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O que (não) é autoficção?:
corpos que escrevem na pesquisa em educação,
linguagem e teatralidades
Jean Carlos Gonçalves
Para citar este artigo:
GONÇALVES, Jean Carlos. O que (não) é autoficção?: corpos
que escrevem na pesquisa em educação, linguagem e
teatralidades.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 4, n. 53, dez. 2024.
DOI: 10.5965/1414573104532024e0101
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O que (não) é autoficção?: corpos que escrevem na pesquisa em educação, linguagem e teatralidades
Jean Carlos Gonçalves
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-15, dez. 2024
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O que (não) é autoficção?1: corpos que escrevem na pesquisa em educação, linguagem e
teatralidades2
Jean Carlos Gonçalves3
Resumo
O artigo apresenta algumas tentativas de negação ou interrogação, que possam mobilizar a
questão:
o que (não) é autoficção
? Considerando que nos campos de pesquisa em educação,
linguagem e teatralidades os exercícios de escrita são sempre atravessados e vinculados aos
corpos de seus autores, o artigo defende a ideia de que a autoficção no universo acadêmico
se quer e deve ser móvel, deslizante, errônea, inclassificável e imprevisível, assim como os
corpos que a escrevem. Sem o intuito de se constituir enquanto panorama dos estudos nas
áreas correlacionadas, o trabalho é de caráter ensaístico-bibliográfico e encontra em Bakhtin
e o Círculo sua principal ancoragem teórica.
Palavras-chave
: Autoficção. Corpo. Escrita. Bakhtin e o Círculo.
What is (not) autofiction?: bodies that write in research on education, language and theatricalities
Abstract
The article presents some attempts at denial or interrogation, which may raise the question:
what (isn't) autofiction? Considering that in the fields of research in education, language and
theatricality, writing exercises are always crossed and linked to the bodies of their authors,
the article defends the idea that autofiction in the academic universe wants and should be
mobile, sliding, erroneous, unclassifiable and unpredictable, just like the bodies that write it.
Without the intention of constituting itself as a panorama of studies in related areas, the
work is of an essayistic-bibliographical nature and finds its main theoretical anchor in Bakhtin
and the Circle.
Keywords:
Autofiction. Body. Writing. Bakhtin and the Circle.
¿Qué es (no) autoficción?: cuerpos que escriben en investigaciones sobre educación, lenguaje y
teatralidades
Resumen
El artículo presenta algunos intentos de negación o interrogatorio, que pueden plantear la
pregunta: ¿qué (no es) autoficción? Considerando que en los campos de investigación en
educación, lenguaje y teatralidad, los ejercicios de escritura están siempre cruzados y
vinculados a los cuerpos de sus autores, el artículo defiende la idea de que la autoficción en
el universo académico quiere y debe ser móvil, deslizante, errónea, inclasificable. e
impredecible, como los cuerpos que lo escriben. Sin ánimo de constituirse como un
panorama de estudios en áreas afines, la obra es de carácter ensayístico-bibliográfico y
encuentra su principal anclaje teórico en Bajtín y el Círculo.
Palabras clave
: Autoficción. Cuerpo. Escribiendo. Bajtin y el círculo.
1 Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Fagner Gomes do Nascimento. Doutorando em Letras
(FURG). Graduado em Letras Inglês e Português pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).
fagnernascimento01@yahoo.com.br
2 Trabalho realizado com o apoio do CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
3 Pós-doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP/CNPq). Doutor em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em
Educação pela Universidade Regional de Blumenau (FURB/CAPES). Licenciatura e Bacharelado em Teatro
pela FURB. Professor do Departamento de Teoria e Prática de Ensino da Universidade Federal do Paraná
(UFPR). Atua no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/UFPR) e no Programa de Pós-Graduação
em Letras (PPGLetras/UFPR). Pesquisador com bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq.
jeancarllosgoncalves@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/8274122800491884 https://orcid.org/0000-0003-2826-3366
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Introdução: Um eu que (nem) sempre sou eu?
Nenhuma memória é completa ou fiável.
As lembranças são histórias que contamos
a nós mesmos, nas quais se misturam,
sabemos bem disso hoje, falsas lembranças,
lembranças encobridoras, lembranças
truncadas ou remanejadas segundo as
necessidades da causa.
[...] Cada escritor de hoje deve encontrar, ou
antes, inventar sua própria escrita dessa
nova percepção de si que é a nossa.
De todo modo, reinventamos nossa vida
quando a rememoramos.
(Doubrovsky, 2014, p. 121-124)
Ontem resolvi levar meus filhos a uma pista de skate, aqui em Curitiba, onde
moramos. Era uma segunda-feira chuvosa e fria, dessa cidade tão cinza quanto as
ruas do centro recém asfaltadas por conta do ano político. Coloquei um tênis
adequado à pista e à prática esportiva, um boné preto de aba reta, uma calça e
uma camiseta do estilo regata, ambas largas e confortáveis, tudo para garantir
uma imagem minimamente próxima de uma personagem que não sou: um
skatista. Do mesmo modo, meus filhos se vestiram como pequenas skatistazinhos
e, cheios de marra, chegaram à pista como se isso fizesse parte de suas rotinas.
Não, não sou um skatista. Nem meus filhos são.
Somos skatistas, a depender do ponto de vista, de quem me vê, me analisa,
me devora com olhares, curiosidades, suposições. Invento-me como personagem
não a partir do meu figurino. Ao vestir-me de skatista, porém, reorganizo
posturas, modos de agir, gestos, dizeres, intencionalidades... Será?
Tentemos um novo jeito de narrar o fato.
Ontem, segunda-feira, meus filhos saíram da escola pedindo que eu os
levasse a uma pista de skate. Como estava chovendo demais, relutei um pouco,
mas acabei cedendo. Ao chegarmos em casa, rapidamente comemos algo e
trocamos de roupa. Por conta da chuvarada, além dos skates, que estavam sendo
carregados com alguma dificuldade, portávamos um guarda-chuvas verde e um
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preto com vermelho. Nos sentimos, enquanto íamos do estacionamento à pista,
dentro de um filme.
Dançando na chuva
, talvez. Mesmo com todos os cuidados,
percebemos que era inevitável pisar nas poças de água formadas nas calçadas
irregulares da cidade. Então resolvemos assumir o B.O. No caminho até a pista de
skate, nos tornamos bailarinos de dança contemporânea. Trajados como tal,
deixamos que o som da chuva embalasse nossos movimentos, feitos com nossos
objetos de cena: os skates e os guarda-chuvas.
Não, não sou um bailarino. Nem meus filhos são.
Sou um bailarino, a depender do ponto de vista, de quem me vê, me analisa,
me devora com olhares, curiosidades, suposições. Invento-me como personagem
não a partir do meu figurino. Ao vestir-me, porém, com roupas que um bailarino
contemporâneo poderia estar usando, reorganizo posturas, modos de agir, gestos,
dizeres, intencionalidades... Será?
Não. Nada disso é truque de escrita criativa, nem mesmo um artifício
narrativo para gerar no leitor alguma emoção ou sensação. Não é também um
exercício autobiográfico ou a aplicação de alguma metodologia para o trabalho
com histórias de vida. Não é, também, a vida narrada a partir de acontecimentos
verídicos ou baseados em fatos. Tampouco, a descrição experimental de uma
vivência.
Do que estamos falando, afinal?
Objetivo, com esse texto, mobilizar a noção de autoficcção a partir de
algumas tentativas de negação ou interrogação. Ao invés de afirmar ou responder
o que é autoficção?
, ofereço-me ao diálogo sobre uma pergunta entremeada por
um não, entre parênteses, que ao mesmo tempo é intrigante, justamente por se
apresentar de forma descompromissada, já que garante seu lugar fora do sentido
da questão, e também provocativo, que não pode se dar ao direito de ficar
invisível diante da indagação que intitula esse artigo:
O que (não) é autoficção
?
Para além da vinculação dessa perspectiva a um (relativamente novo) gênero
literário, busco compreender as contribuições do que temos denominado
autoficção para a pesquisa em educação, linguagem e teatralidades, campos aos
quais venho me dedicando algum tempo e que formam um tripé bastante
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coerente em meus estudos, orientações e projetos de pesquisa. Ao incentivar
orientandos e parceiros a se aventurarem na escrita autoficcional em suas
pesquisas acadêmicas, encontro, ainda, alguma resistência quanto à composição
dos quadros teóricos e metodológicos aos quais trabalhos dessa natureza podem
se vincular.
Importa frisar, desde já, que não me parece coerente que uma teoria ou um
método possam se configurar enquanto possibilidade suficientemente boa ou
eficaz para uma escrita autoficcional. Até mesmo os ensaios que tratam de
autoficção como gênero, na literatura, acabam fugindo de categorizações,
fórmulas ou filiações rígidas, já que a própria ideia de escrita autoficcional se quer
e se pretende (deve ser) móvel, deslizante, errônea, inclassificável, imprevisível, tal
como nossos corpos, que escrevem nossos textos-tentativa.
A quem me lê, que possa estar em busca de um caminho para entender
melhor a autoficção, compreender seus limites ou suas marcas, posso avisar, com
serenidade e tranquilidade, que esse não é o texto ideal. Não chegaremos, juntos,
nesse artigo, a uma conclusão ou a uma resposta ao título do ensaio. A quem
decidir me acompanhar, mesmo assim, convido a entrar nas próximas linhas e
parágrafos sem expectativas, como um skatista que chega na pista para ver no
que vai dar, ou como um bailarino de dança contemporânea num dia de chuva,
que simplesmente dança.
Sigamos.
A autoficção poderia se constituir como um processo inverso, uma espécie
de desaprendizagem proposital daquilo que um dia foi aprendido e apreendido
enquanto forma higiênica de se relacionar com o mundo e com os outros. Fui
ensinado, um dia, por uma perspectiva cristã, ditatorial e tradicionalista, a contar
a verdade, só a verdade e nada mais. Em um mundo onde só a verdade interessa,
o que será da verdade inventada, essa que realmente interessa?
Primeira tentativa: a autoficção (não) é uma verdade?
A verdade é, por si só, uma contradição, um dispositivo político de
adoecimento dos corpos, a quebra de qualquer possibilidade de invenção. Desse
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modo, descarta-se, para todo exercício autoficcional, qualquer compromisso com
o que se conhece por verdade, simplesmente porque ela não existe (ela existe,
para o sujeito apenas, que diz ser a verdade o que aprendeu ou o que defende).
Cabe dizer, ainda, que não me interesso, nesse artigo, por uma discussão filosófica,
sociológica ou linguística do termo
verdade,
embora saiba de sua existência e
produtividade no contexto acadêmico.
Interesso-me, talvez, porém com certa desconfiança, pela noção de não
realidade:
A particularidade principal do estético, que o diferencia nitidamente do
conhecimento e do ato, é o seu caráter receptivo e positivamente
acolhedor: a realidade, preexistente ao ato, identificada e avaliada pelo
comportamento, entra na obra (mais precisamente, no objeto estético) e
torna-se, então um elemento constitutivo indispensável. Nesse sentido,
podemos dizer: de fato, a vida não se encontra fora da arte, mas
também nela, no seu interior, em toda plenitude do seu peso axiológico:
social, político, cognitivo ou outro que seja
(Bakhtin, 2014, p.33).
O atrito entre realidade e ficção não pode, então, ser simplesmente
descartado. A fronteira parece, então, se apresentar como uma saída
minimamente coerente, que se entende, no senso comum, a ideia de ficção em
sua oposição à ideia de realidade. Pergunto: tudo o que é do campo da ficção não
poderia ser real? E o inverso. Tudo o que cabe no universo do que chamamos de
realidade deveria ser entendido como matéria não ficcional / não ficcionalizada?
Segundo Faedrich (2022, p.41), “A autoficção instaura-se no entre-lugar [...] entre a
autobiografia e o romance, entre o fato e a ficção, entre o verdadeiro e o falso,
entre o que aconteceu e o que poderia ter acontecido”.
Nesse limiar e, aqui mesmo no processo de investigação teórica e
metodológica, estão implicados práticas e discursos que podem ou não ser
proferidos/realizados em determinadas esferas de atividade. E a esfera acadêmica
é marcada por processos normativos, técnicos e gramaticais dos quais não nos
livramos tão facilmente. Como então escrever sobre si, por um viés autoficcional,
e fazer com que as dissertações, teses e demais relatórios/produtos de pesquisa
se constituam enquanto gênero não necessariamente vinculado ao real? Essa
pergunta é intrigante, porque subentende-se, por diferentes prismas, que o
produto das pesquisas que desenvolvemos em nossos cursos de graduação,
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mestrado e doutorado são textos-relatório, ou seja, que devem dar conta de uma
situação de pesquisa vivida e analisada, portanto, de uma realidade.
É necessário que se fale, talvez, de novos modos para se pensar o que é
pesquisa, ou mesmo que se questione o entendimento do que é fazer pesquisa e
sua função na atualidade. A quem nossos textos-corpo devem atingir? O que
queremos, mesmo, ao depositar depois de anos de estudo, nossas publicações
em repositórios e bibliotecas on-line? E ainda, o que a escrita desses textos pode
causar na gente, em nossos corpos?
Gosto, por exemplo, de pensar que é o corpo quem escreve.
E se o corpo escreve, não se pode ignorar uma boa dose de rebeldia e
transgressão (nesse caso, bem-vindas à escrita acadêmica). Estou partindo do
pressuposto de que o corpo é rebelde e transgressor sempre, em todas as esferas
de atividade, inclusive na escrita acadêmica.
Gosto, por isso, da noção bakhtiniana de
degradação do sublime
, que tomo
emprestada da obra
A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais
, escrita na década de 1940 e publicada na Rússia
em 1965:
[...] quando se degrada, amortalha-se e semeia-se simultaneamente,
mata-se e -se a vida em seguida, mais e melhor. Degradar significa
entrar em comunhão com a vida da parte inferior do corpo, a do ventre
e dos órgãos genitais e, portanto, com atos como o coito, a concepção, a
gravidez, o parto, a absorção de alimentos e a satisfação das
necessidades naturais. A degradação cava o túmulo corporal para dar
lugar a um novo nascimento. E por isso não tem somente um valor
destrutivo, negativo, mas também um positivo, regenerador. É
ambivalente,
ao mesmo tempo negação e afirmação (Bakhtin, 2013, p.19).
Embora o verbo
degradar
pareça, de início, forte demais para tudo o que é
canônico, sua (in)adequação é totalmente justificada quando o que se quer com a
pesquisa acadêmica é mais do que a reprodução de modelos instaurados,
históricos e tradicionais. Quando estamos diante de um esgotamento de
processos teóricos e metodológicos, que se mostram, de alguma forma,
ultrapassados e com pouco diálogo com a contemporaneidade, faz-se urgente a
pergunta: para quê, mesmo, serve a pesquisa acadêmica em educação, linguagem
e teatralidades? Degradar o que conhecemos, o que aprendemos, o que fomos
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ensinados a fazer, pode se configurar, então, enquanto uma possibilidade de
exercício de outros verbos, um tanto subutilizados nos contextos científicos de
educação, linguagem e teatralidades:
inventar, idealizar, fantasiar, imaginar, criar.
Corpos que escrevem são corpos que inventam, idealizam, fantasiam,
imaginam, criam. Mas qual o espaço que a academia tem dado à essa escrita feita
com nossos corpos? Temos conseguido escrever, com nossos corpos, por
perspectivas de movimento, de dança, de arte? Há espaço, nas feituras de nossas
pesquisas de graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado, para que nossos
corpos escrevam ancorados na utopia, no amor, no sonho e na esperança?
Escrevemos para quem e sobre quem?
Segunda tentativa: autoficção se escreve com o corpo (ou
não)?
Quando eu estava escrevendo o texto
O corpo que pesquisa corpo [Além do
Rio Azul]. Um posfácio
, publicado no livro
Corpo e(n)cena: ensaios urgentes
em
2020, me aventurei em um estilo de escrita, muito inspirado pelos tempos
pandêmicos, repleto de pausas, quebras e espaços para “contar” de mim ao leitor.
Pedaços, fragmentos e rupturas mostravam um Jean “real”, que precisava
interromper a escrita para atender os filhos, ou para simplesmente respirar:
Preciso, por exemplo, neste momento, parar de escrever para pegar uma
caixa de televisão e transformá-la em um escorregador. Isso é vital, e de
fundamental importância para que as crianças, aqui em casa, isoladas,
tenham uma tarde mais divertida.
Compreender as pausas.
As pausas fazem parte da vida do pesquisador. Logo, lutar contra as
pausas pode tornar-se um martírio para o corpo.[...] O corpo do
pesquisador precisa de paz. Mas a paz é, muitas vezes, negada pela
própria academia. A produtividade exacerbada e calcada em perspectivas
egoístas coloca no mesmo barco todos os pesquisadores, avaliando
“igualmente” os resultados das pesquisas, sem se importar com o corpo
e suas especificidades (tempos, ritmos, interrupções, doenças, cuidados,
etc.). Que artefato de tão difícil definição! o corpo do pesquisador que
pesquisa corpo.
Saber quando retomar (Gonçalves, 2020, p. 219-220).
Esse texto foi fundamental para que eu desenvolvesse, durante a pandemia
de Covid-19, um conjunto de novos significados para o meu trabalho docente e
tudo o que o envolve, especialmente aquelas atividades relacionadas à escrita. Tive
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que aprender a escrever no caos, e nesse processo, passei a testificar um corpo
presente no ato da escrita, e não no movimento dos dedos ao apertar as teclas
do computador. Passei a me perguntar, então, sobre o sentido da escrita
acadêmica, de uma forma muito profunda, pessoal e íntima. Eu já vinha insistindo,
com o grupo de pessoas que oriento, em formas de escrita que pudessem
degradar
o que se sabe ou se estabelece enquanto regra acadêmica para a
confecção de bons textos.
O que (não) é um texto acadêmico?
A pergunta acima deve ser tema de um de meus próximos ensaios. Mas,
nesse momento, figura aqui como uma dualidade para a qual não se pode dar
uma resposta pronta ou fácil. Alguém (talvez a banca, talvez um parecerista) dirá
se o nosso produto textual é adequado ou não, validado cientificamente ou não,
exemplar ou não. A subjetividade pulsa nos rituais universitários, sabemos. Mas o
que fazer com ela?
Poesia e afeto cabem na escrita acadêmica?
Numa obra poética, as palavras organizam-se, por um lado, no conjunto
das orações, do período, do capítulo, do ato, etc., e por outro, constroem
o conjunto da aparência do herói, de seu caráter. De sua situação, de seu
ambiente, de sua conduta, etc., e, enfim, o conjunto do evento ético da
vida, esteticamente formulado e acabado; com isso deixam de ser
palavras, proposições, estrofes, capítulos, etc. (Bakhtin, 2014, p.51).
Poderia, então, um autor de autoficção, escrever sem que seu corpo esteja,
de algum modo, envolvido e presente no juntar das letras que formam as linhas e
parágrafos e compõem a unidade-corpo do seu texto? Escrever uma autoficção
como produto acadêmico é lançar-se a uma aventura que não conseguirá se
efetivar sem que seu autor esteja totalmente engajado e curioso quanto ao
resultado de sua criação. No (des)equilíbrio entre revelar-se e criar uma
personagem que escreve sobre si, a autoficção se mostra enquanto gênero
imprevisível (ou ao menos mais imprevisível que outros), que nem mesmo o
próprio autor tem diretrizes de enquadramento ou adequação que possam ser
seguidas em seu trajeto de criação. Cada autor inventará sua própria autoficção, a
partir de suas particularidades, de seus manejos com a palavra, de suas
peculiaridades e necessidades de dizer/escrever. No fim das contas, o que quero
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(não) afirmar é que a autoficção é uma escrita que só pode ser feita com o corpo.
Corpos que escrevem são, assim, corpos que desencadeiam textos cheios de
vida, de encanto, de estesia, de sensibilidade. O apontamento, por alguém externo
ao processo autoral, de erros gramaticais, ortográficos, normativos, técnicos, de
concordância, parece menor diante da ousadia que se estabelece quando um
texto é escrito com o corpo inteiro. É nesse interim que a autoficção pode se
constituir enquanto lugar de uma escrita acadêmica outra, porque, em suma, o
sujeito autor está escrevendo sobre si, mesmo quando, nesse exercício, insere
personagens, cenários e figurinos advindos de camadas imaginativas e não reais,
mesmo quando sua própria personagem é fruto de um trabalho
performativo/teatralizado.
Escrever, academicamente, em perspectiva autoficcional, é inventar formas
de dizer sobre si totalmente descomprometidas com fatos verídicos. Qualquer
semelhança com fragmentos da história do autor pode ou não ser mera
coincidência e o leitor não precisa nem mesmo fazer esforços para desvendar
mistérios. Segundo Faedrich: “O pacto que se estabelece com o leitor não é o
autobiográfico, nem o referencial; é o pacto oximórico, próprio da autoficção”
(Faedrich, 2022, p. 39)
O acordo de quem escreve é também o acordo de quem lê, o que agiganta
a subjetividade, dando à metodologia da investigação acadêmica um caráter ao
mesmo tempo ousado e simples: basta que se diga que o texto é produto de uma
autoficção, e que se adequem alguns aspectos balizadores do que seu autor
entende desse conceito, que jamais será fechado, limitado ou delineado por
perspectivas categóricas.
Terceira tentativa: escrever autoficção (não) é um processo?
O presente texto nem de longe se pretende enquanto panorama ou
mapeamento dos estudos em autoficção (enquanto gênero literário) encontrados
na literatura vigente. Esta seria uma outra missão, realizada na forma de livro4.
Aliás a leitura de obras sobre autoficção pode ser de importante valia àqueles
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Ver Ensaios sobre a Autoficção
(Noronha, 2014) e
Teorias da Autoficção
(Faedrich, 2022).
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leitores interessados em uma iniciação ao gênero, em compreendê-lo enquanto
chave linguística. Aviso, porém, que até o momento, não encontrei escritos que
caminham na direção de definir a autoficção enquanto gênero ou conceito, nem
mesmo no universo da literatura, o que seria, de algum modo, uma contradição.
Pelo contrário, eles expandem possibilidades de compreensão do que pode caber
nesse nicho nunca obsoleto, nunca inerte e sempre em expansão.
Pensar a autoficção como potencialidade para a escrita acadêmica,
relativamente afastada do universo literário, implica ainda mais cuidado,
simplesmente porque não há, até o momento, um número suficiente de trabalhos
(teses, dissertações e artigos) realizados nessa perspectiva, que possam atestar
sua eficácia ou contribuição a diferentes campos de estudo.
No meu caso, comecei a sentir certa necessidade de um espaço para falar
de mim, de minhas angústias, expectativas e frustrações no contexto acadêmico,
após um episódio de assalto, sofrido em São Luis Maranhão, quando da 38ª
Reunião Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Educação ANPEd. Na ocasião, escrevi um texto intitulado
Um assalto em São
Luís/MA e outros fatos sobre mim: reflexões bakhtinianas sobre a formação
estética do professor
, publicado em 2018 (Gonçalves, 2018). Embora não tenha
recorrido, nesse momento, à noção de autoficção, compreendo que este foi um
primeiro exercício no qual pude descrever, não com exatidão, mas com alguma
pitada de criação e invenção, um fato ocorrido, do âmbito do real, por uma
perspectiva que chamei, à época, escrita teatralizada, elaborada na forma de sete
pequenas cenas, escritas e analisadas a partir de pressupostos teóricos de cunho
bakhtiniano.
Durante a pandemia, além do texto citado anteriormente (
O corpo que
pesquisa corpo
), escrevi o artigo
Espectador-running: recepção e comunicação em
tempos de isolamento
(Gonçalves, 2021), no qual relato um processo experimental
vivido durante o período de isolamento social, em que me constituo como a
personagem espectador-running, ou seja, alguém que assiste a espetáculos
teatrais on-line enquanto corre dentro de casa. Ao descrever as ações para, então,
analisá-las, me exercitei em uma escrita autoficcional, mesmo sem nomeá-la
como autoficção naquele momento.
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O gosto por um estilo de escrita que pudesse mesclar realidade, ficção,
memória, pessoalidade, invenção e narrativa me levou a escrever, em 2022, com
Michelle Bocchi Gonçalves, para o dossiê
Corpo e(n)cena e (des)educação
, desta
revista, Urdimento, o artigo
Weapon is a part of my body: Corpo e política em
discurso
(Gonçalves; Gonçalves, 2022a). Nesse texto, desenvolvido a partir do
espetáculo que intitula o artigo, de Pedro Granato e Ruthie Osterman, pensamos
o conceito de (des)educação estética e suas reverberações para os debates sobre
corpo e política na cena contemporânea, de modo que o ensaio tivesse
atravessamentos da nossa relação (dos autores) com a paternidade e a
maternidade que nos constituem. Embora não tenhamos adotado uma escrita
autoficcional, a aproximação com a fronteira entre realidade e ficção ficou
evidente tanto na descrição da materialidade quanto na própria análise.
Esse percurso com textos mais experimentais, aliado a orientações de teses
e dissertações assumidamente autoficcionais acabou desencadeando em mim e,
consequentemente, no grupo de estudantes que oriento e supervisiono, um
processo de insistência e investimento nesta perspectiva de escrita. Considero que
é no texto
Discurso teatral, corpo e educação estética: um passeio de bike
autoficcionado
, publicado em 2022 (Gonçalves, 2022b), que consegui me aventurar
de forma mais orgânica e, agora, assumida enquanto autoficção. Nele, relato e
analiso um passeio de bicicleta, realizado pela personagem
O Ciclista
(eu mesmo),
em Curitiba, compreendendo um trecho de 15 quilômetros, percorridos entre os
parques Passeio Público e São Lourenço, abordando, por exemplo, aspectos que
vão desde minha preparação para sair de casa até a experimentação vivenciada
na relação entre corpo e cidade.
Concordo com Bakhtin, para quem:
[...] o fato e a singularidade puramente fatual não tem o direito à voz; para
consegui-lo eles precisam transformar-se em sentido; mas não podem
transformar-se em sentido, sem ter adquirido unidade: um significado
isolado é um contradicto in adjecto (Bakhtin, 2014, p,16).
Alguém pode me perguntar, então, se existe uma maneira correta ou eficaz
para a escrita de um texto autoficcional. Minha resposta só poderia ser uma: não
existe. A autoficção não é um gênero com delimitações precisas, e está, ao meu
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ver, sua preciosidade. Caberá a cada autor alinhavar suas palavras, transformar-
se, assim como aos seus outros, em personagem, e transitar entre realidade e
ficção para oferecer ao seu público um texto que possa navegar entre pesquisa e
criação literária. Por esse motivo destaquei, nesse artigo, o meu próprio processo,
compreendendo-o como essencial para que hoje eu possa defender a entrada da
autoficção no universo acadêmico. Mas esta é a minha trajetória, e não será,
necessariamente assim, com as demais pessoas autoras que quiserem se
embrenhar nesse caminho.
Considerações Autoficção (não) precisa de conclusão?
Não. A não que ser que o corpo que escreve queira concluir.
Escrevo meu romance. Não uma
autobiografia, de verdade, coisa
reservada, clube exclusivo para famosos.
Para ter direito, é preciso ser alguém [...]
Não sou ninguém [...].
Quase nem existo, sou um ser fictício.
Escrevo minha autoficção [...]
Desde que transformo minha vida em frases,
me acho interessante.
Na medida em que me torno personagem
de meu romance,
me apaixono por mim. [...]
Minha vida fracassada será um sucesso
literário.
(Doubrovsky, 1990[1982])
Prefiro contar ao leitor que agora meus filhos se consideram mais skatistas
do que antes. Isso se deve ao fato de que foram matriculados em uma escolinha
de skate, com duração de três meses. Cada vez que saímos, às terças e quintas
de manhã, para a realização das aulas, algo no corpo das crianças muda, e elas
vão, assim, se adaptando, entre capacetes, joelheiras e cotoveleiras, à pista aberta
e imensa que não pode ser utilizada em dias de chuva. Eu, pai, e bem contente
com a personagem
O Pai
que estou criando onze anos sem saber bem o que
se tornará, vou todo orgulhoso ao Complexo Esportivo do Tarumã, em Curitiba,
registrando momentos, que se transformam, para além do afago na memória, em
O que (não) é autoficção?: corpos que escrevem na pesquisa em educação, linguagem e teatralidades
Jean Carlos Gonçalves
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-15, dez. 2024
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fotografias e vídeos que voam para as nuvens digitais. Ali sou outro, um
transformer
que esquece, por um tempo, da vida intelectual, das teorias, das
orientações e até mesmo que ao fim do dia possa merecer uma taça de vinho ao
lado de sua companheira, no conforto do lar.
Mas um fato interessante é que, ao escrever, agora, aqui, posso ter
autoficcionado a finalização desse texto. As coisas podem não ser bem desse jeito,
como descritas. Talvez eu esteja criando, com meu corpo, um método que me
pareça eficaz para fazer com que o leitor entenda o que quero dizer quando viro
a personagem
O escritor
(esse corpo que escreve) e pergunto:
o que (não) é
autoficção
?
Referências
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: o contexto
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Ensaios sobre a autoficção
. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2014.
Recebido em: 14/07/2024
Aprovado em: 25/08/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br