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Torções do visível em
A emparedada da Rua Nova
da E Cia
de Teatro e Dança e
Este é meu corpo
de Janet Toro
Renan Marcondes
Para citar este artigo:
MARCONDES, Renan. Torções do visível em
A emparedada
da Rua Nova
da E Cia de Teatro e Dança e
Este é meu corpo
de Janet Toro.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 51, jul. 2024.
DOI: 10.5965/1414573102512024e0106
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A emparedada da Rua Nova
da E Cia de Teatro e Dança e
Este é meu corpo
de Janet Toro
Renan Marcondes
Florianópolis, v.2, n.51, p.1-25, jul. 2024
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Torções do visível1 em
A emparedada da Rua Nova
da E² Cia de Teatro e Dança e
Este é meu
corpo
de Janet Toro2
Renan Marcondes3
Resumo
O artigo investiga os desacordos temporais e espaciais entre o ato de exibição imediato e
compartilhado da performance e o ato de observação mais comum à teoria. Para isso, analisa
as obras
A emparedada da Rua Nova
(2017) da E² Cia de Teatro e Dança e
Este é meu corpo
(2019) de Janet Toro, que optam por inverter relações usuais de visibilidade na performance.
Demonstra-se como ambas lidam com a violência não como mero tema, tornando-a
constituinte da obra por meio de torções do que se faz visível para o público, e que seria
justamente o que ultrapassa uma relação afirmativa da demonstração performativa. Assim,
as obras convocam o público a uma experiência reflexiva de ordem teórica.
Palavras-chave
: Violência. Performance. Teoria.
Twists of the Visible in "A emparedada da Rua Nova" by E Theater and Dance Company and
"This is my Body" by Janet Toro
Abstract
This article investigates the temporal and spatial disagreements between the immediate and
shared act of performance exhibition and observation, more common in theory. To do so, it
analyzes the works "A emparedada da Rua Nova" (2017) by E² Theater and Dance Company
and "This is my Body" (2019) by Janet Toro, which choose to invert the usual visibility
relationships in performance. Through them, it is demonstrated how both deal with violence
not merely as a theme, but as a constituent of the work through twists of what is made
visible to the audience, which precisely surpasses an affirmative relationship of performative
demonstration and calls the audience to a reflective experience of theoretical order.
Keywords:
Violence. Performance. Theory.
Torsiones de lo visible en "A emparedada da Rua Nova" de la E Compañía de Teatro y Danza y
"Este es mi cuerpo" de Janet Toro
Resumen
Este artículo investiga los desacuerdos temporales y espaciales entre el acto inmediato y
compartido de exhibición de la performance y el acto de observación, más común en la
teoría. Para ello, analiza las obras "A emparedada da Rua Nova" (2017) de la E² Compañía de
Teatro y Danza y "Este es mi cuerpo" (2019) de Janet Toro, que optan por invertir las
relaciones usuales de visibilidad en la performance. A través de ellas, se demuestra cómo
ambas abordan la violencia no solo como un tema, sino como un componente de la obra a
través de torsiones de lo que se hace visible para el público, que precisamente superan una
relación afirmativa de demostración performativa y convocan al público a una experiencia
reflexiva de orden teórico.
Palabras clave
: Violencia. Performance. Teoría.
1 Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Diego Moschkovich - Mestre em Letras pela
Universidade de São Paulo (USP).
2 Este artigo integra a pesquisa de pós-doutorado “Violências sem sentido: o corpo em dor e risco em
performances de artistas latino-americanas”, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo (FAPESP) no processo 2023/09108-0. As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações
expressas neste material são de responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a visão da
FAPESP.
3 Pós-doutoramento no departamento de filosofia da FFLCH na Universidade de São Paulo (USP). Doutorado
em Artes Cênicas pela USP. Mestre em Poéticas Visuais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Especialista em História da Arte pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo.
renancevales@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/9183664052817549 https://orcid.org/0000-0001-8650-4151
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Ver e ser visto na era do desempenho
Divagar mais, divulgar menos
(Linn da Quebrada, I míssil)
Como não se deixar seduzir pela aderência da arte da performance, com seu
viés libertário, a uma sociedade cada vez mais individualizada e marcada pelo
imperativo do desempenho exibicionista de si? Por outro lado, como demonstrar
que a performance, quando no campo da arte, traduz-se também em formas que
duvidam desse mesmo viés?
Essas são perguntas que me acompanham muitos anos, mas que se
intensificaram após minha participação, em 2023, de um congresso de artes
cênicas com a comunicação de minha pesquisa de pós-doutoramento anterior.
Como eu estava investigando as possíveis intersecções entre o pensamento do
filósofo alemão Walter Benjamin e uma bastante recente arte da performance
produzida no sudeste brasileiro, me pareceu claro que, apesar de pesquisar obras
performáticas, o grupo de trabalho que melhor abarcaria a pesquisa seria um de
teoria do espetáculo e da recepção. Minha surpresa foi descobrir, no local do
evento, que o grupo não apenas tinha menos de cinco pessoas, mas que estava a
ponto de se extinguir (o que de fato aconteceu na mesma ocasião).
Para além da frustração de comunicar uma pesquisa para poucos pares e
sabendo das questões políticas, históricas e mesmo pessoais que
necessariamente estão envolvidas nessas dissoluções e fortalecimentos de grupos
e frentes de pesquisa – notei como o desinteresse pela teoria contrastava com o
sucesso dos grupos que prometiam uma suposta maior liberdade não nas
temáticas de pesquisa, mas também nas formas de transmiti-las. Como meu
tempo de trabalho durou menos do que o previsto, acompanhei em alguns desses
outros grupos as comunicações, dinâmicas e propostas, buscando um lugar em
salas abarrotadas para ouvir pessoas de diferentes locais do Brasil, com pesquisas
tão diversas quanto suas formas de apresentação.
Para além das qualidades e impasses de cada caso, havia uma ideia comum
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de que a teoria não conseguiria fornecer algo necessário para a pesquisa em artes,
sendo um espaço restritivo às liberdades individuais e violentando os fluxos dos
processos artísticos ao exigir uma forma que faria sentido dentro do espaço da
academia. Sem dúvida, alguns desses problemas devem ser pensados seriamente
(por exemplo, a imposição produtivista e quase maquinal de publicações). Mas as
recorrências de reclames ou negações pareciam se referir antes ao “receio, a
desconfiança, para não dizer o temor que provoca, mais do que nunca, toda
abordagem teórica” (Féral, 2015, p.17) no campo das artes.
Por outro lado, haveria na performance (com sua promessa libertária de
expressão individual e irritação das técnicas estanques) um espaço de superação
positiva dessas amarras, como se ela fornecesse uma “crença absoluta na
experiência, de que é possível um acesso imediato à realidade que, é bom
relembrar, é irrepresentável ou o reencontro com um eu, fonte mítica de
unidade”: justamente aquilo que Celso Favaretto (2023, p.64) critica na nossa arte
contemporânea. Seria então preciso encontrar uma nova forma de teoria, que não
conservasse seu suposto peso, melhor integrada à visibilidade imediata das
superfícies
touch
reflexivas e com um limite baixo de caracteres que a permitiria
ganhar na disputa pela atenção? Ou abandonar qualquer tentativa de abordagem
teórica, limitando-se à descrição dos processos e à livre aceitação das intuições,
em certa medida tornando o sujeito pesquisador o ponto de onde emana todo o
poder decisório sobre seus próprios procedimentos? Não seria preciso ao menos
recusar a teoria imparcial e objetiva (ver Foster 2013) cujos predicados
problemáticos já sabemos, abandonando-a em vista de uma teoria nova ou ainda
não ouvida?4
Anna Kornbluh (2024) amplia essa discussão, entendendo a anti-teoria como
um fenômeno próprio ao nosso tempo, marcado em todos os campos por um
4 Importante observar que esse movimento talvez não seja algo próprio ao nosso tempo, mas constituinte de
uma dissincronia fundamental entre teoria e prática, que estariam sempre em desacordo. Com uma maior
distância histórica podemos perceber, por exemplo, que mais de um quarto de século Josette Féral
se colocava questões semelhantes às abordadas por essa edição da revista Urdimento, afirmando que o
teatro teria cedido a diversas aberturas em suas práticas, o que gerou tanto uma ampliação quanto um
impasse de análise: Desse ponto de vista”, afirma Féral, “é claro que não há limites na compilação que pode
conter os estudos teatrais. Ganhou-se realmente muito em tal abertura, para todos os sentidos, da noção
de teatro? Difícil di-lo. Seguramente nós ganhamos nisso uma ampliação de nossas mentalidades, mas
também nos trouxe instrumentos mais preciso de análise, uma melhor apreensão dos fenômenos que nos
cercam?” (Féral, 2015, p.56)
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imediatismo
: “‘fluxo’ ultra-capitalista, de troca sem fricção, instantânea e
propulsiva que organiza a intensidade de circulação do século XXI”.5 O que ela
chama de anti-teoria seria esse estilo imediatista de teoria, “#semfiltro”, que visa
“esvaziar as dimensões especulativas, convocativas e generalizantes da crítica”,
tornando ilegítima a ideia de mediação em favor de uma “autenticação do saber
situado, a elevação da experiência pessoal, a suspeita de grandes narrativas, a
transposição da política em
ethos
, e a promoção de autoetnografias entre
disciplinas”. Para nossa discussão, interessa perceber como sua descrição do
imediatismo poderia facilmente parecer um discurso sobre o imperativo de
performance do nosso tempo, antagônico a uma função de mediação6 própria da
teoria:
[...] imediatismo é
presença temporal, intimidade espacial, populismo
epistêmico e intensidade experiencial, tudo congelado em uma estética
da aparência
[...]. Não fale pelos outros.
Não represente nada
. Não ofereça
conceitos.7 (Kornbluh, 2024).
Interessa-me aqui investigar os desacordos temporais e espaciais entre o ato
de exibição, mais próprio ao presente imediato e compartilhado da performance,
e o ato de observação, mais comum à teoria (a palavra, sabemos, tem na raiz grega
a ideia de olhar
através de
algo, de especular via observação, sendo também
próxima de “teatro”) e marcado por um descompasso fundamental com o tempo
presente. Segundo Materno (2003, p.37), a teoria “é sempre uma provocação às
diversas formas de defesa e de afirmação da espontaneidade e da imediaticidade”
que encontramos tão facilmente nos discursos sobre performance.
Para que possamos perceber como obras performáticas não apenas aderem,
mas também resistem aos imperativos da visibilidade, discutirei duas que me
5 über-capitalist “flow”, the frictionless, instantaneous, propulsive exchange that organizes twenty-first century
circulation-intensity. (Tradução nossa).
6 Segundo Kornbluh (2024), “a teoria examina as restrições às ideias impostas pela ordem material das coisas
e depois compõe ideias de qualquer maneira. A teoria não deve meramente reificar o que é dado
imediatamente; deve introduzir nas construções dadas aquilo que media que intercede, que subjuga, que
capacita”. theory examines the constraints on ideas posed by the material order of thingsand then
composes ideas anyway. Theory must not merely reify what is immediately given; it must introduce into the
given constructions that mediatethat intercede, that sublate, that capacitate”. (Tradução nossa.
7 Immediacy is temporal presence, spatial intimacy, epistemic populism, and experiential intensity, all
congealed into an aesthetics of apparency. [...] Do not speak for others. Do not represent anything. Do not
proffer concepts. (Tradução nossa)
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parecem propor uma torção em paradigmas de demonstração8: a dança
A
emparedada da Rua Nova
(2017), dos brasileiros Eliana de Santana e Hernandes de
Oliveira, da E² Cia de Teatro e Dança, e a performance
Este é meu corpo
(2019), da
chilena Janet Toro. Ambas tratam de violências locais, recuperando fantasmas de
sociedades ditatoriais e escravocratas, mas o fazem propondo que o público se
questione sobre seu papel de observador.
Como lembra Frazer Ward (2012), nos fundamentos da
performance art
nos
anos 1970 não encontramos a ativação democrática e lúdica do observador, como
hoje, mas sim a testagem de quais comportamentos nós toleramos em nome da
arte, através da construção de modos aversivos de comunidade que demonstram
que a presença do corpo na arte da performance não se basta na evidencia do
gesto autoral. Ao invés disso, a
performance art
sugeriria “que a presença não é
direta e que o corpo não é dado. Portanto o corpo fornece
uma garantia incerta
de experiência
” (Ward, 2012, p.10).9
Talvez precisemos não de novas teorias (movimento que não deixa de
responder ao imperativo mercadológico da novidade simulando mudança), mas
também de uma afinação do olhar, distante da obrigação do novo e focado na
política de nossas decisões de observação. Cabe aos artistas e ao público uma
abertura para habitar zonas desconfortáveis. Afinal, se a teoria parece uma parede
que impede o movimento livre, talvez seja porque ela nos demanda abrir buracos,
tarefa que se dá para além das nossas vontades.
Analisar essas obras, espero, pode mostrar como é ainda e sempre
necessário um movimento da reflexão e da teoria para abordar trabalhos que
recusam uma demonstração espetacularizada e unilateral do corpo e que não nos
dizem apenas aquilo que queremos ouvir ou que sabemos. Esse convite,
ressalto, não pressupõe uma bagagem de conhecimentos prévios que pudessem
ser aplicados ao que falta na obra, mas sim se perceber
dando de cara
com elas,
habitando um impasse em seu cerne que nos convoca à errância ao invés de
8 Discuti de forma mais extensa sobre tais paradigmas a partir dos anos 2000 no capítulo inicial “Como não
ser visto?” do livro
Desaparecer: ausências do corpo na arte contemporânea
(2023).
9 That presence is not straightfoward, and that the body is not a given. If follows that the body provides an
uncertain guarantee of experience. (Tradução nossa).
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demonstrar algo.
Esburacar sentidos
Um cadáver em estado de putrefação é encontrado nas terras do Engenho
Suaçuna. Este é nosso ponto de entrada na história da família Favais (que se refere
a um caso verídico noticiado em 23 de fevereiro de 1864), desestabilizada por
Leandro Dantas, que se envolve com Josefina Favais e sua filha Clotilde. A riqueza
e os contatos permitem ao patriarca Jaime Favais, quando descobre a traição da
esposa, armar o assassinato de Dantas. Porém, quando o cadáver do sedutor é
descoberto, João Favais, sobrinho português de Jaime que havia vindo para o Brasil
com interesse de se integrar à família, descobre que o tio foi o responsável pelo
crime. Nesse meio tempo, a filha Clotilde se descobre grávida do falecido e, a fim
de recusar as investidas do primo João, revela para a família sobre a indesejada
situação. Enlouquecidos pela necessidade de manter as aparências, seus pais não
apenas a amarram e a amordaçam em um banheiro, mas contratam um pedreiro
para levantar uma parede fechando a saída do cômodo.
Essa é, de forma bastante resumida, a narrativa do romance
A emparedada
da rua nova
, lançado em 1886 por Joaquim Maria Carneiro Vilela. Posteriormente
publicado em formato de folhetim, entre 1909 e 1912, ganhou ares de lenda urbana
em Recife, não apenas pelo tom policial ou por revelar, sem concessões, os
preconceitos que pautavam o cotidiano do Brasil do Segundo Império (ver Mercês
2018), mas principalmente por partir de uma história documentada em jornal,
gerando todo tipo de especulação sobre a veracidade da narração. Somava-se a
isso o fato de Vilela creditar Joana uma mulher que vivia em situação de
escravidão na casa da família Favais como fonte direta, em uma tentativa de
“legitimar a sua narrativa atribuindo a ela um caráter de depoimento” (Mercês,
2018, p.59).
É dessa obra que a E² Cia de Teatro e Dança parte para criar uma peça
homônima, com direção e interpretação de Eliana de Santana e direção de arte e
interpretação de Hernandes de Oliveira, artistas que pesquisam o “anônimo como
tema”, isto é, todo corpo que “tem muito a dizer e que não aparece para dizer”
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(Santana apud Portal Mud, 2016). A dupla parece pouco preocupada em ser fiel à
história do livro, e mais focada nos possíveis significados e efeitos da imagem de
uma mulher emparedada,10 forte a ponto de transformar a narrativa em um rumor
com força de lenda urbana: como afirmam na sinopse da peça, seu interesse está
nas “aparições, presenças momentâneas, espectros, fantasmas” e no “tema da
morte e do sobrenatural” (Corpo Rastreado, 2016).
A questão da invisibilidade pode vir do próprio livro, cuja narrativa é marcada
por violências físicas que não vêm de um desejo irracional de destruição do outro,
mas como
método para a manutenção de uma forma visível de estrutura familiar
que, no entanto, produz um resíduo, um efeito colateral da ordem do invisível: não
apenas alguém deixada para morrer em um lugar escondido, mas um
rumor que
só circula e ganha força ao longo das décadas pela sua própria impossibilidade de
comprovação
. Nesse sentido, a parede é a imagem central para se pensar na
contradição da forma pública da família com seu funcionamento interno na
sociedade brasileira oitocentista, presa entre os ideais liberais e a manutenção de
práticas escravocratas contradição que se mantém até os dias de hoje, aliás, em
diversos contextos.
Uma grande parede é também o elemento que organiza a dança. Feita de
papelão e tomando toda a área cênica de uma coxia à outra, ela se ergue perto da
boca de cena, iluminada por uma fileira de velas como ribalta. Com a luz trêmula
das velas, é possível ver que essa grande estrutura possui várias manchas pretas
em sua superfície, formando uma espécie de mapa. Porém, quando um corpo
passa retorcido por trás da parede, percebemos que as manchas são na verdade
buracos, rasgos deixando ver parte do fundo do palco. Santana, vestindo um
simples vestido longo, preto e opaco, passa lentamente do fundo para a frente.
No completo silêncio, seus calcanhares mal tocam o chão, como se fosse perigoso
pisar ali. Santana ficará na ponta dos pés descalços por muito tempo, remetendo
tanto ao imaginário da dança clássica quanto a um corpo fantasmagórico ambos
vinculados a noções de leveza, suspensão e mesmo superação do que é humano
10 O emparedamento é uma imagem recorrente na literatura, atualizando práticas sacrificais do período
romano ou medieval. Podemos citar, por exemplo, o conto
O Barril de Amontillado
(1846), de Edgar Allan
Poe ou o fim do romance
Malina
(1971), de Ingeborg Bachmann, que termina com a narradora entrando em
uma fenda que encontra na parede.
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no corpo (ver Boucier 2001).
Com a linha de velas próxima a seus pés e andando lentamente de um lado
do palco para o outro, Santana parece andar sobre o fogo, em uma imagem de
desafio e insistência que muito diz respeito à figura da emparedada Clotilde no
livro, que “preferiu o sofrimento à submissão” (Vilela, 2013, p.472). E, se foi preciso
uma torção do seu corpo para passar pela pequena fresta, essa torção também
será um mote coreográfico: seus ombros, sempre tensionados perto da cabeça,
dão início a lentos e contínuos movimentos de seus braços e mãos, como se
cavasse o ar para abrir mais e mais espaço. Essas torções, realizadas com o corpo
quase sempre enrijecido, podem sugerir a “natureza ardente e áspera, irritadiça e
arisca”, assim como a “irritabilidade intransigente e feroz” com que Vilela (2013,
p.472) descreve Clotilde, mas por vezes sugerem também gestos sociais: contar
um segredo ou carregar um bebe. Mas, apesar de serem associados com a
condição da mulher no período, são gestos fugidios, como se apenas rascunhados
pela artista como algo que se deve performar não junto de sua dança, mas
apesar
dela.
O silêncio é interrompido por
Lamento Della Ninfa
, madrigal de Claudio
Monteverdi (1963) que fala de uma mulher que vaga pela noite
Non have Febo
ancora/ Recato al mondo il dì/ Ch’uma donzell fuora/ Del próprio albergo uscì”
(Não havia Febo ainda/ Trazido ao mundo o dia/ Quando uma donzela afora/ De
sua própria morada saiu) e, transtornada por um amor traído, suplica para que a
matem:
Fache ritorni il mio/ Amor com’ei pur fu/ O tu m’ancidi, ch’io/ Non mi
tormenti più
(Faça com que retorne o meu/ Amor como ele se foi/ Ou tu me matas,
que/ Não me atormento mais)”. Ao som dessa música, Santana vai ao chão, e seu
corpo ainda enrijecido parece reviver após a morte ou se debater em seus
momentos finais, em ações como bater diversas vezes as costas contra o chão,
revelando um pó branco que sobe com o movimento e fazendo uma fumaça que
aos poucos recai sobre o corpo, manchando a pele negra e o vestido preto. Esse
corpo coberto de não apenas remete aos trechos do livro que narram o
emparedamento, como quando o pai “agarrou uma grande porção de cal
amassada e atirou-a sobre a tábua, colocando em seguida os primeiros tijolos que
deviam ocultá-la” (Vilela, 2013, p.493), mas também os trechos finais, quando esse
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10
mesmo pai é assombrado pela “figura branca e vaporosa de sua filha” (Vilela, 2013,
p.479), cuja pele, quando viva, era “de um moreno claro e corado – meio jambo e
meio pêssego” (Vilela, 2013, p.59), “produto de um cruzamento de raças” que “deu-
lhe ao espírito uma energia máscula e impetuosa” (Vilela, 2013, p.59). Vemos aqui
sugerida uma aproximação entre os escombros do emparedamento e a violência
dos processos de branqueamento da população brasileira. Apesar do
posicionamento progressista e abolicionista de Vilela em vida, o autor dedica
diversos momentos do livro a comentários sobre a raça das personagens, inclusive
para qualificar comportamentos e impor uma moral da mestiçagem: as
características de Celeste “acusam resquícios de sangue africano” (Vilela, 2013,
p.109), o corpo de Josefina era “de um moreno aveludado e macio (Vilela, 2013,
p.51) e o físico de Clotilde tinha
perfeição
material” (Vilela, 2013, p.52, itálico nosso)
graças ao citado “cruzamento de raças”. Leandro, por sua vez, era “espécimen
da raça
verdadeiramente brasileira
”, “produto etnográfico” da “raça europeia, a tupi
e a africana” (Vilela, 2013, p.225, itálico nosso).
Após essa cena, Santana enfim olha para o fundo do palco por um dos
buracos, colocando pela primeira vez uma questão central para a peça: nós do
público estamos no espaço público ou no privado? Ou seja, qual lado da parede
nos é mostrado? Essa questão se torna ainda mais presente no bloco final da
peça, quando Santana se vai pelo mesmo buraco de onde veio, até perdermos seu
corpo de vista. Surge então no canto do palco um homem (interpretado por
Hernandes de Oliveira) perto de uma mesa iluminada. Com tranquilidade, ele serve
água em um pequeno copo de cachaça e o leva “para trás” da parede, para onde
Santana foi.
Santana e Oliveira aparecem enfim do outro lado da grande parede. Agora,
ela aparece com os cabelos presos e um vestido rodado avermelhado, bastante
feminino e quase infantil, mimetizando padrões tidos como mais aceitáveis
socialmente. Sua dança e olhar agora são direcionados para o público. Com os pés
totalmente apoiados no chão e um duro sorriso no rosto, a artista se move de
maneira quase robótica, como uma bailarina de caixa de música, repetindo gestos
sociais agora mais definidos: uma torção da mão perto do peito ou movimentos
com os dedos próximos das têmporas (como se desse corda em si mesma). A
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estranheza da dança é intensificada pelo fato de que o homem que a trouxe de
volta permanece ao fundo, imóvel, observando-a de perto da parede.
A música que toca é
Viola Quebrada
(1972), tema popular recolhido por Mário
de Andrade e harmonizado por Villa Lobos, cantado aqui por Inezita Barroso. A
letra também remete ao emparedamento: “Fui encontrar com a Maroca meu
amor/ E eu senti na alma um golpe duro/ Quando ao muro no escuro/ Meu olhar
buscando a cara dela e não achou”. Mas, ao contrário da primeira canção, o eu
lírico é um homem, que diz: “Por causa dela sou rapaz muito capaz de trabaiar/ E
todos os dias/ Todas as noites capinar”. Chama a atenção não apenas a mudança
de gênero (mesmo que a versão usada na peça seja cantada por uma voz
feminina), mas principalmente a relação entre a mulher e o trabalho: é pelo sumiço
da mulher que o homem que canta pode trabalhar. E, após ouvirmos na letra “Pois
da flor que brilha e cheira a noite inteira/ Vem depois a fruta que gosto de
saborear”, o homem em cena leva Santana de volta para trás da parede, para sair
novamente com um vaso de rosas vermelhas que posiciona sobre a mesa. Essa
transformação da mulher de vestido de cores quentes em flores vermelhas sugere
ao mesmo tempo um clichê de gesto romântico, a violência no gesto de arrancar
uma flor, o luto com a recorrente colocação de flores em túmulos, mas também
um mascaramento da violência.
Se no livro resta vivo apenas o pai de Clotilde, no fim da peça esse homem
apaga pouco a pouco as velas com a ajuda de um pano, de forma muito objetiva,
aludindo às dinâmicas de poder implícitas no ato de iluminar ou não algo ou
alguém. Mas a vela não apenas ilumina, possuindo também diversos significados
simbólicos e sendo entendida por muitas religiões como ponto de conexão entre
o mundo dos vivos e o dos mortos. Assim, em contraponto a esse apagar rápido
da grande ribalta, uma nova vela se acende: no último instante vemos, pela
primeira vez do lado de da parede em um pequeno buraco, o rosto da mulher
a nos encarar (figura 1).