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Desconstruindo armários discursivos: críticas e
visibilidade lésbica em
As Moças
, de Isabel Câmara
Camile Cecília dos Anjos
Para citar este artigo:
ANJOS, Camile Cecília dos. Desconstruindo armários
discursivos: críticas e visibilidade lésbica em As Moças, de
Isabel Câmara.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 1, n. 50, abr. 2024.
DOI: 10.5965/1414573101502024e0103
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Desconstruindo armários discursivos: críticas e visibilidade lésbica em As Moças, de
Isabel Câmara1
Camile Cecília dos Anjos2
Resumo
Este artigo examina críticas teatrais de Yan Michalski (
Jornal do Brasil
, RJ/1969 e 1970) e
de Sábato Magaldi (
O Estado de São Paulo
, SP/1969) sobre a peça
As Moças
, de Isabel
Câmara (1967). Analisamos como tais discursos contribuíram para a invisibilidade da
questão lésbica na obra, destacando a importância de revisões críticas para incluir
saberes diversos. Embasando-nos nos estudos de teatro feminista e de feminismo
decolonial, enfatizamos a relevância da fortuna crítica para a construção da história
teatral brasileira e a necessidade de uma abordagem descentralizada para uma
compreensão autêntica e inclusiva do teatro, reconhecendo vozes historicamente
marginalizadas.
Palavras-chave
: Teatro lésbico. Crítica teatral. Revisão crítica. Apagamento histórico.
Deconstructing discursive closets: criticism and lesbian visibility in
As Moças
by Isabel Câmara
Abstract
This article examines theater criticism by Yan Michalski (
Jornal do Brasil
, RJ/1969 and
1970) and Sábato Magaldi (O Estado de São Paulo, SP/1969) on the play
As Moças
de
Isabel Câmara (1967). We analyze how such discourses contributed to the invisibility of
the lesbian issue in the work, highlighting the importance of critical reviews to include
diverse knowledge. Based on studies of feminist theater and decolonial feminism, we
emphasize the relevance of critical fortune in the construction of Brazilian theatrical
history and the need for a decentralized approach for an authentic and inclusive
understanding of theater, recognizing historically marginalized voices.
Keywords:
Lesbian theater. Theater criticism. Critical review. Historical erasure.
Deconstruyendo armarios discursivos: crítica y visibilidad lésbica en
As Moças
de Isabel
Câmara
Resumen
Este artículo examina la crítica teatral de Yan Michalski (
Jornal do Brasil
, RJ/1969 y 1970)
y Sábato Magaldi (
O Estado de São Paulo
, SP/1969) sobre la obra
As Moças
de Isabel
Câmara (1967). Analizamos cómo dichos discursos contribuyeron a la invisibilidad de la
cuestión lésbica en la obra, destacando la importancia de revisiones críticas para incluir
conocimientos diversos. A partir de estudios sobre teatro feminista y feminismo
decolonial, destacamos la relevancia de la fortuna crítica en la construcción de la historia
del teatro brasileño y la necesidad de un enfoque descentralizado para una comprensión
auténtica e inclusiva del teatro, reconociendo voces históricamente marginadas.
Palabras clave
: Teatro lésbico. Crítica teatral. Revisión crítica. Borrado histórico.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Isabel Scremin da Silva, Doutoranda em
Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e mestra pela mesma instituição, com
Bacharelado em Letras Português pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
2 Doutoranda em Artes Cênicas pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Mestrado em Teatro
pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), com Bacharelado em Artes Cênicas pela
mesma instituição. Professora substituta do curso de Artes Cênicas na Universidade Federal de Grande
Dourados (UFGD). camileanjos@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/2188120889211432 https://orcid.org/0000-0002-0531-9403
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Este trabalho faz parte de uma pesquisa mais ampla e em andamento, a nível
de Doutorado, realizada no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC)
da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), entre 2020 e 2024, na linha
de pesquisa Imagens Políticas, sob a supervisão da Profa. Dra. Maria Brígida de
Miranda. A tese investiga as representações e as invisibilidades lésbicas no teatro
brasileiro, abordando a concepção de personagens sapatonas criadas por autoras
sáficas e buscando identificar os mecanismos que contribuem para a invisibilidade
dessas subjetividades, o que resulta em apagamentos históricos de identidades
cuja sexualidade difere da norma.
Enquanto pessoa não binária, sapatão, artista e professora de teatro, comecei
a atentar para alguns apagamentos de subjetividades marginalizadas na cena
teatral brasileira. Quando adentrei os princípios do teatro feminista, me depararei
com a necessidade premente de revisões históricas e de aberturas de espaços
para outras possibilidades epistemológicas, especialmente através das lentes dos
estudos feministas decoloniais.
Conforme delineado pelas pesquisadoras e professoras Dra. Maria Brígida de
Miranda e Dra. Daiane Dordete Steckert Jacobs (2019), no plano de ensino da
disciplina "Introdução ao Teatro Feminista", ofertada pelo PPGAC-UDESC, o teatro
feminista abrange uma ampla gama de práticas teatrais, de movimentos
feministas, de teorias críticas feministas e de ativismos políticos, além de englobar
questões relacionadas a sexualidades dissidentes e a desobediências de gênero.
Em outros termos, o teatro feminista funciona como uma plataforma desafiadora
das narrativas dominantes, buscando resgatar vozes historicamente
marginalizadas. A pesquisadora britânica Elaine Aston (1995) destaca a
necessidade de compreender e de dar visibilidade a mulheres que foram omitidas
da história do teatro, propondo a criação de espaços para que essas vozes possam
se expressar e construir suas próprias narrativas, em colaboração com outros
grupos e movimentos.
Ochy Curiel (2020), antropóloga afro-dominicana, aponta a importância de
refutar conceitos universalizantes e de considerar produções de conhecimento
que levem em conta aspectos como geopolítica, raça, gênero, sexualidade, classe
e outros marcadores sociais. Ela salienta que simplesmente identificar opressões
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associadas a esses fatores não é suficiente, pois é fundamental desnaturalizá-las,
reconhecendo sua origem na colonialidade.
As inquietações suscitadas por esses estudos me despertaram para observar
a escassez de representações lésbicas nas dramaturgias que compõem os
cânones do teatro brasileiro. Motivada por tal percepção, decidi empreender uma
investigação em busca de representações que abordassem a existência lésbica
em nossa dramaturgia.
Foi então que me deparei com a peça
As Moças: O Beijo Final
3, escrita por
Isabel Câmara (1940-2006), em 1967. Até o momento de minha pesquisa, entre os
materiais a que tive acesso, esta é a peça nacional mais antiga com temática
sapatão, escrita por uma autora que compartilhava da vivência. Chamou-me
atenção a abordagem explícita da lesbianidade na obra, especialmente
considerando o contexto histórico marcado pela ditadura militar, acirrada pela
implantação do AI-5 em 1968, período de intensa repressão e violência. Apesar das
restrições impostas, Isabel Câmara ousou trazer o tema à tona, em um momento
em que expressões artísticas enfrentavam censura e controle rigoroso, sujeitando
pessoas a perseguições, a prisões e a outras formas de violência.
Ao analisar a recepção crítica da peça, observei um processo de invisibilização
e de patologização da sexualidade dissidente das personagens por parte dos
críticos. Isso me levou a questionar até que ponto a história do teatro brasileiro foi
influenciada pela lógica da heterossexualidade compulsória, apesar de minha
experiência, em mais de vinte anos na área, revelar como o campo teatral muitas
vezes abriga uma proporção significativa de pessoas com sexualidades
dissidentes.
A análise de estudos e de teorias que situam a heterossexualidade como uma
instituição política estruturante do patriarcado remonta mais de quatro
décadas. A escritora e professora estadunidense Adrienne Rich (2019) argumenta
3 uma variação em relação à utilização ou não do subtítulo da peça. Ele aparece nas referências de alguns
trabalhos consultados, como no artigo
Autoficção e autobiografia em As Moças: o beijo final, de Isabel Câmara:
por uma leitura filológica
, de Fagundes e Lima (2015). Entretanto, não encontrei nenhuma publicação em que
o subtítulo viesse expresso. Portanto, neste trabalho, utilizo o subtítulo "O Beijo Final" apenas quando for
necessário para alguma análise específica; nos demais momentos, refiro-me à peça como
As Moças
,
conforme consta na edição da Editora Grua (2019), que consultei para a pesquisa.
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que a heterossexualidade deve ser vista como uma instituição política que
prejudica não apenas as lésbicas, mas também as mulheres heterossexuais e o
movimento feminista. A estudiosa explora como a heterossexualidade reforça
papéis de gênero binários que perpetuam a subjugação das mulheres, ligando-as
à maternidade, aos cuidados domésticos e à dependência dos homens. A recusa
dessas normas é vista como uma ameaça ao sistema social normativo, colocando
em risco a autonomia e a igualdade das mulheres.
Este estudo, portanto, visa destacar a subjetividade sapatão na dramaturgia
de Isabel Câmara e revelar os mecanismos discursivos de invisibilização presentes
nas críticas teatrais à sua obra, contribuindo para a construção de uma tradição
lésbica na história do teatro brasileiro. A relevância deste trabalho está
fundamentada nas premissas do teatro feminista e do feminismo decolonial, que
defendem a necessidade de escavar e de reunir os fragmentos das identidades
marginalizadas pela história oficial, revisando os saberes dominantes e legitimando
epistemologias subalternas.
O presente estudo propõe uma análise das críticas teatrais de Yan Michalski,
no
Jornal do Brasil
(RJ/1969 e 1970), e de Sábato Magaldi, no jornal
O Estado de
São Paulo
(SP/1969), sobre duas montagens da peça
As Moças
, de Isabel Câmara,
de 1967. A peça estreou em São Paulo, em 1969, e foi dirigida por Maurice Vaneau.
No ano seguinte, foi dirigida por Ivan de Albuquerque, no Rio de Janeiro (RJ). O
foco desta investigação recai sobre como Michalski e Magaldi abordaram e
interpretaram as representações lésbicas na obra.
As críticas teatrais desempenharam um papel crucial ao longo do tempo,
sendo, ainda hoje, elementos fundamentais para os registros dos espetáculos
cênicos. Elas não apenas oferecem análises aprofundadas das produções
artísticas, mas também são fontes essenciais para a construção da história do
teatro e para o desenvolvimento de teorias teatrais. O escopo e a influência das
críticas teatrais vão além do simples relato de experiências individuais em
espetáculos, pois refletem a sociedade e contribuem para moldar as percepções
culturais, influenciando a compreensão coletiva acerca das produções teatrais. No
entanto, é importante reconhecer que, historicamente, as críticas têm sido
predominantemente masculinas, brancas e centradas na lógica da
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cisheteronormatividade.
Para construir uma narrativa mais inclusiva e autêntica do teatro brasileiro, é
crucial submeter as críticas teatrais a um escrutínio cuidadoso e a uma revisão
que incorpore perspectivas diversas e descentralizadas. Isso implica desafiar as
normas estabelecidas, questionar os preconceitos subjacentes e reconhecer as
vozes historicamente marginalizadas, como aquelas que emanam das
experiências (plurais) femininas e das dissidências sexuais. Somente ao adotarmos
uma abordagem descentralizada, poderemos enriquecer e ampliar
significativamente a compreensão da riqueza e da diversidade do teatro brasileiro,
revelando histórias que, de outra forma, poderiam permanecer eclipsadas pelo
domínio de perspectivas limitadas.
As experiências lésbicas, frequentemente, sofrem um apagamento mais
pronunciado do que as dos homens gays, evidenciado na desconsideração do
prazer sexual quando não associado à presença de um falo. No contexto da
heterossexualidade arraigada, o sexo entre mulheres é comumente minimizado.
Isso leva a interpretações que infantilizam e equivocam a intimidade lésbica,
perpetuando estereótipos que prejudicam e subestimam a autenticidade e a
validade dessas relações.
Conforme explica Curiel (2020), a heterossexualidade e a definição dos papéis
de gênero são elementos constitutivos da modernidade colonial e estão atrelados
ao capitalismo mundial. Dessa forma, discussões sobre a sexualidade e o prazer
das mulheres apesar de avanços significativos, conquistados pelas lutas
feministas são, até hoje, assuntos que enfrentam tabus na cultura ocidental,
existindo, ainda, limitação quanto ao papel das mulheres no âmbito sexual,
tradicionalmente vistas apenas para procriação e/ou para o prazer do homem
cisheterossexual.
Homossexuais masculinos foram, ao longo da história, condenados
judicialmente em várias sociedades devido a práticas consideradas "pervertidas",
enquanto as práticas sexuais entre mulheres foram, com frequência,
negligenciadas. Um exemplo ilustrativo é fornecido por Leila Míccolis em seu
ensaio: nele, a autora destaca um momento histórico da rainha Vitória, durante a
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reforma do Código Civil, na Inglaterra do século XIX. Quando questionada sobre a
homossexualidade feminina, a rainha, ao responder "isso não existe" (Míccolis,
1983, p. 74), reflete a visão vitoriana oitocentista da mulher como assexuada e a
ideia inconcebível, para a época, de relações sexuais entre mulheres, uma vez que
cumprir esse papel com homens era uma obrigação considerada muito penosa.
Mais recentemente, a pesquisadora Leíner Hoki, no livro
Tríbades, safistas,
sapatonas do mundo, uni-vos: investigações sobre a poética das lesbianidades
(2021), dedica um capítulo a respeito da invisibilização do sexo lésbico. A partir da
pergunta irônica “como as lésbicas transam?” ou “vocês são irmãs?”, ela destaca
que dificilmente tais questões são direcionadas aos homossexuais masculinos,
que, nesse caso, um falo envolvido, o que é suficiente para validar a relação
sexual. A autora ainda destaca que, desde cedo, esta informação é disseminada e
naturalizada: "as crianças crescem ouvindo xingamentos homofóbicos que
ilustram o sexo gay" (Hoki, 2021, p. 51).
Neste trabalho, enfoco a violência gerada pelo apagamento histórico
direcionado às subjetividades lésbicas, violência decorrente de uma perspectiva
heterocentrada, através de uma revisão de elementos que compõem a história do
teatro brasileiro. O propósito é o de contribuir para a criação de novas perspectivas
de imaginários, nas quais as vivências lésbicas sejam afirmativamente
reconhecidas, colaborando para a fundamentação de epistemologias plurais. Este
enfoque não apenas destaca a necessidade de reconhecimento e de visibilidade
para as subjetividades lésbicas, mas também sublinha a importância de questionar
e de reformular narrativas históricas, a fim de promover uma compreensão mais
inclusiva e diversificada do panorama teatral brasileiro.
As Moças e a Moça
O espetáculo
As Moças
estreou em 07 de outubro de 1969, no Teatro Cacilda
Becker, em São Paulo (SP), com direção de Maurice Vaneau e com elenco
composto por Célia Helena, interpretando a personagem Tereza, e Selma
Caronezzi, a Ana. No ano seguinte, ficou em cartaz no Rio de Janeiro (RJ), no Teatro
Ipanema, sob direção de Ivan de Albuquerque e com as atrizes Leyla Ribeiro
(Tereza) e Maria Theresa Medina (Ana). Em 1976, foi remontada em Porto Alegre
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(RS), tendo na ficha técnica Luiz Paulo Vasconcellos (direção) e as atrizes Ida Celina
e Izabel Ibias. Em 1982, fez temporada em Recife (PE), dirigida por Antonio
Cadengue e com elenco composto por Cida Melo e Luci Alcântara. Os registros
mais recentes que acessei são de 2010, no Rio de Janeiro (RJ), tendo na direção
Vítor Lemos Filho e no elenco Dâmaris Grün (Tereza) e Patrícia Vaz (Ana); e de 2014
em São Paulo, sob direção de André Garolli e elenco composto pelas atrizes Angela
Figueiredo (Tereza) e Fernanda Cunha (Ana).
Ao fazer um levantamento da cronologia da peça e ao examinar os registros
disponíveis4, foi inevitável não perceber que, em todas as montagens
documentadas, a direção está invariavelmente associada a nomes masculinos.
Essa observação lança luz sobre uma tendência persistente no cenário teatral: a
predominância de diretores homens na condução de uma obra que, por sua
própria natureza, aborda temáticas intimamente ligadas à experiência feminina e
lésbica.
Isabel Câmara, nascida em Três Corações (MG), em 1940, e falecida em
Goiânia (GO), em 2006, teve uma trajetória diversificada no teatro brasileiro.
Começando como atriz em Belo Horizonte (MG), posteriormente mudou-se para o
Rio de Janeiro (RJ). Embora tenha se destacado como dramaturga com
As Moças
,
havia escrito pelo menos três peças antes, todas publicadas em 1968:
Os
Viajantes
,
A Escolha
e
O Quarto Mundo
. De acordo com Elza Cunha de Vincenzo,
em
Um Teatro da Mulher
(1992), havia uma proposta de adaptar essas obras para
a TV Globo, sob a direção de Domingos Oliveira, porém esses projetos nunca se
concretizaram.
Além de trabalhar com dramaturgia, Isabel Câmara se envolveu em várias
outras atividades no mundo teatral. Ela traduziu
A Pequena Viagem
, de Thorton
Wilder; atuou em peças, como
Hoje é Dia de Rock
, de José Vicente, no Teatro
Miguel Lemos; e codirigiu, junto com Fauzi Arap, o show
Comigo me Desavim
, de
Maria Betânia, em 1967 (Andrade, 2005).
Isabel Câmara recebeu o Prêmio Moliére de Melhor Autor por
As Moças
, em
4 ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL. Verbete: As Moças. Disponível em:
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/evento399233/as-mocas. Acesso em: 19 out. 2023.
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1970. Há indícios5 de textos inacabados, como
Solo para Atriz e Palco
, e de planos
para um projeto de revista musical, que seria sugestivamente intitulada de
Viva
Sapatas
. Como se nota, a extensão das contribuições teatrais de Isabel Câmara
permanece parcialmente documentada e, em certa medida, enigmática.
Sobre a vida pessoal de Isabel Câmara, não encontrei muitas informações
disponíveis. Entretanto, uma narrativa intrigante foi compartilhada pelo escritor e
dramaturgo Antônio Bivar, em entrevista concedida à Maria Lucia Dahl (2010),
publicada na
Revista Aplauso
(coleção perfil)6:
Isabel Câmara me contava da ideia que tinha de fazer uma peça só com
moças usando no título um termo que estava na boca do pessoal.
Dentro do feminismo crescente, as sapatas eram uma nova tribo safista
fazendo vista na sociedade. Moças destemidas, independentes,
engraçadas, glamurosas, sibaritas, amazonas modernas com o pisar
determinado. Daí que Isabel, poeta dessa tribo, nas férias em Petrópolis
anotara ideias para uma peça que já tinha até título: Viva Sapatas.
Isabel estava animada!
Foi a Anecy Rocha, junto com a [Maria] Bethânia que inventaram o termo
sapatão.
Você viu o sapato que ela estava usando?!
Poxa! Que sapatão, hein!
Uma olhava pra outra e comentava sobre alguém:
E a outra respondia, rindo:
Daí começou essa onda de sapata...
A informação de que Isabel Câmara planejava criar uma peça teatral
exclusivamente com mulheres, intitulada
Viva Sapatas
, revela um jogo irônico de
linguagem que remete tanto ao filme
Viva Zapata!
7 (1952), inspirado na vida de
Emiliano Zapata, importante líder da revolução mexicana (1910), quanto ao termo
"sapatão", que, Segundo Bivar, fora cunhado dentro do círculo de amigas de
Câmara, incluindo a renomada cantora Maria Bethânia e a atriz Anecy Rocha8.
O termo "sapatão" é amplamente popularizado no Brasil como referência a
5 ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL. Verbete: Isabel Câmara. Disponível em:
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa359449/isabel-camara. Acesso em: 22 dez. 2023.
6 IMPRENSA OFICIAL.
Site
da editora.
Disponível em:
https://www.editoraimprensaoficial.sp.gov.br/Produto/Visualizar/3120. Acesso em: 01 mar. 2023.
7 Filme dirigido por Elia Kazan, com roteiro de John Steinbeck, baseado na biografia de Emiliano Zapata escrita,
por sua vez, por Edgecumb Pinchon.
8 Anecy Rocha foi atriz de teatro, cinema e televisão. Irmã mais nova do cineasta Glauber Rocha, morreu aos
trinta e quatro anos em um trágico acidente.
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mulheres que se envolvem afetiva e sexualmente com outras mulheres. Embora
tenha sido inicialmente utilizado de forma pejorativa, tem sido ressignificado pelos
movimentos que buscam promover a (r)existência das dissidências sexuais e das
desobediências de gênero. O termo tem ganhado, inclusive, sentidos políticos, por
referir-se a mulheres que se recusam desempenhar o papel de gênero a elas
socialmente destinado retomando as palavras acima, citadas de Bivar: “Moças
destemidas, independentes, engraçadas, glamurosas, sibaritas, amazonas
modernas com o pisar determinado”.
Atualmente, grande parte da comunidade lésbica ostenta, orgulhosamente,
a palavra "sapatão" para se autodesignar, utilizando, além disso, suas variações,
como "sapa", "sapata", "sapatilha", entre outras. Esse processo de ressignificação
reflete a luta por visibilidade e por aceitação das identidades lésbicas na sociedade
brasileira.
Não podemos confirmar a história contada por Bivar a respeito da origem do
termo “sapatão”, mas é bastante provável que importantes figuras do meio
artístico colaboraram para a disseminação de ideias que ecoavam com o
movimento da contracultura9. Esse movimento buscava, entre outras coisas, maior
liberdade para o corpo e afirmação positiva da existência de dissidências sexuais,
representando uma evidente resistência à repressão imposta pela ditadura militar
no Brasil durante aquele período.
A Dramaturgia
A peça de Isabel Câmara retrata um momento na vida de duas moças que
compartilham um pequeno apartamento devido a dificuldades financeiras. As
personagens são Tereza, uma jornalista/escritora de trinta anos, e Ana, uma atriz
de televisão de vinte e dois anos. Antes do texto propriamente, a autora fornece
algumas informações sobre a peça. Ao abordar a ambientação, Câmara descreve
o ato como um suspense, enfatizando que, embora a situação deva parecer
violenta, o tratamento das personagens deve ser delicado (Câmara, 2019).
9 Movimento ideológico, protagonizado por jovens ocidentais, que teve seu auge nos anos 60 e que protestava
contra valores conservadores, reivindicando liberdades ligadas ao corpo e à sexualidade.
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Considerando a ausência de elementos ou de ações concretas, ao longo da
peça, que justifique essa atmosfera tensa e pensando nas personagens como
expostas a uma ameaça indeterminada, torna-se plausível interpretar a tensão
como uma ameaça intangível sobre suas existências. Nesse contexto, poderíamos
pensar na sombra da heteronormatividade que paira sobre elas, agravada pelo
clima de medo disseminado pelo regime militar. A ambientação de suspense e a
sensação de violência podem representar a tensão psicológica e emocional que
as personagens enfrentam devido às expectativas sociais e às normas que
moldam suas vidas.
A relação entre as personagens é sugerida através de palavras que envolvem
afeto. Câmara indica que elas seriam “duas pessoas que entre outras coisas
podem ser grandes amigas um dia. Entre outras, uma
love story
(Câmara, 2019, p.
9). Aqui, já nos é dado um primeiro indício sobre a sexualidade das personagens.
O prólogo da peça se desenvolve por meio da transcrição de uma carta
enviada à autora por uma tia septuagenária, que reside sozinha no interior da
Paraíba. O conteúdo da correspondência, em síntese, é um pedido para que Isabel
a presenteie com um "reloginho de pulso". A tia justifica sua solicitação, explicando
que não se trata de vaidade, mas sim do prazer em consultar as horas para
qualquer atividade (Câmara, 2019, p. 12).
A peça, constituída por ato único, apresenta as personagens Ana e Tereza e
revela a complexidade de seu relacionamento. A trama se desenrola em um
mesmo cenário, o apartamento que compartilham, e revela uma dinâmica
marcada por relacionamento tóxico e por interdependência.
Contudo, dado o limite de extensão deste artigo, não será possível realizar
uma análise aprofundada da peça, como seria desejável. Portanto, concentrarei a
atenção nos elementos que considero relevantes para a discussão proposta neste
trabalho: momentos da dramaturgia em que a sexualidade dissidente das
personagens é explicitamente explorada, deixando-nos sem dúvidas de que se
trata da representação de subjetividades sapatonas.
Denominada
As Moças: o Beijo Final
, essa obra, com seu subtítulo intrigante,
possivelmente representa um marco significativo, sendo talvez a primeira peça,
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publicada no Brasil, a apresentar explicitamente um beijo lésbico. Este momento
é descrito, com todas as letras, na última rubrica da peça: "As atrizes se beijam"
(Câmara, 2019, p. 65).
Além do beijo em si, algumas falas do texto evidenciam a sexualidade
dissidente das personagens. A fim de melhor ilustrar, seguem alguns excertos da
dramaturgia que embasam essa afirmação.
Começamos com Ana a revelar seu medo diante da possibilidade de estar
grávida. Nesse diálogo, entende-se que ela teria abortado uma vez e que, se
estivesse grávida, estaria disposta a fazê-lo novamente. Dentro desse contexto,
Ana faz explícita menção à sua sexualidade dissidente, ao que Tereza desconversa.
A escolha de Tereza em ignorar a menção à sexualidade pode indicar um tabu
social ou pessoal em relação ao assunto.
ANA Tê, e se eu ficar grávida? O meu Deus, começou tudo de novo...
TEREZA Vou ser madrinha.
ANA Não sua burra, faço aborto.
TEREZA Por que você não toma pílula?
ANA Primeiro porque tou na lona, segundo porque mulher não faz filho
em mulher e terceiro porque o meu caso é mulher, sabia?
Tereza finge que não escuta.
TEREZA Vou pegar um pouco do mexido (Câmara, 2019, p. 34).
Tereza também não deixa dúvidas a respeito do fato de se relacionar com
outra mulher e, no mesmo trecho, percebe-se um flerte entre elas:
ANA: Você recebeu carta?
TEREZA: De quem?
ANA: Dela.
TEREZA: Da minha namorada? Não.
ANA: Como é que você aguenta tanto tempo sozinha?
TEREZA: Aguenta como? Eu não tô sozinha por causa dela.
ANA: É por causa de mim, então?
TEREZA: Ora menina, é por causa de mim, pronto (Câmara, 2019, p. 40-
41).
no clímax da peça, Ana ameaça ir embora, porém rapidamente muda de
ideia e se volta, ameaçadora, para Tereza “E já que eu não vou, eu vou ficar. E vou
te comer. Você não disse que eu sou lésbica?” (Câmara, 2019, p. 49). Ana passa,
então, a analisar Tereza em relação aos seus “atrativos sexuais”, quando ela diz:
“Estou fazendo um exame pré-nupcial em você meu amor, pra ver se topo a
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parada. Pra ver se ponho um pouco de vida, de sexo, de loucura até de sacanagem
dentro da tua cabecinha” (Câmara, 2019, p. 50). Tereza, a princípio, não esboça
reação, conforme indica a rubrica
Tereza
,
sentada na cadeira de balanço parece
até que desistiu
” (Câmara, 2019, p. 49).
Tereza, em seguida, inicia um solilóquio, um desabafo existencial carregado
de angústia e frustração. Por fim, a personagem parece aceitar o desafio e propõe
um clima de sensualidade, para perplexidade de Ana.
TEREZA Ana.
ANA Levantou, meu amor?
TEREZA Me dá um pouco dessa champanhe.
ANA Cadê seu copo?
TEREZA Eu não quero no copo.
ANA Vai de gargalo?
TEREZA Eu quero beber da tua boca.
ANA Tê!
TEREZA Põe champanhe na boca, anda!! Eu quero da boca.
Devagarinho, muito devagarinho mesmo. Eu quero saber como você é,
sentir pedacinho por pedacinho. Vou ver se vale a pena, se vale a pena a
experiência. Depois que a champanhe acabar vai ser uma delícia. Eu
posso até amar você, deixar você ver os dentes cariados que eu sinto
vergonha. Um por um. Você vai passar o rosto no meu rosto, nos meus
olhos, eu vou aprender a te ver (Câmara, 2019, p. 54).
A tensão sexual entre Tereza e Ana aumenta gradualmente, com Tereza
expressando uma vontade de se entregar por completo, inclusive mostrando
características pelas quais ela se envergonha, simbolizadas pelos dentes cariados.
Tereza descreve Ana como uma figura sem definição de gênero ou de orientação
sexual, o que a atrai. Ela compara a situação a um sonho anterior e expressa sua
aceitação das características imperfeitas de Ana, encontrando beleza na sua
esquisitice. No entanto, quando parece que um beijo está prestes a acontecer, a
autora subverte as expectativas, interrompendo o momento com uma gargalhada
de Ana.
Após momentos de tensão, as personagens alcançam uma intimidade mais
profunda, resultando em conversas francas e menos provocativas. A partir desse
ponto, elas discutem abertamente sobre questões como o sentimento de
incompletude, a carta de tia Emília, a tentativa de suicídio de Tereza e o medo. Em
um ambiente de tranquilidade, embora efêmero, onde as questões existenciais
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ainda estão presentes, acontece o aguardado beijo final, em um momento
aparentemente ordinário:
TEREZA
Que horas você quer acordar amanhã?
ANA Não tenho hora. E que horas você vai acordar?
TEREZA As nove.
ANA Você me chama pra tomar café com você?
TEREZA
Chamo.
As atrizes se beijam
(Câmara, 2019, p. 65).
Em entrevista a Yan Michalski, Câmara detalha alguns aspectos de sua vida
que foram refletidos na peça:
Então percebi que eu tinha experiências vividas, minhas, através da carta
da tia Emília, através da minha tentativa de suicídio, através dos meus
esforços para sobreviver no Rio, através de acúmulos de frustrações,
através da minha formação bastante torta. E desta constatação surgiram
Ana e Tereza, que tem componentes meus (sobretudo Tereza, porque
coloco em sua boca uma enorme fala que relata uma experiência minha,
vivida e vivenciada). A partir de então me senti bem em relação à peça,
senti que não estava mais com medo de dizer
eu,
e que com isso estava
sendo coerente com a minha ideia de teatro (Câmara apud Andrade,
2005, p. 142-143, grifo da autora).
Considero relevante destacar o tema do suicídio, pois, conforme citação
acima, era uma questão da própria Isabel Câmara, o que nos auxilia a analisar a
abordagem do assunto em alguns momentos da peça. A esse respeito, as
personagens de
As Moças
travam diálogos, por vezes, em que o tratam como um
assunto banal. Exemplo disso é quando Ana fala sobre a sua idade e Tereza
subitamente revela: “Com 22 eu tava no hospital: tentativa de suicídio!”, ao que
Ana desdenha: “Besta besta minha filha. Eu tentei com 20, todo mundo tentou”
(Câmara, 2019, p. 41). E mudam de assunto.
A naturalidade com que as personagens discutem saúde mental na peça
oferece uma visão intrigante das complexidades do tema, revelando sua relevância
na sociedade e a intimidade entre Tereza e Ana. A conexão entre a dramaturgia e
a experiência pessoal da autora, que enfrentou uma tentativa de suicídio, adiciona
autenticidade e sensibilidade à abordagem do assunto. A resposta desdenhosa de
Ana reflete uma resignação compartilhada e uma tristeza coletiva. Tereza, mais
tarde, indica que sua tentativa de suicídio estava ligada a um relacionamento com
outra mulher, destacando a complexidade dos relacionamentos interpessoais,
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especialmente para mulheres lésbicas.
A revelação enfatiza a vulnerabilidade dessas sapatonas diante de desafios
emocionais e proporciona uma visão mais aprofundada da complexidade de suas
vidas afetivas. A intersecção entre sexualidade e questões emocionais ressalta
como as experiências vividas pelas personagens não estão apenas marcadas por
desafios comuns, mas também por uma série de nuances inerentes à sua
orientação sexual. Assim, a peça destaca tanto a dimensão individual das
experiências, quanto questões sociais, culturais e emocionais que se entrelaçam
na jornada de mulheres lésbicas.
Ao introduzir uma análise sapatão sobre a dramaturgia de
As Moças
,
buscamos subverter a normatividade, reconhecendo que as histórias lésbicas
merecem ser exploradas e compreendidas com a mesma profundidade e
relevância que as narrativas heterossexuais. Noss
a abordagem não apenas preenche uma lacuna na representação cultural,
como desafia padrões preexistentes, questionando a validade da visão
heteronormativa como a única perspectiva legítima. Considerei relevante traçar
previamente esse panorama da peça sob uma perspectiva lesbocentrada para,
então, nos atermos às questões que foram (ou não) consideradas pelos críticos
em suas análises a respeito da peça de Câmara.
As Críticas / Os Críticos
Os textos críticos em análise foram produzidos durante a estreia do
espetáculo
As Moças
, em São Paulo (1969) e no Rio de Janeiro (1970), período
marcado pela ditadura militar no Brasil, que se intensificou com a promulgação do
Ato Institucional n. 5, em 1968, estabelecendo a censura prévia contra a imprensa
e as produções artísticas, o fechamento do Congresso Nacional e as restrições a
reuniões políticas não autorizadas. As diretrizes desse governo autoritário
propagavam uma cultura pautada em valores tradicionais, como a família e a
religião cristã, angariando apoio de parte da sociedade. O pesquisador Renan
Quinalha (2021), investigando as políticas sexuais e as violências direcionadas a
pessoas com sexualidades e identidades de gênero dissidentes, destaca o
entrelaçamento entre moral e política como característica fundamental do
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período ditatorial.
Torna-se, portanto, imperativo considerar esse contexto de tensão e de
violência, em que a segurança dos próprios artistas frequentemente demandava o
ocultamento de aspectos vinculados a sexualidades dissidentes.
Além disso, a fim de melhor compreendermos os discursos proferidos em
forma de crítica a respeito da peça em questão, considero relevante trazer à tona,
de antemão, o conceito de "olhar masculino", cunhado por Laura Mulvey (1983) em
relação ao contexto cinematográfico. A crítica cinematográfica britânica argumenta
que o prazer estético dos espectadores masculinos, enquanto construção social,
moldou a representação das mulheres no cinema, dentro de uma lógica patriarcal.
Segundo ela, as mulheres são frequentemente retratadas como objetos passivos
de contemplação, ao passo que os homens são os sujeitos ativos do olhar. Para
Mulvey, o "olhar masculino" não se limita à visão dos homens, mas sim a uma
posição socialmente construída. Ela também explora, em diálogo com a
psicanálise freudiana, como o inconsciente masculino lida com a ansiedade em
relação à castração personificada na figura do ser sem falo (a mulher), buscando
objetificar e fetichizar a figura feminina, de forma a tranquilizar e proporcionar
prazer ao olhar heterossexual masculino, representado nas figuras do espectador,
do “homem por trás da câmera” e do protagonista da trama.
Considerando a perspectiva de Mulvey (1983), aliada ao já citado conceito de
heterossexualidade compulsória (Rich, 2019), é plausível a hipótese de que os
textos críticos que serão analisados a seguir possam ter obscurecido aspectos
fundamentais da peça de Câmara, especialmente no que diz respeito à questão
da lesbianidade. Não se trata de julgar o trabalho desses críticos, mas de refletir
sobre mecanismos discursivos que, por vezes, patologizaram, subvalorizaram ou
ignoraram completamente o aspecto lesbiano.
A necessidade de revisitar críticas escritas durante um período de privações
de expressão no Brasil deve-se não apenas à importância histórica desses
registros, mas também à urgência em identificar artifícios que, até hoje,
contribuem para a invisibilidade e/ou apagamento lésbico, tenham sido eles
motivados por um contexto repressivo ou por uma episteme fundada na lógica
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patriarcal/colonial.
Foco, então, nos textos dos críticos Yan Michalski (1932-1990) e Sábato
Magaldi (1927-2016), publicados em jornais de grande circulação nas cidades do
Rio de Janeiro e de São Paulo, sobre a peça de Câmara. Estes críticos
desempenharam um papel fundamental na construção da história do teatro,
sendo seus discursos elementos formativos ainda estudados em livros
acadêmicos.
A revisão proposta não visa desmerecer o trabalho desses críticos, mas sim
realçar elementos que estruturaram a história do teatro e que, inadvertidamente,
promoveram apagamentos de subjetividades marginalizadas. O objetivo final é o
de contribuir para a construção de narrativas plurais do teatro brasileiro,
permitindo que subjetividades antes marginalizadas possam emergir como
protagonistas de suas próprias histórias.
O texto de Michalski, publicado no Caderno B do
Jornal do Brasil
, em 10 de
outubro de 1969, leva o título direto e objetivo de “As Moças”10. A crítica começa
por apresentar Isabel Câmara como uma "novidade", comparando seu surgimento
ao do autor José Vicente, que também havia chamado a atenção como "novo
autor" no mesmo ano. O crítico destaca que: “Embora dentro de uma concepção
mais simples e linear do que a de
O Assalto
[peça de José Vicente], a autora
estreante revela um evidente talento e uma sensibilidade à flor da pele” (Michalski,
1969, p. 2).
Embora essa publicação seja de um jornal veiculado no Rio de Janeiro, o
crítico analisa a estreia ocorrida em São Paulo, porém anuncia a vinda do
espetáculo, em breve, para os palcos cariocas.
A crítica tem um teor bastante positivo em relação ao espetáculo, tece
elogios a respeito da direção, da atuação das atrizes e, principalmente, da
dramaturgia de Câmara.
Sem recorrer a qualquer fator de ação exterior, valendo-se apenas da
análise dos confusos e sofridos sentimentos das duas protagonistas, a
autora estabelece e desenvolve um denso conflito dramático que vai se
10
Jornal do Brasil
(RJ). 1960 a 1969. Disponível em:
http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=030015_08&pagfis=142156. Acesso em: 20 nov. 2023.
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intensificando num compacto crescendo, para explodir num fortíssimo
clímax catártico e extinguir-se num aparente apaziguamento, deixando
porém claro que nada foi resolvido, que o drama permanece aberto, que
a busca de Ana e Tereza atrás de um indefinido e talvez inexistente porto
seguro recomeçará no dia seguinte (Michalski,1969, p. 2).
Embora o crítico teça elogios à construção das personagens, descrevendo-as
como delineadas “com traços vigorosos e extremamente autênticos"
(Michalski,1969, p. 2), e destaque sua verossimilhança ao representar
personalidades facilmente identificáveis aos jovens daquela geração, é possível
discernir uma nuance de misoginia nas palavras escolhidas para caracterizá-las.
Isso se manifesta, sobretudo, no frequente uso do termo "neurótico", sugerindo,
inadvertidamente, uma conotação patológica.
Ao descrever Ana, o crítico utiliza a expressão "comportamento
neuroticamente extrovertido e livre" (Michalski,1969, p. 2), o que sugere uma
associação de sua extroversão e liberdade a características neuróticas, evocando
a ideia de uma patologia subjacente. De maneira semelhante, ao abordar Tereza,
“cuja aparente resignação é fruto de uma longa sucessão de revoltas
neuroticamente reprimidas” (Michalski,1969, p. 2), o autor contribui para a
perpetuação de uma visão que enquadra aspectos emocionais femininos dentro
de um contexto patológico.
Mais adiante em sua análise, Michalski traz a figura da “velha tia”, concretizada
na carta, lida no prólogo e mencionada pela personagem Tereza. Para o crítico, a
carta seria “uma das chaves” do conflito da peça “por simbolizar o vínculo das
moças com o passado, com a herança de uma formação contra a qual se rebelam,
com uma pureza cuja perda elas sem saber deploram” (Michalski, 1969, p. 2). Em
sua compreensão, o elemento que geraria a crise existencial marcante das
personagens estaria relacionado à “perda de uma pureza”, revelando traços de um
pensamento patriarcal que associa a mulher a um referencial de pureza que, uma
vez perdido, torna-se um tormento.
Embora o autor não explicite o que entende por pureza, ou a perda dela,
podemos interpretar que se refere a comportamentos que seguem padrões
normativos atribuídos ao gênero feminino. Teriam essas mulheres “perdido a
pureza” por não terem casado com um homem ou por apresentarem uma
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sexualidade desviante da heteronormatividade?
A interpretação de Michalski suscita a questão crítica sobre como
concepções patriarcais tradicionais enraízam a identidade feminina em normas
restritivas, vinculando a "pureza" a padrões sociais e a comportamentos que,
quando desafiados, desencadeiam crises existenciais nas personagens. Essa
abordagem revela uma expressão do “olhar masculino” conforme uma visão
estereotipada e limitante acerca da mulher na sociedade. Faz-se, portanto,
necessário questionar a validade dos padrões normativos e acentua-se a
necessidade de uma análise crítica mais aprofundada sobre as motivações por
trás das crises existenciais apresentadas na peça.
Michalski não nos deixa certeza de suas intenções, como também em
nenhum momento do texto menciona a questão da sexualidade das personagens,
ao contrário de Isabel Câmara, que, segundo o crítico, seria “uma jovem autora que
tem algo a dizer, e que sabe dizê-lo com gana e coragem” (Michalski,1969, p. 2).
O autor finaliza a crítica afirmando que as duas atrizes estão “corajosamente
entregues a um
streaptease
moral de uma cruel beleza” (Michalski,1969, p. 2).
Chamo, mais uma vez, a atenção para a escolha das palavras utilizadas pelo crítico:
streaptease
e “cruel beleza”. É simbólico como, ao longo do texto, o autor utiliza,
reiteradamente, termos e expressões tradicionalmente associados ao universo
feminino. Isso evidencia como a questão de gênero se manifesta a nível discursivo,
com destaque a uma sensibilidade específica quando o texto em foco é de autoria
feminina e apresenta personagens femininas. Teriam sido usados os mesmos
termos para analisar a peça de José Vicente?
Na crítica publicada no ano seguinte, intitulada
As Sobrinhas da Tia Emília
11 no
mesmo
Jornal do Brasil
, em 13 de outubro de 1970, por ocasião da estreia da peça
no Rio de Janeiro (RJ), Michalski reafirma alguns pontos de sua crítica anterior,
mas se mostra mais criterioso em outros aspectos. Não obstante, ainda é possível
considerar positiva a análise.
Nesse segundo texto, novamente nenhuma palavra é dita a respeito da
11
Jornal do Brasil
. 1970 a 1979. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DOCREADER/030015_09/196340. Acesso em: 20 nov. 2023.
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sexualidade das personagens. Michalski desenvolve uma ideia, que havia
esboçado na crítica anterior, de que as personagens seriam complementares uma
a outra. De acordo com sua análise sobre o desfecho da peça, uma “tomada
de consciência da identidade fundamental existente entre as situações dos dois
personagens (que podem inclusive, embora não precisem forçosamente, ser
considerados como dois aspectos de uma mesma personalidade)” (Michalski, 1970,
p. 2).
Teria Michalski entendido a relação lesbiana entre as duas como uma
metáfora da complementaridade de suas personalidades? Não é possível
afirmarmos, mas uma interpretação como essa é bastante comum dentro do
pensamento heteronormativo, o qual tende a invalidar relações sexuais entre
mulheres, colocando-as, nesse caso, no campo do simbólico, ao deslegitimar sua
existência.
Outra possibilidade interpretativa seria a da atribuição das duas
personalidades, segundo ele complementares, à figura da autora. Também
outros/as críticos/as e pesquisadoras/es vão adotar como referencial analítico a
influência da biografia de Isabel Câmara para a criação da peça e de suas
personagens. De fato, a possibilidade fora confirmada publicamente pela autora
(Câmara apud Andrade, 2005); entretanto, sua sexualidade não foi considerada por
Michalski como dado válido para interpretação.
Por ora, vejamos o que Michalski diz a respeito:
Isabel Câmara realiza esse pequeno flagrante de costumes e de análise
psicológica com uma surpreendente (por se tratar de uma peça de
estreia) segurança no manejo do material dramático, e com uma
simpaticamente despudorada sinceridade no seu depoimento
confessional (Michalski, 1970, p. 2).
Passamos, então, a Sábato Magaldi, que, assim como seu colega, intitulou seu
texto de “As Moças”. A crítica, publicada em 15 de novembro de 1969, no jornal
O
Estado de São Paulo
, inicia com a citação de uma fala da personagem Tereza, para
ilustrar a ambientação da peça, que, para ele, trata de “um mundo sofrido, de
melancolia e solidão, cheio de delicadeza e de recato” (Magaldi, 1998, p. 242),
embora não se dedique a analisar as causas dessas condições.
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As falas da peça, selecionadas pelo crítico, são, na verdade, bem reveladoras.
Tereza diz: “porque eu existo. Eu não sou um fantasma. Eu estou viva e eu quero
viver” (Câmara apud Magaldi, 1998, p. 243). Ora, se nos atentarmos para essa fala
sob uma perspectiva sapatão, a personagem pode estar expressando a violência
que sofre através de processos de invisibilidade e de apagamento de sua
subjetividade lesbiana. E se, ainda, considerarmos a dissidência sexual da autora e
a possibilidade de aspectos autobiográficos estarem presentes no texto, o grito
por visibilidade se potencializa.
O crítico também evidencia a figura da velha tia, que “apenas queria um
reloginho do pulso”. Segundo Magaldi, “a autora espanta-se com a simplicidade
das pessoas que se encerram nesses dados objetivos, inveja-as, gostaria de ser
também retilínea e segura”. Mais adiante, complementa: “representa um ato de
coragem sobretudo no teatro esse recolhimento, esse pudor, esse gosto da
atmosfera poética e das coisas menores” (Magaldi, 1998, p. 244). Quais seriam
essas “coisas menores” que desejariam as personagens e a autora?
Pegando como ponto de partida a sugestão interpretativa de Magaldi, penso
que as “coisas menores” poderiam ser, por exemplo, anseios por uma vida mais
convencional, em que a identidade e os relacionamentos não precisassem estar
ocultos. A referência à tia, que "apenas queria um reloginho do pulso", simbolizaria,
talvez, o desejo por coisas simples e objetivas na vida, algo que muitas pessoas
podem ter, mas que, para as personagens em questão (ou para a autora),
representa um ato de coragem devido às pressões sociais e às expectativas
normativas, especialmente quando se vive sob um Estado repressor.
No contexto das sexualidades dissidentes, as "coisas simples" desejadas
podem incluir a liberdade de expressar afeto publicamente, de falar abertamente
sobre desejos e sentimentos e de viver de maneira autêntica, sem medo de
discriminação ou violência. O sentimento de frustração, para muitas pessoas, é
uma constância em suas existências, pois está relacionado a restrições impostas
pela sociedade, a qual, muitas vezes, obriga pessoas com sexualidades dissidentes
a esconderem sua verdadeira identidade, a fim de evitarem discriminação,
violência ou simplesmente desconforto por não se encaixarem nas normas sociais.
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Mais adiante, na crítica, Magaldi passa para uma análise mais subjetiva das
personagens e afirma: “no decorrer do ato único, insinua-se um clima de entrega
mútua, num sabor ambíguo que poderia sugerir a relação homossexual” (Magaldi,
1998, p. 244). Entretanto, como foi previamente evidenciado no subtítulo da
dramaturgia, a questão lesbiana fica explícita na peça; em outros termos, não
espaço para entendimento “ambíguos” ou para “sugestão” a respeito da
sexualidade das personagens.
Em seguida, o crítico expõe sua interpretação a respeito da relação entre Ana
e Tereza: “Na verdade, o que se procura romper é a solidão, na ânsia de comunicar-
se” (Magaldi, 1998, p. 244). A análise do autor, que tenta sutilizar e justificar a
relação sexual entre mulheres como uma tentativa de romper a solidão, na ânsia
de se comunicar, abre portas para interpretações e questionamentos.
Ao deslegitimar a sexualidade entre mulheres, conferindo-lhe um
status
simbólico e subjetivo, o autor parece propor uma leitura mais metafórica ou
simbólica da relação, em vez de aceitar a sexualidade lésbica como uma expressão
genuína de desejo e de afeto (assim como o fizera Michalski, no meu entender).
Aqui, cabe outra pergunta: qual seria a origem dessa solidão? A interpretação
proposta pelo autor, de que a solidão decorreria da ânsia de comunicar-se, sugere
que a falta de comunicação ou de conexão com outros seria o principal motor da
solidão. No entanto, as razões não são evidenciadas por Magaldi. Estaria implícito
que a solidão decorreria do fato de a personagens não terem a companhia de um
homem? Ou seria a solidão decorrente da consciência de um risco inerente às
existências das personagens, de um perigo contra a expressão de suas identidades
pela falta de conformidade com as normas sociais, gerando a necessidade de
ocultarem partes significativas de suas vidas?
Posteriormente, o autor seleciona, mais uma vez, uma fala da personagem
Tereza, a qual fortalece nosso entendimento a respeito do perigo inerente às
pessoas com sexualidades dissidentes. Ela diz: “Até o dia que aprender que você
Ana e eu Tereza somos umas moças que ou existimos muito ou não existimos
nada” ao que o crítico sentencia: “Tereza não existe nada, na expectativa de uma
plenitude de vida, em que ela a rigor não acredita” (Magaldi, 1998, p. 245).
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Na parte final do texto, seguindo com a análise a respeito das personagens,
Magaldi afirma: “Ana apenas existe, como existem tantos objetos, e tira seu
encanto dessa imanência naturalmente sedutora, em que não se indagam os
problemas que a levaram a tornar-se homossexual” (Magaldi,1998, p. 245). Nessa
curta frase, o crítico reduz a personagem Ana à condição de objeto, devido à sua
aparência condizente com os padrões de beleza hegemônicos. Para o autor, pelo
fato de a personagem ser “bonita” e “naturalmente sedutora”, ela não precisaria
se preocupar com questões existenciais (como o faz Tereza, considerada “feia e
velha”). Esse tipo de pensamento, fundamentado no patriarcado, contribui para a
reificação da mulher, retirando-lhe a humanidade e a profundidade de sua
existência.
Ao descrever Ana como uma figura cuja personalidade é moldada
espontaneamente devido à sua juventude e à sua aparência, Magaldi parece
ignorar a complexidade da identidade e da experiência da personagem. A redução
da personagem a uma "personalidade espontaneamente irrefletida" contribui para
um retrato raso e estereotipado.
Magaldi arremata seu texto com uma afirmação preconceituosa, revelando
um olhar patologizante a respeito da lesbianidade. Ao atribuir “frivolidade” à
personagem, ele afirma que Ana sequer questiona “os problemas que a levaram a
tornar-se homossexual”, sugerindo que a dissidência sexual seria reflexo de algum
"problema" na subjetividade de pessoas que se comportam fora dos padrões
impostos pela heteronormatividade.
O crítico conclui sua análise ponderando sobre alguns elementos que
considera falhos na dramaturgia de Isabel Câmara. Ele destaca que a autora
apresenta, em sua escrita, características mais literárias do que propriamente
teatrais. No entanto, apesar dessa observação, Magaldi reconhece o potencial de
Câmara e expressa confiança em seu futuro enquanto dramaturga.
Considerações Finais
Neste trabalho, procuramos analisar as críticas teatrais escritas por Yan
Michalski e Sábato Magaldi sobre a peça
As Moças
(1967), de Isabel Câmara,
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destacando os apagamentos produzidos por esses discursos a respeito das
experiências lesbianas contidas na obra e na biografia da dramaturga.
Tal revisão se faz necessária, uma vez que, historicamente, o teatro brasileiro
tem sido registrado e teorizado, em sua maioria, a partir do ponto de vista
hegemônico, que marginaliza existências dissidentes e as alija da história do teatro
brasileiro.
Os discursos proferidos por Magaldi e Michalski, em formato de crítica teatral,
validados pela publicação em jornais de grande circulação no Brasil, foram
recorrentemente utilizados como fontes históricas para a elaboração de teorias
teatrais e para a sedimentação de narrativas sobre o teatro brasileiro. No entanto,
esses discursos provocam uma produção de saber que ignora ou subjuga
subjetividades subalternizadas, invalidando suas experiências e apagando suas
epistemologias.
Uma obra dramatúrgica como
As Moças
, elaborada por uma autora sapatão
e constituída de personagens sapatonas, foi submetida à análise de críticos
masculinos e brancos, cujos referenciais teóricos refletiam conhecimentos
historicamente validados pelo Norte Global. Estes críticos, enraizados em uma
perspectiva cisgênera e heteronormativa, basearam suas interpretações em uma
epistemologia hegemônica, que tende a marginalizar e desconsiderar saberes
subalternizados.
A já citada feminista decolonial Ochy Curiel (2020) dialoga com os conceitos
de “colonização discursiva” e de “violência epistêmica”, propostos,
respectivamente, por Chandra Mohanty e Gayatri Spivak (ambas de origem
indiana), para fundamentar as dinâmicas de poder e de privilégio que permeiam a
produção de conhecimento sobre mulheres do Terceiro Mundo, especialmente
quando essa produção é realizada por intelectuais provenientes de países do Norte
global, frequentemente brancos.
A colonização discursiva refere-se ao processo pelo qual o conhecimento
sobre mulheres de determinadas regiões é construído a partir de uma perspectiva
dominante, muitas vezes colonial e imperialista, que subjuga as vozes e as
experiências dessas mulheres aos intelectuais dominantes.
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Já a violência epistêmica ocorre no âmbito do conhecimento e da produção
acadêmica, manifestando-se quando vozes e perspectivas de mulheres do
Terceiro Mundo são silenciadas ou distorcidas por intelectuais do Norte global, que
ocupam posições de privilégio, tanto no contexto acadêmico quanto no
geopolítico.
Em resumo, esses conceitos evidenciam como a produção de conhecimento
sobre mulheres é marcada por relações desiguais de poder, resultando em uma
representação inadequada e injusta dessas mulheres.
Este trabalho destaca, por fim, a urgência de revisitar textos cruciais para a
história e para a teoria do teatro, como as críticas teatrais, que foram produzidas,
em sua maioria, sob uma perspectiva cisheterocentrada, branca e masculinista. Se
nos propomos a analisar uma peça escrita por uma lésbica sobre personagens
lésbicas, é imperativo que revisemos as análises a partir de perspectivas lésbicas.
A fim de melhor me expressar, recorro, mais uma vez, às palavras de Curiel:
Não estou dizendo que apenas quem sofre certas opressões é capaz de
entender e investigar as realidades que afetam outras pessoas, mas digo
que existe um
privilégio epistêmico
importante de ser considerado na
produção do conhecimento. Isso significa que a subalternidade precisa
deixar de ser objeto e passar a sujeito do conhecimento (Curiel, 2020, p.
132, grifo da autora).
Este esforço é apenas o início de uma série de trabalhos necessários para
atualizar a história do teatro brasileiro, promovendo pluralidade de perspectivas,
reduzindo apagamentos e fomentando verdadeiras inclusões. O caminho à frente
requer uma contínua reflexão crítica, a fim de assegurar que as vozes
marginalizadas sejam ouvidas e que a história do teatro seja reescrita de forma
mais completa e representativa.
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Recebido em: 15/02/2024
Aprovado em: 01/04/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
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Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
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