Linhagens de dança afro na cidade do Rio de Janeiro: panorama plural
Laís Salgueiro Garcez
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-25, dez. 2024
um conjunto de experiências que expressam gramáticas multifacetadas e
manifestam formas de pensar. Assim, o afro-primitivo, tal como a técnica de
Mercedes, se configura como práticas corporais plurais, forjadas num contexto
multifacetado. Valéria nos aponta diferenças importantes de cada linhagem. Para
Xerife era inconcebível ter ponta de pé no afro, os pés tinham que estar plantados
no chão, ele não usava contagem, trazia movimentos do cotidiano, usava muita
pintura corporal e tapa-sexo, e os movimentos acompanhavam o ritmo, “era
visceral, parecia que a alma saía e voltava...Era um grande ebó...e como um bom
ebó você limpa e renova, volta mais forte” (Monã, 2023) – diz ela.
De acordo com Dickson Duarte Pires (2019), a dança afro-primitiva
revisita a corporalidade e gestualidade do dançarino no sentido de uma
mimesis
de ações cotidianas dos povos tribais africanos. Ações como
caçar, colher, o cultivo da terra, o movimento das águas, o crescimento
das árvores e o ciclo da lua, para além de estarem presentes no
corriqueiro também se fazem como princípio mítico pelo qual os corpos
dançam. Também compõem o enredo dessa linguagem o culto dos
Orixás do panteão africano e manifestação das relações interpessoais
dos indivíduos como a celebração da sexualidade, eventos de nascimento
ou morte, além de rituais de passagem da infância para a vida adulta
(Pires, 2019, p. 80-81).
Com isso, é interessante perceber as distinções entre a dança afro-brasileira
e o afro-primitivo, e traçar o que estou aqui chamando de linhagens de dança afro
na cidade Rio de Janeiro. Nas palavras de Carmen, por exemplo, ela diz que se as
danças negras são um grande guarda-chuva, as danças afro-brasileiras seriam...
Eu diria que as danças afro-brasileiras, elas estão dentro... no meu caso
específico, estão dentro desse escopo, desse guarda-chuva que eu
chamo de danças negras e da qual eu participo. Então as danças afro-
brasileiras, elas estão aí, né? Que são as danças populares e
ressignificadas pelas pessoas dela, muitas delas, a maioria, ex-
escravizadas ou mesmo escravizada. As danças de terreiros, que
chamam de dança de terreiro, que eu prefiro falar das danças... religiosas,
né? De matrizes africanas reinventadas aqui no Brasil, né? Então, tudo
isso aparece no meu trabalho como legado, assim como aparece
também um conjunto de técnicas da cultura de dança que não
necessariamente tem a ver com esse legado. Tem a ver com outros
legados, dos quais eu participo, por admiração, por encontrar naqueles
legados, ferramentas que me permitem dizer melhor o que eu quero
dizer, que me permitem confrontar também a história, que me permitem
que eu possa devolver a porrada, entende?...você não vai me ouvir falar...
que eu faço dança afro-brasileira, eu não faço... embora, no meu trabalho
as técnicas das danças afro-brasileiras estejam lá. E eu conheço elas...