A Autoficção: uma engenharia do eu
Sergio Blanco
Tradução: Esteban Campanela | Revisão da Tradução: Vicente Concilio
Florianópolis, v.3, n.48, p.1-18, set. 2023
mesmo”. Minhas autofiçcões não celebram a si mesmas em uma promoção do
eu, muito pelo contrário, são simplesmente uma tentativa de me entender como
uma forma de entender os outros.
Vou tentar explicar, não numa tentativa de prestar contas, mas para
ajustar
contos, e para isso vou deixar de lado a perspectiva histórica das diferentes
escritas do
eu
, para apresentar minha própria experiência, que é a minha escrita
do
eu
.
Dizer-me a mim mesmo: poetizar-me em
Kassandra
Qualquer uma das minhas autoficções foi escrita não para me expor, mas
para me procurar. Todas elas foram escritos a partir de um
eu
que procura na
escrita uma oportunidade de encontrar-se a si mesmo para assim encontrar aos
outros. É por meio dessa escrita do
eu
que descobri essa possibilidade de
me
dizer, isto é, a possibilidade de construir a meu relato e, portanto, achar aos outros.
Mas este relato escrito será - como toda narração - absolutamente falso, já
que a linguagem de início faz com que a realidade da qual partimos se torne uma
ficção. Como bem explica Philippe Vilain: "o que produz a ficção é a escrita, ou
seja, levar o relato ao papel, e não a invenção ou a distorção dos fatos".
A escrita, portanto, afasta o real, o afugenta. De certa forma, o convoca, mas,
para traí-lo. Toda escrita é um ato de traição da realidade pela simples razão de
que os
mecanismos de poetização
mudam, alteram, perturbam, transformam.
Autoficcionar-se é como transicionar: embaralhar os traços do vivido. Não é
por acaso que a minha primeira autoficção,
Kassandra
, conta a história de uma
personagem travesti, que é aquele ser que de alguma forma decide intervir em
seu corpo ficcionando assim seu relato:
Kassandra: I’m not a girl, No. I’m a boy. I born boy, but after, I transformed
my body. And now I’m Kassandra. I need work. Work with my body. I’m
not a women, I’m not a boy, I am Kassandra.5
5 Nota do revisor:
Kassandra
é um texto escrito em inglês para ser encenado em inglês. Segundo Blanco, no
prefácio do texto, o inglês é a língua das trocas mercantis. Kassandra, então, expressa-se em um inglês
imperfeito, tentando conversar na língua do comércio transnacional. No trecho citado, ela fala: “Não sou
uma garota. Eu nasci menino, mas depois e transformei meu corpo. E agora eu sou Kassandra. Preciso
trabalhar. Trabalhar com meu corpo. Não sou uma mulher, não sou um garoto, eu sou Kassandra.”