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Sobre coexistir, reparar e imaginar: notas
acerca das domésticas da performance
Giulia Palladini
Tradução: Denise Pereira Rachel e Diego Alves Marques
Para citar este artigo:
PALLADINI, Giulia. Sobre coexistir, reparar e imaginar:
notas acerca das domésticas da performance.
Tradução de Denise Pereira Rachel e Diego Alves
Marques.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 51, p. 1-32, jul. 2024.
DOI: 10.5965/1414573102512024e0702
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Sobre coexistir, reparar e imaginar: notas acerca das domésticas da performance
Giulia Palladini | Tradução: Denise Pereira Rachel e Diego Alves Marques
Florianópolis, v.2, n.51, p.1-32, jul. 2024
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Sobre coexistir, reparar e imaginar: notas acerca das domésticas da performance12
Giulia Palladini3
Tradução: Denise Pereira Rachel4 | Diego Alves Marques5
Resumo
Neste ensaio, a escritora, pesquisadora e educadora italiana Giulia Palladini nos convida a repensarmos
a saturação linguística decorrente do uso do binômio performance e política, ao propor aquilo que
designa como domésticas da performance. Para tanto, a autora recorre a noções não domesticadas de
doméstico, com o intuito de investigar modos de deslocar as políticas da performance para o âmbito
das domésticas da performance. Dessa maneira, a autora pretende demonstrar que sentir-se em casa
pode ser um modo de evocar a potência da performance de inventar outras formas de imaginar, reparar
e coexistir.
Palavras-chave
: Performance. Política. Doméstica. Coexistência.
On coexisting, mending and imagining: notes on the domestics of performance
Abstract
In this essay, the Italian writer, researcher, and educator Giulia Palladini invites us to rethink the linguistic
saturation resulting from the use of the binomial performance and politics, by proposing what she calls
the domestics of performance. Therefore, the author resorts to non-domesticated notions of the
domestic, with the aim of investigating ways to shift the politics of performance to the domestics of
performance. Thus, the author intends to demonstrate that feeling at home can be a way of evoking
the power of performance to invent other manners of imagining, repairing, and coexisting.
Keywords
: Performance. Politics. Domestics. Coexistence.
Sobre convivir, reparar e imaginar: apuntes sobre las domésticas del performance
Resumen
En este ensayo, la escritora, investigadora y educadora italiana Giulia Palladini nos invita a repensar la
saturación lingüística resultante del uso del binomio performance y política, proponiendo lo que ella
llama doméstica del performance. Para ello, la autora recurre a nociones no domesticadas de lo
doméstico, con el objetivo de investigar formas de mover la política del performance a la doméstica
del performance. De esta manera, la autora pretende demostrar que sentirse como en casa puede ser
una forma de evocar el poder de la performance para inventar otras maneras de imaginar, reparar y
convivir.
Palabras clave
: Performance. Política. Doméstica. Coexistencia.
1 Este texto, em inglês no original, foi publicado em Ana Vujanovic; Livia Andrea Piazza (ed.).
A live gathering
:
performance and politics in contemporary Europe. Berlin: b_books, p. 106-130, 2019. A presente tradução foi
realizada a partir do capítulo do referido livro.
2 Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Felipe Nartis. Graduando em Letras pela Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). Atua como revisor autônomo.
3 Professora, pesquisadora e escritora italiana. Tem colaborado como dramaturga em inúmeros projetos
artísticos e críticos na Europa e América Latina, em especial com o grupo colombiano Mapa Teatro.
giulia.palladini@gmail.com
4 Doutora em Arte pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Mestre em Arte pela
UNESP. Graduação em Educação Artística - habilitação em Artes Cênicas pela UNESP. Profa. na licenciatura
em Arte - Teatro da UNESP e professora de Arte no projeto especial para educação de jovens e adultos
(CIEJA) na rede pública de ensino municipal de São Paulo. d.rachel@unesp.br
http://lattes.cnpq.br/6061278186073290 https://orcid.org/0000-0002-9008-322X
5 Realiza pesquisa de Pós-doutorado na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Bolsista do CNPq
Brasil (processo nº 172768/2023-3). Doutorado em Artes pela Universidade de São Paulo (USP). Mestrado em
Artes pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Bacharel em Comunicação das Artes do Corpo pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). diegoam@unicamp.br
http://lattes.cnpq.br/6834688248007978 https://orcid.org/0000-0003-1971-695X
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Neste texto, proponho um pequeno deslocamento na abordagem entre
performance e política, ou ainda, das políticas da performance. Para começar, irei
remover um dos termos envolvidos neste binômio, as “políticas”, para propor
outro: “domésticas”.
Essa expressão não existe em inglês6, ou melhor, não é um termo que
qualquer um usaria no senso comum, enquanto um significante diretamente
associado a uma esfera distinta, como algo oposto às “políticas”. Ao falar de
“domésticas” aqui, encorajo a língua a evocar um sentido não usual em que: um
conjunto de atividades associadas a organizar, manter e habitar uma casa se
constitui como uma categoria em si mesma da mesma forma que a organização,
manutenção e habitação da
polis
o que não é algo dado, mas um campo de
disputa e imaginação. Ao retirar o termo política, ao menos no espaço deste texto,
não pretendo negar a potência política da performance. Pelo contrário, gostaria de
sugerir que, para explorar tal potência nos dias de hoje, precisamos primeiro
transpor uma certa saturação linguística que vem caracterizando esse binômio.
Não se trata apenas de uma questão terminológica: a relação entre a “política” e a
“doméstica” necessita ser cuidadosamente reconsiderada, tanto na política quanto
na arte.
A seguir, começo a esboçar uma reflexão em torno das possibilidades que o
deslocamento das “políticas da performance” para as “domésticas da
performance” implicaria, bem como exponho fragmentos de um tecido conjuntivo
que, espero, possam ser utilizados para um maior entrelaçamento entre
pensamento e práxis. Por essa razão, este texto é escrito como uma forma de
reconhecimento de campo: como se estivesse tirando as roupas de uma cômoda,
minhas próprias roupas e as de outros, lavando-as, experimentando-as, brincando
6 NT: É importante frisar que no senso comum do português brasileiro, o termo doméstica não é utilizado
apenas como adjetivo, mas também como substantivo, para se referir a uma categoria de trabalhadoras
reconhecida juridicamente no país desde 1972. No entanto, o pleno reconhecimento da igualdade de direitos
trabalhistas entre as trabalhadoras domésticas e os demais trabalhadores urbanos e rurais só foi obtido em
02 de abril de 2013, quando a Constituição Federal foi alterada graças ao que ficou conhecido como “Lei
das Domésticas”, fruto da intensa mobilização da categoria desde os primórdios do século XX. Cabe ainda
destacar que os postos de trabalho doméstico são altamente generificados e racializados, tendo em vista
que se trata de uma função desempenhada majoritariamente por mulheres pretas, pardas e indígenas no
Brasil. Desse modo, o uso do substantivo doméstica no senso comum da língua portuguesa brasileira não
pode ser dissociado das complexidades escravocratas coloniais características aos processos históricos do
país. Não por acaso, a referida promulgação da Lei das Domésticas foi considerada por boa parte da
categoria como uma espécie de segunda abolição da escravatura no Brasil.
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com as combinações e possibilidades de uso, remendando-as, empilhando-as e
me sentando sobre elas, construindo castelos precários ou camas temporárias,
embalando-as para viagens futuras.
A doméstica e a política
Ao mesmo tempo em que estou digitando estas palavras, uma estratégia
específica de detratação está sendo performada nas mídias sociais contra María
de Jesús Patricio Martínez, mais conhecida como Marichuy, candidata
independente que havia se registrado para concorrer à presidência do México nas
eleições de 2018, escolhida e apoiada pela coligação entre o Quinto Congresso
Nacional Indígena (CNI) e o Exército Zapatista pela Liberação Nacional (EZNL). A
candidatura de Marichuy é um acontecimento político extremamente relevante.
Não somente por ser a primeira vez desde sua fundação, em 1991, que o EZNL
apoia um candidato nas eleições presidenciais (até então, os Zapatistas tinham
desprezado a disputa pelo poder estatal, privilegiando uma estratégia de
resistência local e aquisição progressiva de autonomia e controle indígena sobre
recursos regionais); mas também, por se tratar de uma mulher indígena, em um
país em que tanto os povos indígenas quanto as mulheres têm sido
sistematicamente abusados, explorados e assassinados por séculos. Nascida em
Tuxpan no estado de Jalisco, Marichuy é uma herborista e curandeira conhecedora
das tradições, e tem sido ativa politicamente vinte anos no movimento indígena.
A estratégia escolhida para detratar Marichuy em redes sociais como o
Twitter
é insinuar que ela parece uma empregada doméstica. Vários comentários
irônicos estão relacionados a este: como ela seria adequada para “limpar” a
corrupção do país; como é estranho imaginá-la concorrendo às eleições ao invés
de preparando uma boa sopa. O preconceito de classe e o racismo a serviço dessa
campanha de detratação são indicativos de uma certa relação entre a “política” e
a “doméstica”, aparecendo acima de tudo no nível da representação, mas
implicando também em concepções específicas e julgamentos de valor em
termos das habilidades associadas a esses dois domínios. Essa mesma estratégia
facilmente permitida pela imaterialidade das redes sociais, também é importante
para “tornar pública” a violência doméstica. Por sua vez, a performance política de
Marichuy é importante para evidenciar uma força específica do campo das
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“domésticas”, que este texto procura abordar.
É verdade: Marichuy se parece com muitas empregadas domésticas que
trabalham nas casas mexicanas que são, justamente como ela, mulheres e
indígenas. Isto não é nem um insulto nem um segredo repentinamente revelado,
mas um indício da vergonhosa realidade na qual a sociedade mexicana, assim
como tantas outras, é baseada: a generificação e a racialização da divisão do
trabalho doméstico. Portanto, essa semelhança é um fato político: a própria
associação evidenciada pelos comentários racistas é uma das razões pelas quais
a candidatura de uma mulher indígena à presidência do México é tão importante.
Em termos de representação, seu corpo
brown
7, seu modo de se vestir, seu jeito
de falar são um escândalo. Ela possibilitou que tais comentários em relação a esse
escândalo expusessem um simples fato: “o rei está nu”. Isto retrata o trabalho
doméstico em uma casa, contudo, o problema político demonstrado pela
presença de Marichuy é muito mais amplo: o abuso e a exploração que
caracterizam as relações domésticas correspondem à expropriação da terra e a
destruição dos recursos naturais feitas pelo estado, que por séculos têm
prejudicado a vida das populações indígenas, não só no México como também em
outros lugares, as quais têm avisado acerca dos perigos dessa conduta em relação
ao planeta muito antes das mudanças climáticas se tornarem uma “questão
política”.
Ao tornar explícita a associação entre Marichuy e uma empregada doméstica
com o objetivo de questionar a capacidade da candidata de ser uma política, a
suposição subjacente por parte de seus detratores é de que: ela não está apta a
governar um país por ser uma estranha à política. Ironicamente, quando alguém
com uma carreira profissional de destaque fora da política por exemplo, um
empresário como Trump ou Berlusconi concorreu a pleitos eleitorais, o status
de “forasteiro” foi enfatizado pelos veículos de mídia que lhes eram favoráveis,
corroborando com o argumento de que alguém que era capaz de administrar de
forma bem-sucedida uma empresa estaria apto a governar da mesma forma um
7 NT:
Brown
é uma categoria racial mobilizada em países como os Estados Unidos da América, por exemplo.
Para a antropóloga Laura Moutinho, é importante considerarmos que toda categoria racial diz respeito a um
contexto social específico. Por isso, optamos por manter o uso do termo
Brown
tal qual utilizado pela autora
do artigo no original em inglês, ao invés de tentarmos buscar qualquer tipo de equivalência no contexto
brasileiro.
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país. Contudo, alguém que consegue manter uma casa de forma bem-sucedida
não seria capaz de governar um país: ela e muitas outras mulheres “parecidas
com ela” – pode muito bem ser útil na esfera privada, mas não na esfera pública.
No entanto, Marichuy não trabalha como empregada doméstica, ainda que
suas habilidades políticas, a expertise que adquiriu em sua atuação como
militante, definitivamente não se ajustem ao modo como a política é concebida
enquanto uma concorrência pelo poder estatal. De fato, ela traz habilidades
domésticas importantes para o campo da política, pelas quais tem lutado nos
últimos vinte anos e herdou essa mesma luta de membros da sua família para
definir que tipo de lar sua comunidade poderia imaginar em um território que
progressivamente se tornava tóxico e não familiar por conta da violência dos
investidores e das grandes corporações, favorecida pela aliança letal entre
criminosos e o poder estatal. Ela corporifica uma habilidade de
criar uma casa
mesmo quando esta casa é roubada, estorvada, violada uma habilidade de
reparação, a qual os povos indígenas têm praticado por séculos e que a mídia
internacional começou apenas recentemente a nomear como “política”. Criar uma
casa também significa criar uma câmara de ressonância para outras vozes: não é
de surpreender que, na mesma linha da estratégia comunicativa Zapatista,
Marichuy sempre aparece rodeada por outras mulheres indígenas que antecipam
seu discurso com o coro:
Todas somos Marichuy!
”. A “dignidade rebelde”8 pela
qual Marichuy milita não funciona na lógica da política, pelo menos, não da política
entendida enquanto um evento provisório. Ela não opera na lógica da
representação nem naquilo que ficou conhecido como democracia participativa.
Marichuy apresenta e representa ela mesma e um milhão de outras, pois ela
é
um
milhão de outras: suas domésticas não apenas trabalham para elas, mas por elas.
Ela é todas as empregadas domésticas que são evocadas pelos
tweets
racistas,
mesmo as que não votariam nela. Ela é todas elas, embora não represente uma
identidade, mas sim uma produção de subjetividade: uma política da subjetividade
que ganha forma e se transforma à medida que enfrenta novas urgências.
Ela também é todas as mulheres que serão mortas a partir de hoje e ao longo
8 Essa expressão aparece em um comunicado oficial do EZNL, “Que retiemble en sus centros la tierra” (Que
a terra trema em seus âmagos), October 14, 2016, http://enlacesapatista.ezln.org.mx/2016/10/14/que-
retiemble-en-sus-centros-la-tierra/.
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da campanha eleitoral, antes de 2018, uma após a outra, conforme continua
acontecendo por décadas no México, uma após a outra como na descrição
inacreditavelmente longa, aterrorizante, redundante, clínica, dos corpos femininos
encontrados no deserto de Sonora, empilhados uns sobre os outros de maneira
similar à sequência aparentemente infinita de páginas do romance
2066
de
Roberto Bolaño: uma após a outra, um espetáculo extremamente extenuante de
imaginar, em que o autor torna difícil para o leitor suportar de modo a não deixa-
lo esquecer o quão impossível é ainda falar sobre isso, ler sobre isso, pensar sobre
isso.
Marichuy não chegará nem perto de conquistar a presidência do México nas
eleições: ela não angariou a quantidade necessária de assinaturas para concorrer
à presidência e será, portanto, excluída da disputa eleitoral. Entretanto, suas
“domésticas” funcionam de acordo com outra temporalidade: não pode ser
mensurada de acordo com parâmetros de eficiência ou sucesso. É um processo
de aprendizado e construção de solidariedade, não somente em seu próprio país,
mas também além dele, em âmbito internacional. As suas domésticas delineiam
diferentes fronteiras de realidade, delimitando a esfera pública por meio do
esforço coletivo de nomear uma realidade possível, o que vem ocorrendo muito
tempo sem nunca ser reconhecido publicamente. Então, vir a público, é uma
performance dessas “domésticas”. Esse esforço coletivo, o qual é corporificado
atualmente na performance política de Marichuy, atua além da linguagem ou, mais
precisamente, funciona para
ilimitar a linguagem
, a das palavras e dos corpos, em
direção ao que talvez permaneça impensável, mas que, de fato, é perfeitamente
possível.
Por uma noção não-domesticada de doméstica
Derivado originalmente do latim
domus
, “casa”, o adjetivo “doméstica” define
literalmente aquilo que “pertence ao lar”. A palavra “doméstica” também é
utilizada para identificar atividades que ocorrem dentro de um país, como no caso
de um voo doméstico. outro significado é proveniente da associação desse
termo com a prática da “domesticação”, o adestramento de animais selvagens e
sua adaptação para convivência com os humanos. Além disso, em vários idiomas
a palavra “doméstica” é usada como um substantivo: designa uma função
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profissional e se refere à pessoa que é contratada para cuidar de uma casa,
tradicionalmente a empregada doméstica.
“Doméstica” é um termo carregado por uma longa história de desprezo: muito
associado a uma divisão do trabalho generificada e racializada, é um adjetivo
particularmente depreciado no capitalismo patriarcal. Também está inscrito em
uma ordem linguística aparentemente naturalizada, baseada em uma série de
dicotomias, as quais são historicamente construídas, mas raramente vistas dessa
forma: como por exemplo, a distinção entre público e privado, entre local e global,
entre reprodução e produção, entre criatividade indomada e banalidade cotidiana.
Assim, como sugere Elke Krasny de forma perspicaz, ao menos desde a
industrialização, e com a simultânea explosão do crescimento urbano, a
organização e a representação da atividade criativa masculina na vida pública
prosperaram por meio da separação prática e ideológica entre as esferas urbana
e doméstica. Tal separação se baseava de um lado em uma retórica calcada na
mobilidade, imprevisibilidade e liberdade enquanto qualidades intrínsecas à vida
pública (a obra
O pintor da vida moderna
de Baudelaire é um exemplo
emblemático dessa retórica) em oposição à segurança, à rotina e à estabilidade
da vida doméstica e de outro lado, pelo fornecimento de uma mão-de-obra
doméstica massiva, a qual ironicamente era constituída principalmente por
mulheres em deslocamento: pessoas que deixavam seus lares para trabalhar
como domésticas na casa de outras pessoas na cidade9. Este é um processo com
o qual estamos bem familiarizados, à medida que persiste na atualidade: a força
de trabalho do migrante global se constitui como um dos alicerces da economia
internacional.
Tão familiar quanto é o trabalho doméstico não remunerado que as mulheres
têm realizado em suas próprias casas séculos, durante seu tempo
supostamente livre: um trabalho de reprodução que, ao menos desde os anos
1960, ativistas e teóricas feministas (como Silvia Federici e a Campanha
Internacional pela Remuneração do Trabalho Doméstico –
International Wages for
9 Elke Krasny, “The Domestic is Political: The Feminization of Domestic Labor and its Critique in Feminist Art
Practice”, in Anna Maria Guasch, et al (Eds.).
Critical Cartography of Art and Visuality in the Global Age
(Newcastle-Cambridge Scholar Publishing 2014), 161-76.
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9
Housework Campaign
) e artistas (como Mierle Laderman Ukeles, autora do
Manifesto pela Arte da Manutenção
Manifesto for Maintenance Art
de 1969)
têm dado visibilidade e tratado como uma questão política crucial, tanto na arte
quanto na sociedade.
Desejo reivindicar o uso da palavra
doméstica
, levando em conta esse fardo
do desdém histórico e contrariando a ideia de que a “esfera doméstica” é algo
oposto à criatividade, à anomalia, ao estranhamento e ao desconhecido. Conforme
sugere Krasny, hoje mais do que nunca necessitamos reafirmar que “o doméstico
é político”10. Ao mesmo tempo, ao apresentar a ideia de “doméstica” também
desejo ampliar o doméstico para sentidos que não lhes são usuais e o que ele
pode representar de fato: um domínio radical da imanência, uma alternativa
possível para a flexibilização globalizada das relações e do trabalho, um posto
avançado para repensar o que um lar pode ser. Desejo inventar uma política de
uso diferente para o doméstico, reparando o destino dos seus dilemas e
imaginando um futuro possível de redenção para todas as atividades as quais essa
palavra pode evocar.
Também desejo desassociar a ideia de doméstico da noção de
“domesticação”, compreendida enquanto um processo de restrição, controle e
limitação, de acordo com o sentido que é enfatizado, por exemplo, por Deleuze e
Guattari, que ridicularizam constantemente o “doméstico” (em particular, mas não
somente, quando tratam de animais) em seu horizonte conceitual, contrapondo
“uma individualidade domesticada a uma multiplicidade selvagem” e relacionando
o doméstico com família tradicional e psicanálise.11 Aqui, desejo convocar uma
doméstica não domesticada
, uma doméstica selvagem, uma doméstica
imaginativa e imprevisível. Desejo conjurar uma doméstica além da família e da
psicanálise, uma doméstica que existe de fato em muitas realidades, a qual se
constitui, se mantêm e se defende por uma multiplicidade. Uma doméstica que
não se baseia na identidade, mas em um modo de ser que torna a vida humana
possível e desejável.
10 Ibid, 161.
11 Gilles Deleuze and Félix Guatari
, A Thousand Plateaus: Capitalism and Schizophrenia.
Minneapolis: University
of Minessota Press. 1987.
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10
Ao observar mais de perto, na verdade, a ideia de doméstica não domesticada
pode ter uma certa semelhança com o que Deleuze e Guattari denominaram
“ritornelo” (
ritournelle
): uma sensação temporária de lar onde o “lar não é algo pré-
existente”12, o traçado de um círculo que demarca um espaço interior no qual pode
se dar uma ação ao mesmo tempo em que se abre a um futuro “como uma função
das forças de trabalho que abriga”13. Como a “casa da tartaruga, no casco do
caranguejo” imagens domésticas anômalas em que Deleuze e Guattari evocam
diferentes estratégias de territorialização a ideia de uma doméstica não
domesticada também almeja manter “à distância as forças do caos que batem à
porta”14, criando um abrigo de distância linguística e crítica de um estado de coisas
predominante.
Ao pensar a respeito das “domésticas da performance”, desejo impelir a
imaginação para uma doméstica considerada
queer
como a casa na colina em que
moravam Albert e David Maysles, os dois protagonistas do documentário
Grey
Gardens
ex-aristocratas que hoje vivem em farrapos – cercados por guaxinins e
boás de pena, tramando estratégias alucinadas de sobrevivência entre uma pátina
de pó e de glamour impossível, constituindo de modo precário um percurso entre
a autonomia e o abandono. Ou ainda, a doméstica de Jack Smith, que encenou
em seu apartamento uma política radical e um embate poético contra aquilo que
designou “o mundo de aluguel”, mobilizando o teatro como uma tecnologia do
tempo contrária aos abusos do capitalismo sobre o espaço: o fenômeno
incompreensível o qual nomeou
landlordism
, a interminável (e na sua opinião,
ilógica) demanda de “pagar o aluguel que nunca pode ser pago”, ou concluir um
trabalho (que nunca pode ser concluído de fato) para que possa ser colocado em
um museu, em um livro, em um programa e ser associado a um nome, tornando-
se uma propriedade. A doméstica, nesse sentido, também é o espaço da
autonomia do trabalho antes que este possa ser considerado um produto em um
mercado específico.
Desejo evocar uma imaginação da doméstica que seja tão enigmática quanto
12 Ibid, 311.
13 Ibid.
14 Ibid, 320.
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11
carregada de sentido histórico, tão complexa e arrebatadora quanto a cena
representada pela peça teatral
Lippy
(2014) do grupo irlandês
Dead Centre
: a cena
é composta por quatro mulheres que, aparentemente por razões desconhecidas,
se trancam em uma casa e cometem suicídio coletivo, ou ainda, morrem sozinhas,
mas próximas, unidas pelo pacto de morrerem de fome. Esta é uma cena que o
Dead Centre
retirou do noticiário; é o fragmento de uma vida doméstica
desconhecida; é o devaneio impossível do leito de morte de quatro desconhecidas,
cujos corpos são, no palco, a matéria criativa de uma fantasmagoria doméstica
peculiar. “No ano 2000 em Leixlip, [...] uma tia e 3 irmãs se trancaram em suas
casas e embarcaram em um pacto suicida que durou 40 dias. Nós não estávamos
lá. Não sabemos o que elas disseram. Esta não é a história delas”15, o
Dead Centre
apenas comenta nas notas do programa da peça mas evidentemente, a
performance em si sugere muito mais.
Para além da psicanálise, para além até da possibilidade de fazer uma
distinção entre um indivíduo e uma multiplicidade, evocar em cena aqueles corpos
que escolheram morrer próximos uns dos outros, estranhamente faz presente
uma história doméstica específica: a fome, tão central na história da Irlanda; a
fome como uma metáfora para e como um efeito da miséria, mas também com
um sentido de resistência política, assim como em diversas greves de fome que
marcaram a história política irlandesa durante o último século. Não tenho certeza
se
Lippy
poderia ser apresentada, programada ou concebida enquanto “teatro
político”, mesmo por seus próprios autores. Mas algo a respeito dessa política
que me interessa em virtude da mobilização de certas domésticas. Interessa-me
precisamente porque “esta não é a história delas”: as mulheres em questão não
são dadas como objetos do conhecimento, nem são escolhidas para representar
uma biografia em particular ou a história política de um país. No entanto, elas
participam da constituição de uma espécie de conhecimento, que se em
fragmentos, em pedaços, utilizando utensílios domésticos, ferramentas que talvez
não tenham sido feitas para um uso determinado; assim como ocorre em uma
casa quando certos objetos, os quais poderiam ser considerados velhos ou
ultrapassados em um mercado, funcionam perfeitamente, adentrando outra
15 Cf. Dead Centre website, https://www.deadcentre.org/projects-1#/lippy/. Acesso em: 24 maio 2019.
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12
ordem de imaginação para o seu uso. Em outras palavras, o mesmo que acontece
quando uma economia de uso substitui uma economia de valor e formas
surpreendentes de conhecimento e habilidade são forjadas quase que por
acidente, não no trabalho, mas “em casa”.
Sentir-se “em casa”
O campo das domésticas a respeito do qual estou pensando não é dado, bem
como a ideia de casa não é dada: uma casa é algo complicado. Pode ser uma
questão de privilégio, de sobrevivência, pode ser um fardo, uma esperança, um
limite, um túmulo e muitas outras coisas. O reconhecimento e a configuração do
que é uma casa e como esta é organizada e sustentada, a questão em torno de
quem tem direito a um abrigo e sob quais condições, são todas questões de cunho
imaterial e profundamente material que estão implicadas com aspectos da
representação e do afeto, assim como com instâncias de comprometimento físico
e de exclusão. Atualmente, em uma época em que verbas gigantescas são
destinadas ao financiamento de grandes exposições acerca da “questão da
moradia”16 e de amplos projetos de pesquisa que investigam favelas, enquanto
pessoas são despejadas todos os dias de qualquer abrigo que queiram chamar de
lar, seja um prédio abandonado, uma praça ou uma ponte; atualmente, em uma
época em que mais uma vez locais estão sendo ocupados, mesmo que
temporariamente, fazendo com que a ideia de “casa” torne-se novamente uma
pauta pública: prédios, teatros, propriedades privadas abandonadas hoje mais
do que nunca, “o que é uma casa” também se coloca como uma questão política
central na vida e no teatro.
Entretanto, em que ideia de “casa” se baseia nossas “domésticas”? Como
falar de casa distanciando-se do sentimentalismo, do nacionalismo, de um
horizonte perigoso da identidade? Nessa empreitada, pode ser útil abordar
algumas considerações desenvolvidas por Suely Rolnik, que, ao escrever no final
dos anos 1990 e encarar o mundo e as formas de vida globalizados dos dias de
hoje, denunciou o desaparecimento de um afeto específico: o sentimento de “estar
16 Por exemplo, na House of World Cultures em Berlin, no ano de 2015, inspirada pelos ensaios de 1872 de
Friedrich Engels. Para saber mais cf.
https://www.hkw.de/en/programm/projekte/2015/wohnungsfrage/programm_wohnungsfrage/veranstaltung
en_108606.php Último acesso em 24/05/2019.
Sobre coexistir, reparar e imaginar: notas acerca das domésticas da performance
Giulia Palladini | Tradução: Denise Pereira Rachel e Diego Alves Marques
Florianópolis, v.2, n.51, p.1-32, jul. 2024
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em casa”. Ela não se referia a um abrigo físico (apesar de ser inegável que uma
quantidade crescente de seres humanos no planeta se encontre privada de um
lugar para viver), mas à “casa” compreendida enquanto “algo subjetivo, uma
consistência palpável uma familiaridade em determinadas relações com o
mundo, certos modos de vida, certos sentidos compartilhados [...]. Toda a
humanidade globalizada carece desse tipo de casa, invisível, mas que não deixa
de ser real”17. De acordo com Rolnik, uma das principais questões em jogo na
experimentação de diferentes modos de subjetivação por meio da produção
artística e do pensamento crítico, é articular uma possível “vacina” contra a
dominação neoliberal dos corpos e das subjetividades, desvinculando “a sensação
de consistência subjetiva do modelo de identidade”; deslocando “a si mesmo do
princípio figurativo-identidade na construção do ‘estar em casa’”18. Propor chamar
de “casa” uma consistência subjetiva diferente significa questionar tanto a
estabilidade e a ideia de fronteiras que delimitam um território, quanto convocar
práticas alternativas de percepção e habitação do mundo:
Construir um “estar em casa” na atualidade depende de operações que
estão bastante inativas na subjetividade ocidental familiar às formas
antropófagas em sua atuação mais recente: estar em sintonia com as
transfigurações internas ao corpo, resultando em novas conexões de
fluxos; surfar nos eventos acionados por tais transfigurações;
experienciar arranjos concretos de existência que incorporam estas
mutações palpáveis; inventar novas possibilidades de vida
.
19
Com uma perspectiva semelhante, proponho chamar de “casa” uma
estrutura de inteligibilidade afetiva e reconhecimento na qual a coexistência pode
ser imaginada. Isso parece particularmente importante quando pensamos
seriamente a respeito da migração e mais ainda em relação ao modo como esta
é tratada como uma temática, mas raramente confrontada enquanto uma questão
na arte contemporânea: a questão da mobilidade nesse contexto revela um
problema profundo de classe, que pode ser ampliado até abranger formas mais
ou menos conscientes de neocolonização. De fato, enquanto uma “oligarquia
17 Suely Rolnik, “Subjetividade Antropofágica”, in
Arte Contemporânea Brasileira: Um e/entre Outro/s
(São
Paulo: Fundação Bienal de São Paulo 1998), 137.
18 Ibid., 142f.
19 Ibid., 143.
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global”20 de curadores, artistas e trabalhadores de diferentes setores do ramo
cultural se desloca e atua livremente entre contextos e espaços de nacionalidades
diversas, com frequência um convite questionável é feito a pouquíssimos
migrantes para “representarem a si mesmos” no palco, de modo a fazer identidade
e subjetividade coincidirem e serem expostas em esfera pública. Portanto,
aparentemente existem dois regimes diferentes de mobilidade e representação
para aquilo a cujo respeito se é curado, falado e escrito, e aquilo que é exposto e
representado em um trabalho artístico.
Além disso, a forma pela qual a hegemonia de tal oligarquia global na cena
artística internacional tem afetado os contextos “locais” dificilmente é
problematizada, e isto, mais uma vez, é algo sintomático da necessidade de
repensar a ideia de “doméstico” em relação tanto à performance quanto aos
espaços em que essas práticas acontecem.
Um exemplo quase emblemático disso é o caso da nomeação de Chris
Dercon como novo diretor do Volksbühne em Berlim, um teatro que por mais de
cem anos se manteve enquanto uma casa para o teatro político, e um teatro
político com uma especificidade: enraizado em uma célebre tradição socialista.
Além do mais, esse teatro ocupa uma parte importante da cidade, está localizado
na Rosa Luxembourg Platz, o centro de uma Berlim Oriental cujo tecido social
desapareceu quase que completamente, engolido por processos simultâneos de
gentrificação e de apagamento histórico. Funcionando por uma década como
teatro de repertório, o Volksbühne também tem entretido e mantido ao longo do
tempo uma relação bem peculiar com o público local, uma relação que sem
dúvida será interrompida com a chegada do novo diretor: um curador que pouco
tem a ver com teatro e muito menos com a ideia de teatro de repertório, algo que,
por sua própria natureza, possui uma relação distinta com o contexto local,
atuando em um contínuo entre produção artística e consumo. Ao invés disso, o
programa de Dercon tem um “toque” eminentemente “cosmopolita”: o qual não
apenas é caracterizado pela proeminência do inglês global, bem como pelas
20 Emprestei este termo de um artigo brilhante publicado recentemente por Sven Lutticken sobre a ocupação
do Voksbühne Berlin: Art as Immoral Institution [Arte como Instituição Imoral],
Texte Zur Kunst
, 03 de
outubro de 2017, https://www.textezurkunst.de/articles/sven-lutticken-volksbuhne-occupation/ Último
acesso em: 29 jan. 2024.
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apresentações de dança (erradicando consequentemente o componente
linguístico), mas também é marcada pelas produções feitas em outros lugares,
apresentadas na casa de Berlim como um festival permanente composto de
“eventos” ao invés de diferentes fases de um processo em andamento. Com uma
grande experiência como curador de arte contemporânea, um currículo
extraordinário e endossado tanto pela oligarquia cultural global quanto pelos
políticos locais, a nomeação de Dercon pretendia alçar Berlim ao papel de “capital
cultural global”. Este episódio é um indicativo de uma transformação substancial
no modo de produção contemporânea em performance, que acolhe abertamente
algumas características estratégicas da economia neoliberal. Uma análise de tal
transformação e do caso específico do Volksbühne, excede o escopo destas
páginas. É importante mencionar, de qualquer forma, que a posse de Dercon na
direção do teatro foi combatida por uma série de ações significativas as quais, de
modos diferentes, convocaram uma ideia de “casa” em relação a esse teatro,
curiosamente ressignificando o uso do termo “casa” normalizado nos dias de hoje
em relação aos teatros permanentes: a primeira ação foi uma carta aberta
assinada por todos os trabalhadores que atuavam no teatro, que foi publicada na
primavera de 2015, solicitando que o prefeito de Berlim reconsiderasse a
nomeação de Dercon, e a segunda ação foi a ocupação do teatro por um grupo de
ativistas, que ocorreu em setembro de 2017, e forçou a cidade a encarar uma
discussão pública em torno do que a transformação desse teatro efetivamente
significava e das políticas culturais implementadas em todos os níveis do setor
público. Não faço uma leitura dessas ações como defensoras do
status quo
, mas
sim como ações que levantam uma certa ideia do que um “teatro para o povo”
pode ser, principalmente em termos de produção. A esse respeito, algumas
questões importantes foram cogitadas: como defender a continuidade do trabalho
coletivo e da produção contemporânea em performance, bem como uma relação
entre produção e consumo que não seja
prêt-à-porter
? Como não deixar o modo
de produção da arte contemporânea canibalizar o modo de produção em teatro,
usando a dança e a performance como armas fatais nesse processo? E
principalmente, como reconhecer e inventar maneiras diferentes de estar em casa
no teatro?
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Suspeito que tais questões podem ser vitais se quisermos ir além de uma
discussão excessivamente fácil acerca do que é local e do que é global, do que é
nacional e do que é cosmopolita, do que é inovação e do que é tradicional.
Também suspeito que a construção de certa prática de produção em
performance, e as configurações e acordos das relações sociais bastante
domésticos que cercam e sustentam tal prática, sejam vitais para a possibilidade
de constituir um “estar em casa” no teatro, compreendido enquanto uma estrutura
de reconhecimento e de inteligibilidade afetiva em que a coexistência não seja
apenas representada, mas também possa ser experimentada concretamente.
Domésticas da performance
Este texto é um esforço para articular uma intuição: a ideia de que as
domésticas podem ser úteis para se pensar sobre a performance enquanto uma
técnica para imaginar formas de viver e trabalhar coletivamente, não nos termos
do consenso democrático, mas sim nos termos da proximidade, da organização
da subsistência material e nos modos de habitar no espaço e no tempo. Essa
intuição tem a ver com uma necessidade extrema que sinto de reivindicar a área
da performance como um laboratório de reprodução social, bem como um lugar
para produção, em que ambos os conceitos não podem ser separados e estão
crucialmente interligados, de modo integral entre si. Isso também significa afirmar,
caso ainda seja necessário, que a efemeridade da performance não a deixa de fora
do valor de mercado, mas torna-a totalmente adaptável ao neoliberalismo
contemporâneo, em que os bens imateriais são especialmente valiosos para o
mercado e as demandas de trabalho passam a exigir subjetividades cada vez mais
flexíveis, as quais colocam suas habilidades expositivas, comportamentais e
comunicativas à venda.21
Reivindicar a palavra “doméstica” para considerar o potencial político da
performance também significa se opor, pelo menos em âmbito discursivo, a uma
certa tendência de conceber a prática da performance principalmente como um
21 Essas questões têm sido amplamente discutidas por diversos autores antes de mim. Uma referência
clássica até o momento é Paolo Virno, que definiu o performer como um exemplo emblemático do trabalho
imaterial em
Gramática da Multidão.
Vide também Claire Bishop, ”Black Box, White Cube, Public Space”, in
Out of Body
(Spring, 2016) Skulptur Projekte Muenster, 2017; Giulia Palladini, ”Il disagio della performance:
per uma tecnica poietica del lavoro vivo”,
Operaviva Magazinhe
, 25 de abril de 2017, https://operaviva.info/il-
disagio-della-performance/ (Acesso em: 14 jun. 2018).
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lugar de crítica ou de meta-comentário acerca do que acontece em termos de:
neoliberalismo, trabalho imaterial, instituições, gênero, racismo e assim por diante.
Em outras palavras, para se opor a uma crescente redução do caráter político da
performance que a transforma em um mero disfarce das injustiças do
neoliberalismo, enquanto simultaneamente espelha sua dinâmica em termos de
organização, divisão do trabalho e produção de capital cultural e simbólico. De
modo ainda mais preocupante, esse espelhamento também implica que o
discurso sobre a produção e o trabalho venha a substituir progressivamente a
produção e o trabalho.
Pensar em “domésticas da performance” significa recuperar, no domínio da
performance, uma atenção material que caracteriza as práticas de construir,
habitar ou preservar uma casa, assim como caracteriza relevantes e numerosas
lutas por moradia que ocorreram na última década, lideradas, organizadas e
conduzidas de modo significativo por migrantes: pessoas cujo lar supostamente
está fora do espaço em que habita. Com essa ideia, não estou interessada em
abordar “performances domésticas” performances que acontecem em moradias
particulares ou valorizando a dimensão doméstica na esfera pública. Ao invés
disso, o que me interessa são os gestos, imagens e circunstâncias da performance
que desfazem precisamente a dicotomia em que a doméstica tem sido
historicamente construída e confinada: estou interessada nos gestos que
descolam a ideia de “casa” do âmbito da vida privada e façam dela um instrumento
para pensar e constituir a vida pública.
Domésticas enquanto campo do desejo, ou o real maravilhoso
Embora dificilmente utilizada na língua inglesa, a palavra “doméstica” não é
uma invenção linguística feita por mim. Encontrei-a em um texto específico e,
desejo manter a ressonância de uma política diferenciada do uso dessa palavra. O
texto é uma tradução para o inglês do livro
Sade, Fourier, Loyola
, de Roland
Barthes22. Nesse texto, Barthes discute em paralelo o trabalho destes três autores
Marquês de Sade, Charles Fourier e Santo Inácio de Loyola tentando retirar
seus escritos de uma economia tradicional de sentido em que convencionalmente
22 Roland Barthes, Sade, Fourier, Loyola. Trans. By Richard Millet (Berkeley: University of California Press, 1989).
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são situados e normalizados (a saber, sadismo, utopia política e religião), e aborda-
os em primeiro lugar à luz de um traço em comum: suas respectivas formulações
de novos sistemas linguísticos. Tal capacidade inventiva que Barthes reconhece
como característica dos escritos de Sade, Fourier e Loyola, também é a base para
os gestos criadores de mundos desses autores: é a exposição de um excesso que,
de certa maneira, força o mundo a confrontar uma outridade radical, em termos
de imaginação, comportamento, afeto e linguagem. Barthes sugere que essa
capacidade inventiva não é válida apenas em um caráter estético ou conceitual.
Também é vital para um posicionamento social do texto, o qual, como em
qualquer texto, nunca é neutro ou inocente, que está sempre condenado a
tomar lugar (do mesmo modo que a performance) no espaço e na linguagem da
ideologia burguesa:
A intervenção social de um texto (não alcançada necessariamente no
momento em que o texto surge) é mensurada não pela sua popularidade
perante o seu público ou pela fidelidade da reflexão socioeconômica que
contém ou projeta para alguns sociólogos ávidos, mas sim pela violência
que possibilita romper as leis que uma sociedade, uma ideologia, uma
filosofia,
estabelecem para si mesma com o intuito de concordarem
entre si em um belo surto de inteligibilidade histórica
.
23
No caso de Charles Fourier, tal “violência” corresponde a uma recusa radical
em lidar tanto com a linguagem quanto com as estruturas que estão postas na
sociedade em que ele viveu, e na qual articulou seu projeto utópico não nos
domínios da política (
la politique
) mas nos domínios da “doméstica” (
la
domestique
). Entretanto, esses dois termos foram compreendidos a partir de um
sentido específico do pensamento de Fourier, que Barthes decifrou como: “a área
da Necessidade é Política, a área do Desejo é o que Fourier chama de
Doméstica”24 .
Essa é a ressonância que sinto ser importante não perder quando falamos de
“domésticas”.
Escolher as domésticas acima das políticas significa para Fourier abordar a
questão de viver e trabalhar em conjunto, fora do entendimento mais comum de
ambos, com o intuito de reverter a relação não somente entre desejo e
23 Ibid., 10.
24 Ibid, 84.
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necessidade, mas também entre privado e público, família e comunidade, material
e imaterial, real e irreal. O real no domínio das “domésticas” estava além da
realidade e do realismo. Isso foi o que Barthes, com seu toque interpretativo
peculiar, chamou de “o real maravilhoso”: “O real maravilhoso é precisamente o
significante, ou se preferir a ‘realidade’, caracterizada, em relação ao real científico,
por seu cortejo fantasmático”25. É nesse sentido que a recusa de Fourier não
equivale a uma recusa da realidade, mas ao invés disso é um esforço quixotesco
para olhar a “realidade” em seu excesso.
As domésticas, portanto, serviram Fourier não enquanto uma área de
estabilidade, mas enquanto campo de invenção no qual ele pôde articular sua
própria organização utópica do comportamento de uma sociedade que, como
Barthes sugere, se comporta como uma criança que “vomita a política”, como se
a política devesse ser entendida (já que ela deve necessariamente ser
compreendida, de acordo com Barthes, pelo menos depois de Marx) como um
purgante que regula o desequilíbrio indigesto entre desejo e necessidade26. Fourier
transformou o “doméstico” em uma tecnologia: em uma das muitas declarações
programáticas que pontuam seu livro, ele afirma que sua intenção poderia ser
“demonstrar a extrema facilidade com que se sai do labirinto civilizado, sem
agitação política, sem esforço científico, mas simplesmente por uma
operação
doméstica”
27. A revolução política que Fourier pressente, antecipa e prepara em
seus escritos, não possui a qualidade de um evento: trata-se de um trabalho
persistente para tornar o “real maravilhoso” visível e praticável. Essa guinada
revolucionária não é precisamente uma ação, ao menos se compreendermos este
termo conforme proposto por Hannah Arendt, que considerava a ação uma
categoria central da política, algo de que o animal humano é intrinsecamente
capaz, em oposição tanto ao labor (o qual Arendt enxergava como tarefa
necessária para subsistência ou reprodução) quanto ao trabalho (que ela
compreendia enquanto “produção”, criação, inclusive a criação artística). Ao invés
disso, a atividade central das domésticas propostas por Fourier, bem como das
25 Ibid, 96-97.
26 Ibid, 88.
27 Fourier (l. 1 2 6), citado em Barthes,
Sade, Fourier, Loyola
, 87, fn. 10.
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domésticas que desejamos, pode ser imaginada como um constante “fazer”: uma
temporalidade que rejeita tanto o horizonte do evento quanto uma visão
messiânica de futuro. Trata-se de uma imanência radical da produção social que
leva em conta a necessidade de abranger desde o êxtase dos deleites sensuais
até a realização de tarefas repugnantes e obscenas.
O ponto de partida do esforço de Fourier para conceber outra forma de
organização social foi o reconhecimento de que aquilo que ele chamava de
“civilização” havia atingido um estado no qual era incapaz de superar suas próprias
contradições. Do seu ponto de vista, o “mundo civilizado” parecia não somente
injusto e exploratório, baseado na opressão dos homens sobre as mulheres e na
repressão dos prazeres, repetitivo e entediante, mas também “improdutivo”. Dito
de outra maneira, parecia ser o inimigo do que é essencialmente produção, fora
do monstro da civilização.
Estou inclinada a enxergar tal produção mais como nos termos do que o
jovem Marx de
Manuscritos Econômico-filosóficos de 1844
e, posteriormente
Bertolt Brecht, iriam articular como um horizonte de “produção” cujo principal
inimigo é a produtividade: uma produção concebida fora e para além do que esse
conceito se tornou e veio a representar no capitalismo. Essencialmente, esta é
uma ideia de produção enquanto processo de transformação da matéria criativa,
uma atividade intrinsicamente material e humana que combina temporalidade
individual e social, prolongando e moldando um mundo.
Uma vez que o mundo da “civilização” estava imerso em suas próprias
contradições, Fourier decidiu em sua obra
refazer o mundo
: não tentando corrigir
padrões existentes de uma ordem injusta das coisas, mas imaginando como as
coisas poderiam ser elaboradas e feitas de outra forma. Se a organização
fantasmagórica do trabalho de acordo com o prazer, que Fourier descreve
detalhadamente em seus livros28, é difícil de imaginar enquanto um programa
político, pode muito bem ser entendido como uma lanterna mágica mostrando
possibilidades para uma
coexistência
diferente: esta última envolvia não somente
humanos, mas também animais, objetos, plantas e até planetas. A chave para tal
28 Vide em particular Charles Fourier, Gareth Stedman Jones e Ian Patterson (Eds.). Fourier:
The Theory of the
Four Movements
, Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
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21
operação é a temporalidade uma temporalidade da escrita e uma temporalidade
de coexistência social na qual “o detalhe doméstico do exemplo e o escopo do
plano utópico” coexistem entre si: contribuem para configurar uma “imaginação
do detalhe”, a qual talvez seja “o que define especificamente Utopia (em oposição
à ciência política)” 29: uma reflexão apaixonada sobre a materialidade do prazer na
qual diferentes formas de vida poderiam se constituir.
Enquanto as descrições bizarramente meticulosas de Fourier dos objetos e
formas de seu novo modelo de coexistência – incluindo digressões sobre melões
ou pavões, prolongadas divagações sobre bergamotas ou peras, ou práticas
específicas de agricultura, ou a descoberta de maneiras inventivas para treinar
uma Legião da Juventude de adolescentes entre nove e dezesseis anos para
fazerem trabalhos sujos como recolher o lixo têm sido frequentemente
ridicularizadas por pensadores da política (começando com Marx e Engels em
A
ideologia alemã
, prosseguindo com Adorno), em sua minúcia material e sua
curiosidade febril acerca das coisas do mundo (enquanto matéria criativa para
moldar outro mundo), eu vejo uma reviravolta radical dos procedimentos e da
linguagem da política, assim como, uma possível chave para responder o que “uma
doméstica da performance” poderia ser.
De forma significativa, Barthes chama a técnica encontrada por Fourier para
demonstrar sua operação doméstica de
teatralização
: uma técnica que consiste
não em “designar um espaço para a representação, mas para ilimitar a
linguagem”30.
Ilimitar a linguagem: sobre reparação histórica e ferramentas
domésticas
Como ilimitar a linguagem? Que tipo de teatro da doméstica deve surgir por
meio dessa operação? Quais ferramentas seriam necessárias às domésticas da
performance?
Uma cena vem à minha mente. É a cena de abertura da performance
Los
29 Barthes,
Sade, Fourier, Loyola
,105.
30 Ibid, 5f.