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Linhagens de dança afro na cidade do Rio de
Janeiro: panorama plural
Laís Salgueiro Garcez
Para citar este artigo:
SALGUEIRO GARCEZ, Laís. Linhagens de dança afro na cidade do
Rio de Janeiro: panorama plural.
Urdimento
Revista de Estudos
em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 4, n. 53, dez. 2024.
DOI: 10.5965/1414573104532024e122
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Laís Salgueiro Garcez
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-25, dez. 2024
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Linhagens de dança afro na cidade do Rio de Janeiro: panorama plural1
Laís Salgueiro Garcez2
Resumo
Apresentamos um breve mapeamento das danças afrodiaspóricas na cidade do Rio de
Janeiro especialmente do que se foi chamado de dança afro. Desde a década de 1950, um
campo de atuação da dança afro tem sido construído e nos exige uma revisão crítica da
história da dança, contemplando perspectivas corporais afro-referenciadas que reivindicam
espaços em instituições e denunciam a esteriotipação dos corpos negros. Expomos a
formação de algumas linhagens de dança afro na cidade, trazendo nomes de mestres e
artistas em atuação e demonstrando a pluralidade de suas propostas artísticas enquanto
pensamento em dança.
Palavras-chave
: Danças afrodiaspóricas. Dança afro-brasileira. Dança afro-primitiva. Danças
negras. Pluralidade na dança.
Lineages of “dança afro” in the city of Rio de Janeiro: plural panorama
Abstract
We present a brief mapping of Afrodiasporic dances in the city of Rio de Janeiro especially
what was called “dança afro”. Since the 1950s, a field of action in afro-diasporic dances has
been built and demands a critical review of the history of dance, considering afro-referenced
bodily perspectives that claim spaces in institutions and denounce the stereotyping of black
bodies. Thus, we present the formation of some lineages of “dança afro” in the city, bringing
the names of masters and artists in practice and demonstrating the plurality of their artistic
proposals as thoughts in dance.
Keywords
: Afrodiasporic dances. Afro-brazilian dance. Afro-primitive dance. Black dances.
Plurality in dance.
Linajes de danza afro en la ciudad de Río de Janeiro: panorama plural
Resumen
Presentamos un breve mapeo de las danzas afrodiasporicas en la ciudad de Rio de Janeiro
especialmente lo que se llamó danza afro. Desde la década de 1950 se construye un campo
de acción de las danzas afrodiasporicas que exige una revisión crítica de la historia de la
danza, considerando perspectivas corporales afro referenciadas que reclaman espacios en
las instituciones y denuncian la estereotipación de los cuerpos negros. Así, presentamos la
formación de algunos linajes de danza afro en la ciudad, trayendo los nombres de maestros
y artistas que están en práctica hoy, y demostrando la pluralidad de sus propuestas artísticas
como pensamiento de danza.
Palabras clave
: Danzas afrodiasporicas. Danza afrobrasileña. Danza afroprimitiva, Danzas
negras. Pluralidad en la danza.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Lúcia Beatriz da Silva Alves. Graduação
em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).
2 Doutorado em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Mestrado em
Antropologia Cultural pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós-Graduada em Preparação Corporal
nas Artes Cênicas e Licenciada em Dança pela Faculdade Angel Vianna (FAV/RJ). Graduação - Licenciada
em Sociologia pela Universidade do Rio de Janeiro (UFRJ). Técnica em Bailarino Contemporâneo (FAV).
laissalgueiro@gmail.com
https://lattes.cnpq.br/0713091390359554 https://orcid.org/0009-0000-9276-1285
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Este artigo propõe apresentar um breve panorama das danças
afrodiaspóricas na cidade do Rio de Janeiro. Remeto-me à afrodiáspora como a
experiência dos sujeitos afrodescendentes que carregam em seus corpos
memórias e saberes que por séculos foram brutalmente silenciados. Para o
sociólogo britânico, Paul Gilroy (2001), a diáspora africana nos permite
compreender as “formas geopolíticas e geoculturais de vida que são resultantes
da interação entre sistemas comunicativos e contextos que elas não
incorporam, mas também modificam e transcendem” (Gilroy, 2001, p.25). É como
fruto da diáspora, enquanto deslocamento forçado e interação entre distintos
sistemas e contextos, que a população negra se reinventa. Ao chegarem nas
Américas para construir o Brasil, novas formas de viver são forjadas, acionando
“estruturas de sentimento, produção, comunicação e memória” (Gilroy, 2001, p. 35).
É nesta geopolítica da diáspora que se localizam as danças e suas linguagens
corporais de que trato aqui.
Assim, falar em danças afrodiaspóricas no contexto da cidade do Rio de
Janeiro é remeter-se a um grande guarda-chuva de linguagens corporais
preservadas, e em constante transformação, dos sujeitos que ancestralmente se
conectam com o continente africano e suas referências míticas e rítmicas. Como
exemplos temos o samba, o jongo, as danças urbanas e, enfim, todo o escopo das
danças afro-brasileiras, das danças dos Orixás e de artistas que articulam suas
derivações3 tanto em contextos informais de dança, como em instituições de
ensino e nas pautas dos teatros cariocas. É por estes últimos ramos, que são
genericamente chamados de dança afro, que iremos transitar.
Parto das minhas próprias experiências com as danças afrodiaspóricas,
iniciadas ainda na infância e intensificadas a partir de 2009 com meu primeiro
contato com a dança afro no Rio de Janeiro. Desde então, como artista das danças
negras e antropóloga, fui testemunha dos modos como a dança afro foi se
fortalecendo e se multiplicando na cidade. Entre os anos 50 e 70, a bailarina e
coreógrafa Mercedes Baptista fundando o
Ballet
Folclórico Mercedes Baptista
3 Acogny (2017) debate sobre as formas de dança derivadas das danças da diáspora ou da África. O termo
“derivação”, portanto, remete-se a novas formas de dançar que partem de uma estrutura comum. A
professora Carmen Luz, em uma de suas aulas na disciplina Danças Negras na Faculdade Angel Vianna/RJ
em 2023.2, também assinala o termo “derivações” como uma possibilidade de compreender as
transformações que as danças da diáspora negra vivem e as linguagens corporais que elas recriam.
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em 1953 desenvolveu o que é conhecido como dança afro-brasileira a partir de
suas experiências, como mulher negra, com o
ballet
clássico, a dança moderna,
as danças de diversas regiões do Brasil e dos terreiros de religiões de matriz
africana. Mercedes tem uma trajetória muito importante para o fortalecimento das
linguagens corporais afrodiaspóricas tanto no Rio como em outros lugares do
Brasil, formando diversos bailarinos e artistas da dança. No entanto, percebo que,
apesar da consolidação do seu trabalho na cidade e do contexto plural da dança
na atualidade, existem poucas pesquisas sistemáticas sobre este panorama.
Sabemos que as lacunas na história da dança, quando se trata de rememorar
e registrar o protagonismo de artistas afrodescendentes, são consequência de um
contexto racista que também perpassa o universo das artes cênicas. Denunciando
esses silenciamentos, Luciane da Silva e Inaicyra Falcão dos Santos (2017)
debatem sobre a necessidade de ampliar e revisar o quadro geopolítico da dança
e ainda reformular a “paisagem epistemológica” das universidades e instituições
de ensino e pesquisa em dança, formais ou não.
Interessada em contribuir com essa reformulação, parto da hipótese de que,
mesmo com uma matriz originária em Mercedes com a dança afro-brasileira, as
danças chamadas de afro, aqui nesta cidade, existem de modo plural. Por isso,
construo um mapa com nomes e propostas de artistas da dança afro atuantes
hoje na cidade – muitos dos quais foram meus mestres/as e companheiros/as de
trabalho e aprofundo argumentações através da interlocução entre os artistas
cariocas Charles Nelson, Valéria Monã e Carmen Luz com quem tive a
oportunidade de aprofundar esse debate por meio de entrevistas realizadas no
ano de 2023 para entender como linhagens em dança afro estão sendo
constituídas.
Enfim, não se trata de traçar uma linha genealógica unilinear das danças
afrodiaspóricas no Rio de Janeiro nem de dar conta de toda sua complexidade,
mas de debater sobre como estas estão sendo pensadas no contexto atual tanto
em áreas formais como informais, artísticas e de ensino e constroem
“gramáticas das corporeidades afrodiaspóricas” (Tavares, 2020) de modo plural, de
forte cunho político e de grande importância para o combate ao racismo na área
das artes cênicas.
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Acredito que a compreensão da pluralidade das linguagens corporais
afrodiaspóricas é de extrema importância, na medida em que “desfolcloriza” os
olhares sobre elas. O que veremos é que a experiência da afrodiáspora comporta
perspectivas de corpo e dança singulares que devem ser levadas em consideração.
Esse panorama plural nos revela o que o pesquisador e artista Fernando Ferraz
(2012) diz:
No Brasil, a história da produção teatral das danças afro-diaspóricas tem
sido determinada pela atuação singular de cada intérprete, seus desejos
e comprometimentos. Este fazer artístico não permeia espaços
distintos como os grupos folclóricos, os projetos educacionais existentes
nas periferias dos centros urbanos, as ações culturais de entidades
vinculadas à militância negra, as comunidades de culto das religiões afro-
brasileiras, as agremiações e escolas de samba, mas também ocupa
espaço nos estúdios de dança, se subjetiva em processos de criação de
intérprete-criadores independentes, questiona seus próprios clichês,
reclama pelo reconhecimento da crítica especializada, reivindica espaço
nos departamentos das universidades e nas pautas dos grandes teatros.
Apesar das trajetórias específicas, o que liga o fazer destes artistas é a
forma particular com que acionam dimensões de negritude em seus
trabalhos.
Esses processos encobrem tensões entre as diferentes formações
artísticas, as estratégias de atuação profissional, os engajamentos
políticos variados, os discursos e as práticas sobre a tradição e a
contemporaneidade (Ferraz, 2012, p. 74).
Desse modo, o que une os artistas que serão citados aqui são suas
experiências na afrodiáspora. Veremos que suas trajetórias acionam diferentes
maneiras de trabalhar com dança, ao mesmo tempo em que remontam aos seus
mestres e mestras. Charles, por exemplo, conta da sua história de troca e
confiança com Gilberto de Assis o primeiro bailarino formado por Mercedes
Baptista –, Valéria fala dos encantamentos e tensionamentos que forjaram sua
relação com Xerife4, vindo de Recife na década de 90, e Carmem, ainda que não
nomeie seu trabalho como dança afro, conta que sua infância no subúrbio carioca
é o que constrói seus pensamentos em dança. Reconhecer a pluralidade dessas
histórias, metodologias e técnicas é reconhecer estéticas pluriversais, de poéticas
dialógicas e vivas que constroem pensamentos críticos em dança.
4 Edilson Fernandes (Xerife) é atualmente professor do departamento de Educação da UFPE e foi integrante
do balé primitivo de arte negra (Recife). Para saber mais, ver https://acervorecordanca.com/portfolio/bale-
primitivo-de-arte-negra/ Acesso em: 16 set. 2024.
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Luciane da Silva (2018) denuncia a dificuldade da pluralidade das linguagens
corporais negras serem compreendidas e reconhecidas como estéticas a serem
pesquisadas e experienciadas para além das representações negras
essencializadas. Já, de uma perspectiva filosófica, o sul-africano Mogobe Ramose
(2011) nos fala da proposta do “pluri” como uma resposta à inviabilidade da
universalidade5 ocidental. Para ele, a vida é constituída de pluriversos onde
“Ontologicamente, o Ser é a manifestação da multiplicidade e da diversidade dos
entes. Essa é a pluriversalidade do ser, sempre presente” (Ramose, 2011, p.10).
Nesse sentido, reconhecer a pluralidade das trajetórias e das linguagens corporais
afrodiaspóricas não é concebê-las como uma dispersão aleatória, mas entendê-
las como parte de uma matriz diversa, composta de muitas derivações que geram
frutos que estão vivos e que expressam a vida dos seus sujeitos, suas lutas
políticas e interesses estéticos.
Desse modo, este artigo se faz como um convite a uma reflexão crítica sobre
os diversos modos de experienciar o mundo, desde a colonialidade que nos
atravessa, e vislumbrar um campo epistêmico em dança composto de diálogos
simétricos, como uma resposta à universalidade ocidental. Ao ser questionada “O
que é dança para você?”, Carmen Luz nos brinda: “dança é uma possibilidade”
(Luz, 2023). E é, então, nesse caleidoscópio de experiências que o dançar se faz
como ação política, como forma de imaginar novos mundos e novos discursos
(Kilomba, 2010), ao se tornar uma ou muitas possibilidades de se reinventar.
Dança afro e suas derivações
Alguns artistas e pesquisadores, nos últimos vinte anos, têm se ocupado em
revisar a história da dança no Brasil, articulando também os saberes corporais da
diáspora africana e as geopolíticas deste campo. De perspectivas críticas, esses
autores (Ferraz, 2012; Conrado, 2015; Silva, 2018; Santos, 2022) refletem, a partir de
5 As teorias decoloniais, entre outras, têm questionado os modos como a filosofia ocidental, baseada nos
princípios do filósofo francês René Descartes, forjou um pensamento tido como universal durante a idade
Moderna que justificou a opressão de todas as formas outras de pensar e viver. Assim, junto com a
Modernidade e o pensamento moderno desenvolvem-se as bases da colonização e da escravização
onde o universalismo ocidental que englobava apenas as metrópoles econômicas da época se tornou
uma arma dos colonizadores para justificar genocídios e epistemicídios que até hoje perduram.
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seus fazeres artísticos e pedagógicos, os modos como as danças negras atuam
nas cenas artísticas e educacionais – das mais periféricas às
mainstreams
.
No campo da dança, trata-se de uma tomada de consciência dos modos
como a colonialidade com sua face racista e patriarcal age na construção de
discursos hegemônicos, que excluem dos debates artísticos e pedagógicos os
saberes pejorativamente entendidos como danças tradicionais, folclóricas, entre
outras denominações. Ao negligenciarem suas organizações estéticas, pelo fato de
se afastarem do que é comumente definido como dança de senso estético euro-
referenciado, seguem perpetuando racismos e epistemicídios no campo das artes.
Por outro lado, percebe-se a presença dos corpos e saberes negros
extravasando os contextos tidos como tradicionais. Seus agentes estão em busca
de novas formas artísticas e pedagógicas que afirmem um lugar político e racial,
em constantes tensionamentos e negociações, sem perder de vista a experiência
da diáspora africana no Brasil. Patrick Acogny (2017), pesquisador e dançarino
franco-senegalês, reivindica a diversidade das danças negras e aponta para as
dificuldades de delimitá-la. Para ele, a tentativa de encontrar princípios estéticos
comuns a uma “dança africana” não consegue abranger sua diversidade e acaba
por projetar “uma imagem simplista das danças da África” (Acogny, 2017, p. 146).
Assim, essa denominação anda lado a lado com uma certa folclorização
portanto, homogeneização da África como um continente constantemente
cooptado por discursos coloniais que ignoram sua diversidade étnica. Com isso,
fica posta a necessidade de entendermos como os artistas estão articulando, em
suas propostas, as posturas de embate à colonialidade e ao racismo de maneira
criativa e inventiva e, muitas vezes, em diálogo com técnicas ocidentais.
Acogny (2017) identifica que, desde meados do século XX, surgem propostas
de “danças de expressão africana”, “danças afrocontemporâneas”, “danças
africanas contemporâneas”, dentre outras denominações que demonstram a
complexidade dos modos como essas articulações estéticas e políticas têm sido
feitas de modos mais ou menos contraditórios. Diante disso, ele nos traz uma
definição pertinente de danças negras para pensarmos as danças afrodiaspóricas.
Segundo ele:
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As danças negras são toda prática de dança e coreografia cuja inspiração
sejam danças locais e patrimoniais originárias diretamente do continente
africano, sejam danças derivadas do continente africano, sejam danças
com uma inspiração mística e espiritual oriunda do imaginário e da
sabedoria africana! Elas não são monopólio do continente africano, nem
dos africanos da África. As danças negras também são produto de todo
artista que possua um vínculo de descendência com a África e que se
inspire, seja materialmente, seja espiritualmente, no continente africano
(Acogny, 2017, p. 152).
Nesse sentido, para os artistas das danças negras, o vínculo com a África e
sua diáspora é fundamental para os processos identitários e de subjetivações. E,
principalmente, para a construção de nossas propostas artísticas e pedagógicas,
uma vez que buscamos reatar nossos vínculos ancestrais, em que as danças se
manifestam de maneiras variadas e com grande riqueza, impossível de serem
definidas em um único conceito.
Tal como as “danças africanas”, o termo “dança afro”, posto que assume um
posicionamento político que remonta à diáspora africana, precisa ser
compreendido também de modo plural. Ou seja, olhando e (re)conhecendo a
trajetória de seu artista proponente e os modos como articula seus discursos e
posicionamentos. Nesse universo plural, o que tem sido chamado de dança afro
encontra na corporeidade das religiões afro-brasileiras uma grande fonte estética
para transcriações6 do universo ritual para o universo cênico muito presente nos
artistas que serão nomeados aqui. No entanto, ele não é o único repertório
simbólico e sensorial acionado. Além da relação religiosa, a trajetória artística, a
relação com mestres e mestras das danças negras, tanto do Brasil como da
diáspora, a racialidade e a experiência do racismo, elementos do cotidiano,
posicionamentos políticos e escolas de dança também são acionados pelos
artistas atuais, transitando entre os conceitos de dança afro, dança afro-brasileira,
dança afro-primitiva, danças negras, dança afrodiaspórica... Ainda que não seja
meu intuito mergulhar em todas essas derivações, elas nos demonstram a
existência de epistemologias em dança que atuam às vezes de diferentes
maneiras enquanto posição política antirracista e que solapam a dicotomia
6 Transcriação é um termo desenvolvido pelo poeta brasileiro Haroldo de Campos no campo da tradução, que
considera outros elementos além da equivalência direta entre palavras e frases. O artista-pesquisador Lau
Santos (2022) utiliza o termo para pensar sobre os modos como os processos criativos das artes da cena
são transcriados de práticas artístico-culturais negro-indígenas a partir do corpo.
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tradicional/contemporâneo para expressar suas compreensões sobre arte, dança
e corpo.
Breve mapeamento da dança afro na cidade do Rio de Janeiro
Um breve levantamento do contexto da cidade do Rio de Janeiro nos
apresenta mais de 20 artistas que trabalham com dança afro ou alguma de suas
derivações no eixo zona norte-centro-zona sul7 da cidade. Montei uma tabela com
alguns artistas que têm trajetórias artísticas reconhecidas e de ampla atuação na
cidade mesmo que nem todos sejam cariocas apresentando os seguintes
dados: 1. nome artístico; 2. como cada um nomeia atualmente o seu trabalho; 3.
qual sua principal formação/ mestre em danças negras mesmo que haja outra
formação institucional, ou não – e 4. o seu tempo de atuação na cidade. As cores
verde, rosa, cinza e amarelo também organizam os artistas por tempo de atuação
na cidade do Rio de Janeiro, delimitando três gerações e um caso de transição
entre elas. Importante dizer que esses dados foram levantados em pesquisas da
internet, em conversas informais com colegas do campo, em entrevistas, nas
trocas durante as aulas na disciplina Danças Negras com a professora Carmen Luz
na Faculdade Angel Vianna/RJ em 2023.2 e em vivências de dança ao longo da
minha trajetória nesses últimos 15 anos.
Além disso, vale ressaltar que uma tabela não é absoluta. Ela é uma
ferramenta que permite visualizar, registrar e rememorar alguns dos artistas
atuantes na construção da história da dança na cidade, no recorte aqui proposto:
a dança afro Rio. E, enfim, montar o quadro plural de ações artísticas e
educacionais existentes, demonstrando que elas constroem linhagens que estão
em constante transformação.
7 Esse levantamento foi feito em conjunto, em 2023.2, pela turma da disciplina Danças Negras da Faculdade
Angel Vianna/RJ, ministrada por Carmen Luz, onde ela coordenou um projeto de pesquisa chamado “Dança
afro fala agora”.
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Aprofundando as informações da tabela, no que chamei de primeira geração,
Charles Nelson fez aulas com Mercedes Baptista, mas diz que foi formado por seu
bailarino Gilberto de Assis, assim como Kátia Bezerra. Carmem Luz evoca sua
Tabela 1 - Linhagens da dança afro no Rio de Janeiro (2023). Elaboração do autor
Artista
Nome do projeto
Formação/Mestre
Charles Nelson
Dança afro-brasileira
Mercedes Baptista,
Gilberto de Assis (dança
afro-brasileira)
Carmem Luz
Danças Negras
Cotidiano dos terreiros e
danças urbanas no Rio
Eliete Miranda
Dança afro, A arte de
dançar afro
------
Kátia Bezerra
Dança afro-brasileira
Gilberto de Assis
Valéria Monã
Dança afro-primitiva
Edilson Fernandes (Xerife
dança afro-primitiva)
Luíz Monteiro
Danças Negras
Edilson Fernandes (Xerife
dança afro-primitiva)
G’leu Cambria
Dança afro G’leu
Cambria, Simbologia e
Gestualidade da dança
dos Orixás
Terreiro Matamba
Tombeci Neto e blocos
afro de Ilhéus
Betho Pacheco
Dança Negra
Contemporânea
Carmen Luz
Fábio Batista
Dança afro
Charles Nelson, Carmen
Luz
Aline Valentim
Dança afro, Movimento
Espiral Babalakina
Valéria Monã
Débora
Campos
Afro-conexões,
Ancestralidade em
movimento
Charles Nelson
Mônica Aduni
Dança afro-
contemporânea
Charles Nelson, Carmen
Luz
Ana Catão
Dança afro, dança afro-
brasileira
Eliete Miranda, Valéria
Monã
Ludmilla
Almeida
Diálogos em movimento -
Dança afro-brasileira,
dança afro
Cláudio Nascimento
(capoeira), Valéria Monã
Fernanda Dias
Dança afro-brasileira,
danças africanas
contemporâneas, Raízes
do Movimento
Germaine Acogny,
Charles Nelson
Luna Leal
Dança afro
Aline Valentim
Cleiton
Sobreira
Dança afro-técnica G’leu
Cambria
G’leu Cambria
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formação nas experiências de terreiro e com as danças de rua desde a infância
para configurar o que ela chama de danças negras. Vale ainda dizer que ela afirma
que não faz dança afro e por isso mesmo, como veremos, no recorte aqui proposto
não constitui nenhuma linhagem da dança afro no Rio mas tem um papel
fundamental para a perpetuação dessas linhagens e formação de artistas que
fazem parte delas e, por isso, opto por inseri-la na tabela. A baiana Eliete Miranda,
mulher de terreiro, que formou artistas cariocas e conduz o bloco Filhas de
Gandhy/RJ, tem como formação sua vivência em Salvador nos blocos afro. E
Valéria Monã e Luiz Monteiro tiveram formação com a dança afro-primitiva de
Edilson Fernandes (Xerife). Todos eles e elas são amplamente reconhecidos como
mestres e mestras, com uma atuação prolongada e contínua na cidade do Rio de
Janeiro, sendo articuladores políticos importantes que formaram outros artistas
em atuação hoje. Ainda nesta primeira geração, quero destacar concepções de
Charles Nelson, Valéria Monã e Carmen Luz com quem tive a oportunidade de
conviver em diferentes momentos da minha trajetória e realizar entrevistas no ano
de 2023.
Charles Nelson, atualmente com 71 anos, aponta que ter passado pelo
bailarino Gilberto de Assis, quando ele ministrava aulas na antiga Academia Rio
(atual Centro de Dança Rio) no bairro do Méier, foi como uma preparação do seu
corpo para compreender melhor a dança de Mercedes, a “cabeça” dela como
ele mesmo me disse. Ao ser indagado durante a entrevista, ele aponta a diferença
entre a dança afro-brasileira e a dança do Orixá. Para chegar à dança do Orixá é
preciso passar por uma preparação anterior e isso é, inclusive, justificado pela
forma como Gilberto sistematizou a técnica de Mercedes: no ano era dança afro,
no eram saltos e piruetas, para então entrar no Orixá sem se machucar.
Assim, a dança afro prepara o corpo, vai deixá-lo “molinho, de ombro, de gingado”
(Nelson, 2023), para usar suas palavras.
De fato, em suas aulas, desenvolve a estrutura da técnica Mercedes Baptista,
passando pelo aquecimento de barra e diagonal que trazem referências do Balé
Clássico e da Dança Moderna. E segue, sempre que possível, com o tambor
presente, ensinando as movimentações da dança afro-brasileira, que incluem
repertórios de movimentos que, como diz Charles, passam pelas danças do Brasil.
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Paulo Melgaço (2007) cita diversas coreografias que Mercedes montou para
diferentes espetáculos e projetos com o
Ballet
Folclórico Mercedes Baptista que
representam o “afro-brasileiro”, como o Batuque, Senzala, Coco-baião, Congo,
Samba, Frevo, Candomblé, Cafezal... Assim, nas aulas de Charles, as
movimentações são sequenciadas para formar algumas dessas coreografias.
Charles afirma que segue a “escola de Dona Mercedes, a escola de Gilberto”.
E também reconhece que traz marcas próprias no seu trabalho. Ele segue
respeitando as etapas de formação em técnica Mercedes Baptista, honrando suas
etapas, e a “essência da dança afro-brasileira” (Nelson, 2023), ao mesmo tempo
em que, no trabalho mais avançado, se permite recriações. Conta de uma
mudança que propôs: enquanto Mercedes desenvolvia muitas coreografias com
as mãos fechadas o que, para ele, é resquício das repressões que sofreu no
Teatro Municipal ele optou por abrir as mãos que, a seu ver, não precisava
repercutir aquele sofrimento que não era dele. Aqui, podemos refletir sobre os
modos como as linhagens de dança se estruturam enquanto tradições em dança,
ao mesmo tempo que mantêm seu caráter dinâmico e criativo.
Carmen Luzia Ferreira, conhecida como Carmen Luz, nascida no ano de 1959
no subúrbio carioca, coreógrafa, diretora de cinema, fundadora e diretora artística
da Cia. Étnica de Dança8, em nossa conversa, comenta sobre essas mudanças. Ela
ressalta que, ainda que as danças afrodiaspóricas sofram adaptações, elas são
bem sedimentadas e é isso que faz com que elas, enquanto tradições em dança,
não se desfaçam. Reconhecer como esses caminhos foram e são sedimentados é
importante para uma revisão da história da dança, no caso, do Rio de Janeiro, de
uma perspectiva crítica aos processos coloniais que forjam narrativas únicas sobre
as danças.
Voltando à tabela, saltando para a cor rosa, na transição entre a primeira e
segunda geração, está G’leu Cambria. Sua atuação como dançarina se inicia ainda
na infância, no terreiro de sua família e nos blocos afro de Ilhéus. No ano de 2024
sua turma de dança – seu principal trabalho atual – completou 11 anos no Rio de
8 Além disso, Carmen é mestra em Arte e Cultura Contemporânea pela Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (UERJ); pós-graduada em Teatro pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); e pós-graduada
em Cinema Documentário pela Fundação Getulio Vargas/RJ. É bacharel e licenciada em Português/Literatura
pela UFRJ.
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Janeiro. G’leu Cambria é amplamente reconhecida como mestre em dança afro
na cidade do Rio, não tendo relação direta com os artistas da primeira geração
nem os anteriores a eles e apresenta um tempo menor de atuação aqui na cidade.
Em geral usa o termo dança afro-brasileira associado também à dança dos Orixás,
muitas vezes seguido do seu próprio nome como marca de seu trabalho.
Sinteticamente, concebe sua dança na relação fundamental com a percussão, o
canto e, como diz durante as aulas, a reza.
Com isso, nesta primeira geração, Charles, Eliete, Katia e, ainda, G’leu usam o
termo dança afro ou dança afro-brasileira de diferentes maneiras. Nesse caso,
percebemos a insuficiência da própria nomenclatura como nos aponta Acogny
(2017) no caso da “dança africana” e, ao mesmo tempo, a sua pluralidade, na
medida em que o termo é acionado para afirmar diferentes técnicas e
metodologias em dança que fazem parte de uma linguagem corporal que tem
pontos estéticos em comum neste caso, a presença dos tambores e de uma
estética próxima aos
ballets
folclóricos forjada na primeira metade do século XX9.
Ainda na primeira geração, Valéria de Oliveira conhecida como Valéria Monã
nasceu em 1967 e cresceu em São João de Meriti. De um ponto de vista diferente
do Charles, ela traz suas referências sempre coladas ao universo das danças dos
Orixás. Para ela, é isso que suporte, pertencimento e sentido para sua vida e
para sua dança, que o religioso não se limita ao terreiro, “mas ele é cotidiano,
ele é vivo” (Monã, 2023) para usar suas palavras. Em suas aulas, Valéria sempre
traz referências do que ela chama de “civilizatório”, ou seja, valores sociais e
culturais do candomblé, que são trazidos para suas concepções de dança e
educação, como a coletividade e o axé. Para ela, arte e candomblé não se separam,
pois é dele que vem toda sua filosofia de vida que a acompanha não somente no
9 A expressão estética comumente chamada de dança afro se origina num contexto datado: do surgimento
de grupos folclóricos durante o Estado Novo e de inúmeras políticas nacionalistas que estavam a serviço da
construção de um imaginário nacional, mestiço e precursor do que seria o mito da democracia racial. Apesar
disso, os
ballets
e grupos folclóricos ou parafolclóricos como exemplos, o pioneiro Ballet folclórico de
Mercedes Baptista (1953) no Rio de Janeiro e, seguindo essa linha, o grupo folclórico Viva Bahia (1962), o
Ballet Brasileiro da Bahia (1968), o
Ballet
do Teatro Castro Alves (1981),
Ballet
Folclórico da Bahia (1988) em
Salvador e o Balé Popular de Recife (1977) também estavam interessados em retomar a cultura negra
historicamente marginalizada e transcriá-la para o universo das artes. Villeroy (2021) nos chama atenção
para esse complexo de ambivalências e contradições presentes, por exemplo no trabalho de Mercedes, ao
sustentar o desvio como uma forma de resistência. Ou seja, ao criar uma técnica ela contraria o contexto
macropolítico e abre caminhos para o surgimento de novas histórias em dança. Para saber mais, ler também
Monteiro (2011).
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terreiro ou nos palcos, mas em seu cotidiano.
Para Carmen, tal como no caso da Valéria, a experiência religiosa mesmo
que em diferentes graus (Valéria é filha iniciada de Omolu e Iansã, enquanto
Carmen frequentou terreiros na infância com a mãe) foi o que aproximou as
duas artistas do universo das artes. Katherine Dunham (1983) no seu trabalho
Danças do Haiti
lança mão das teorias antropológicas para revisar conceitos
estanques sobre sagrado e profano, compreendendo que, no contexto das
comunidades afrodiaspóricas, os limites dos rituais religiosos, seus valores e
comportamentos extravasam o conceito de sagrado. Assim, a religiosidade de seus
praticantes perpassa também as esferas sociais, econômicas e políticas
corporificadas no ato de viver.
É interessante percebermos que o reconhecimento das danças dos Orixás no
terreiro como um corpo dotado de técnicas é fundamental para ampliarmos as
concepções ocidentalizadas de dança e para combatermos a colonialidade, a nível
epistemológico, que permeia o campo das artes. Sabemos que, quando as técnicas
e saberes do terreiro vão para o palco, elas passam por uma mudança importante
de contexto, agregando outras finalidades que não apenas o ritual religioso, como
o dançar para um público, a transformação estética e a própria monetização. Essa
transcriação pode acontecer de diversas maneiras e às vezes com
tensionamentos, no entanto, pode ser vista como derivação que permite que os
princípios de sua dança se mantenham. Carmen Luz fala algumas vezes em sua
entrevista do seu interesse para com esses “princípios”, e, me parece, que eles
seriam um dos organizadores do que constitui sua prática com as danças negras.
Continuando, Valéria conta que, além da sua inserção no candomblé, fazem
parte da sua “árvore” como ela diz Xerife,
Edeejô
10 e Dulcinéia (esposa de
Xerife). Xerife dava aula na antiga Escola de Danças do Teatro Municipal, por onde
passou Charles, e que nessa época se chamava a Escola de Dança Maria
Olenewa. Com essa trajetória, ao ser perguntada como nomeia sua dança, ela diz:
10 Mestre
Edeejô Ewa
ré, que passou por Dona Mercedes, foi coreógrafo da comissão de frente do G.R.E.S
Unidos de Vila Isabel quando a escola ganhou o enredo “Kizomba, festa da raça” no ano de 1988. Ele dirigia
o Grupo
Onijô Olokun
, de que Valéria veio a fazer parte. E foi através dele que conheceu Xerife em 1996,
quando este foi convidado por
Edeejô
para participar do grupo.
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é uma boa pergunta, eu sinto que meu grau maior é pro afro primitivo...
eu me sinto nesse lugar... primitivo é isso, seu primeiro, sua existência
primeira... me traz indiscutivelmente um lugar de pertencimento que é o
que eu acredito enquanto corpo negro, enquanto necessidade de
existência. Ela [a dança] me provoca muito, isso que o Xerife tinha, que
trazia pra gente, de olhar ao redor, deixar essa energia te contaminar e
por mais que... venham movimentos repetidos, que ele se torne sempre
primeiro, naquele momento que você executa... sabe? Senão ele não tem
vida. Até para ele ser ancestral ele tem que fluir naquele momento, se
mostrar presente, vivo, porque é isso que Orixá faz com a gente, né?
Posso ter virado não sei quantas vezes em Omolu, mas quando ele chega,
ele chega para viver aquele momento (Moña, 2023).
Com essa definição que justapõe suas experiências de terreiro e sua
formação com Xerife, ela conta que havia um certo embate com a técnica de
Mercedes e as aulas de clássico. O próprio Xerife, em 1998, em sua tese de
doutorado em Educação Física afirma que, a seu ver, Mercedes “civilizava” os
gestos e movimentos ancestrais (Souza, 1998) ao colocá-los a cargo das técnicas
clássicas e modernas. Nesse sentido, Valéria conta que, apesar de hoje ser muito
respeitada, o fato de ela vir do afro-primitivo de Xerife fazia com que ela não fosse
reconhecida como uma bailarina, porque não fez a técnica de Mercedes ou outras
aulas de referência.
Aqui nos vemos diante de uma hierarquização oriunda de uma dinâmica
social que parece classificar o artista como mais afro ou menos afro, mais afro ou
mais clássico. Essas seriam dicotomias ocidentalizadas que não sustentam a
análise do tema e esvaziam a sua complexidade. Desse modo, proponho a pensar
que tanto a perspectiva e a experiência de Charles quanto a de Valéria e, portanto,
de seus mestres estavam construindo e inscrevendo suas linhagens de dança afro
através das gramáticas corporais da diáspora africana de um modo não linear,
plural e ambivalente, no qual, como diz Tavares (2020, p. 20):
Corpo negro, aqui, é entendido como fenômeno que transcende
dualidades, por isso mesmo plástico, dinâmico, autopoético, resiliente,
adaptável e atravessado pelas mais distintas formas de ‘dobras’ e
‘quebras’ localizadas na pós-travessia atlântica. Corpo é, sobretudo,
plural, síntese dos corpos que foram aprisionados, embarcados e trazidos
para a voraz máquina econômica do antigo sistema colonial.
Nesse contexto, o “corpo negro em movimento” (Tavares, 2020, p. 21) constrói
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um conjunto de experiências que expressam gramáticas multifacetadas e
manifestam formas de pensar. Assim, o afro-primitivo, tal como a técnica de
Mercedes, se configura como práticas corporais plurais, forjadas num contexto
multifacetado. Valéria nos aponta diferenças importantes de cada linhagem. Para
Xerife era inconcebível ter ponta de pé no afro, os pés tinham que estar plantados
no chão, ele não usava contagem, trazia movimentos do cotidiano, usava muita
pintura corporal e tapa-sexo, e os movimentos acompanhavam o ritmo, “era
visceral, parecia que a alma saía e voltava...Era um grande ebó...e como um bom
ebó você limpa e renova, volta mais forte” (Monã, 2023) – diz ela.
De acordo com Dickson Duarte Pires (2019), a dança afro-primitiva
revisita a corporalidade e gestualidade do dançarino no sentido de uma
mimesis
de ações cotidianas dos povos tribais africanos. Ações como
caçar, colher, o cultivo da terra, o movimento das águas, o crescimento
das árvores e o ciclo da lua, para além de estarem presentes no
corriqueiro também se fazem como princípio mítico pelo qual os corpos
dançam. Também compõem o enredo dessa linguagem o culto dos
Orixás do panteão africano e manifestação das relações interpessoais
dos indivíduos como a celebração da sexualidade, eventos de nascimento
ou morte, além de rituais de passagem da infância para a vida adulta
(Pires, 2019, p. 80-81).
Com isso, é interessante perceber as distinções entre a dança afro-brasileira
e o afro-primitivo, e traçar o que estou aqui chamando de linhagens de dança afro
na cidade Rio de Janeiro. Nas palavras de Carmen, por exemplo, ela diz que se as
danças negras são um grande guarda-chuva, as danças afro-brasileiras seriam...
Eu diria que as danças afro-brasileiras, elas estão dentro... no meu caso
específico, estão dentro desse escopo, desse guarda-chuva que eu
chamo de danças negras e da qual eu participo. Então as danças afro-
brasileiras, elas estão aí, né? Que são as danças populares e
ressignificadas pelas pessoas dela, muitas delas, a maioria, ex-
escravizadas ou mesmo escravizada. As danças de terreiros, que
chamam de dança de terreiro, que eu prefiro falar das danças... religiosas,
né? De matrizes africanas reinventadas aqui no Brasil, né? Então, tudo
isso aparece no meu trabalho como legado, assim como aparece
também um conjunto de técnicas da cultura de dança que não
necessariamente tem a ver com esse legado. Tem a ver com outros
legados, dos quais eu participo, por admiração, por encontrar naqueles
legados, ferramentas que me permitem dizer melhor o que eu quero
dizer, que me permitem confrontar também a história, que me permitem
que eu possa devolver a porrada, entende?...você não vai me ouvir falar...
que eu faço dança afro-brasileira, eu não faço... embora, no meu trabalho
as técnicas das danças afro-brasileiras estejam lá. E eu conheço elas...
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então, é muito mais uma apropriação para pensar o que é uma
perspectiva negra em dança do que trabalhar com as danças por
exemplo... entre aspas as danças de orixá, danças de terreiro, religiosas...
e, no meu caso, essas danças seja da formatação que elas têm, seja pelo
princípio que elas carregam, essas danças estão sempre em mim por
causa da minha primeira década. Não tenho como fugir... e não quero
fugir. Isso é algo que me constitui (Luz, 2023).
Ela, que ainda se encontra no que delimitei como primeira geração, sem
seguir diretamente a linhagem de Mercedes ou de Xerife, mas influenciada por
elas, inaugura no contexto da cidade do Rio de Janeiro uma reflexão sobre o fazer
das danças da afrodiáspora, o fazer de uma dança que parte de uma perspectiva
negra e que não se restringe às danças afro-brasileiras. Durante nossa conversa
aponta que prefere pensar que diferentes tradições das danças afro-brasileiras,
compreendendo a tradição como algo em movimento, ainda que seus princípios
não mudem. Além disso, a tradição se faz como um tronco infinito, como o da
própria Mercedes Baptista que atravessa, direta ou indiretamente, toda a cadeia
produtiva das danças afrodiaspóricas na cidade do Rio de Janeiro. A própria
Carmen fala de um contexto atual com diversas vertentes da dança afro – as que
se aproximam dos terreiros, a de Mercedes, outras que vêm de Recife e, no
guarda-chuva mais amplo das danças negras, por exemplo, as linhagens das
porta-bandeiras, dos mestres-salas, das passistas e por vai. Ainda que use o
conceito de danças negras, delimita que faz dança da perspectiva de uma mulher
negra. Numa postura política que questiona o racismo e os processos de
racialização consequentes do processo colonial, ela diz:
[...] a minha perspectiva é dessa pessoa, de mulher, negra porque é assim
que a gente foi nomeada e que a gente se ressignificou. Então é dessa
maneira que eu vou lidando com os meus problemas em dança, né? A
partir de um corpo e de pessoas que eu vejo que têm uma certa origem
parecida com a minha. Então por isso... que eu poderia dizer que são as
danças negras, né? São aquelas danças que refletem o, a imaginação, o
legado, né? As contradições, as experiências das pessoas tornadas negras
no mundo. Ou tornadas negras pelo processo colonial ou tornadas negras
no seu processo de militância e de autoconsciência. Então é dessa
maneira que eu entendo (Luz, 2023).
Com esse panorama, compartilha na conversa a suspeita de que muitos que
constroem essas vertentes da dança afro desconhecem sua própria tradição e
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seus princípios. No jogo de adaptações do movimento, ela diz que personagens
importantes dessas tradições correm o risco de serem invisibilizados. Mas ainda
assim seus princípios permanecem e, por isso mesmo, em sua visão, é que essas
danças não sucumbem. Essa preocupação, ela explica, não se trata de uma busca
incansável pela origem, mas de estar sempre passeando pelo passado e pelo
presente para não contribuir com apagamentos indevidos através de processos,
muitas vezes, inconscientes. Para ela, essa postura crítica e reflexiva deve vir
acompanhada de mais imaginação. Sente que, mesmo com uma multiplicidade
de tradições, e de muitas possibilidades de reinvenções, falta imaginação em
dança, para “imaginar outras possibilidades” e aprofunda a conversa dizendo que
“O que faz a existência, a meu ver, é o mergulho radical na imaginação” (Luz, 2023).
Mesmo com essa postura, Carmen defende que nossas danças devem ser
institucionalizadas para terem suporte para estarem dentro das pautas e
currículos das instituições culturais e educacionais e então abrirmos os caminhos
para os seus próprios devires. Desse modo, ela nutre esperanças de que as
próximas gerações possam fazer diferente.
Enfim, nessa geração, vemos a presença de nomenclaturas como danças
negras usada por Carmen e Luiz e dança afro-primitiva por Valéria. Ou seja,
propostas que ampliam o guarda-chuva das linguagens corporais negras e que, no
caso desses três artistas citados, reservam o nome dança afro-brasileira para se
referirem à técnica Mercedes Baptista com suas influências das danças clássica e
moderna, com uma estrutura de aula que passa pela barra, pela diagonal e por
repertórios de movimentos que vão desde as danças patrimoniais até as danças
dos Orixás – que, como diria Charles, não é o mesmo que dança afro-brasileira.
Ao analisarmos a tabela, percebemos a correlação dos artistas mencionados
anteriormente com os artistas das colunas de cor cinza – que configurei como 2ª
geração. Por exemplo, Betho e Fábio este último coordenador da Escola Carioca
de Danças Negras localizada no bairro do Andaraí tiveram uma formação
importante com Carmen através da Cia Étnica e com Charles. O mestre também
formou Débora e influencia o trabalho de Aline. Débora, que passou pela Educação
Física, foi professora de hidroginástica e hoje é doutora em Filosofia, reforça a
importância de conectar suas experiências de vida com suas práticas de dança
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o que fundamenta o nome do seu trabalho: afroconexões. E Aline, mestre em
Ciências Sociais, com ampla influência dos maracatus e afoxés pernambucanos, e
principalmente formada por Valéria, nomeia seu trabalho hoje como “dança afro
– movimento espiral
babalakina
”.
Babalakina
significa “pássaro de braços abertos”
– significado que a artista diz traduzir a “minha dança”.11
É interessante que essa segunda geração, atuante principalmente a partir do
início dos anos 2000, inaugura novos nomes para suas propostas em dança, que
a meu ver, se distanciam, com sutilezas, do contexto da dança afro da década de
50. Percebo que, neste momento, esta geração reforça a existência de linhagens
de dança afro na cidade, na medida em que é formada pelos mestres e mestras
da 1ª geração, e ao mesmo tempo se abre para novas possibilidades de perpetuar
as estéticas negras para além da transcriação cênica do “popular” e dos “terreiros”
para o palco – como era comum nos ballets folclóricos.
E, finalmente, a terceira geração, nas cores de tons amarelo, composta por
artistas formados pelos anteriores, acrescidos de outras formações o que
aparece de modo mais tímido nas gerações antecedentes com trajetórias
diversas e com uma atuação mais recente nos últimos 10 anos. Por exemplo,
Mônica inicia sua trajetória na dança contemporânea, passa por Charles e por
Carmen na Cia Étnica, e hoje desenvolve o que ela convencionou chamar como
dança afro-contemporânea, baseada nos pés de dança dos Orixás. Ana tem
experiência nas danças do subúrbio carioca, como o jongo, é mulher de terreiro,
fundadora do Grupo Tambor de Cumba e fez aulas com Eliete e Valéria. Ludmilla,
com grande influência da capoeira, é mestre em Educação, formada também por
Valéria e atuante na Educação Infantil Antirracista. Fernanda, com ampla atuação
no teatro, afirma sua trajetória na dança a partir da sua ida para a
École de Sable
no Senegal, dirigida por Germaine Acogny, e no Rio através da sua formação e
pesquisa nas técnicas de Mercedes com Charles. Luna, formada por Aline, com
ampla e contínua atuação no samba carioca, com experiência em maracatu e
dança afro, desenvolve, hoje, trabalhos artísticos em dança interessados na
denúncia do racismo. E, enfim, Cleiton, um dos mais jovens dessa geração,
11 Ver entrevista com a artista disponível em https://www.youtube.com/watch?v=992SaaMxJ8A . Acesso em:
01 dez. 2023.
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inaugura recentemente sua turma de dança, ainda que acompanhe G’leu desde
sua chegada na cidade, dando prosseguimento à linhagem desta artista.
Retomando a hipótese do trabalho mesmo com uma matriz originária em
Mercedes com a dança afro-brasileira, as danças chamadas de afro, aqui nesta
cidade, existem de modo plural esta breve síntese apresenta uma pluralidade
de linguagens corporais afrodiaspóricas, ao identificarmos a existência de pelo
menos quatro linhagens na que é chamada de dança afro e suas derivações hoje:
1. a de Mercedes Baptista com Charles e seus sucessores – Fábio, Betho, Débora,
Aline, Mônica e Fernanda –; 2. a de Xerife com Luiz, Valéria e consequentemente
as pessoas que se formaram com ela, como Aline, Ana e Ludmila; 3. a de Eliete,
com Ana – destacando que ela influenciou muitos artistas das danças negras com
seu trabalho com o Afoxé Filhas de Gandhy e 4. a de G’leu com Cleiton e outros
artistas que passaram pela sua Bamboyá Cia de Dança Afro.
Essas quatro linhagens configuram um recorte no mapa das danças
afrodiaspóricas na cidade, apresentando um conjunto de “saberes corporais”
(Tavares, 1984, p. 76) que constituem as “gramáticas das corporeidades
afrodiaspóricas” (Tavares, 2020) que compartilham elementos estéticos comuns,
ao mesmo tempo em que se abrem para formas criativas através das quais os
sujeitos da diáspora encontram formas de manter e reconfigurar suas
epistemologias e filosofias de vida através da dança. Esse cenário nos coloca a
possibilidade de vermos e (re)construirmos a história da dança na cidade a partir
de relações que estão acontecendo agora, que revisam e refazem a história das
danças afrodiaspóricas a partir de sujeitos interessados – cada um a seu modo –
em construir uma cena artística e pedagógica voltada para a cultura negra.
Enfim, estamos diante de um quadro vivo, onde, talvez, pela primeira vez na
história da dança do Rio, reconhece-se que mestres e mestras das danças negras
estão atuando em concomitância com seus aprendizes muitos deles
reconhecidos como mestres também – para construírem esse cenário artístico e
político. Digo “talvez”, porque Dona Mercedes inaugura essa cena com seus
bailarinos e bailarinas, como Walter Ribeiro, Isaura de Assis, Marlene Silva, Gilberto
de Assis, Dica Lima, Jandira Lima, Nelson Lima, entre outros, que, no entanto, em
sua maioria, não tiveram a oportunidade de seguir com a carreira artística.
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Considerações finais
A pesquisa realizada nos mostra a importância de reconhecermos a
pluralidade das danças afrodiaspóricas e da formação de linhagens de dança afro
na cidade do Rio de Janeiro. Vimos que elas se constroem a partir de experiências
plurais que levam a marca do artista e dos seus mestres em conjunto com outras
possíveis formações e nos brindam com diferentes maneiras de nomear suas
práticas artísticas com concepções de arte, corpo e dança também diversas. A
pesquisadora e pioneira no campo de estudos das danças negras12 dentro de uma
universidade pública (Unicamp), Inaicyra Falcão dos Santos, no início dos anos
2000, aciona a importante narrativa de uma perspectiva pluricultural sobre a
dança. Ela não usa o termo danças negras, mas fala da necessidade de
compreendermos a “tradição africano brasileira” que, em si, é dinâmica na
interface do pluriculturalismo e na busca por espaços na “dança-arte-educação”.
Sua perspectiva pluricultural pretende ampliar o arcabouço artístico brasileiro
chamando o campo da dança para um trabalho comprometido com a
transformação e formação do sujeito e a construção de um pensamento crítico
em dança no Brasil – com especial atenção à sua herança africana.
No caso da cidade do Rio de Janeiro, podemos reconhecer o pioneirismo de
Mercedes Baptista na consolidação desse trabalho atento à nossa ancestralidade
e, principalmente, como promotora de um legado que ainda se desdobra, como
vimos. Ela inaugura na cidade do Rio de Janeiro o campo da dança afro, constrói
sua técnica e seu balé tendo em vista sua trajetória de vida e artística. Para citar
algumas influências, ela passa por pesquisas nos terreiros de candomblé junto ao
babalorixá Joãozinho da Goméia, pelo aprendizado nas técnicas clássicas e
modernas de dança, na sua relação política com o TEN – Teatro Experimental do
Negro –, pelos ensinamentos da afro-americana Katherine Dunhan e por
elementos das danças patrimoniais ou danças do Brasil, como era referido na
época.
Essa forma de construir uma escola de dança tão bem sedimentada e que
12 No entanto, à sua época, durante sua atuação na Unicamp, lecionava na cadeira institucionalmente chamada
“danças brasileiras”.
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perdura até hoje nos mostra também os desafios que são enfrentados pelos
artistas: dos racismos cotidianos e institucionais até as dificuldades financeiras e
a própria relação deslizante com o contexto mais amplo do capitalismo. No
entanto, percebemos que algumas mudanças ocorreram no cenário das danças
afrodiaspóricas no Rio de Janeiro nos últimos dez anos. De acordo com Valéria, as
conquistas obtidas são resultado de uma estrutura montada pelos próprios
artistas, como, por exemplo, o “Fórum Nacional de Performance Negra”, com
edições nos anos de 2005, 2006, 2009 e 201113, que levava discussões até o
Ministério Público, com levantamento de ações públicas e afirmativas, e com a
identificação de grupos de danças negras por todo o Brasil. Uma de suas lideranças
foi Cobrinha, que dirigia o Bando de Teatro Olodum em Salvador e a Cia dos
Comuns no Rio de Janeiro. Ele mesmo foi gestor do Centro Cultural José Bonifácio
na cidade carioca onde Charles, Valéria, Carmen, entre outros artistas não
apenas da dança, faziam parte de sua equipe criando um ponto de referência
para a cultura negra na cidade. Como ela diz, foi o momento de “cravar território...
foi um momento político auge... mesmo que algumas companhias tenham ficado
pelo caminho” (Monã, 2023).
Assim sendo, uma rede foi constituída na qual muitos artistas avançaram na
crítica social, buscando caminhos conscientes para afirmarem as técnicas e
saberes das danças negras. Considerando a segunda e a terceira geração, vimos
que as formas de atuar artística e pedagogicamente foram recriadas, se
reinventaram nomes e recriaram metodologias sem deixar de retomar a formação
com seus mestres. Esse caráter dinâmico e plural demonstra que o campo está
em construção e aberto para ser debatido, para contribuir com a formação dos
artistas e para a construção de uma sociedade interessada no combate ao racismo
e suas heranças coloniais. No entanto, o modo como essas linhagens se
perpetuam, e como esses artistas constroem suas metodologias e recriam o que
aprenderam com seus mestres, mesmo com avanços, segue sendo uma tarefa,
muitas vezes, realizada na informalidade.
Pode-se entender que esta informalidade ainda é fruto de um pensamento
13 Para saber mais, ler “Fórum Nacional de Performance Negra: O novo movimento do teatro negro no Brasil”.
Disponível em: http://bit.ly/47IBp9I. Acesso em: 05 dez. 2023.
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colonial presente nas instituições políticas, culturais, artísticas e educacionais, e
na própria crítica artística, que precisa revisar seus conceitos sobre dança e
ampliar o campo para que as danças negras saiam de imaginários pejorativos. Por
isso, esta pesquisa, mesmo que de maneira sintética, pretende demonstrar que,
apesar dessa informalidade, Mercedes e todos os outros artistas que elencamos
estão atuando na construção de um campo estético com interesses que passam
pelas experiências da afrodiáspora.
Essas experiências, que não são lineares, sustentam o que Tavares (2020)
chama de “gramáticas das corporeidades afrodiaspóricas”, ou seja, estruturas de
pensamentos e sentimentos que são dinâmicas, que se transformam, que são
plurais, ao mesmo tempo que compartilham de determinadas condutas éticas e
de valores sociais. E, no caso da dança, de interesses em trazer para cena e para
suas construções metodológicas esses valores junto aos princípios de movimento
que configuram suas linguagens corporais.
Nesse sentido, se um tempo os
ballets
folclóricos tiveram sua importância
política na formação da identidade negra na dança e ainda têm é preciso
avançar para possibilidades outras de expressões artísticas afrodiaspóricas que
permitam que nossos valores, desejos e encantamentos para usar uma palavra
utilizada por Charles, Carmen e Valéria possam estar em inúmeros espaços e de
diferentes formas. Desse modo, compreender a dança como uma possibilidade –
como nos diz Carmen – é entrar em contato com esse cenário como constituidor
de críticas às formas de colonialidade do poder, do saber e do ser, em que dançar
se faz como uma possibilidade de se reinventar e, logo, de revisar as histórias das
danças no Brasil.
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Recebido em: 17/09/2024
Aprovado em: 21/11/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
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