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Um barco, um rio, um circo
Rogério Zaim-de-Melo
Luís Bruno de Godoy
Teresa Ontañón Barragán
Para citar este artigo:
MELO, Rogério Zaim-de; GODOY, Luís Bruno de;
BARRAGÁN, Teresa Ontañón. Um barco, um rio, um circo.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 2, n. 51, jul. 2024.
DOI: 10.5965/1414573102512024e0302
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Rogério Zaim-de-Melo | Luís Bruno de Godoy | Teresa Ontañón Barragán
Florianópolis, v.2, n.51, p.1-20, jul. 2024
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Um barco, um rio, um circo1
Rogério Zaim-de-Melo2
Luís Bruno de Godoy3
Teresa Ontañón Barragán4
Resumo
No mês de outubro de 2023, uma trupe composta por um professor universitário, um professor de
circo e oito acadêmicos subiu o rio Paraguai em direção ao alto Pantanal para apresentar um
espetáculo de circo para crianças que vivem nas regiões alagadas e estudam nas escolas das águas. O
presente relato tem o objetivo de narrar a experiência de proporcionar a alunos(as) de duas escolas
das águas do Pantanal sul-mato-grossense a oportunidade de assistir a um espetáculo circense e, de
maneira sucinta, apontar algumas descrições desse encontro: crianças das águas pantaneiras com o
circo.
Palavras-chave
: Pantanal. Circo. Escolas das águas.
A boat, a river, a circus
Abstract
In October 2023, a troupe made up of a university professor, a circus teacher and eight academics
traveled up the Paraguay River towards the upper Pantanal to present a circus show for children who
live in the flooded regions and study at the “escolas das águas”. The aim of this report is to recount the
experience of giving pupils from two “escola das águas” on the Pantanal in the state of Mato Grosso
the opportunity to watch a circus show and to briefly describe this encounter: children from the
Pantanal waters and the circus.
Keywords
: Pantanal. Circus. Schools of the waters.
Un barco, un río, un circo
Resumen
En octubre de 2023, una compañía formada por un profesor universitario, un profesor de circo y ocho
académicos remontó el río Paraguay hacia el Pantanal superior para presentar un espectáculo de circo
a los niños que viven en las regiones inundadas y estudian en las “escolas das águas”. El objetivo de
este informe es relatar la experiencia de ofrecer a los alumnos de dos “escola das águasdel Pantanal,
en el estado de Mato Grosso, la oportunidad de asistir a un espectáculo de circo y señalar brevemente
algunas descripciones de este encuentro: los niños de las aguas del Pantanal y el circo.
Palabras clave
: Pantanal. Circo. Escuelas de las aguas.
1 Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Mirna Juliana Santos Fonseca, licenciada em Letras-
francês pela Universidade Federal do Ceará, Mestra e Doutora em Educação pela PUC-Rio.
2 Doutor em Ciências Humanas, Educação pela PUC-Rio. Mestre em Educação Física pela USP. Licenciado em
Educação Física pela UNESP, Rio Claro. Prof. Adjunto do curso de Educação Física e do Mestrado em Estudos
Fronteiriços da Universidade Federal do Mato Grosso Sul (UFMS) - Campus do Pantanal.
rogeriozmelo@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/1352324187056085 https://orcid.org/0000-0002-0365-6000
3 Doutor em Educação Física e Sociedade pela Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP). Mestre em Ciências Humanas e Sociais pelo programa Interdisciplinar em Ciências
Humanas e Sociais Aplicadas. Bacharel em Ciências do Esporte. Ator e palhaço habilitado pelo Sindicato dos
Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversão (SATED). godoy.lb@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/6501810364543985 https://orcid.org/0000-0003-0857-9937
4 Doutora em Educação sica pela Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp). Mestrado na mesma Faculdade, na área de Educação Física e Sociedade. Graduação (Licenciatura
e Bacharelado) em Ciências da Atividade Física e do Esporte pela Universidade Politécnica de Madri (Espanha),
com especialidade em Educação Física, Lazer e Recreação. Licenciatura em Pedagogia pela Universidade do
Norte de Paraná. Professora efetiva do curso de Educação Física da Universidade do Estado de Minas Gerais
(UEMG) - Ituiutaba. teresa.barragan@uemg.br
http://lattes.cnpq.br/1091012061567759 https://orcid.org/0000-0002-1858-9218
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Uma imensidão de águas
O Pantanal é a maior planície alagada do mundo, cenário paradisíaco de
novelas e filmes5, conhecido por sua fauna e flora exuberante, consequência do
ciclo das águas, em um loop infinito, com a cheia dos rios e, posteriormente, com
a vazante e a estiagem, sendo impossível saber onde começa e onde termina. O
ritmo da inundação e a estabilização da cheia provocam transformações
significativas nas paisagens e nos modos de vida dos habitantes desse lugar (Da
Silva; Silva, 1995).
Corumbá, município de Mato Grosso do Sul, abriga 60% do Pantanal brasileiro
e, por isso, leva a alcunha de “capital do Pantanal”, pois aproximadamente 95,6%
dos seus 64.965 km² estão em terras pantaneiras. A área urbana de Corumbá
abrange 39 km², representando apenas 0,06% da extensão total do município
(Zaim-de-Melo et al., 2020).
Nessa conjuntura, a população corumbaense se divide entre os que moram
nas cidades, os que moram no campo e quem mora nas áreas alagadas, nas
regiões ribeirinhas peões de fazendas de gado, pescadores, isqueiros (coletores
de iscas para a pesca, visando a comercialização), agricultores familiares de
subsistência, mineiros e as etnias indígenas Guató, Terena, Kadiwéu, Kinikinau e
Ayoreo (Araújo, 2023). De acordo com a prefeitura de Corumbá, em 2015,
aproximadamente 651 famílias residiam nas áreas alagadas, totalizando 2.066
pessoas (Corumbá, 2015).
A forma de viver dos que habitam as áreas alagadas está intimamente
conectada ao ritmo da natureza e, por meio dessas experiências, formam suas
percepções sobre os lugares onde residem, interagindo com a natureza em seu
entorno, gerando uma compreensão que sentido à sua existência, levando em
consideração a construção e compartilhamento de saberes (Manfrinate; Nora;
Rossetto, 2020).
5 Em 2022 e 2023 foram veiculados, respectivamente, a novela “Pantanal”, de Bruno Luperi, e o filme “Destinos
opostos”, de Walther Neto.
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Morar nas “águas” tem seus benefícios e o principal é conviver com uma
natureza deslumbrante, onde é possível avistar, sem nenhum esforço, tuiuiús,
colhereiros, curicacas, garças, tucanos, ariranhas, jacarés, capivaras, tamanduás e
a temida onça-pintada. O tempo flui de maneira mais tranquila, sem as demandas
da vida na cidade, desprovido das inquietações do dia a dia urbano, seguindo o
ritmo único do Pantanal, ao despertar com os primeiros raios de sol e repousar
algumas horas após o seu ocaso.
Porém, viver nas áreas alagadas tem suas agruras, como a escassez de água
potável ou a falta de energia elétrica, as queimadas ilegais e/ou acidentais as
quais geram problemas para a saúde dos pantaneiros, quanto ao cultivo de
alimentos para a subsistência e as mudanças climáticas, que vêm se
intensificando nos últimos anos (Siqueira, 2015). Outra dificuldade vivida pelos
locais é o acesso a serviços essenciais, como educação, saúde e cultura. Os
serviços das duas primeiras áreas são considerados precários e o acesso a bens
culturais (exposições de arte, concertos musicais, espetáculos circenses) é
considerado inexistente (Zaim-de-Melo et al., 2020).
As políticas públicas para a região são escassas. No que concerne à saúde, a
prefeitura de Corumbá criou, em 2012, o programa Povo das Águas, em parceria
com as Forças Armadas e entidades civis, com o objetivo de levar atendimento
médico e odontológico à população ribeirinha e promover a manutenção da
carteira vacinal das crianças (Corumbá, 2012). As regiões pantaneiras recebem esse
programa de duas a três vezes por ano.
No campo educacional, para atender a essa população, o município de
Corumbá conta com as “escolas das águas”, assim chamadas informalmente
devido à sua localização em áreas remotas, onde são impactadas pelo ciclo
sazonal das águas do Pantanal (Zaim-de-Melo; Duarte; Sambugari, 2020). O total
de unidades de ensino que constituem essas escolas flutua de acordo com as
mudanças nas políticas governamentais, especialmente no que diz respeito às
alterações na Secretaria Municipal de Educação de Corumbá, e às necessidades
das comunidades do Pantanal em busca do acesso à educação (Zaim-de-Melo et
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al., 2022). Em 2023, estavam em funcionamento 10 unidades de ensino, com 5
polos e 5 extensões (Corumbá, 2023).
Diante desse contexto, considerando a não existência de projetos culturais
para o povo das águas, e inspirados pelo projeto “Navegando pelo rio dos sonhos”
6 (Zaim-de-Melo et al., 2020), foi desenvolvida, em 2019, uma ação de extensão “o
Circo vai a uma escola das águas” da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul
(UFMS), que tinha como um de seus objetivos ampliar o acervo cultural das
crianças das regiões alagadas, estudantes das escolas das águas. Finalizado o
projeto, a ideia era continuar expandindo-o para outras unidades, mas, diante da
pandemia da Covid-19, a ação precisou ser interrompida. Passados quatro anos,
foi possível retomar a experiência de levar a arte circense para as crianças das
águas, esquecidas pelas políticas públicas no que concerne à cultura. Dessa forma,
o presente artigo tem o objetivo7 de narrar a vivência de proporcionar a alunos(as)
de duas escolas das águas do Pantanal sul-mato-grossense a oportunidade de
assistir um espetáculo circense e de descrever o encontro dessas crianças com o
circo, sob o ponto de vista do(a) acadêmico(a) artista e dos(as) professores(as) das
escolas8.
Preparativos
A entrada do circo nas universidades brasileiras é um fenômeno
relativamente recente. Primeiro, houve o interesse do circo como um objeto de
investigação científica (Ontañón; Duprat; Bortoleto, 2012) e de ensino (Miranda;
Bortoleto, 2018), para depois ser visto como possibilidade de experiências
formativas, artísticas e docentes (Miranda; Ayoub, 2017). É no contexto da
formação que se inscrevem os projetos de extensão universitária que promovem
o intercâmbio entre o ensino e a pesquisa com ações que beneficiam a
6 Projeto desenvolvido em parceria da UFMS com uma companhia de teatro Cia Maria Mole e uma companhia
de circo Cia da Lona, entre 2005 e 2008, que, em um barco adaptado para ser um picadeiro de circo, explorou
o rio Paraguai no Pantanal sul-mato-grossense, difundindo a arte circense entre a população ribeirinha.
7 Embora o objetivo principal seja uma narrativa, sob o ponto vista de um dos autores, é preciso esclarecer que
os princípios éticos de pesquisa foram respeitados, e faz parte das ações desenvolvidas a partir de um projeto
de pesquisa devidamente aprovado no Comitê de Ética e Pesquisa da UFMS (CAAE nº 31691320.7.0000.0021).
8 No vídeo https://www.youtube.com/watch?v=aEF3lhlbSIs&t=127s é possível conhecer um pouco mais a
experiência.
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comunidade interna e externa à universidade (Zaim-de-Melo et al., 2021).
Após criado o projeto, nossa ida às escolas das águas foi pautada na poesia
de Manoel de Barros, apoiada na sensibilidade que, segundo o poeta, é o
entendimento do corpo. E assim, com o nosso corpo fizemos poesia, acreditando
que a arte circense foi feita não para ser compreendida, mas para ser incorporada
(Barros, 1990).
Abordamos o circo como uma linguagem artística que se conecta com
diversas expressões estéticas, culturais, técnicas e sociais, que deu origem a
espetáculos que percorreram, e ainda percorrem, desde os menores vilarejos até
os grandes centros urbanos brasileiros (Lopes; Silva, 2014). O circo se configura
como uma forma de arte multifacetada, a partir de uma diversidade de corpos
que se destacam pelas habilidades “extraordinárias” que podem realizar,
explorando limites, indo além das capacidades físicas, sem restrições ou
trajetórias predefinidas. O cerne do seu processo criativo reside em explorar as
capacidades únicas de cada indivíduo com seu corpo, originando uma
performance artística dessas descobertas: “o circo combina desafio e habilidade,
seja no voo ou na aterrissagem segura, na altura ou no equilíbrio preciso, na
propulsão ou em acrobacias complexas” (Tucunduva; Bortoleto, 2019, p. 11).
A partir dessas perspectivas, e da mesma forma como inúmeras instituições
educativas brasileiras encontram um caminho para a inserção do circo por meio
da extensão universitária, foi oferecido na UFMS, um projeto extensão de
atividades circenses “Redescobrindo o circo como recurso pedagógico”, vinculado
ao curso de Educação Física, coordenado pelo professor Rogério Zaim-de-Melo,
que teve como principal objetivo colaborar com a formação de futuros(as)
professores(as), colocando-os(as) no lugar de protagonistas e atores, rompendo
as barreiras da timidez e da insegurança e, ao mesmo tempo, no caso dos(as)
acadêmicos(as) de um curso de formação de professores, oferecendo a
possibilidade de um conhecimento democrático, que aceita todos os padrões
corporais e opções de gênero e sexualidade.
O projeto consiste em dois encontros semanais, com duração de duas horas.
No primeiro semestre, as atividades são organizadas em duas partes. A primeira
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consiste em alongamentos, exercícios de consciência corporal e acrobacias
individuais e em grupo. Na segunda, são apresentadas as diversas modalidades
circenses (malabarismo, equilíbrio – de objetos e sobre objetos, acrobacias aéreas
tecido e lira, antipodismo e acrobacias realizadas com minitrampolim). No
segundo semestre, a organização é semelhante, diferindo na participação de
acadêmicos(as) que praticam as modalidades nas quais adquiriram afinidade,
realizando uma espécie de treinamento mais direcionado (Zaim-de-Melo; Godoy;
Santos Rodrigues, 2021).
Um barco, um rio, um circo
Para a retomada efetiva do projeto, no início do segundo semestre, entramos
em contato com a Secretaria Municipal de Educação (SEMED), explicando nossa
intenção de levar a arte circense para duas das escolas das águas, localizadas no
Alto Pantanal9. Com o apelo: “nos um barco que faremos um circo”, nossa
solicitação foi prontamente aceita, com apenas um senão: a SEMED
disponibilizaria a lancha, o piloteiro, mas não tinha condições de fornecer o
combustível para a nossa viagem. Para solucionar esse problema, fizemos um
crowdfunding
e, em menos de 15 dias, havíamos alcançado o valor necessário.
As escolas escolhidas para a recepção do espetáculo de circo foram: Jatobazinho
e Paraguai Mirim, unidades de ensino que distam 104 km e 140 km,
respectivamente, do Porto Geral (PG) de Corumbá (Figura 1). O trajeto é feito de
lancha, rio acima, e dura 3h30 até a Jatobazinho, e aproximadamente mais 40
minutos que isso até Paraguai Mirim. Por ser mais próxima, além de ser palco de
uma das apresentações, a escola Jatobazinho funcionou, também, como
alojamento dos(as) acadêmicos(as) e como ponto de apoio, camarim e pouso.
9 O Pantanal sul-mato-grossense é dividido em três áreas distintas, cuja referência para distingui-las é a
distância do Porto Geral (PG), localizado na região central do município de Corumbá. São elas: o Alto Pantanal,
situado na divisa com o estado do Mato Grosso, localizado a aproximadamente a 320 km do PG; o Médio
Pantanal, ou Região do Taquari, localizado a aproximadamente 180 km do PG; e, o Baixo Pantanal, localizado
a aproximadamente 280 km do PG.