpo no tempo e no espaço, outras revestiam-se de uma natureza muito mais
emotiva e expressionista” (Goldberg, 2012, p. 207). As performances rituais são
compreendidas como práticas que integram elementos simbólicos e
performativos, muitas vezes conectados a tradições culturais e religiosas, mas que
também podem envolver a ritualização de experiências corporais, como a dor, para
expressar transformações subjetivas e sociais. Os trabalhos do austríaco Hermann
Nitsch (1938-2022), que chegavam a durar muitas horas, “envolviam rituais e
sangue, tendo sido descritos como “uma forma estética de oração” (Goldberg,
2012, p. 208).
Por via próxima, a sérvia Marina Abramovic elevou a radicalidade em suas
performances, quando propôs, em 1974, a obra intitulada
Ritmo
0
, em que permitiu
que o público utilizasse diversos elementos dispostos em uma mesa como bem
quisessem em seu corpo. Algum tempo depois, suas roupas foram arrancadas
“com navalhas e tinha a pele lacerada; um revólver carregado, apontado a sua
cabeça, acabou por provocar uma luta entre os torturadores, levando a sessão a
um desconcertante final’’ (Goldberg, 2012, p. 210). Em perspectiva semelhante à
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apresentada na obra
Ritmo 0
de Marina Abramovic,
em Paris, os cortes autoinfligidos por Gina Pane nas mãos, nas costas e
no rosto não eram menos perigosos. Como Nitsch, ela acreditava que a
dor ritualizada tinha um efeito purificador. Este tipo de obra era
necessário para sensibilizar uma sociedade anestesiada. Usando sangue,
fogo, leite e a recriação da dor como elemento das suas performances,
Pane conseguiu, nas suas próprias palavras, levar o público a entender
perfeitamente que o meu corpo é o meu material artístico (Goldberg,
2012, p. 209).
Se, por um lado, algumas práticas buscavam ritualizar a dor ou mutilar o
corpo, outra leva de artistas da
body art
se interessou por buscar formas de
modificar seus corpos, o que incluía as próprias cirurgias de modificação já como
parte do evento performativo. A artista francesa Orlan, com um par de chifres na
testa, durante a década de 1990, realizou uma série de procedimentos cirúrgicos,
que foram transmitidos via satélite. a brasileira Priscilla Davanzo, desde o
começo dos anos 2000, vem trabalhando na sua ação A
s Vacas Comem Duas
Vezes a Mesma Comida,
que, através da tatuagem, pinta seu corpo a querer
representar uma vaca, trazendo, via metáfora, uma discussão sobre corpo, vida,
obra, permanência em sua obra.
A autobiografia começou a interessar uma leva de artistas comprometidos
com a aproximação da arte e da vida, o que deu origem a criações que
investigavam suas próprias experiências e identidades como material e conteúdo
dessas performances. O corpo como território de discussões sobre identidades se
intensificou a partir do final da década de 1980, através da produção de artistas
que passaram a investigar as suas raízes culturais. Segundo Goldberg, tais
investigações foram impulsionadas por uma forte instabilidade política e
econômica vivenciadas no final dessa década:
Wall Street entrou em colapso, o muro de Berlim foi derrubado, os
estudantes lutavam em vão pela democracia na China, Nelson Mandela
saía da prisão na África do Sul, ao mesmo tempo as minorias batiam-se
cada vez mais intensamente por questões de identidade étnica e
multiculturalismo (Goldberg, 2012, p. 265).
Ainda abordando esse período histórico, Goldberg (2012, p. 267) explica que
a expansão da consciência latina inspirou muitos performers, entre eles
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uma parodista de cabaré cubano-americana, Carmelita Tropicana, Alina
Troiana, o activista Papo Colo, assim como toda a cena animada em torno
de New Yorican Poets Café, no 8th Village, Nova Iorquino. Surgiram novas
publicações sobre a história da arte da performance na América Latina,
apresentando a um público muito mais vasto as obras de artistas
brasileiros, mexicanos e cubanos, como Lygia Clark, Hélio Oiticica ou
Leandro Soto, e propiciando simultaneamente uma compreensão da rica
mitologia e da consciência política que se encontravam no cerne das suas
obras.
Ao abordar uma identidade da alteridade, Goldberg relata a criação de uma
base para grupos marginalizados “– gays, lésbicas, profissionais do sexo, travestis
e até mesmo doentes crônicos e deficientes desenvolverem um material
performativo intencional e profundamente perturbador” (Goldberg, 2012, p. 267).
Surgem, então, a partir da década de 1990, diversos artistas, em diferentes regiões
do mundo, com a seguinte percepção: “o corpo é um instrumento de comunicação
tão profundo como qualquer outra linguagem” (Goldberg, 2012, p. 302). Segundo
Goldberg, na África do Sul,
[a] performance foi o meio escolhido por um vasto grupo de artistas
desde que a nação Arco-Íris viu nascer a democracia em 1994. A sua
mensagem é transversal às onze línguas oficiais do país e é
imediatamente reconhecível pelos públicos de todas as camadas sociais
da África do Sul, desde as tradicionais danças de guerra zulus, com
escudo e
assegai
, passando pelas danças dos mineiros que usam as suas
galochas como instrumentos de percussão, ou ainda as alas de
toyi-toyi
que abriam as grandes manifestações nos últimos anos do Apartheid
(Goldberg, 2012, p. 302).
Diante desse breve retrospecto sobre o corpo como espinha dorsal da criação
de diversos artistas e da
body art
como uma linguagem, voltaremos nosso olhar
para a prática de quatro artistas latino-americanas, comprometidas com a criação
a partir do corpo, analisando suas obras sob a perspectiva de que os corpos
também escrevem. Então, o que dizem e como dizem as artistas?
O que dizem e como dizem as artistas?
Na sequência, será realizada uma análise da trajetória e das obras das quatro
artistas abordadas neste estudo: Ana Mendieta, Regina José Galindo, Lygia Clark e
Priscila Rezende. Essa análise, além de interpretativo/subjetiva, é fundamentada
tanto em escritos das próprias artistas quanto em outras referências bibliográficas.
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O objetivo é evidenciar, por meio das performances de cada artista, como elas
utilizam o corpo para promover uma escrita poética e política que aborda temas
como território, gênero e as construções sociais relacionadas à identidade racial.
Ana Mendieta
Ana Mendieta (1948-1985) foi uma artista-plástica e performer cubana que
cresceu nos EUA chegando na década de 1960. Com um extenso acervo produzido,
ela ganhou destaque principalmente por suas obras de caráter autobiográfico e
que relacionaram as questões corpo e terra. Tal temática sugere uma espécie de
inteireza da artista junto à natureza, sendo sua extensão, permitindo reviver sua
versão mais primitiva, além de refirmar a força feminina através dos quatro
elementos. Após sua dupla formação em vídeo e pintura, a artista teve como mote
a violência que a circundava para as suas criações em performance. A ideia de
corpo-colônia emerge de sua experiência de ter sido apartada da sua terra natal
ainda jovem.
No bojo do movimento feminista da década de 1970, a artista pôde estudar
arte na Universidade de Iowa e estabelecer contatos com outras mulheres, como
Lucy Lippard, importante nome na liderança do movimento feminista e da arte na
época, auxiliando Mendieta na expansão de sua
network
. Além disso, ela expandiu
também sua maneira de fazer arte transitando pelas linguagens:
body art, body
aerth art, land art
, além da pintura e da escultura. “A artista teria descrito algumas
de suas performances como quadros, ou melhor, quadros vivos, por exemplo, a
performance
Untitled Rape Scene
(1973), em que apresenta uma cena de
estupro” (Francisquetti, 2009, p.44).
Seu trabalho, desenvolvido com forte relação com o discurso do corpo
feminino, se destacou de maneira substancial a partir das criações que
compunham a
Serie Silueta
(1973-1980), uma coletânea de imagens da sua silhueta
carimbada nos mais diversos espaços, com diferentes materiais, como flores
silvestres, gramas e ervas explorando o sensível e o agressivo. Ao descartar o
caráter de posse relativo aos espaços, ela fortaleceu a ideia de estreitar relações
com a natureza, suas origens e ancestralidade.
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Em
Untitled Body Tracks
(Sem Título Rastros do Corpo) 1974, a artista
realizou em torno de 80 pequenos filmes, “com duração de 1 minuto no qual
executa um desenho na parede com suas próprias mãos e com sangue” (Matesco,
2016).
Figura 1 Ana Mendieta executando sua performance
Untitled, 1974
4.
A obra ambígua e complexa suscita múltiplas interpretações, desde a mais
agressiva até a mais ancestral. Ao realizar um movimento de cima para baixo com
as mãos manchadas pelo líquido vermelho, os traços que demarcam a parede
lembram rastros deixados por uma mulher violentada, uma silhueta feminina, um
útero, mas também apenas um caminho ou linhas de uma fronteira. O sangue
remete tanto à fertilidade feminina como ao sacrifício animal ligado à cultura
religiosa afro-caribenha vivido pela artista durante o período da juventude. No
entanto, se vista a partir de uma perspectiva cristã, as pernas juntas e os braços
estendidos da artista, logo no início do vídeo, dão a ideia de Jesus crucificado.
O corpo permanece em movimento durante todo o tempo de construção da
cena. A obra, ainda que num curto espaço de tempo, remete a uma dança
contemporânea ao explorar movimentos descendentes que percorrem a parede,
como se fossem uma grande árvore que balança e delineia o corpo, manifestando
uma mulher livre. Sobretudo, lembra morte e vida. Súplica e deleite. Carregado de
simbologias, o corpo da artista é fundamental em todo o desdobramento da
videoperformance, visto que é ele quem conduz todas as possibilidades de leitura,
mesmo de maneira subsequente, quando sai de cena. O vestígio de sangue
4 Fonte: https://filmow.com/body-tracks-t253324/
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deixado é o registro da presença corporal intencional e definidora na obra, uma
espécie de sombra que permaneceu no tempo-espaço ocupado anteriormente
e que se mantém nas mãos da artista quando ela vai embora, conservando a
relação entre corpo e lugar visitado.
Ao possuir como um dos principais elementos de seu trabalho o uso do
sangue, dando um caráter bastante explicito em relação ao comportamento
misógino do patriarcado, o combate à violência e à sexualização do corpo feminino
acabam por ganhar forte caráter de denúncia nas obras de Mendieta. Outros
trabalhos de relevância da artista também tiveram o sangue como símbolo que
protagonizou a concepção da obra, tais como:
Untitled (Death of a Chicken)
, 1972;
Untitled (People Looking at Blood, Moffitt)
, 1973; e
Self Portrait with Blood
, 1973.
Regina José Galindo
A transversalidade temática nutre o fazer artístico da performer, artista visual
e poeta Regina José Galindo. Os assuntos vão desde a exploração humana e da
natureza, feminicídio, migração, massacres, abusos, além de toda a relação com o
mundo bélico que assola seu país, tudo isso atravessado fortemente pela cultura
da Guatemala, seu território de origem. Esse é um ponto de onde se originam
perguntas infindáveis e que são transcriadas nas obras da artista por meio da
tensão que coloca sua corporeidade à prova, seja no espaço privado ou no espaço
público.
A Guatemala viveu uma guerra civil de 1960 a 1996, e, apesar de um grande
aporte de riqueza em termos de recursos, está entre os países mais desiguais do
mundo, se tornando dona de uma economia em desequilíbrio constante. Diante
desse cenário, a artista costuma salientar que, em seu processo artístico, não
nenhum tipo de funcionalidade impositiva que pretenda causar mudanças
fatídicas. Por isso, sua principal contribuição é mesmo de gerar questões.
O perfil de seu fazer subverte a chamada fetichização do corpo feminino
como objeto de desejo, além de acentuar, em sua poética, metáforas que versam
acerca das violências permeadas pelo corpo. Dessa maneira, ela propõe
movimentos provocativos e que desacomodam por seu caráter disruptivo de
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emancipação e de empoderamento. A artista também incorpora narrativas que
visitam e revisitam traumas, relembrando corpos vulneráveis em meio às relações
de poder, seja quando se vale de seu país ou do campo da arte feminina. São
abordados gestos desconfortáveis que ocupam espaços, onde o homem branco,
hierarquicamente posicionado, faz jus ao seu ambiente estruturante imperativo,
reiterando toda uma memória política e cultural. Assim sendo, em seu devir
mulher, dentro de um conjunto de símbolos, o corpo nu de Galindo vira projeção
das questões provocadoras, peculiares ao seu trabalho e, diversas vezes, é levado
ao limite. Tais movimentos podem ser considerados como o resgate das memórias
vividas, sobretudo pelo povo guatemalteco, uma espécie de tradução dos fatos
resistidos através da arte.
A fim de resistir, inventa outros caminhos de comunicação, enfatizados pela
arte, afetando e sendo afetada em lugares e espaços micropolíticos. Para tanto,
utiliza o que é considerado habitual, socialmente trivial, a fim de desencadear o
incômodo de quem assiste, enfrentando, de certa forma, a passividade popular.
Essa lógica pressupõe um envolvimento do espectador, magnetizando-o a partir
de uma narrativa que ele conhece, porém tende a ignorar em seu cotidiano. Essa
estratégia quase “sedutora” propõe uma atenção global de quem assiste e incute
que os sentidos estejam atentos aos gestos, ou ausência deles, jogando com a
atenção no momento do ato performático. Pretende, portanto, se reconectar às
experiências dos outros, que também são suas, bem como destaca a
marginalização dos corpos, das memórias e dos fatos de toda uma cultura,
dialogando intimamente com memórias e fatos de inúmeras outras culturas.
“Quando você trabalha com o corpo, você está trabalhando com energia” (Quejigo,
2017), relata a artista, que enxerga o corpo como elemento constituinte principal
do seu fazer. Tudo isso é possível pela intenção presente em suas obras de que
se pode reviver a dor ou a sensação de aproximação com o que aconteceu
quando se coloca vulnerável e procura se avizinhar o máximo possível do fato
histórico elencado.
Na videoperformance intitulada
Tierra
(2013), uma extensão da obra
La verdad
(2013), a artista revisita documentos e se debruça em pesquisas que articulam
intimamente dados históricos e arte. Nesta ação, ela resgata a dor da comunidade
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indígena
ixil
, dizimada na década de 1980 na Guatemala com cerca de 200.000
mortes. Na época, o governo ditatorial liderado por Sánchez Rodriguéz e de Efrain
Ríos Montt dirigiu o genocídio dos povos originários. Na figura 2, observamos um
fragmento da videoperformance.
Figura 2 Videoperformance
Tierra
, de Regina José Galindo, 20135.
Na ação, a artista nua se posiciona em por, aproximadamente, 30 minutos,
em um campo aberto envolto por uma vasta floresta nativa, o espaço que inicia
sem nenhum resquício de invasão humana. No entanto, começa a ser cavado pela
caçamba frontal de uma máquina retroescavadeira, formando uma vala profunda
ao redor da mulher, fazendo com que ela permaneça, tão somente, em um bloco
de terra que a sustenta. Ainda que a imagem do corpo nu pareça bastante
imponente em um primeiro momento, a máquina e a remodelação agressiva na
geopolítica do espaço, feita em pouco tempo, elucidam o cenário monstruoso em
que a artista se encontra. O ocorrido se assemelha a uma espécie de devastação
da natureza ao expor uma combinação de elementos e marcadores sociais onde
5 Fonte: https://estonoescritica.com/2021/04/22/sin-tierra-una-accion-de-regina-jose-galindo/.
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vida e morte dialogam por uma linha tênue e viram a mesma voz.
No entanto, ao não se deixar levar pelo esquecimento dos fatos que tendem
a se tornarem ocultos, a potência do corpo que narra um fenômeno representativo
da história guatemalteca conecta natureza e cultura, passando a serem
compreendidos enquanto um, numa posição de enfrentamento à atrocidade, a
partir da cinestesia estabelecida no momento do ato performático. As valas
criadas foram justamente os espaços onde os corpos indígenas, mortos ou vivos,
eram jogados e calados. Diante disso, esse mesmo corpo é capaz de ser associado
às mulheres
ixil
, que testemunharam as mortes dos seus e a devastação de suas
terras, contrastando e integralizando a narrativa do corpo:
Tropas de soldados del ejército y de las patrullas de defensa civil llegaba
a las comunidades indígenas y destruían cualquier cosa que pudiera
serles de utilidad para sobrevivir: comida, ropa, cosechas, casas,
animales, etc. Quemaba todo. Violaba, Torturaba. Asesinaba. Muchos
cuerpos fueron enterrados en fosas comunes que hoy forman parte de
la larga lista de evidencias que confirman el hecho (Galindo, 2013).
No excerto, a artista traz informações do acontecimento necropolítico, que
ainda reverbera cotidiano, criando possíveis zonas de conflito. Dessa maneira, as
memórias que atravessam esse corpo precedem a exposição do ato performático
em si.
Ao identificar e problematizar seu corpo como feminino, a artista,
automaticamente, direciona as reflexões das temáticas abordadas em seus
projetos e fundamenta experiências suscetíveis para ampliar as esferas de análise.
Assim, de uma maneira ou de outra, o corpo em Galindo aparecerá violado,
estigmatizado ou marginalizado, ainda que nas entrelinhas, já que a multiplicidade
de suas obras forma um acervo que explora o corpo por múltiplos vieses. Ela
declara em entrevista: “sou a proprietária intelectual que pesquisou e concebeu
esse ato até o menor detalhe. Este é um ponto muito importante para mim”
(Waldmann, 2018).
Lygia Clark
Pioneira da arte propositiva, a artista plástica e escritora Lygia Clark (1920-
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1988) dispensou, durante a sua trajetória, o título de artista e questionou
estereótipos relativos ao que se entende acerca de corpo na arte contemporânea.
Com uma extensa obra criada no campo da proposição do experimento, a artista
sugere diferentes textos e interações, suscitando diálogo entre corpo e objeto. É
com
Bichos
(1960-1964) que Clark ganha destaque relevante na cena nacional. A
série incentiva o público ao envolvimento direto com a obra, tornando-se parte
dela. Ao mover os objetos, o espectador se expressa e se descobre criador. A partir
da vivência com os objetos relacionais, uma unidade passa a ser configurada,
ampliando tanto possibilidades interpretativas quanto a própria exploração de si.
No final da década de 1960, a artista categorizou o corpo em cinco
subdivisões, a saber: “o corpo individual, o corpo sexual, o corpo dialógico, o corpo
habitat e o corpo do outro” (Xavier, 2019, p. 148). Os “Distintos Corpos” pertencem
à concepção da série
Nostalgia do Corpo
(1966-1969). Cada uma das subdivisões
contempla um trabalho. Se, na década de 1960, essa construção flertava com a
psicanálise e conjecturava um espaço de cunho terapêutico, em
A Estruturação
do Self
(1980), o último da série, o aspecto terapêutico se fundamenta na obra de
Clark, tornando as dimensões corpo e vida uma unidade. Consciência, corpo,
movimento, eu, outro, objeto, espectador, experimental, sensorial, relação,
sensação, fruição, união, memória e subjetividade passam a ser como palavras-
chave, uma rede textual de ações que tecem seu processo criativo.
Ao longo de toda essa concepção, que vai de 1966 a 1988, uma progressão
entre o sensorial e os limites do corpo, fazendo com que a noção de corporeidade
fosse ampliada. Assim, teve como um dos objetivos a proliferação do sentir. O
corpo é o fragmento que encabeça suas propostas, como o fermento de bolo que
o faz crescer. Corpo e objeto se fundem e se confundem, formando um em
busca das memórias, que o contato com objetos e materiais em diferentes
texturas e formatos conciliavam movimento, matéria, intenção e linguagem,
criando um campo de diálogo a partir desse câmbio. Clark buscou problematizar
a constituição do sujeito, que percebe a si próprio quando em contato com o outro,
em um arranjo recíproco, seja o outro quem fosse – objeto ou pessoa.
Entre experiências intimistas e o exercício de resgate das memórias, que são
também corporais, o toque era compelido à busca e protagonizou a simbologia
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concebida nas obras. As questões de gênero eram problematizadas na descoberta
ensacada de limite, no prazer concentrado, no gesto que intimida é a invenção
e a baliza. Logo, o estado de presença no momento da troca torna-se elemento
fundamental, visto que as pequenas ações do corpo, durante a interação, o
remodelavam.
Entre tantas possibilidades de análise e diante da delimitação espacial para
tal, elencamos a proposição intitulada
Baba Antropofágica
(1973), pertencente à
série Canibalismo, para destacar. Consistia em um grupo de pessoas, em que cada
uma recebe um carretel de linha de costura com cores variadas. O carretel deveria
ser inserido na boca, deixando uma ponta da linha para fora, de modo que fosse
possível o puxar da linha e o rolar do carretel. Um dos membros do grupo era
colocado deitado no centro de um círculo formado, enquanto o restante das
pessoas permanece ao seu redor e iniciam o processo da baba, que parte do
desenrolar do carretel no interior da boca e vai sendo depositado no corpo
disposto ao chão. A meta era que a linha salivada fosse colocada sobre o corpo
até que findassem todos os carreteis. Por fim, o grupo retirava lentamente toda
linha colorida depositada no corpo do outro, o que permite-lhes sentir o cheiro e
o molhado bucal coletivo, liberando em seguida o membro que esteve deitado.
Sequencialmente a experiência era compartilhada por todos envolvidos.
Refeita diversas vezes ao longo dos anos, a experiência antropofágica, a qual
convida o espectador a participar ativamente, além de demarcar o período
histórico brasileiro, que vivia um cenário de regime militar, registra também seu
referencial de mundo e influência artística, a qual flertou com o concreto e com o
neoconcreto, levando à multiplicidade de suas proposições. Observamos, na figura
3, um dos registros da performance executada pela primeira vez no ano de 1973.
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Figura 3 Registro da performance
Baba Antropofágica
, de Lygia Clark, 19736.
Os processos de subjetivação foram pesquisados a partir de uma rede de
afetos, justamente como mostrou o emaranhado produzido pelo coletivo,
desterritorializando os corpos a partir do engajamento com o corpo do outro. A
chance de salivar e não controlar necessariamente as reações do próprio corpo,
quando está dedicado principalmente ao corpo alheio, infere o caráter de
alteridade na obra e expõe, justamente, “a linha tênue” entre o eu e o outro por
meio do material leve, que é processualmente depositado sobre o corpo exposto.
A proposta parece flertar com a crise quando provoca o cânone e realinha a
potencialidade do coletivo, por meio do fluido, da baba e mesmo pela
vulnerabilidade manifestada na partilha, restaurando percepções corporais
coletivas.
Em tempo, o uso do fio não é novidade no universo das obras femininas. Ele
contempla aspectos da força das artesanias, bem como das estratégias de
comunicação feita por coletivos de mulheres de diversas comunidades, as quais
tinham seu corpo e sua palavra impedidos de expressão. A Baba Antropofágica
6 Fonte: https://portal.lygiaclark.org.br/acervo/234/baba-antropofagica
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remete a uma “escrita salivar” que incorre em despistar modos de leituras ou
interpretações hegemônicas, que não existem respostas simples para perguntas
complexas, partindo do princípio de que o corpo é, por si, um grande
questionamento. É presumível que a troca sugerida, ao fim de suas intervenções,
também se presentificasse no corpo que escrevia cartas, principalmente ao amigo
distante, o artista Hélio Oiticica (1937-1980).
A partir dessa escrita salivar, a obra de Clark propõe uma espécie de
criticidade corporal projetada no tempo, no espaço e na folha da artista.
Configurou e reconfigurou quantas vezes necessárias os caminhos explorados pelo
corpo, confundindo possíveis conclusões, como é possível acompanhar no excerto
de
Breviário sobre o corpo
:
Boca-bico, de mamadeira, de pássaro que se abre na ginástica do balé,
da cobra cuja língua sai em flecha, dos roedores sorridentes cujos dentes
se debruçam na anedota. A boca da fábula que conta histórias, a boca da
história desdentada, a boca da criança esponja que se embebeda, do
bêbado, labirinto onde a identidade se perde, do orador, linha passada
entre cada dente na tentativa da ordem da imagem, da puta onde o
palavrão adquire o brilho frenético do ouro, do homem da rua, onde nasce
a anedota que corrige a história, do poeta onde predominam os vazios
sobre os cheios (Clark, 1997, p.119).
O ensaio
Breviário sobre o corpo,
reeditado por Lygia Clark, Arte & Ensaios
(1997), é um registro não datado de que as palavras parecem trabalhar num
processo de cartografia anatômica do corpo humano, lembrando a noção de
Corpos Sem Órgãos de
Félix Guattari (1930-1992). Assimiladas sensorialmente, sua
produção escrita foi a extensão do restante do seu fazer artístico, ou seja: dos
demais formatos de suas obras, logo, não existiu hierarquia entre elas. Descreveu
um corpo potente em todos os seus aspectos e sentidos, discorreu sobre as
células na mesma intensidade que articula órgãos e membros na mesma narrativa.
Há uma espécie de desabafo, expiração longa e profunda, uma quebra protocolar,
que desromantiza o corpo enquanto espaço puro. Ele não deixa de ser sagrado
porque a mesma boca que canta também escarra no arroto. O breviário nada
explica, talvez proponha, relacionando corpo e palavra.
“Enquanto escritora assídua, ela escrevia suas confissões artísticas
diariamente, primeiro a mão e depois datilografava, e considerava escrever um
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exercício do corpo” (Lima, 2019, p. 47). A complexidade entre contraste e
consonância são complementares e, ainda que o resgatar da memória e a prática
sensorial culminassem num aparente avesso, seus processos desembocaram em
uma obra parida, que teve como eixo o indivisível, dando vigor estético à obra.
Priscila Rezende
Priscila Rezende é uma artista-plástica afro-brasileira, radicada em Belo
Horizonte-MG, e que tem despontado no cenário nacional na última década como
um nome importante na arte, principalmente na arte do corpo. Rezende se formou
em Artes Visuais, com habilitação em fotografia pela Escola Guignard da
Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG), e é Mestre em Artes pela Escola
de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
A obra produzida pela artista se coloca na dianteira de um debate importante
sobre gênero, identidade e raça, temas que ganham crescente relevância no
debate público e que diretamente atravessam a experiência da artista. A artista
promove, através de sua obra, o feminismo negro e a luta antirracista, tendo como
elemento principal de sua produção a inserção e a presença do indivíduo negro na
sociedade brasileira.
Ganhadora dos prêmios Leda Maria Martins (2018), Prêmio de Fotografia Sesc
-Minas Gerais (2013) e do Prêmio Profissional BDMG Cultural (2012), Rezende
participou de diversas exposições no Brasil e no mundo, além de ter performado
ao vivo em diversos trabalhos, como
Bombril
(2010),
Laços
(2010),
Purificação
(2013),
Deformação
(2015),
Vem... pra ser
feliz
(2017),
Nau
Frágil
(2019),
Muchas
Gracias, pero no!
(2022), dentre outros. Segundo as palavras da própria artista,
[...] meu corpo tem sido meu principal objeto e mídia para criar e
expressar perguntas, dúvidas, minha visão sobre o mundo em que
vivemos e, especialmente, minha condição específica à frente deste
mundo. Vejo o meu trabalho como uma arma de luta contra situações de
discriminação, para trazer reflexões e dar voz a algumas discussões que
ainda não estão resolvidas em nossa sociedade (Sesc São Paulo, 2017).
Priscila ganhou notoriedade no começo da década de 2010, quando realizou
pela primeira vez a performance
Bombril
, performance que teve grande
repercussão na época. Na ação realizada ao vivo, Priscila utilizou seu próprio cabelo
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para esfregar, durante aproximadamente 60 minutos, objetos metálicos de origem
doméstica. Podemos perceber um pouco melhor essa ação observando a figura 4
abaixo:
Figura 4 Performance
Bombril
. Priscila Rezende, 20167.
O título da obra traz à tona o confronto direto da artista com um termo
bastante pejorativo, nesse caso bombril, que, além de ser o nome de uma marca
famosa de esponjas de aço, foi historicamente utilizado para inferiorizar as
populações negras, visto que a textura da esponja de aço é associada ao cabelo
afro de forma depreciativa. Ao escolher esse nome, fica evidente que a artista
levanta um questionamento linguístico sobre o racismo presente na linguagem e
nas expressões cotidianas.
Para além da provocação linguística, a obra
Bombril
apresenta outras
possíveis camadas de leitura, demonstrando sua capacidade arrojada de mobilizar
o público, e sobretudo a branquitude, a confrontar seus preconceitos. Na
performance, Priscila trajou uma roupa que faz alusão aos panos utilizados pelas
mulheres escravizadas e, ao escolher essa referência visual à indumentária, a
artista revela a herança de violência, submissão e trabalho forçado, reforçando
7 Fonte: https://www.focoincena.com.br/bombril.
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que essas narrativas continuam a impactar a forma como o corpo negro feminino
é visto e tratado. Ao esfregar utensílios domésticos com seu cabelo crespo, a
artista também expõe o racismo estrutural que associa o corpo negro à servidão
e ao trabalho subalterno.
Outra questão que o trabalho suscita diz respeito a como a identidade racial
e o gênero são entrelaçados na construção de papéis sociais que desumanizam.
As mulheres negras enfrentam uma dupla marginalização: enquanto mulheres, são
oprimidas pelo sistema patriarcado; enquanto negras, são vítimas de um racismo
estrutural que reduz seus corpos a toda sorte de abusos e desumanizações.
Rezende faz uso do corpo não apenas como ferramenta de expressão, mas
como meio de inscrição de sua própria vivência. Nesse sentido, suas obras são
também autobiográficas. É perceptível e recorrente na obra da artista a
investigação da violência como um material de criação, violência essa que corpos
negros são constantemente submetidos. No caso da performance
Bombril
, isso
encontra correspondência na repetição incessante da performer ao esfregar as
panelas com seu próprio cabelo. A repetição, nesse caso, traz uma amplificação
da violência simbólica e física infligida ao corpo negro.
A escolha de utilizar o cabelo, símbolo de identidade e resistência na cultura
negra, revela uma dimensão política e poética da obra. O cabelo crespo,
historicamente marginalizado, torna-se um ponto de confronto com a sociedade,
que ao longo dos séculos buscou moldá-lo para se adequar a padrões
eurocêntricos. De acordo com a também artista afro-brasileira Renata Felinto:
Os cabelos crespos, assim, são conexos à aspereza e subalternidade que
a sociedade brasileira reservou às negras como numa continuidade
perversa dos afazeres do lar durante o extenso período de escravidão. A
tensão que se apresenta nesta ação repetitiva equivale à vivida por negras
durante a infância na qual a beleza de seus cabelos, e por extensão de
seus corpos, é colocada em dúvida constantemente (Felinto, 2017 p. 26).
Na performance, o corpo e o cabelo são ressignificados, tornando-se
instrumentos de denúncia contra o racismo e a objetificação. Ao transformar o
espaço performativo em um cenário de resistência, Rezende articula uma crítica
direta à sociedade que ainda insiste em impor papéis limitadores ao corpo negro.
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O ato de “limpar” com o cabelo evidencia camadas de opressão e resistência,
enquanto expõe as tensões entre o público e a performer. Priscila Rezende desafia
o espectador a confrontar seus preconceitos e a repensar o papel do corpo negro,
tanto na arte quanto na sociedade.
Considerações Finais
Nas considerações finais deste artigo, é imprescindível destacar como o
corpo teve papel crucial nas obras das artistas aqui estudadas. O corpo tornou-se
canal de transformação da ideia e se inscreveu no tempo e no espaço enquanto
discurso, potencialidade e contestação. O corpo se inscreveu enquanto discurso
ao apresentar explicitamente uma ideia, mensagem ou narrativa; enquanto
potencialidade, pela sua capacidade de provocar reflexões e reações no público; e
enquanto contestação, ao recusar-se a aceitar as normativas de opressão e de
violência que historicamente marginalizam corpos dissidentes.
Leda Maria Martins defende que o corpo pode ser um texto, inscrevendo-se
no tempo e no espaço, e isso faz sentido quando analisamos, por exemplo, a obra
de Ana Mendieta, quando a artista inscreve o corpo na terra, ou quando deixa
marcas de sangue, comunicando, dessa forma, significados. Na obra de Priscila
Rezende, reconhecemos o que diz Leda Maria Martins, ao registrar que a artista
performa suas próprias vivências, resgatando a todo momento suas memórias.
Quando pensamos nas contribuições de Sueli Rolnik, com a ideia de marca e
devir-outro, podemos perceber com maior atenção a obra da artista Regina José
Galindo. A marca deixada pelo exílio vivido pela artista evidencia que o corpo
comunica também no que se refere aos traumas outrora experienciados. Como a
própria Suely Rolnik aborda em sua obra, Lygia Clark tem seu corpo vibrátil e
construiu, ao longo de sua carreira, uma rede de possibilidades, de afetos e de
parcerias, sobretudo uma rede de outras possibilidades de ver o corpo, de ver a
arte, de ver a vida.
As artistas abordadas neste estudo escolheram, dentre outras linguagens, a
performance art
e, mais especificamente, a
body art
como meio para se
inscreverem no mundo. Essa escolha é também uma necessidade de superar as
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limitações das formas artísticas tradicionais, integrando corpo e ação como
instrumentos fundamentais para investigar questões de identidade, gênero, raça,
dentre outras discussões emergentes. Destaca-se, no que se refere aos principais
aspectos performativos percebidos nas obras analisadas, a utilização de
elementos simbólicos, como o sangue na obra de Mendieta; a relação do corpo
com o espaço natural na obra de Galindo; o aspecto colaborativo/participativo da
obra de Clark; e a ação corporal de repetição percebida no trabalho de Rezende.
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Recebido em: 19/09/2024
Aprovado em: 23/11/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br