Íon é um gênio!
Vinicius Torres Machado
Florianópolis, v.2, n.51, p.1-19, jul. 2024
não, mas que retorna de Epidauro, onde disputara uma competição de rapsódia
nas Asclepíades, festival do qual saíra vencedor. Sócrates, portanto, se encontra
com um artista que se destacou de seus pares, mas nem por isso deixa de tomá-
lo por um ingênuo.
Sempre que retorno a esse texto, me alegra ver o quanto o filósofo tem
dificuldade em desestabilizar o artista com seus questionamentos, tamanha é a
confiança deste último após a sua vitória no festival. Imagino Íon escutando as
perguntas de Sócrates, com um sorriso complacente no rosto, e acredito que ele
seja, dos interlocutores deste, um dos mais terríveis; não porque possui um
pensamento que desestabiliza o filósofo, como era o caso dos sofistas, por
exemplo, mas porque é portador de entusiasmo e de alegria.
Ao longo do diálogo, Sócrates continuamente questiona Íon sobre qual é a
sua techné5, um termo que tradicionalmente é traduzido para o português como
"arte" ou como "técnica", embora nenhuma dessas duas palavras possam dar
5 Halliwell (1998) indica que: "[...]
Techné
já havia se tornado a palavra grega padrão tanto para uma habilidade
prática quanto para o conhecimento sistemático ou experiência que lhe está subjacente. A gama de
aplicação resultante é extensa, cobrindo em uma extremidade do espectro a atividade de um carpinteiro,
construtor, ferreiro, escultor ou outro artesão manual semelhante, e do outro, desde pelo menos a partir do
século V a.C., a habilidade e práticas de retóricos e sofistas É, portanto, traduzível em diferentes contextos
como 'ofício', 'habilidade', 'técnica', 'método' ou 'arte', e [...] para denotar um tratado formal ou manual
contendo a exposição dos princípios de uma arte, à luz desses fatos linguísticos. Não é surpreendente que
no período clássico a palavra pudesse ser aplicada à habilidade do poeta, especialmente se levarmos em
conta o estreito alinhamento entre a gama de significados de
techné
e o uso do termo para atividade
produtiva,
poiésis
, que passou a ser empregado especificamente para poesia [...]. Se a
techné
e a
poiésis
se
restringiram originalmente a competências dirigidas a resultados materiais, de qualquer forma
desenvolveram-se de modo a tornarem-se capazes de designar uma esfera de atividade muito mais ampla,
e também de modo a denotar um tipo característico de disposição ou procedimento, ou até mesmo uma
estrutura teórica para o procedimento, tanto quanto um tipo particular de artefato.
Techné
implicava
método e consistência de prática; representava uma parte vital da base da inteligência prática e inventiva
do homem, em oposição às forças da natureza (incluindo quaisquer elementos incontroláveis na própria
natureza do homem). [...]".
Tradução nossa para: "[...] Techné had earlier become the standard Greek word both for a practical skill and
for the systematic knowledge or experience which underlies it. The resulting range of application is extensive,
covering at one end of the spectrum the activity of a carpenter, builder, smith, sculptor or similar manual
craftsman, and at the other, at least from the fifth century onwards, the ability and practices of rhetoricians
and sophists. It is therefore translatable in different contexts as 'craft', 'skill', 'technique', 'method', or 'art',
and [...] to denote a formal treatise or manual containing the exposition of the principles of an art. In the
light of these linguistic facts, it is not surprising that in the classical period the word could be applied to the
poet's ability, particularly if we take into account the close alignment between the range of meaning of
techne and the usage of the term Eu for productive activity, poiésis, which had come to be employed
specifically for poetry [...]. If techné and poiésis had originally been restricted to skills directed to material
results, they had at any rate developed so as to become capable of designating a much larger sphere of
activity, and also so as to denote a characteristic type of disposition or procedure, or even a theoretical
framework for procedure, as much as a particular kind of artefact. Techné implied method and consistency
of practice; it represented a vital part of the ground of man's practical and inventive intelligence, as opposed
to the forces of nature (including any uncontrollable elements in man's own nature). [...]" (Halliwell, 1998,
p.44-45).