Um mundo sem drama é possível? Esboço para uma retomada da teoria do teatro pós-dramático
Artur Sartori Kon
Florianópolis, v.2, n.51, p.1-25, jul. 2024
quanto estão em nossas vidas noções e fantasias de agência, antagonismo e
individualidade (além de todas aquelas que as circundam e complementam). Vale
notar que nenhum desses três elementos por si só, e nem mesmo a mera
presença de todos eles, basta para caracterizar uma obra como dramática. Todos,
aliás, serão mantidos e retrabalhados em boa parte das obras que costumamos
caracterizar como pós-dramáticas, que no entanto não os permitem aparecer
como os únicos possíveis, como naturais ou universais.
Nesse sentido, cabe concordar com a posição do filósofo frankfurtiano
Christoph Menke (2010, p.18), que diferencia dois “pós-dramáticos”, distinção que
“depende [de] como se configura a relação, em forma de negação, do pós-
dramático com o dramático”: de um lado, teríamos um teatro supostamente “não
dramático”, o que “significaria sem drama, sem momento dramático”, isto é, “um
jogo radicalmente autônomo” ou “um teatro puramente pós-teatral”, “emancipado
radicalmente do dramático”. Mas, em contrapartida e “por isso mesmo”, esse
teatro “seria incapaz de compreender a si mesmo” uma vez que “não pode
expressar a sua forma e seu pressuposto por si mesmo no próprio fazer teatral”
– o que apenas um
outro
pós-dramático pode fazer, um que entenda o prefixo
“pós” não como superação abstrata, mas negação determinada (dialética), ou seja,
um teatro que seja entendido “simultaneamente como anti- e meta-dramático”,
uma vez que, querendo “compreender a si mesmo e, com isso, sua relação com a
práxis, [...] levanta na própria forma a disputa entre ação e jogo, entre o dramático
e o teatral” (Menke, 2010, p.18-19).11
É graças a essa minoritária mas intensa produção de cenas alternativas,
textos e encenações pós- ou anti-dramáticos, que há espaço para imaginar um
outro mundo possível. Por exemplo, a escrita teatral do alemão Heiner Müller ou
dos austríacos Peter Handke e Elfriede Jelinek, retomando uma enunciação de
caráter fortemente coral, pode nos lembrar que
não precisamos ser indivíduos
,
11 Não cabe aqui aprofundar a importante análise de Menke, feita a partir de uma avaliação da atualidade da
tragédia (Menke, 2008), apenas deixar sugerido que essa relação entre cena e práxis se dará, para o filósofo,
sob o signo do fracasso de uma passagem direta, pretendida pelas vanguardas históricas e pelo teatro
brechtiano (para mais sobre isso, ver Kon, 2018). O que me parece essencial, e tentei apontar aqui, é que
reconhecendo esse fracasso, o teatro pós-dramático (meta-dramático) busca outra relação entre cena e
vida, a partir da exploração estética das categorias fundamentais da ideologia dramática.