O outro é um eu
Alexandre Dal Farra
Florianópolis, v.2, n.51, p.1-21, jul. 2024
luta) para que o dito "outro" se coloque como o que sempre foi: um "eu"8 - e assim,
mais uma vez, resista às tendências múltiplas de re-enquadrá-lo nas demandas
que querem torná-lo mero anteparo de uma racionalidade extrativista que procura
se reafirmar.
Por fim, cabe dizer que focamos as análises deste artigo em situações
relacionadas ao campo da arte que Foster denominara
etnográfica
e seus
desdobramentos, mas o mesmo risco poderia ser analisado no campo do que ele
denomina como
arte abjeta
. No dois casos, que, nos seus desdobramentos,
parecem seguir sendo os dois campos mais frutíferos e dominantes nas artes,
parece ser necessário questionar as obras em relação à tendência de que elas
imaginem um lugar fixo para a verdade, em geral buscada em alguma espécie de
fora
(fora da consciência patriarcal; fora da subjetividade colonial). Neste caso,
talvez, ao contrário de procurar não jogar fora o bebê junto com a água do banho,
parafraseando o chiste de Slavoj Zizek, seria o caso de
garantir que o bebê fosse
jogado fora, para ficar apenas com a água suja
. Cabe
proteger
o sujeito anticolonial,
anticapitalista, antimachista, em suma divergente, justamente de
ter que ser
perfeito
; cabe garantir que ele tenha o direito a ser falho, incompleto, dubitativo,
incerto, que ele não seja um eu puro, mas permeado por outros - este, o legado
que vale a pena reter da racionalidade chamada ocidental: sua falibilidade. Estar
sem palavras tem sido, sim, um privilégio daqueles que as detém, mas esta
afirmação precisaria ser feita sem ironia: nossa tarefa é tornar este privilégio um
direito universal9.
8 Cremos que a essa altura já está nítido que o que questionamos neste artigo é muito menos a posição do
artista, e menos ainda a posição dos sujeitos em si, posto que é evidente que aqueles que foram
aprisionados como "outros" pela razão colonial nunca o foram de fato, sempre tratou-se subjetividades
que nunca deixaram de produzir visões de mundo complexas e singulares, arte, literatura, filosofia etc.
Como coloca Achille Mbembe, "Apesar do terror e da reclusão simbólica do escravo, ele ou ela desenvolve
pontos de vista diferentes sobre o tempo, o trabalho e sobre si mesmo. [...] Tratado como se não existisse,
exceto como mera ferramenta e instrumento de produção, o escravo, apesar disso, é capaz de extrair de
quase qualquer objeto, instrumento, linguagem ou gesto uma representação, e estilizá-la" (Mbembe, 2018,
p. 30). Desde a situação extrema da objetificação do outro, tratado como coisa, na escravidão,
evidentemente que isso não redunda numa coisificação de fato, ou seja, o "outro" nunca deixou de ser um
"eu". O que se quer ressaltar neste texto é justamente a forma como o sistema neocolonial de circulação
das artes encontra formas de, mesmo sob um discurso aparentemente anticolonialista e anticapitalista,
recriar-se no sentido de conservar o lugar privilegiado de um "eu" colonialista - ainda que embebido das
mais belas e humanistas intenções.
9 Como esboçado acima, creio que Sem Palavras, nos seus melhores momentos, fez exatamente isso:
alargou o espaço da dúvida, da palavra incerta, por vezes opaca, por vezes silenciosa, para vozes que não
costumam ter direito a elas. A obra, nesse sentido, não busca apenas as palavras em profusão, mas
também os silêncios, a falta de palavras, daqueles aos quais sempre foi impedida a fala.