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A direção teatral e o contexto de produção -
Conversa com Marcio Abreu
Entrevista com Márcio Abreu
Concedida a Dionatan Daniel da Rosa e a Diordinis Baierle dos Santos
Para citar este artigo:
ABREU, Marcio. A direção teatral e o contexto de produção -
conversa com Marcio Abreu [entrevista concedida a]
Dionatan Daniel da Rosa e Diordinis Baierle dos Santos .
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 4, n. 53, dez. 2024.
DOI: 10.5965/1414573104532024e0501
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A direção teatral e o contexto de produção - Conversa com Marcio Abreu
Entrevista com Márcio Abreu - Concedida a Dionatan Daniel da Rosa e a Diordinis Baierle dos Santos
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-21, dez. 2024
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A direção teatral e o contexto de produção1 - Conversa com Marcio Abreu2
Entrevista com Márcio Abreu
Concedida a Dionatan Daniel da Rosa3 e a Diordinis Baierle dos Santos4
Resumo
Qual o papel do diretor teatral nos arranjos cênicos contemporâneos? A direção ainda pode
ser considerado um lugar de poder? É possível pensar autoralidade em criações cada vez
mais colaborativas nas quais o diretor nem sempre tem a palavra final? Em quais pontos do
processo criativo a direção e a produção se encontram e se separam? É possível pensar em
sistemas de criação ou ordens procedimentais que se repetem, quando se cria em contextos
multiculturais? Essas são algumas perguntas que nortearam a conversa com o diretor Márcio
Abreu no mês de abril de 2024, da qual o tema central foi a relação entre o contexto de
produção da cena e os procedimentos de criação do diretor teatral.
Palavras-chave
: Direção teatral. Procedimentos de criação. Contexto de produção.
Theatrical direction and the production context - conversation with Marcio Abreu
Abstract
What is the role of the theater director in contemporary theatrical arrangements? Can
directing still be considered a place of power? Is it possible to think of authorship in
increasingly collaborative creations in which the director doesn’t always have the final word?
At what points in the creative process do direction and production meet and separate? Is it
possible to think of creative systems or procedural orders that repeat themselves when
creating in multicultural contexts? These are some questions that guided the talk with
director Márcio Abreu in April 2024, in which the central theme was the relationship between
the production context of the scene and the creative procedures of the director.
Keywords:
Theatrical direction. Creative procedures. Production context.
La dirección teatral y el contexto de producción conversación con Marcio Abreu
Resumen
¿Cuál es el papel del director teatral en los arreglos escénicos contemporáneos? ¿Puede
seguir considerándose la dirección como un lugar de poder? ¿Es posible pensar en la autoría
en creaciones cada vez más colaborativas en las que el director no siempre tiene la última
palabra? ¿En qué momentos del proceso creativo se encuentran y se separan la dirección y
la producción? ¿Es posible pensar en sistemas creativos u órdenes procedimentales que se
repiten cuando se crea en contextos multiculturales? Estas son algunas de las preguntas
que guiaron la conversación con el director Márcio Abreu en abril de 2024, en la que el tema
central fue la relación entre el contexto de producción de la escena y los procedimientos
creativos del director teatral.
Palabras clave
: Dirección teatral. Procedimientos creativos. Contexto de producción.
1 Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Diego Spader de Souza. Doutorado e Mestrado em
Linguística Aplicada (UNISINOS). Licenciatura em Letras - Português/Inglês (UNISINOS).
2 Essa entrevista integra a Tese “Encenações relacionais”, financiada pela CAPES, realizada no PPGAC/UFRGS,
com orientação da Prof.ª Dr.ª Patrícia Fagundes.
3 Doutorando em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre pela
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Graduação em Bacharelado em Artes Cênicas pela
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Artista da cena e Professor. diouhp@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/6910513337512462 https://orcid.org/0000-0002-5304-8214.
4 Mestrando em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Graduação em Teatro
pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: diordinis.b.santos16@gmail.com
https://lattes.cnpq.br/3938441112979368 https://orcid.org/0000-0 002-5616-0631.
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Marcio Abreu
- Foto: Nana Moraes
Em 2022 iniciei uma pesquisa de doutoramento no Programa de Pós-
Graduação em Artes Cênicas, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, cujo
tema é relação entre o contexto de produção e os procedimentos de criação do
diretor e da diretora. Essa pesquisa é panorâmica e investiga, nos diversos modos
de produzir a cena teatral (em uma perspectiva que considera que produção e
criação não se separam) como as condições em que a direção trabalha
financiamento, disponibilidade de recursos humanos, espaço de ensaio,
características da dramaturgia (própria ou adaptada, por exemplo) é atravessada
por tais disposições.
Além da minha própria trajetória como diretor e professor universitário,
formando novos diretores, tenho registrado, através de conversas com outros
diretores e diretoras, de diferentes extratos, seus procedimentos de trabalho e
suas perspectivas sobre o que condiciona o processo de criação, e
consequentemente o como isso impacta no resultado dos processos. Uma das
conversas ocorreu no dia 12 de abril de 2024, através do aplicativo
Google Meet
,
com o diretor Marcio Abreu. Conhecido nacional e internacionalmente, ele
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pesquisa e investe em dramaturgias expandidas e noções contemporâneas de
encenação, buscando agregar aos seus trabalhos a diversidade de linguagens,
assim como dança, música e instalação.
Desenvolve seus mais recentes trabalhos junto da Companhia Brasileira de
Teatro5, situada na cidade de Curitiba, em que amplia sua dimensão de processos
colaborativos e hibridismos entre a figura do dramaturgo e do encenador. Tais
assuntos são trazidos por ele durante a conversa realizada, sob um olhar da função
diretiva, na qual Marcio discorre sobre autoralidade, autoridade, poder e como a
figura do diretor é vista e entendida no campo teatral contemporâneo.
Segundo a página do diretor na Enciclopédia Itaú Cultural:
o autor assina dramaturgia e direção de inúmeros trabalhos da
companhia com reconhecimento nacional, destacando-se Vida (2010),
pelo qual recebe os prêmios Troféu Gralha Azul de direção e dramaturgia;
Isso te interessa? (2011), texto de Noëlle Renaude (1949), que lhe rende os
prêmios APCA e Bravo! de melhor espetáculo do ano e Questão de Crítica
de melhor direção; Esta Criança (2012), do francês Joël Pommerat (1963),
sua primeira colaboração com Renata Sorrah e pela qual recebe o prêmio
Shell de melhor direção; KRUM (2015), texto de Hanock Levin (1943-1999),
mais uma vez com Renata e que lhe rendeu o Prêmio Cesgranrio e
Questão de Crítica de melhor espetáculo; e PRETO (2017), dramaturgia
em parceria com Grace Passô (1980) e Nadja Naira (Enciclopédia Itaú,
2022).
Durante a conversa, é perceptível, um dos traços estilísticos mais marcantes
da criação de Márcio: a importância do ator ou atriz para a composição da ligação
com o público. Como dramaturgo, ele escreve buscando “construções de frases e
diálogos que explicitam um endereçamento ao espectador” (Small, 2016, p.303).
Com uma certeza e delicadeza para se referir e entender o público como partícipe,
ele, por fim, abre margem para a dramaturgia da expectação, visto que suas
composições não são “uma chamada à presença, à atenção e à escuta, mas
5 A Cia tem uma produção constante que transita entre diversos países. Entre suas principais realizações,
estão peças com dramaturgia própria, escritas em processos colaborativos e simultâneos à criação dos
espetáculos, como SEM PALAVRAS (2021); PRETO (2017); PROJETO bRASIL (2015); Vida (2010); O que eu
gostaria de dizer (2008); Volta ao dia… (2002). ainda uma série de criações a partir da obra de autores
inéditos no país como Krum (2015) de Hanock Levin; Esta Criança (2012), de Joël Pommerat; Isso te interessa?
(2011), a partir do texto Bon, Saint-Cloud, de Noëlle Renaude; Oxigênio (2010), de Ivan Viripaev, Apenas o fim
do mundo (2006) de Jean Luc Lagarce; Suíte 1 (2004) de Phillipe Myniana. Suas criações mais recentes são:
uma adaptação da obra Platonov de Anton Tchekov intitulada POR QUE NÃO VIVEMOS? (2019); e o projeto
VOO LIVRE (2023), também inspirado em uma peça de Tchekhov, A Gaivota, com direção de Marcio Abreu.
(Informações da página da Cia, disponível em https://www.companhiabrasileira.art.br/. Acesso em: 12 abr.
2024).
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uma chamada à elaboração. Entre o olho e a cena, trabalho feito e a fazer”
(Small, 2016, p. 308).
Abreu valoriza a economia de recursos, concentrando-se na essência da
narrativa e no desempenho dos atores. Em resumo, seu trabalho é caracterizado
pela sua abordagem colaborativa, sua experimentação estética e dramatúrgica.
Espero que com essas discussões supracitadas aqui seja possível ampliar estudos
e debates sobre a figura do diretor, seus procedimentos e modos de produção a
partir da trajetória e contribuições de Marcio Abreu.
Entrevista
Você está viajando agora com alguma coisa?
Bom, estou viajando com o
Sem Palavras6
, que é uma peça de 2021, acho que
foi, eu não me lembro mais. O
Sem Palavras
vai voltar para a Europa agora... no
mês de maio, então estou ensaiando, tem uma substituição e tem... estou
começando um...daqui a 10 dias, um ensaio de um trabalho novo, então eu estou
escrevendo. Fico numa dinâmica de pré-produção, de escrita.
Tu escreves tudo que tu diriges?
Tudo que eu dirijo tem uma dimensão dramatúrgica, mas nem sempre eu
escrevo... Eu montei outros textos de autores e de autoras diversas. Mas sempre
com uma intervenção dramatúrgica. Com certeza. A encenação e a dramaturgia,
para mim, são campos muito conexos, muito interseccionados, muitas vezes
indissociáveis.
6 Trata-se de uma ficção livremente inspirada no livro
Un appartement sur Uranus
, do filosofo espanhol
transgênero Paul B. Preciado, e nos escritos da autora e ativista brasileira Eliane Brum. Num apartamento
vazio, na duração de um dia, uma sequência de possibilidades de encontros. Personagens que estão sempre
em deslocamento e em transição passam por esse apartamento. Não sabemos de onde vêm nem para
onde vão. Tudo é transitório. A terra treme. As gramáticas se reformulam. Dentro e fora se invadem. Público
e privado se misturam. Tempo e espaço se transformam continuamente. Pessoas em movimento constante
se deparam com o outro provocando impulsos de vida, possibilidades de histórias, acontecimentos
inesperados, imagens de futuro. No entanto, no fim, veremos todos juntos: a imagem de uma multidão por
vir, numa vertiginosa reinvenção de linguagem (Cia Brasileira, 2024).
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Você comentou sobre a influência do contexto de produção no trabalho
do diretor e mencionou a transformação desse papel ao longo dos anos.
Como você vê essa mudança e a possibilidade de um trabalho autoral na
direção hoje?
São muitas questões complexas nas suas formulações. Historicamente, os
conceitos atribuídos no Ocidente à direção, que é uma noção ocidental, nunca
deram conta do fazer criativo nas artes vivas. É um campo dinâmico, que
necessariamente se transforma e transforma. Não é que não aceitem as reflexões
e estudos históricos, mas eles muitas vezes localizam a ideia de direção de
maneira limitada, seja no Brasil ou fora, em termos como era do diretor, era do
ator, era do processo colaborativo. A encenação, por exemplo, é um campo de
produção de pensamento em ação, e um espaço de autoria, mas a autoria aqui é
complexa e não pode ser vista apenas pelo prisma tradicional ou romântico. A
história das artes vivas no Brasil, por exemplo, é atravessada por múltiplos
referenciais, não apenas os europeus, o que desafia esses conceitos ocidentais.
Pensar teatro, performance, encenação e dramaturgia implica trazer para a
discussão parâmetros variados que refletem as especificidades de diferentes
contextos e movimentos artísticos. A encenação é mais do que a reprodução de
conceitos preestabelecidos; é uma escrita no real, mesmo com elementos
ficcionais. Não se pode falar de um teatro brasileiro ou europeu de forma
generalizada, pois cada contexto produz suas próprias articulações e modos de
pensar em ação. Portanto, a noção de autoria aqui deve ser compreendida como
algo que emerge dessa complexidade e não de um conceito restrito.
O conceito que você mencionou talvez não seja apenas romântico; ele se
aproxima de algo quase mercadológico, no sentido de atribuir uma espécie
de "marca" ao trabalho.
É, mas isso vem depois. Isso é depois.
Sim, é isso. Já é do nosso tempo.
Pós-moderno e pós-tudo, mas se a gente, sei lá, vai mais atrás, a ideia de
autoria também está ligada em determinado...
A ideia de gênio...
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E a um certo valor do espírito que é iluminado, ou uma seta de inspiração cai
em alguém e só aquele ser foi tocado pela possibilidade de criar algo. Então, tem
certa relação quase com uma religiosidade, que nunca me interessou muito. Mas,
evidentemente, eu lido com dimensões de autoria e me entendo também como
um autor, evidentemente, com a consciência histórica. E me insiro em mercados,
em estruturas sociais diversas. Sou lido de determinadas maneiras, assim como
leio outras e outros artistas também de modos diferentes. No entanto, o que me
interessa discutir sobre direção teatral tem a ver, sim, com a ideia de articulação
dentro dos campos diversos de linguagem, ou das linguagens. Inscrevendo
experiências, acontecimentos vivos no real, mas também em outros suportes,
também gerando possibilidades desses acontecimentos, dessas experiências,
terem outros fluxos, digamos, na vida, ela mesma. Só falando das artes vivas, mas
posso falar disso para além, mesmo pensando em dramaturgia, estou falando de
dramaturgia e encenação, pensando em teatro, dança, performance, artes
presenciais e vivas, mas também para falar disso em relação ao audiovisual,
por exemplo, ou às artes visuais. Então, entendo o campo da encenação conectado
de múltiplas maneiras com o campo da dramaturgia, que é o meu território, de
um modo bastante expandido e, sim, com diversas dimensões de autoria. Me vejo
como autor, muitas vezes, em maior diálogo com outras pessoas, em outros
momentos com menor diálogo.
Iniciei com uma pergunta muito complexa, acabei entrando direto no seu
processo atual, questionando sobre autoria.
Não. E, sim, é ingênuo, talvez muito, muito ingênuo e até pretensioso recusar
uma posição de autoria. E, também, politicamente questionável, porque você
precisa ser o corpo de uma voz. Naquilo que você faz. Tudo o que eu faço... Todas
as minhas criações têm lado, opinião, posicionamento, e, portanto, uma dimensão
política.
Que é a dimensão que interessa da autoria, na verdade, né?
Não só, mas é também...
Aqui no interior do Rio Grande do Sul, a direção muitas vezes ainda é vista
de forma rudimentar, com o diretor assumindo também papéis de
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produção e liderança. Como você a relação entre contexto de produção
e o papel do diretor?
Agora estou aqui pensando... Quando a gente começou a conversar, você
falou sobre estar mirando também na relação entre modos de produção e modos
de criação, como que uma coisa só...
Você separa isso?
Sim, separo os modos de criação e os modos de produção, mas eles
precisam coexistir no mesmo campo ético. Embora sejam distintos, influenciam-
se mutuamente. O modo de criação é determinante; se o processo criativo e o
modo de produção são baseados em princípios diferentes, sejam opostos ou
contrapostos, mas que não compartilham a mesma corrente, é difícil integrá-los.
Acredito que, embora diferentes e baseados em materialidades distintas, um
modo de produção deve corresponder ao processo criativo. Além disso, há vários
aspectos que você mencionou na sua reflexão, além dos quatro pontos que você
abordou.
Estou usando como referência, podem ser outros, claro. Mas eles não são
definitivos.
Eles são interessantes, mas é porque tem contextos. Alguém como Gerald
Thomas, que mora fora do Brasil, que é de uma geração de determinados
privilégios, desde os mais evidentes até os que a gente não sabe, não pode
imaginar, e pessoas que estão mais circunscritas às suas territorialidades de
origem, que têm pouco deslocamento, pouca circulação. O modo como as
referências chegam, de que maneira que elas leem o mundo e são lidas. Tudo isso
influencia tanto os modos de produção quanto a criação. E você falou que é
recorrente, mais nesses contextos específicos, associar-se à figura do diretor, ao
poder, ao poder do dinheiro, e tal. E isso é uma coisa interessante de pensar,
porque também existe uma tendência confusa, frágil e, às vezes, muito
contraditória de, ao negar, ao recusar a figura de uma diretora, de um diretor, esse
lugar de quem é chamado de diretora, ou se nomeia diretor, e tirar a ideia de poder,
ou recusar a ideia de poder, é ambíguo. Como que você considera o poder? O que
é o poder? Tem uma... Bom, é uma pesquisa de pelo menos três, de pelo menos
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cinco trabalhos últimos mesmo. Você... Se você perguntar, se for pesquisar,
digamos assim, as culturas ameríndias em sua profundidade, alto o poder, é muito
importante, mas em outro tipo de poder. O poder destituído de autoridade. Tem
um livro que gosto muito, que se chama
A Sociedade Contra o Estado
. É um
pequeno livro de um antropólogo chamado Pierre Clastres, francês, que pesquisou
os povos, as nações ameríndias, não no Brasil, mas principalmente no Brasil.
Ele desenvolve muito sobre essas noções de chefia. Na maioria, ou quase todos,
os povos indígenas, o chefe tem poder, mas o poder é destituído de autoridade.
Por exemplo, ele cita exemplos assim: no seu cotidiano existe o hábito de, ao final
do dia, o chefe endereçar uma palavra para a comunidade. Quando ele fala a
comunidade performa uma desatenção, um desinteresse. Conscientemente. Vira
de costas, conversa com outra pessoa, faz uma atividade, como se não estivesse
dando muita atenção ao que ele diz. Porque justamente o chefe, a chefia, o poder,
não pode ser confundido com a autoridade. Porque a autoridade é aquilo que
determina os abismos entre as pessoas, a inacessibilidade ou a submissão. As
pessoas não se submetem ao poder na história da humanidade. Elas se submetem
à autoridade, porque é a autoridade que manda matar, que dá o golpe de Estado,
que manda um bando de zumbis invadirem os palácios na Praça dos Três Poderes.
Entende? O poder pode ser lido e associado às instâncias sociais, humanas, na
nossa história, seja em outros tempos, seja contemporaneamente, de muitos
outros modos. E é uma ingenuidade dizer que eu, como diretor, não exerço poder.
Eu não tenho esse pudor, porque eu sei muito bem o poder que eu exerço. Não
digo obrigação, mas eu me vejo instado a não recusar esse poder que me foi
conferido, e que não por outras pessoas, mas por uma caminhada feita por
mim. Entende? Então, se eu ocupo determinados territórios, eu tenho que ser
responsável por esses territórios. Se eu falo de um lugar, eu tenho que ser
consciente da voz que eu profiro do lugar de onde eu falo. Eu não posso falar e
falar: "Não, eu não estou nesse lugar aqui!". Eu não posso afirmar ou produzir uma
imagem, um discurso, articular a linguagem de um lugar e falar: "Não, não,
desculpe, eu não ocupo esse lugar". Isso é hipocrisia.
Você está falando de um tipo de ética, não?
Não é um tipo de ética, é ética! Não é possível não exercer nenhum tipo de
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poder numa função de direção...
Não é nem isso, eu gosto dessa tua insistência em falar que é ingênuo
achar que é possível ser diretor negando o poder. A minha questão é: existe
uma noção de ética? Existe uma ética fundada sempre na mesma coisa?
Claro que não. Claro que não. É ética.
É? Como é que se ensina a ética para um diretor, por exemplo, né?
É um assunto gigantesco.
Como é que se ensina a ética para um diretor que está no começo da
carreira?
Mas, por exemplo, a percepção do lugar que você ocupa, a consciência sobre
ele implica em você assumir tudo o que significa ocupar determinados espaços.
Assim, plenamente. Isso é uma ética. Isso é um aspecto ético de quando você está
em determinados lugares, em que você tem voz, então você precisa falar, você
precisa tomar decisões, você precisa fazer instâncias diversas se relacionarem, se
articularem, você precisa lidar com uma multiplicidade de campos ao mesmo
tempo. É assim. E isso é um lugar de poder na sociedade, como ela se articula.
Agora, como você lê poder e como você ocupa lugares de poder no mundo? Você
ocupa de maneira absoluta, autoritariamente, exercendo autoridade, gerando
impedimentos, exclusões, impedindo as vozes, as ações, as falas, as
manifestações das outras pessoas, cerceando, sei lá? Aí é outra coisa, isso é uma
deturpação da noção de poder.
Eu acho a tua visão muito arejada já de direção.
Essa é a deturpação, e o fato de ser uma deturpação não significa que seja
uma exceção. Ela é muito recorrente. As pessoas e o universo exercem o poder
sobre as outras pessoas. Mas eu falando do que eu posso falar. Então, falando
da minha visão e da minha experiência.
Percebo que as ideias de algumas pessoas sobre o que faz um diretor
refletem uma visão de poder, como líderes autoritários, enquanto outros
preferem uma abordagem mais colaborativa. Como você essa dualidade
no papel do diretor?
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Mas você percebe que essas duas coisas, por exemplo... "Eu sou mandão, e
uma hora eu vou dizer o que eu vou fazer. E eu sou mais relacional, mais não sei
quê". São a mesma coisa?
Sim, sim. Com uma intensidade diferente, claro.
É a mesma coisa. Esse tipo de percepção do que é o lugar da direção está no
mesmo lugar. Sei lá, é um lado e outro do bordado. É a mesma coisa, no fim das
contas, porque não é sobre isso. Porque, isso é exatamente o sintoma social, que
nenhum de nós está isento disso, de ficar mistificando o poder. Porque não é sobre
isso. É óbvio que numa função de direção você vai ter que tomar decisões, e você
vai falar sim. Por mais horizontal... Eu detesto essa... É porque tudo isso não
conta. Não é horizontal, tem vários vetores, é horizontal, é vertical, é transversal,
é diagonal, são partilhas, são conexões que são rizomáticos, se de muitos
modos. As relações não podem ser colocadas nessa chapação, entende? Eu tento
escapar disso. Então eu não tenho relações horizontais. Não tenho. Ao mesmo
tempo que é sendo horizontal, tem outro momento que está vertical, eu não sei.
Entende? Não me cabe esse lugar. Unível. Eu não consigo me relacionar assim.
Então é óbvio que, em alguns momentos, num processo criativo, você, como
diretora, diretor, vai falar: assim e não passado. Isto aqui está decidido desta
maneira". Você aponta caminhos e você se relaciona com os atravessamentos
disso que você dispõe como possibilidade criativa junto com as outras pessoas. E
isso muda, tem variações constantes, depende de cada processo. E uma coisa não
é pior do que a outra. Aí a pessoa não precisa ser chamada de tirana, porque ela
tomou mais decisões nessa do que naquela. Sabe, isso é de uma adolescência
intelectual, que é muito difícil de entrar nessa discussão. Porque é adiar muito o
que de fato importa, que é como você articula as linguagens, o que você faz para
passar a existir algo que não existia antes, com que elementos você convive. O
que você coloca em convivência, em coexistência. Como você lida com princípios
tão diversos da linguagem como a dimensão cultural da palavra, mas também a
sonoridade das linguagens e das palavras, e o espaço, e a memória, e o corpo de
uma pessoa que também já é escrito, já é cheio de... Já fala sem falar, já diz, sem
dizer...? Como que você gera movimento, fluxo, articulação? Tudo isso é o que
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importa. É lidar com as materialidades diversas. É um campo de articulação de
linguagens. Eminentemente material. E, quando estou dizendo material, não estou
tirando do contexto as sensibilidades, a memória, aquilo que é imponderável de
cada pessoa, mesmo de você mesmo. Mas, sei lá, um elenco, atores, atrizes, uma
equipe que você está trabalhando...Talvez a coisa mais complexa no trabalho de
direção tenha a ver com como estabelecer as relações.
entra a grande questão, que é a orquestração das relações interpessoais.
É que se você fica nesse nível, digamos assim... Nem intelectualmente,
psiquicamente, emocionalmente adolescente, ficar achando que é poder, mas
ocupando um espaço de poder. Existem espaços de poder em qualquer situação.
Você precisa desmistificar o poder. Ninguém pode fazer tudo. A ideia de que uma
criação é coletiva, no teatro, nas artes vivas, isso é evidente, isso não é uma opinião.
O teatro é eminentemente coletivo. Não é assim, ah, eu acho que aqui... Não tem
acho. É coletivo mesmo nas relações de trabalho mais hierarquizadas, ainda assim
é coletivo. Pega um modo de criação, produção do início do século XX ou metade
do século XX: um autor escreve, o produtor compra os direitos, contrata um
diretor, que escolhe um elenco, que escolhe... Entendeu? Essa hierarquia... Mesmo
assim, a diversão coletiva perdura, permanece, está, não tem como.
Vem na minha cabeça a seguinte ideia: a literatura que a gente tem sobre
direção não conta de falar sobre isso. Você concorda?
Não, de jeito nenhum. Não mesmo, porque existe um rancor histórico.
Dessa atividade, desse lugar. O problema não está em quem ocupa esse lugar, que
é um lugar de poder. É muitas vezes em como se esse lugar de fora. Outra coisa
que acho importante discutir, tem a ver lateralmente com isso, é sobre esse senso
comum de entender a direção como o olhar de fora.
Isso é boa parte da literatura que a gente tem.
E isso não tem nada, sei lá, nada mais redutor.
É o diretor como espectador de produção. Aliás, é o diretor como
espectador de profissão.
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Isso não existe. Não existe. Eu até vi em algumas falas, aulas, palestras, sei
lá, até textos que eu escrevi. Eu falo muitas vezes sobre isso, porque até
provocando, talvez até exageradamente muitas vezes, mas com o intuito de dar
uma provocada, porque, no fundo, se for para falar de olhar, o olhar do diretor é
talvez olhar mais de dentro possível, porque é olhar no entre, no entre as pessoas,
no entre as relações, as dinâmicas de criação diversas, as linguagens diversas. E,
evidentemente, que existe a necessidade nessa função de você... Uma palavra que
eu posso usar... não é aprimorar... mas afinar, estimular os seus mecanismos
perceptivos, capazes de fazer escolhas estéticas. E para fazer escolhas estéticas,
você não precisa estar olhando aquilo de fora como se você estivesse de fora
daquilo, como se aquele objeto fosse alheio a você. um movimento, em
determinados momentos no processo criativo, há um momento de proximidades
e distanciamentos, evidentemente. Agora, muitas vezes, em determinadas fases
de processo, eu paro de olhar e escuto. Eu fico muitos ensaios escutando,
dependendo do trabalho. O meu trabalho é muito sonoro, assim como as
dramaturgias que eu articulo com as quais eu trabalho, o que eu escrevo, são
bastante sonoras. E não sonoras em relação à música, especificamente, mas
também em relação à música. Então, essa ideia de olhar de fora quer impor e
impõe historicamente, a essa figura, direção, diretor teatral, o lugar morto. Que é
uma coisa que nunca fiz, mesmo em projetos mais de encomenda, em que vou
fazer um trabalho para o qual sou convidado, porque a maior parte do trabalho é
um caminho que fui percorrendo. São trabalhos que são meus, meus com as
pessoas com quem eu trabalho, com artistas que são interlocutores. Com a minha
companhia, que também não é um conceito fixo de companhia dinâmica, não é
um grupo de teatro, mas são pessoas diversas de diversos lugares, que passam,
mais um movimento entre um grupo. Essas afinidades, pessoas que você vai
encontrando e você vai criando diálogo, e afinidades, e mesmo interlocuções por
oposição. São provocações, então tudo isso você vai...
Você falou sobre convivência com o diferente. Como o papel do diretor
ao abordar temas difíceis, como por exemplo violência doméstica,
especialmente em contextos resistentes?
A direção teatral e o contexto de produção - Conversa com Marcio Abreu
Entrevista com Márcio Abreu - Concedida a Dionatan Daniel da Rosa e a Diordinis Baierle dos Santos
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-21, dez. 2024
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Isso reverbera, está falando da realidade das pessoas.
Será que não é cafona pensar dessa forma?
Cafona é bom.
É um cafona bom, mas... parece meio, assim, velho, você não acha?
Não acho, não. Não acho, acho que essas... essas ideias, assim, elas estão...
é... Claro, você pensa linearmente, então, o que era revolucionário, fez sentido
num período histórico, mas eu acho que essas coisas retornam, habitam, estão
aqui ainda. Tem um monte de coisa que ainda não superou e a gente precisa fazer
diversas revoluções que a gente ainda não fez. Mas, acho que... de um modo geral,
as pessoas não sabem o que faz um diretor.
Não sabem!
Não é só no interior. As pessoas não sabem.
Confunde com o produtor, confunde com o dramaturgo, que pode se
confundir, não é um problema.
É. E por que também tem isso? É uma figura que em tese, aparece menos,
em tese, né? Ao mesmo tempo, a partir, dependendo de como que você percorreu
os seus caminhos, aí você começa a ficar também uma cara conhecida.
Mas é emblemática, ela é sempre uma figura emblemática.
É, sempre querem te ouvir, dar sua opinião sobre várias coisas. É complexo
esse lugar, por isso que acho que tem tanto rancor, porque parece que é o lugar
para a organização do pessoal que manda nos outros. Às vezes é, mas tudo bem,
porque não tem essa relação. Claro, não estou generalizando, na história do
teatro momentos e pessoas que fizeram coisas terríveis. Tiveram
comportamentos tirânicos. Mas também ninguém fala da tirania das atrizes e dos
atores. Por quê?
Talvez por ser menos emblemático? Porque eu acho que, se tem um
código de ética...
Mas talvez seja mais recorrente, inclusive.
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Mas você concorda comigo que tem um monte de coisa escrita sobre o
ator e a atriz dizendo mais ou menos o que eles fazem? Ou devem fazer,
ou podem fazer?
E o ator e a atriz estão lá expostos de uma maneira mais evidente. O diretor
também está exposto, mas de uma maneira menos evidente. Assim, à primeira
vista, né?
Não, mas na teoria da performance, por exemplo, é uma coisa que eu acho
muito engraçada, eu discuto isso com meus alunos. Na própria teoria da
performance, a gente fala do performer. Mas tem alguém que está ali junto
com o performer. Pensando com ele. E essa figura é um diretor.
Um diretor. E se não tem outra pessoa, a própria pessoa. O diretor de teatro
acumula o trabalho, muitas vezes, do roteirista, do diretor de cinema e do
montador. Ou ele vai montar junto, mas ele pensou aquilo, sabe? É muito
dinâmico, Mesmo o cinema, dinâmico. O cinema tem uma coisa mais...
É mais desenhado, né?
É mais difícil escapar de um formato por causa do dinheiro, por causa do
modo de produção. Mas mesmo dentro dessa formatação, há uma ginga, assim.
Mas a gente escapa menos dessas... Às vezes a gente não tem muita
escolha.
É, no cinema é mais difícil escapar.
A gente acumula função com muita facilidade.
No teatro, com certeza.
O que você pensa sobre uma ideia de que não exista mais a formação
específica em direção, e que a direção seja um campo que a gente estude
em todas as formações?
É uma ideia interessante.
Talvez seja o caso de buscar entender e ter experiência em todas essas
áreas?
Alguém fez um roteiro, uma dramaturgia, que funciona mais ou funciona
menos, e só vai botando aqui.
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Acho que a literatura às vezes não ajuda a definir o que faz o diretor, não
acha?
Pois é, a questão objetiva é a mais... Eu não gosto de fazer também essa
categorização. Mas é mais fácil, é uma coisa que você define...
Não estou julgando, senão aparece o julgamento da qualidade do trabalho
dele.
Não é isso, porque, por exemplo, eu começo a lidar com coisas... Isso vai ser
assim... Sei lá, como que a coisa vai levantar? Quando vai se levantar, isso para
mim é um... Eu posso deixar até para o último momento, porque é muito parecido
com o meu processo de escrita. Eu fico lendo, articulando, pensando, convivendo,
de uma certa maneira, escrevendo, antes de materializar a escrita. Quando eu vou
escrever... entra no fluxo e aquilo tem sequência. A materialização de uma
encenação, de uma obra, vai se dando em vários níveis no processo.
Você tem um processo recorrente ou não?
Não tenho um método. Não é um método. Tem coisas que eu insisto nelas.
Mesmo que eu tenha muita coisa pronta, pensada, elaborada, no início do processo
eu faço o exercício de abandonar um pouco essas coisas para me relacionar com
o que está ali.
Mas em algum momento volta para essa...?
Volta, volta, eu vou fazendo esse diálogo assim, mas eu não vou pra uma
sala de ensaio para executar as coisas que eu pensei antes.
(risada) O oposto do produtor.
Eu não vou, não faço isso. Não tem coisa mais frustrante, é melhor, sei lá,
fazer... Aí eu preferia fazer outra coisa, eu preferia ser um analista de sistemas, ou
então produzir carros, desenhar um carro, ser um engenheiro técnico, uma coisa
assim.
É um operariado, né? Porque isso é meio que um operariado da direção,
assim.
Pois é, exatamente. O que me interessa é o processo criativo, né? E como eu
vou também responder ao próprio processo, né? Mas tem coisas assim como...
Podem parecer bobas, mas para mim faz diferença. Eu gosto sempre de
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interromper os processos. Nem sempre consigo, mas eu faço uma etapa, paro, e
depois descanso um pouco. É uma maneira de trabalhar também, afastado. E
depois volta.
À deriva, eu chamo isso de deriva, que são essas pequenas flutuações que
a gente faz, elas são super importantes. A escrita é um pouco assim
também a minha escrita.
A minha também. Coisas assim são frequentes. A escolha, a relação do lugar
onde eu vou ensaiar, é muito determinante pra mim. Não ensaio em qualquer
lugar. Não é exigência de luxo, não tem nada a ver com isso. Eu preciso entender
aquele espaço como um espaço que vai de alguma maneira estar no trabalho, não
tem como. O espaço vai aparecer de algum modo no trabalho.
Um dia eu vou te acompanhar num processo.
Tem uma coisa que eu não faço, mesmo quando trabalho a partir de textos,
ou textos mais clássicos, não importa, mas não tenho essa etapa de mesa, fora
da mesa. O ensaio é uma criação. Então, eu tenho um exercício, até tenho coisas
escritas, falei muito sobre isso, tenho uma longa conversa minha com a Eleonora
Fabião publicada na revista Sala Preta, revista que não existe mais, da USP, acho
que acabou. Então, tem um dossiê sobre o meu trabalho e tem vários artigos,
várias pessoas, e um, a Eleonora Fabião propôs que fosse uma troca de
correspondência entre mim e ela, uma espécie de performance, uma regra muito
precisa de correspondência entre nós. E isso foi transformado num eco-artigo, não
é ipsis litteris um o artigo, e foi publicado. E é muito legal essa... digamos, a
materialização dessa performance. E eu falo muito sobre isso lá, em outros
lugares, sobre a sala de ensaio. Também como desvincular... Claro, a gente pensa
no ensaio como uma sequência de dias que vão produzir o resultado que é a peça.
Então tudo que você faz ali é para produzir o resultado, é para gerar algo que está
(aponta para frente, sugestão de futuro). Em muitos casos, a pessoa vem para
executar o plano que está todo pré-definido, e em outros, como o meu caso,
não. Mesmo que eu tenha já pré-definido. Mas o que eu quero dizer é que eu faço
um exercício constante e mesmo não um exercício intelectual, mas prático,
através de uma maneira, de buscar maneiras de acionar a experiência de cada dia
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de ensaio como autônomo. Ele está contribuindo para construir uma coisa, mas
não é o objetivo principal. A gente está ali. Então, esse dia de ensaio tem que ter
musculatura suficiente para se sustentar com autonomia. Se a gente fosse
um dia, aquilo ali precisa ser um acontecimento significativo para todos nós.
É bem bonito isso, não?
A autonomia de cada dia. Então, são ensaios, é como se fosse um livro de
ensaios. Então, são 50 dias de ensaios, são 50 ensaios, movimentos ensaísticos,
assim.
Que é esse prazer do convívio daquele momento, assim, né? E que é
desse... Eu chamando de prazer, mas a gente pode chamar de outra
coisa.
É, mas é prazer também.
Você mencionou algo interessante sobre 'artes vivas'. Como você essa
ideia de vida nas artes?
As artes vivas, assim... A gente no Brasil chama menos, mas eu costumo me
referir, porque eu acho que o meu trabalho não está circunscrito a uma certa
noção de teatro quando as pessoas de modo geral falam teatro. E eu entendo
teatro para além dessa noção específica de teatro. E de teatro mesmo, porque o
teatro, assim como eu não entendo a dança, não me relaciono com a dança no
parâmetro da linguagem que cria muros, esses muros entre as linguagens, nunca
foi o meu interesse, o meu estudo, nem a minha prática. Então, eu... Estou sempre
nos entres, ou então transitando de uma coisa para outra.
Quem é que te colocou no teatro agora, então? Quem te definiu no teatro?
Não, mas eu faço teatro, mas o teatro que eu faço também muitas vezes é
vindo como dança, como performance...
Você faz um teatro, não o teatro, não?
É, teatro é sempre no plural, não existe teatro singular. E as artes vivas, eu
acho interessante nomear dessa forma, porque são as artes dos corpos vivos em
relação, no tempo e no presente. Isso é uma peculiaridade dessas artes em relação
a outras. Não é melhor, nem pior, mas arrisco dizer que no tempo esse agora que
a gente vive, elas se tornam mais urgentes, assim. Voltam a ser as artes vivas.
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Repisando de novo a palavra, vitais! As artes vivas, além de vivas, elas são vitais
para a saúde... pública! E eu acho que tem outra dimensão que gosto muito de me
lembrar, assim, sempre. Para mim, independente do modo... O teatro ou as artes
vivas são artes públicas. O teatro é público! Público em todos os sentidos. Não há
teatro que não seja público, mesmo quando é apropriado por um mercantilismo.
Mas é público. Tem que ser. Quando o teatro perde essa dimensão, ele perde o
interesse, ele perde a sua vitalidade, e ele também perde o vínculo com a sua
dimensão social. Quer dizer, eu não faço teatro para mim mesmo, nem para os
meus colegas. Não. O que interessa são as pessoas, é o outro. Não tem nenhuma
generosidade nisso. Até bastante egoísta o que estou dizendo. Porque é na
relação com o outro que você faz... Eu acho interessante para pensar isso que a
gente está conversando. Se tem uma ideia genial - bom, outro assunto longo, não
é sobre ideias, né? - Ideias, coisa mais, mesmo na literatura, eu sou muito ligado
à literatura também, enfim, ideia. Ter ideias e nada é a mesma coisa. Eu preciso
fazer teatro, criar uma obra. Claro, em algum momento todo mundo tem ideias,
muitas pessoas têm ideias sobre diversas coisas, toda hora a gente está
formulando ideias. Mas justamente o trabalho da encenação é quando você
abandona o campo das ideias e vai para o campo das materialidades, é quando
você entra na matéria das linguagens e move as linguagens. A palavra, os sons, o
espaço, a luz, o tempo, as territorialidades diversas, os corpos. A singularidade
desses corpos, a memória. E você coloca todos esses paradigmas da linguagem
em articulação. Move. E isso é uma dinâmica material. Então, a ideia foi. É a
mesma coisa quando você começa a escrever um texto. Tem uma hora, pode ser
diferente para cada pessoa, mas eu ouvi muitos escritores que eu gosto, que eu
conheço, que eu leio, e falarem algo parecido com isso, isso é verdade para mim,
não é uma pretensão. Eu sinto que, de fato, estou conseguindo escrever alguma
coisa quando aquilo que estou escrevendo, aquelas palavras que estou
escrevendo, já não são mais escritas por mim, mas elas se dizem, elas começam
a dizer para mim o caminho. Entende? Tem uma hora que o próprio texto começa
a se escrever ele mesmo. Tem algo que se estabelece como uma lógica, um
entendimento interno daquilo. E eu sinto assim também os processos de criação
de uma peça, no teatro. Aquilo vira um organismo vivo que adquire
potencialidades, narrativas, produtoras de imagens, de sentidos, e você precisa se
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relacionar com aquela matéria que tem vida própria. Quando acontece isso, é que
é bom. Às vezes não acontece.
Seria bom se sempre acontecesse, se a gente garantisse.
A busca é essa, nem sempre acontece.
O que você pensa sobre procedimentos como o ensaio de mesa?
Eu misturo com outras coisas, não gosto tanto do formato, às vezes eu fico
numa mesa, ou no chão, ou no sofá, sei lá. Inclusive, segundo alguns diretores
latino americanos, essa prática de parar para analisar é algo herdado dos
colonizadores. Eu trabalhei algumas vezes na França, e isso é muito evidente.
Trabalhei com atores franceses e eles querem que você diga, não tenha o
trabalho de análise, que é muito importante do texto, mas eles esperam de você,
que você ocupe esse lugar da decifração. Eles querem, eles esperam, eles não vão
fazer. Você tem que dizer o que eles vão fazer.
Eu acho que, na questão da posição no arranjo artístico, os europeus se
resolvem melhor. Talvez seja uma limitação metodológica deles. Bom,
estamos com duas horas de conversa, eu também não quero te ocupar
muito. E eu estou achando maravilhoso, mas eu sei que você deve ter
cansado também. Então, tem alguma coisa que você queira falar para
finalizar?
Não, acho que a gente falou bastante coisa. E você?
Não, eu achei incrível. Estou todo atravessado aqui
Referências
ABREU, Márcio.
ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras
. São
Paulo: Itaú Cultural, 2022. Disponível em:
https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa399416/marcio-abreu.
CLASTRES, Pierre.
A sociedade contra o Estado pesquisas de antropologia
política
. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
COMPANHIA BRASILEIRA DE TEATRO
. Disponível em:
https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa399416/marcio-abreu.
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SMALL, Daniele A. Por uma ética da desnaturalização: A nudez no teatro de Marcio
Abreu.
Sala Preta
. São Paulo, v. 16, n 2, 2016.
Recebido em: 28/04/2024
Aprovado em: 03/09/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
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