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O vídeo em cena
Josette Féral e Julie-Michèle Morin
Tradução: Edélcio Mostaço e Sílvia Fernandes
Para citar este artigo:
FËRAL, Josette; MORIN, Julie-Michèle. O Vídeo em Cena.
Tradução de Edélcio Mostaço e Sílvia Fernandes.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 2, n. 51, p. 1-15, jul. 2024.
DOI: 10.5965/1414573102512024e0701
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
O Vídeo em Cena
Josette Féral e Julie-Michèle Morin | Tradução de Edélcio Mostaço e Silvia Fernandes
Florianópolis, v.2, n.51, p.1-15, jul. 2024
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O vídeo em cena1
Josette Féral2 e Julie-Michèle Morin3
Tradução de Edélcio Mostaço4 e Sílvia Fernandes5
Resumo
O artigo enfoca o crescente emprego do vídeo e demais tecnologias numéricas na
encenação de espetáculos teatrais diversos, muitos deles apresentando, em sua
própria poética, feitos e recursos próprios dessas novas tecnologias, criando
inesperadas zonas de percepção.
Palavras-chave
: Teatro. Vídeo. Tecnologias numéricas. Encenação.
The video on the scene
Abstract
The article focuses on the growing use of video and other numerical technologies in
staging various theatrical shows, many of them presenting, in their own poetics, feats
and resources specific to these new technologies, creating unexpected zones of
perception.
Keywords
: Theater. Video. Numerical technologies. Staging.
El video en la escena
Resumen
El artículo se centra en el uso creciente del vídeo y otras tecnologías numéricas en
la puesta en escena de diversos espectáculos teatrales, muchos de ellos
presentando, en su propia poética, hazañas y recursos propios de estas nuevas
tecnologías, creando zonas de percepción inesperadas.
Palabras clave
: Teatro. Video. Tecnologías numéricas. Puesta en escena.
1 NT. O artigo é a tradução de trechos escolhidos do prefácio ao livro
La vidéo en scène. L’acteur et ses
technologies,
Saint Denis: Presses Universitaires de Vincennes, 2023, p. 9-32. Sua publicação neste dossiê
foi especialmente autorizada pelas autoras, a quem agradecemos.
2 Professora doutora aposentada da Universidade de Québec, Montreal Canadá (UQAN) e da Universidade
Sorbonne Nouvelle-Paris3. Presidente Honorária da Eastap. https://orcid.org/0000-0002-0220-3587
3 Doutoranda da Universidade de Québec, Montreal Canadá (UQAN).
https://orcid.org/0000-0003-0849-049X
4 Professor Titular aposentado da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).
hateatro33@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/5151925947504672
https://orcid.org/0000-0001-7611-7764
5 Professora Titular Sênior da Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo (ECA/USP).
silvia.fernands@terra.com.br
http://lattes.cnpq.br/5393824704722004 https://orcid.org/0000-0002-1988-1771
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O ator e suas tecnologias
Longe de constituírem um efeito destinado ao desaparecimento, as
tecnologias numéricas estão, desde os anos 2000, no centro da criação
contemporânea.6 [...] Elas dão guarida, por esse motivo, às reinvenções das práticas
cênicas: o jogo dos atores, a narração, a concepção da personagem, a cenografia,
a encenação etc. E, mais importante, essas tecnologias emergem como
verdadeiros processos de criação, gerando estéticas e modificando de modo
radical a arte de fazer teatro. [...]
Hoje em dia, o fato de um numeroso grupo de artistas integrar a tecnologia
em seus espetáculos – a ponto de apoiar totalmente suas encenações sobre elas
se explica por alguns fatores. Antes de mais nada, porque muitos deles possuem
formação plástica, são especialistas em artes visuais ou, simplesmente, são
provenientes de campos fora do teatro. [...] Além disso, é fato que, ao longo de sua
história, o teatro nunca hesitou em tirar proveito das máquinas e dos
desenvolvimentos técnicos de seu tempo. Ele sempre tirou proveito dos avanços
tecnológicos, científicos e técnicos para produzir o espetacular ou dispositivos
imersivos que permitissem ao espectador alterar sua percepção do ambiente. [...]
Desde o primeiro
happening
realizado por John Cage e Merce Cunningham
em 1952 e intitulado
Untitled Event
, ficou marcado o início da criação sedimentada
sobre a intermedialidade. A própria videoarte (Nam June Paik, Fred Forest, Bruce
Nauman, Valie Export) surgiu como um prolongamento desse mesmo espírito
transdisciplinar que havia impulsionado Cunninghan e sua equipe, questionando o
gesto do artista enquanto material artístico. A cenografia, a concepção da
iluminação, a encenação, a interpretação, os modos de produção e o próprio
público foram incomodados por esse novo modo que contaminou a cena. Essas
6 NT. O termo “tecnologia numérica”, derivado das lógicas matemáticas, é amplamente empregado no
hemisfério norte para referir o que anteriormente foi designado como cibercultura e ciberespaço. Ele
substitui também, sob certas circunstâncias, as noções de virtual e cibernético, ao evidenciar a condição
numérica de todos os hipertextos, códigos e algoritmos que sustentam e tornam possíveis essas existências
mediadas através de telas. Para uma visão ampla dessas implicações ver Stéphane Vidal,
L’Être et l’Écran:
comment le numérique change la perception.
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novas mídias contribuíram para explodir as formas tradicionais do teatro as
tecnologias numéricas o transformaram tal como a eletricidade o fez no século
19. Se anteriormente as tecnologias haviam transtornado nossa relação com o real
e as práticas teatrais, de agora em diante elas ocupam, de modo permanente,
nosso cotidiano e nossas cenas.
Após ter sido intensivamente explorada pelos artistas do campo da
performance ao longo dos anos 1970, a integração do vídeo no teatro conheceu
uma onda de democratização a partir de 1980. As tecnologias numéricas ganharam
visibilidade, quer no espaço público quer na imaginação popular, à medida em que
o campo das ciências informáticas se desenvolveu e os computadores tornaram-
se acessíveis tanto do ponto vista econômico como material. Os dispositivos
tecnológicos diminuíram de tamanho e seu custo baixou, tornando-os acessíveis
às finalidades da criação. A comunidade artística se apoia nesses dispositivos para,
mais rapidamente, manipular o som e as imagens. Artistas como Laurie Anderson,
The Wooster Group, Georges Coates, Stelarc ou William Forsythe empreenderam
um audacioso trabalho de exploração das possibilidades e dos limites oferecidos
pelas tecnologias. Essa nova
cyberculture7
teatral, ao mesmo tempo inovadora e
entusiasta no plano formal e conceptual, contribuiu para criar um vasto
movimento de “performances digitais”8. De longe, as tecnologias numéricas
tornaram possível uma renovação dos desafios estéticos, narrativos e temáticos
no campo da performance em uma escala jamais antes prevista. [...]
O uso do vídeo no teatro assinalou uma virada importante no começo dos
anos 2000: com efeito, aquele momento testemunhou um acúmulo de presença
do vídeo diretamente no palco, com o público convidado a seguir o deslocamento
dos intérpretes por uma série de lugares fora-de-cena (bastidores, balcões, ruas
e outros locais fora do perímetro propriamente cênico). O trabalho de Frank
Castorf e mesmo o de Cyril Teste – tal como as criações do Rimini Protokoll, Gob
7 Empregamos o termo
cyberculture
no contexto de seu aparecimento nos anos 1980 e 1990, hoje largamente
colocados em discussão pelas humanidades numéricas. [NT. As humanidades numéricas constituem um
território científico relativamente novo, decorrente da intersecção entre as Humanidades, as Ciências Sociais
e as tecnologias digitais.]
8 Traduzimos livremente a expressão
digital performance
tal como ela foi introduzida por Steve Dixon em
2007 em seu livro
Digital Performance: a History of New Media in Theatre, Dance, Performance Art, and
Installation
.
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Squad ou Blast Theory ilustra tais mecanismos de captura e seu uso cada vez
mais recorrente no teatro. A extensão da área de jogo para além do espaço de
visibilidade imediata reconfigurou o aqui e agora da representação teatral.
Mostrando aquilo que o espectador habitualmente não vê, (o fora de campo, os
bastidores, os espaços urbanos) ou o que ele não entende (os cochichos, os
barulhinhos, as vozes em off, as ondas sonoras de fraca intensidade) colocando-
o em ambientes imersivos que possuem importância, as tecnologias dotam o
espectador de um sentimento de grande poder e grande vulnerabilidade. Essa
onda de experimentos tornou possível uma democratização do vídeo no teatro.
[...]
A diversidade de usos que se faz, hoje em dia, dos dispositivos numéricos nos
planos conceptual, material, estético e político, assinala a progressiva absorção
dessas tecnologias pela cultura teatral no decorrer dos últimos quatro decênios.
Nesse sentido, essa geração de criadores e criadoras, se não foi a “introdutora”
estrita do vídeo no teatro, contribuiu largamente para democratizar sua presença
na cena, interrogando seus potenciais. Esses artistas se inscrevem nesse
momento de virada na história do teatro, porque contribuíram para a normalização
da presença das mídias audiovisuais em cena. [...]
Naturalização da videocênica: 2000-2020
A noção de “naturalização”, introduzida pelo filósofo francês Stéphane Vial
em sua obra
O Ser e a Tela: Como o Numérico Muda a Percepção
(2013), responde
parcialmente à questão de saber como e porque o numérico se impôs, mas
sobretudo como foi normalizado no plano da percepção. Vial explica que o
dualismo que antes opunha o espaço numérico ao espaço físico é, no imaginário
popular, o resultado de um choque perceptivo, um traumatismo fenomenológico
induzido pelas interfaces numéricas. Teria havido uma verdadeira revolução nessa
alteração “que abala nossos hábitos perceptivos relativos à maneira e,
correlativamente, à ideia mesma que fazemos da realidade.”9
O filósofo chama esse choque de
trauma digital
e, para explicitá-lo, se refere
9 Vial, 2013, p. 97.
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ao dualismo que opõe o real ao virtual nos discursos cotidianos que conhecemos.
Segundo ele, o fosso entre os antigos e os novos hábitos perceptivos surge com
tamanha intensidade que o numérico é relegado a outro mundo, a um
ciberespaço
.
Ora, esse espaço exige do sujeito uma renegociação quanto ao ato perceptivo, “um
verdadeiro trabalho fenomenológico tendo em vista perceber essa nova categoria
de estados, de seres numéricos, cuja fenomenalidade é inédita e, como
consequência, desarmada.”10
Nesse novo contexto, as modalidades de recepção do espectador
necessariamente mudam. Seu olhar e sua escuta se modulam de outro modo sob
o efeito dessas transformações. Para Edmond Couchot, elas colocam o acento
sobre a desmultiplicação das capacidades físicas e sensoriais do corpo, induzidas
pela tecnologia. Esses avanços tecnológicos permitiram o desenvolvimento de
uma linguagem mais complexa para além da imagem, da língua ou dos códigos
informáticos, com as interfaces agindo com a função de colocar em contato o
mundo orgânico do corpo com os algoritmos da técnica. A popularidade sem igual
das redes sociais em nossas culturas aceleraram, necessariamente, essa
naturalização
do numérico no teatro. As plataformas representam, hoje em dia,
uma grande parte do espaço social, apoiando-se sobre uma profunda imbricação
entre os ambientes, espaços ditos virtuais e espaços físicos, onde “[...] o real forma
uma e mesma substância contínua, profundamente híbrida, quer numérica quer
não numérica,
on line
e
off line
11
,
de modo que parece normal que o teatro
reconstitua esses conjuntos mistos, sejam numéricos ou não numéricos. [...]
Os encontros entre as mídias e o teatro constituem um bom momento para
se repensar as mudanças culturais instauradas pelos novos paradigmas
midiáticos. Além disso, “[...] o pensamento sobre as mídias no teatro não constitui
apenas uma reflexão sobre as outras mídias, mas também sobre o próprio teatro
e sua posição na nova cultura artística e midiática”12, observa com ênfase
Hagemann. Pensando mais longe essa relação, Phillip Auslander afirma em
10 Vial, 2013, p. 98.
11 Vial, 2014, p. 49 sg.
12 Hagemann, 2013, p. 27.
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Liveness: Performance in a Mediatized Culture
(1999), que o caráter de
autenticidade do teatro prevaleceu, por muito tempo, em oposição às formas
midiáticas que instituem uma diferença ontológica entre as presenças ao vivo e as
midiatizadas. Em uma cultura dominada pelas mídias de massa, a midiatização
das formas espetaculares se torna norma, relegando ao teatro o lado vivo
(
liveness
). Ora, essa crítica é, segundo Auslander, errônea e injustificada, uma vez
que o vivo (
liveness
) pode ser também uma característica inerente às mídias.13 [...]
Ainda que o binarismo entre o real e o virtual não tenha sido abolido de todo
nos discursos domésticos, o choque inicial o “trauma digital” acima evocado
está sendo progressivamente atenuado em benefício da naturalização das práticas
e das experiências de percepção numéricas. Com efeito, mais do que falar em real
e virtual, Vial atualmente argumenta em favor de uma concepção mista de
ambientes (espaços numéricos e não numéricos). Essa postura conta, com
maior justiça, da performatividade das infraestruturas numéricas sobre a
organização de nosso mundo. Ela aponta para a influência direta que o numérico
possui sobre a crise ecológica ou sobre o surgimento da “economia da atenção”.14
O teatro é uma testemunha dessa virada perceptiva ocorrida nos últimos decênios.
E, pela prática do fenômeno, nasce o hábito.
A absorção da cultura numérica pelo teatro é percebida através da recente
emergência das chamadas estéticas pós-numéricas. uma corrente de criação
cuja principal característica é a tomada de consciência pelos artistas que recusam
a banalização do fenômeno da hiper midiatização de nossas culturas ao criarem
dentro desses meios hiper tecnológicos. Tais práticas nascentes sublinham que
as tecnologias numéricas no teatro mudaram, tornando-se ferramentas que dão
conta do mundo que habitamos hoje em dia: um real constituído de uma
substância híbrida, composta por elementos a uma vez numéricos e não-
13 NT. Para Auslander, o contraponto entre o
ao vivo
(
liveness
) e o midiático alberga pressupostos metafísicos,
preconceituosos e distantes da efetiva questão que se coloca: nascida nos tempos heroicos da
performance
art,
da arte conceitual e da
live art
dos anos 1960, a noção de
ao vivo
se encontrava carregada de valores
negativos em relação ao midiático, tomado como capaz de repetição, como distante ou fantasmagórico.
Com a progressiva assimilação das mídias pelas artes da performance tais pressupostos foram perdendo
terreno, até o ponto atual de considerar que o numérico também possui um estatuto de realidade. Ver Philip
Auslander.
Liveness, Performance in a Mediatized Culture
.
14 Vial, 2013, p. 179.
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numéricos. O surgimento de uma nova profissão no campo das artes vivas
testemunha, igualmente, esse fenômeno de
naturalização
das tecnologias no
teatro: o videocineasta.15 Um colaborador inteiramente dedicado à prática do vídeo
no interior do processo de criação teatral, desenvolvendo uma aproximação
propriamente performativa da imagem numérica no contexto cênico, e que
compreende perfeitamente bem quer os códigos teatrais quer os códigos
videográficos.
Os usos do vídeo em cena
Emergem desse panorama três tipos distintos de uso do vídeo: o ilustrativo
(testemunhal ou poético), o performativo e o generativo. No primeiro caso, o vídeo
funciona essencialmente como uma evocação: ele sustenta a ação cênica como
uma ilustração, enquadrando, comentando, metaforizando ou tornando poética a
ação principal (Guy Cassiers, Fabrice Murgia, Romeo Castellucci). O segundo uso,
o performativo, filma a ação cênica e a difunde diretamente, podendo desdobrar-
se em dispositivos de telas variadas: ele frequentemente integra os intérpretes na
captação dessas imagens, às vezes tornando-os responsáveis pelas suas diretas
transformações (Cyril Teste, John Jesurun, Marianne Weems, Ivo van Hoove). O
terceiro tipo de uso, bem mais recente, apoia-se sobre o aspecto generativo das
mídias numéricas. Ele diz respeito à inclusão de algoritmos de inteligência artificial
ou em modo mais banal da Internet em um espetáculo, com a finalidade de
experimentar as funcionalidades das tecnologias na criação de uma obra (John
Jesurun). Esses três tipos de uso do vídeo são frequentemente simultâneos, e
surgem mesclados em uma mesma e única criação. [...]
Mais performativa é a abordagem de Romeo Castellucci, que convoca o vídeo
em cena pela sua dimensão iconoclasta e espectral: suas imagens performam a
cena, mas também assombram a memória dos espectadores. São elas, portanto,
imagens que trabalham. Heiner Goebbels inscreve o uso do vídeo em um percurso
similar: ele surge como uma força ativa que produz tensões contra as quais os
15 O termo é atribuído a Lionel Arnauld, que designa sua própria prática como a de um videocineasta. Ele tem
colaborado, particularmente, com a companhia Ex Machina, assim como com o encenador canadense
Christian Lapointe.
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intérpretes contracenam. Sempre relevante quanto à aproximação performativa,
Sharon Smith, fundadora do coletivo anglo-alemão Gob Squad, preconiza uma
utilização da tecnologia lo-fi (
low profile
) no teatro. Os integrantes de seu grupo
rejeitam os usos espetaculares do vídeo e exploram com vantagem os universos
íntimos, sensíveis e cotidianos, que nos reenviam às tecnologias/dispositivos
portáteis: os vídeos são frequentemente captados ao vivo e os dispositivos são
facilmente manipulados com a finalidade de incluir o público na produção das
imagens. Para engendrar um sentimento de coletividade no âmbito da sala, Smith
explica que eles devem “treinar para ser humildes, uma vez que, muitas vezes, a
tecnologia escapa ao nosso controle. Quando isso ocorre, nós devemos ser
capazes de improvisar ou ser elegantes, para administrar esses momentos sem
entrar em pânico”. Por esse motivo, os artistas do coletivo Gob Squad preferem
“integrar os eventuais problemas que aparecem na estética da realização e
partilhá-los com o público”. Trata-se de constantemente oscilar entre o
jogo
e o
trabalho
, uma vez que as exigências técnicas agem sobre a memória e a liberdade
dos performers. A visada de Christiane Jatahy, que notadamente combina as
linguagens fílmicas, é bem diversa: o vídeo para ela está diretamente ligado à
possibilidade de multiplicar os pontos de vista e as perspectivas da cena: mostrar
o que é visível ou não no quadro cênico e, inversamente, naquele da imagem.
Desvendar a construção de uma imagem em cena “permite ao espectador tomar
consciência das múltiplas escolhas interpretativas que ela oferece, de abrir um
espaço no qual ele se torna ativo e não passivo”, ela observa.
O uso do vídeo generativo, enfim, é também exemplificado através do
trabalho de John Jesurun: ao incluir a Internet em seu espetáculo
Firefall
, o artista
instituiu um marco inovador de colaboração crescente entre os criadores e suas
forças generativas, tais como a Inteligência artificial.
É preciso notar que tais modalidades de vídeo (ilustrativa, performativa e
generativa) representam uma tipologia genérica que nos ajuda a pensar usos
específicos, o tratamento da função dramatúrgica do vídeo se modificando de uma
prática artística à outra, ou de uma produção teatral à outra. Assim, é preciso
destacar que as aproximações efetivadas por Stefan Kaegi, integrante do Rimini
Protokoll, são mais interativas e analíticas: o coletivo costuma reconhecer que as
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tecnologias permitem ao público interagir com as obras em modo particular e
individualizado. Mais políticas são as criações do She She Pop nas quais o
emprego do numérico constitui uma estratégia de subversão feminista ou, ainda,
aquelas desenvolvidas por Arkadi Zaides – para quem o vídeo coloca em relevo a
dimensão política dos conteúdos midiáticos, convencido que a imagem possui seu
próprio agenciamento, ao insistir sobre a dimensão performativa dos arquivos
visuais que ele coloca em cena: “a imagem funciona, nesse caso, como uma co-
performance”. um valor estético nesses documentários, uma vez que essas
imagens implicam, segundo ele, em uma mudança corporal.
Para esses artistas, o vídeo é um colaborador, e até mesmo um performer:
para o Rimini Protokoll e o BERLIN, ele é frequentemente o meio pelo qual
aparecem em cena as pessoas entrevistadas ao longo dos documentários; no She
She Pop, a câmera assegura, de algum modo, a função de direção de atores e o
arquivo da realização: é através dessa mediação que os artistas investigam, se
pensam e se entregam às novas direções; e, no caso de Arkadi Zaides, as imagens
de arquivo são peças em jogo para montar a experiência somática provocada
sobre os corpos dos intérpretes e sobre o dos espectadores. Quanto a John
Jesurun e Marianne Weems, suas aproximações evidenciam um mesmo princípio
estético crítico relativo às mídias de massa: os dois insistem sobre o fato de que
as sociedades ocidentais, e particularmente a cultura norte-americana, tornaram-
se espaços totalmente midiáticos e regidos por um permanente fluxo de imagens.
De onde decorre a tentativa de infundir, através dessas imagens, um sentimento
de ubiquidade e saturação hiper midiática. [...]
Direção de atores: quais as mudanças para o intérprete
tecnologizado?
O dispositivo de captação como parceiro de jogo é igualmente o modo de
funcionamento em que se baseia a direção de ator de Ivo van Hove, que procura
conscientizar os intérpretes em relação à presença das câmeras, sem insistir sobre
o fato de que estão sendo filmados: “eu adoro quando os atores exploram aquilo
que eles devem fazer, eu os filmo e, num momento seguinte, os sensibilizo em
relação àquilo que eles podem fazer.” Compreende-se, assim, até que ponto a
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tecnologia “doa ao performer”, sensível às contrições e aos limites dos dispositivos
sonoros e videográficos, os “novos meios”.
Romeo Castellucci confia, de sua parte, sobre o lugar preponderante que as
máquinas ocupam em suas obras. O que lhe interessa na tecnologia empregada
no teatro está em seu poder evocador: ele concebe as máquinas como verdadeiras
personagens. A presença delas entidades desumanizantes reenvia por
contraste, aos corpos e à vida humana. Esse jogo de dessemelhanças entre um
corpo artificial e um corpo orgânico é cardinal em sua prática, mesmo quando ele
não se dirige às máquinas em sentido literal: a simples presença delas em cena
constitui uma força evocativa e fantasmática suficiente para comentar,
implicitamente, o estatuto humano. Heiner Goebbels percorre o mesmo caminho,
mas ainda mais fundo, de confrontação entre os atores e a tecnologia.
Se as tecnologias numéricas permitem criar fricções entre as presenças
cênicas vivas e não vivas, como acontece nos espetáculos de Romeo Castellucci,
Heiner Goebbels introduz a tecnologia em cena “para permitir que outras forças
intensifiquem sua presença, de modo a construir um sistema em que a presença
corporal do ator encontre algo que resista a ela”. É por isso que procura intérpretes
que aceitam compartilhar sua presença com outros elementos cênicos e, ao
mesmo tempo, resistam a eles. Essa fricção entre cooperação e resistência está
no núcleo do processo de direção do ator:
A identidade, a hierarquia entre os elementos ou a soberania do
performer reduzem nossas possibilidades de percepção. É evidente que
nos concentramos na presença do ator, mas é apenas quando
equilíbrio entre ele e seus parceiros tecnológicos que podemos realmente
apreciar sua presença plena. Ou concentrar nossa atenção nas forças
contra as quais ele luta: os objetos, as mídias (Goebbels
apud
Féral, 2023,
p. 176).
Preocupado em preservar o equilíbrio entre um desejo de individualidade e
uma luta contra os elementos cênicos midiáticos, Goebbels atua como um
maestro: garante que “nada desmorone” e tudo se “acumule”. [...]
Quanto à Christiane Jatahy, a relação com o cinema é bastante sensível em
seu teatro, que torna visíveis as dinâmicas que operam entre as câmeras e os
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atores, as câmeras e o público, os atores e os espectadores, os objetos e as
histórias. [...]
Por meio desses modos de incorporação das tecnologias é possível dizer que
a presença do vídeo em cena complexifica o sistema de enunciação. Questiona a
representação, articula a noção de presença, duplica a presença do ator e pode
substituí-lo em sua ausência. Também oferece um parceiro ao ator, a câmera, que
pode se tornar um personagem. De agora em diante, o ator não é mais o foco
central: o espaço, o tempo, a cenografia e o universo sonoro interpelam o
espectador do mesmo modo que o corpo do ator. Isso significa que o vídeo atua.
É performativo, na medida que transforma o olhar do espectador, aguça e alimenta
sua visão, exigindo que ela perceba de forma diferente. O olho do espectador é
estimulado a fazer um trabalho de montagem, fragmentação e
assemblage
de
imagens. A interatividade torna-se tangível para ele, que se torna um ator-
espectador. Há, portanto, uma mudança na obra, da instância da criação para a da
recepção. Assim, o vídeo causa uma perturbação do sentido, dos sentidos. Ao usar
procedimentos variados (distanciamento da câmera, resolução da imagem, ângulo
e ponto de vista) a captação em vídeo é um jogo entre presença e ausência, um
jogo sobre a realidade e os “efeitos de presença”. Ora, esses efeitos estão ligados
aos afetos que os jogos de desvelamento e velamento da realidade causam no
espectador. Se o teatro criava experiências sensoriais diretas, a intervenção da
imagem numérica influencia nosso encontro sensível e perceptivo com a cena. As
tecnologias e especialmente o vídeo, por serem portadores de uma estética que
oscila entre ilusão, distorção ou construção da realidade, questionam nossa
percepção do mundo. Ampliam a imagem e sublimam o real para permitir ver o
que se quer mostrar. O espaço torna-se fragmentado, parcelado em diferentes
núcleos de ações (e informações) simultâneos. Ele não é mais estável e objetivo.
Reconfigurado por tecnologias que aproximam lugares distantes, trabalha em
profundidade nossos esquemas de percepção. Para alguns, essa reprodução do
real leva a uma desrealização do real, a uma perda da realidade (Jean Baudrillard,
Paul Virilio). Trata-se de um duplo menor da realidade. Para outros, ao contrário,
é uma simulação do real que aumenta o poder da realidade e nos permite
enfrentar melhor essa mesma realidade. A fragmentação do real desdobra-se em
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uma fragmentação do tempo. Ao permitir combinar tempo diferido e tempo
imediato, as tecnologias causam uma ruptura no
continuum
espaço-temporal e
produzem diferentes regimes de temporalidade. Graças à velocidade que impõem,
à instantaneidade do momento ou ao imediatismo do acontecimento, criam uma
fragmentação do campo de percepção. Assim, somos constantemente projetados
“no futuro imediato, tornando instantaneamente obsoleto aquilo que vem antes”
(Gautrand 2002, p. 111). De fato, as tecnologias agem, prioritariamente, sobre a
imagem do corpo e sua recepção. Com a crise do espaço provocada pelas
tecnologias, cria-se, em paralelo, uma crise do corpo, pois o espaço digital, ao
desvincular o corpo do lugar onde está, tende a fazê-lo desaparecer. Tende a
apagá-lo. Mas o corpo resiste. Cria-se, então, um entrelaçamento entre o corpo do
performer e o do outro, o que paradoxalmente reforça a imagem do corpo, ao
mesmo tempo que questiona a percepção que temos dele. Esta perturbação dos
sentidos molda a experiência do espectador de forma diferente. Seu olhar é
atomizado pela difração do espaço visual e pela multiplicação dos lugares de ação,
aprisionando-o entre uma simulação de teatro e a impressão de estar o mais
próximo possível dos acontecimentos e das coisas, capturado pelas imagens ao
vivo que o mergulham no núcleo da ação. O vídeo faz o espetáculo, performa o
real. Cria uma desorganização no espaço e suspende o tempo. Se as tecnologias
estão naturalizadas na cena, testemunham o modo como as práticas numéricas
estão normalizadas, mas sobretudo a forma como nossa percepção do real e
nossas modalidades de atenção foram radicalmente transformadas nas últimas
décadas. Todas essas modificações prolongam a escritura do espetáculo, impõem
uma nova abordagem da narração e atingem a própria construção dramatúrgica
dos espetáculos, contribuindo para a explosão da forma tradicional do teatro. Ao
fazer isso, constroem uma “nova matriz perceptiva da arte” que, segundo Edmond
Couchot, convida a um pensamento transversal [...].
No entanto, é possível distinguir características próprias ao vídeo que
motivam sua utilização no teatro: a natureza documental do vídeo (arquivos,
entrevistas, excertos de programas de televisão etc.) e seu poder de autenticação
da experiência teatral, a sensação de ubiquidade provocada pela inserção de
conteúdo videográfico em cena, a materialidade dos dispositivos tecnológicos e
O Vídeo em Cena
Josette Féral e Julie-Michèle Morin | Tradução de Edélcio Mostaço e Silvia Fernandes
Florianópolis, v.2, n.51, p.1-15, jul. 2024
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sua contribuição estética para a representação, a responsabilidade das mídias por
parte da logística do processo de criação, a renovação dos códigos espaciais e
temporais provocada pela relação entre os corpos e a tela, a modificação do
estatuto e do papel do público no espetáculo e a atuação sobre escalas de
grandeza que o vídeo ao vivo ou pré-gravado permite. [...]
Portanto, as possibilidades são múltiplas e suscitam uma série de novas
questões e respostas sobre o jogo do ator: pode-se considerar que as telas são
intérpretes? De que tipo de escolha e liberdade o ator ainda dispõe na era dos
algoritmos? A câmera em cena transforma o ator em um técnico, um editor e um
diretor? A gravação de imagens ao vivo exige uma polivalência do ator, mas em
contrapartida lhe oferece algum controle ou liberdade sobre a representação?
Qual é o lugar das noções de ilusão e mimese em um teatro tecnológico e em que
elas afetam as relações entre o ator, a fábula, o personagem e o público? Como o
performer desenvolve uma consciência de seu corpo que esteja a serviço do
dispositivo e de que maneira essa atitude modifica a noção de presença? As
tecnologias formatam o espaço e o tempo? Finalmente, elas são o sinal de uma
nova colaboração entre humanos e não humanos?
Referências
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Liveness. Performance in a Mediatized Culture
. Londres:
Routledge, 1999.
DIXON, Steve.
Digital Performance. A History of New Media in Theatre, Dance,
Performance Art and Installation
. Cambridge (Massachusets): MIT Press, 2015.
COUCHOT, Edmond.
La Technologie dans l'art: de la photographie à la réalité
virtuelle
. Paris: Editions Jacqueline Chambon, 2002.
FÉRAL, Josette et MORIN, Julie-Michèle.
La vidéo en scène. L’acteur et ses
technologies
. Saint Denis: Presses Universitaires de Vincennes, 2023.
GAUTRAND, Jacques.
L’empire des écrans. Télé, internet, infos, bie privée: la
dictadure du tout voir.
Paris: Le Pré-aux-cercles, 2002.
O Vídeo em Cena
Josette Féral e Julie-Michèle Morin | Tradução de Edélcio Mostaço e Silvia Fernandes
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SIMON, Hagemann.
Penser les medias au théâtre: des avant gardes historique aux
scènes contemporaines
. Paris: L’Harmattan, 2013.
VIAL, Stephane.
L’Être et l’Écran: Comment le numérique change la perception
.
Paris: Presses Universitaire de France, 2013.
VIAL, Stephane. “Critique du virtuel: en fini avec le dualisme numérique”.
Psychologie Clinique
, nº 37 (1), p. 38-51.
Recebido em: 20/03/2024
Aprovado em: 25/03/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br