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Escrevivências de um corpo preto entre-lugares na
peça de teatro pós-moderno
Bagagem de Desjeitos”
Thiago Francysco Rodrigues Cassiano
Gustavo Henrique Lima Ferreira
Para citar este artigo:
CASSIANO, Thiago Francysco Rodrigues; FERREIRA, Gustavo
Henrique Lima. Escrevivências de um corpo preto entre-
lugares na peça de teatro pós-moderno "Bagagens de
Desjeitos".
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 1, n. 50, abr. 2024.
DOI: 10.5965/1414573101502024e0208
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Escrevivências de um corpo preto entre-lugares na peça de teatro
pós-moderno1
Bagagem de Desjeitos”2
Thiago Francysco Rodrigues Cassiano3
Gustavo Henrique Lima Ferreira4
Resumo
Este artigo discute o processo de criação cênica Corpo-Alvo: Poética e Singularidade
de um Corpo Preto Entre-Lugares” que integra o espetáculo Bagagem de Desjeitos”,
resultante do curso de Teatro da Universidade Federal do Tocantins. O objetivo é
problematizar questões de raça/racismo infringidas aos corpos pretos de modo
estrutural. O referencial teórico se construiu partindo de estudos em filosofia
cosmológica africana e de pesquisas em teatro. Conclui-se que as artes da cena
podem potencializar a problematização do racismo/racialização nos corpos-pretos,
uma vez que a práxis teatral possibilita ao encenador e/ou performer investigar os
impulsos silencia(dores) que represam a sua existência.
Palavras-chave
: Teatro pós-moderno. Corpos pretos/afrodiaspóricos. Teatro.
Universidade Federal do Tocantins..
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Letícea Maria Alves Braga. Mestre em
Letras na Universidade Federal do Piauí (UFPI). Graduada em Letras - Português pela UFPI.
2 Termo utilizado a partir do ato falho do ex-Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro (PL) durante o
rompimento da barragem de dejetos na cidade de Brumadinho Minas Gerais Brasil.
3 Mestrando em Educação pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). Especialista em Docência do Ensino
Superior pela Faculdade Venda Nova do Imigrante (FAVENI - 2019). Licenciatura em Teatro pela UFT.
Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Paulista (UNIP - 2016). thiagocassiano@mail.uft.edu.br
http://lattes.cnpq.br/3933666032471999 https://orcid.org/0000-0003-0502-4223
4 Doutorando em Artes pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP).Mestrado em
Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Graduação em Artes Cênicas -
Habilitação em Direção Teatral pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor em regime de
dedicação exclusiva do curso de Licenciatura em Teatro na Universidade Federal do Tocantins (UFT).
gustavohenrique@mail.uft.edu.br
http://lattes.cnpq.br/7417670796202428 https://orcid.org/0000-0003-4298-2156
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Escrevivências of a black body between places in the postmodern theater play
Bagagem de Desjeitos”
Abstract
This article discusses the process of scenic creation Corpo-Alvo: Poética e
Singularidade de um Corpo Preto Entre-Lugaresthat is part of the show Bagagem
de Desjeitos”, resulting from the Theater course at the Federal University of
Tocantins. The objective is to problematize issues of race/racism inflicted on black
bodies in a structural way. The theoretical framework was constructed based on
studies in African cosmological philosophy and research in theater. It is concluded
that the performing arts can enhance the problematization of racism/racialization in
black bodies, as theatrical praxis allows the director and/or performer to investigate
the silencing impulses that hinder their existence.
Keywords:
Postmodern theater. Black/Aphrodiasporic bodies. Theater. Federal
University of Tocantins.
Escrevivências de un cuerpo negro entre lugares en la obra de teatro
posmoderno Bagagem de Desjeitos”
Resumen
En este artículo se analiza el proceso de creación escénica Corpo-Alvo: Poética e
Singularidade de um Corpo Preto Entre-Lugares” que forma parte del espectáculo
Bagagem de Desjeitos”, resultante del curso de Teatro de la Universidad Federal de
Tocantins. El objetivo es problematizar las cuestiones de raza/racismo infligido a los
cuerpos negros de manera estructural. El marco teórico se construyó a partir de
estudios de filosofía cosmológica africana e investigaciones en teatro. Se concluye
que las artes escénicas pueden potenciar la problematización del
racismo/racialización en los cuerpos negros, en la medida que la praxis teatral
permite al director y/o intérprete investigar los impulsos silenciadores que
obstaculizan su existencia.
Palabras clave
: Teatro pós-moderno. Cuerpos negros/afrodiaspóricos. Teatro.
Universidad Federal de Tocantins.
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Introdução
A ideia para este artigo surgiu durante o processo de formação contínuo dos
autores. Durante o mestrado em Educação pela Universidade Federal do
Tocantins, Thiago Cassiano produziu estudos associados a dois grupos de estudos:
o Grupo de Estudos e Pesquisas de Currículos Educacionais das/para/com
Minorias Sociais Nortistas Amazônidas, o GEPEC-Minorias/UFT-CNPq5; e o Grupo
de Pesquisa África-Brasil: Produção de conhecimento, sociedade civil,
desenvolvimento e cidadania global (IHL/Malês)6.
Simultaneamente, Gustavo Henrique concebeu uma pesquisa sobre os
impactos da relação do ensino e da encenação teatral com as imagens técnicas e
as mídias digitais, junto ao Grupo Performatividades e Pedagogias, no doutorado
de Arte Educação pela Universidade Estadual Paulista - UNESP7.
Dessa forma, pretende-se nesta pesquisa discutir o processo de
despalavramento” das escritas feitas a tinta branca nos corpos de pessoas pretas
e das diásporas africanas, a partir de uma construção cênica denominada Corpo-
Alvo: Poética e Singularidade de um Corpo Preto Entre-Lugares”, desenvolvida
inicialmente a partir do espetáculo
Bagagem de Desjeitos
(2019).
Nessa direção em que a relação entre o corpo e a comunicação são lineares
no que tange a identidade (étnica, cultural e subjetiva) do sujeito preto e da
diáspora africana, o corpo no campo da comunicação se expressa segundo os
costumes aos quais está inserido, criando assim uma imagética do que se acredita
enquanto sujeito (Pessanha, 1994). Assim, Cassiano retrata que “denomino
5 BRASIL, Diretórios dos Grupos de Pesquisa no. Grupo de Estudos e Pesquisas de Currículos Educacionais
das/para/com Minorias Sociais Nortistas Amazônidas GEPEC-Minorias/UFT-CNPq. Disponível em:
dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/195137. Acesso: 09 maio 2023.
6 BRASIL, Diretórios dos Grupos de Pesquisa no. Grupo de Pesquisa África-Brasil: Produção de conhecimento,
sociedade civil, desenvolvimento e cidadania global (IHL/Malês). Disponível em:
dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/184285. Acesso: 09 maio 2023.
7 BRASIL, Diretórios dos Grupos de Pesquisa no. Grupo de Pesquisa Performatividades e Pedagogias. Disponível
em: dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/2996199213460533. Acesso em: 15 mar. 2024.
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despalavramento o processo de descamação da branquitude e de seus costumes
impostos pelo colonizador aos corpos pretos e afrodiaspóricos por diversas
frentes” (Cassiano, 2017–2023, s/p).
Na Grécia antiga, por sua vez, inferia-se beleza ao corpo a partir da estética
atlética, outrossim, na Idade Média o corpo passou a ser retratado atrelado às
subjetividades do espírito. Sendo assim, o que se considera enquanto beleza”
permuta conceitos de acordo com os padrões impostos pelos grupos dominantes:
Por isso mesmo as santas figuras têm gestos mais soltos, naturais e espontâneos,
e seus corpos são reproduzidos em todos os pormenores anatômicos” (Pessanha,
1994, p. 36). Estando o corpo preto e afrodiapórico inócuo de qualquer signo de
beleza genuína, estética, quando se trata dos corpos das pessoas pretas e da
diáspora africana, a percepção adotada se ampara em tessituras da objetificação
sexual, da hiperssexualização e, por vezes, do sadismo.
O corpo humano, por ser social e político, torna-se também campo de/para
disputas de poder. O corpo e a corporeidade são âmbitos conflituosos, difíceis de
delimitar, visto que se trata de um lugar de convergência, de disputa de complexas
pulsões morais, biológicas e políticas. Neste estudo, a concepção de corporeidade
se debruça nas ações do teatro contemporâneo, ponto fulcral para a manutenção
da cena teatral. Como apontam Vargas e Bussoletti, um teatro que evoque as
relações sensório-corporais, pois esse seria o aspecto diferencial que agiria como
mola propulsora, no intuito de fazer com que o espectador sinta a necessidade de
buscar o contato com esse tipo de expressão artística” (2007, p.15).
Desde a existência da humanidade, o corpo tem sido um cenário de batalha
social, a luta de gêneros e de classes desenvolve-se em seu corpo, mesmo que,
nem sempre, você se conta disso” (Ramirez, 2003, p. 14). Sobre isso, o teatrólogo
francês Antonin Artaud mensura o corpo enquanto uma zona de guerra à qual
deveríamos voltar (apud Ardenne, 2001, p. 10). Mesmo com o avanço das
sociedades, o corpo/corporeidade ainda tem sido espaço de/para disputas. Em
meados do século XXI ainda se pode observar como a ideia de corpo individual
ganha força e passa a marcar questões como raça, gênero e classe.
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Rudolf Laban, um dos pioneiros da discussão sobre o corpo e a dança
moderna, afirma que uma sequência de movimentos deve revelar, ao mesmo
tempo, o caráter de quem realiza, o objetivo pretendido, os obstáculos exteriores
e os conflitos interiores que nascem desse esforço” (Laban apud Amadei, 2006,
p.32). A partir desta ideia, o pesquisador e pós-doutorando Basllele Malomalo
(2021) menciona que a corporeidade do sujeito de origem cosmológico ancestral
africana se debruça em especificidades singulares que se distanciam da visão de
auto importância ocidental. Por assim ser, cremos que, por meio da cena teatral,
esse corpo pode explorar-se para além dos padrões impostos pela branquitude.
Robustecendo o mencionado, Fernando Aleixo (2008, p.40-41) afirma que:
A sensação é apenas o caminho, a condição, a passagem para uma
consciência plena da realidade, realidade que é corpo, elo de ligação com
o superconsciente”, este lugar onde a essência da arte e a fonte principal
da criatividade se ocultam. [...] A sensação é, neste caso, um plano de
realidade, de uma realidade corporal, o estar no mundo, sentindo-o,
tocando-o e sendo tocado por ele. A sensação como evidência tangível
do sensorial.
Direcionando o que afirmou Aleixo (2008), a professora doutora da
Universidade de São Paulo USP, Sueli Carneiro (2011, p.66) destaca que o
intercurso sexual entre brancos, indígenas, e negros seria o principal indicativo de
nossa tolerância racial, argumento que omite o estupro colonial praticado pelo
colonizador sobre mulheres negras e indígenas”. O homem preto e da diáspora
africana na sociedade brasileira é circundado pelo estereótipo de inculto, violento
e falocêntrico. Essas escritas marcadas à ferro pelo colonizador se deram em tom
de domesticação e de subalternização de sua identidade. Dentro dessa
propositura, o homem preto e afrodiaspórico não é um homem e sim mais uma
coisa”, um objeto usual”.
Na intenção de constatar as afirmações acima, em um estudo orientado pela
professora doutora Ana Carolina Costa dos Anjos - Universidade Federal de São
Carlos (UFSCar), o primeiro autor desse estudo, se propôs a investigar os signos
imagéticos criados por um corpo preto/afrodiaspórico em espaços públicos. Para
o citado experimento, optou-se por desenvolver a fase prática do estudo em duas
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capitais distintas do país, São Paulo - capital com 469 anos (com fundação em 25
de janeiro de 1554) e Palmas - capital com 34 anos (fundada em 20 de maio de
1989). Isso pois, segundo os autores a distância geográfica e social emergem
enquanto parâmetros para a compreensão do racismo/racialização estrutural na
formação da sociedade nacional (Almeida, 2021). O próprio Thiago aponta em sua
pesquisa, com orientação de Anjos (2019), que:
[...] negros ainda olham para não negros de olhos baixos, em um ar
claramente de inferioridade, a senzala ainda olha para casa grande.
Assentos em transportes públicos vazios ao lado de um homem negro,
trajando moletom e capuz, mesmo com transporte público lotado de
pessoas em pé (Anjos; Cassiano, 2019, p.9).
Os supracitados dados adquiridos por meio de pesquisa implicada (Macedo,
2012) e exploratória (Minayo,1993) reforçaram a existência de desigualdade entre
negros (pretos e pardos segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística -
IBGE,2019), por meio da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua
(Pnad/2019) 8.
Do Romper das Barragens
Justaposto aos entendimentos que solidificam esta pesquisa, direcionando a
arguição de transbordos de distintos corpos políticos e de suas ideologias é que
se parte essa investigação. O Presidente da República Federativa do Brasil, Jair
Messias Bolsonaro (PL), em pronunciamento à nação brasileira sobre o desastre
ambiental resultante do rompimento da barragem de rejeitos na cidade de
Brumadinho Minas Gerais, afirmou que [...] tivemos a triste notícia do
rompimento de umabagagem de desjeitos em Brumadinho"9 (Bolsonaro, 2019).
Construiu-se então o espetáculo com a proposta de colocar em cena essa
bagagem de desjeitos”, ou seja, esse acúmulo de malfeitos. A peça começava
inspirada em trechos de Terror e miséria no terceiro Reich”, de Bertold Brecht, em
um resgate que é também escrevivência, ao expor um fio que conectava a
8 IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad/2019). Disponível em:
https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/17270-pnad-continua.html. Acesso em: 28 jun.2023.
9 TV BRASIL. O presidente da República, Jair Bolsonaro, fala sobre o rompimento da barragem em Brumadinho,
MG. In: Youtube, 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-K298C71rOk. Acesso em: 05 set.
2022.
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radicalização contemporânea ao fascismo de décadas anteriores. Passando pela
adoração a figuras extremistas, essa escrevivência ia mais além, no bloco seguinte
do espetáculo que se destacava os efeitos desse extremismo na violência contra
os corpos de pessoas pretas. Da violência policial, passando pela violência
doméstica e a violência da luta de classes, com a opressão ao trabalhador.
O espetáculo terminava com a notícia do rompimento da barragem de
brumadinho, em uma sobreposição a partir do ato falho presidencial, na qual essa
bagagem de desjeitos” rompia, soterrando os corpos dos atores, obrigados a lidar
com o acúmulo de desjeitos humanos” colocados às margens da sociedade, que
a estrutura heterogênea e hegemônica tenta conter por meio do imaginário
pluralista e harmonioso.
Processos que têm imposto aos corpos pretos a ineficácia de respiração
social, sendo esses conduzidos à morte por inanição social e política, de modo
que as artes da cena, possibilitam a esses corpos transbord(ar) os sufocamentos
sociais a eles inferidos. Por fim, fechávamos com o poema Aos que hesitam”, de
Brecht: Somos o que restou, lançados fora da corrente viva? Ficaremos para trás
por ninguém compreendidos e a ninguém compreendendo? Precisamos ter sorte?
Isto você pergunta. Não espere nenhuma resposta senão a sua.” (Brecht, 2000,
p.32)
O confronto com o acontecimento se deu durante os ensaios, quando o grupo
entendeu que estava ali a metáfora discutida durante os estudos teóricos para o
desenvolvimento do processo de construção de cena. Tal metáfora se trata da
imagem de um represamento” social e subjetivo que não mais se sustentava,
necessitando ser exposto. De modo que esses dejetos (e esses desjeitos”), em
que uma violência ignorada por tanto tempo (visto que o maltrato contra o meio
ambiente é também uma violência) rompia diante de nós, de um modo que não
mais podia ser ignorado.
O insight” para o processo das construções cênicas que formam o
espetáculo Bagagem de Desjeitos” surgiu de experimentações estéticas e poéticas
no campo do teatro pós-moderno em que os estudantes-encenadores foram
direcionados pelo diretor de cena, segundo o autor desse estudo, ao
questionamento e à problematização do cenário político e social da atualidade.
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Exaltamos nessa ideia de pós-modernidade o caráter plural de
manifestações culturais e artísticas que surgem com o avanço da revolução
cibernética, o uso de novas linguagens, o emprego de procedimentos como a
intertextualidade, citação, paródia, ironia, humor e entretenimento para
desconstruir os discursos instituídos, a revalorização do espectador e a criação de
novos modelos de teatralidade, em uma relação com formas de representação
que se caracterizam pelo uso de mestiçagens e hibridizações sem fronteiras
demarcadas e pelo trabalho de criação coletiva. Podemos pensar em termos como
Teatro pós-dramático, a partir de Hans-thies Lehmann (2007), ou Teatro
performativo, a partir de Josette Féral (2008), mas no caso brasileiro, tomamos
como referência o marco instaurador dessa pós-modernidade a partir da
montagem do espetáculo Macunaíma, por Antunes Filho (Guinsburg, Lima, 2009).
Neste momento, o Brasil vivenciava a ascensão de ideologias de extrema
direita aos três poderes constitutivos da república. Justaposto, às propostas que
primam a excludência dos grupos minoritários de acesso aos direitos, estes
estudantes-encenadores em terras tocantinas optaram por abordar tal
problemática, que transpassava diretamente com as possibilidades ou
impossibilidades da existência de seus corpos, uma vez que a identidade dos
estudantes-encenadores circundava grupos sociais minoritários em direitos
(homem preto retinto, uma mulher preta retinta e quilombola, e um homem
cisgênero homossexual branco). O sociólogo Muniz Sodré (2005) afirma que grupos
minoritários sociais são [...]uma voz de dissenso em busca de uma abertura contra
hegemônica no círculo fechado das determinações societárias” (Sodré, 2005, p.
14).
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Cartaz do espetáculo
Bagagem de Desjeitos
. Universidade Federal do Tocantins Campus
Universitário de Palmas (2019). Fonte: Cartaz produzido por Letícia Neves dos Santos, a partir de
foto de Gustavo Henrique. Acervo do espetáculo (2019).
Sobre o processo de construção do espetáculo, em matéria para o site da
Universidade Federal do Tocantins UFT, o diretor comenta que: A ideia desse
espetáculo, mais do que apontar o dedo para essa ou aquela figura, é questionar
o extremismo que vemos em algumas situações, colocar algum foco em questões
como a violência, o racismo”
(Gustavo Henrique
apud
Santos, 2019), dentre outros
males sociais oriundos de ideologias higienistas e eugênicas. Neste estudo, o
centro motor das discussões teve como base o processo de construção cênica
denominado de Corpo-Alvo: Poética e Singularidade de um Corpo Preto Entre-
Lugares”.
O que o diretor afirma se apresenta no mesmo sentido de que menciona o
sociólogo Gilberto Freyre em seu livro
Casa Grande e Senzala
(1933) ao propagar o
imaginário pluralista da existência harmônica inter-racial no Brasil entre os povos
originários indígenas, os brancos colonizadores e os pretos escravizados.
Desconsiderando que no período colonial (XVI e o início do XIX) o corpo branco era
o corpo que denominava por intermédio do chicote enquanto o corpo
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preto/afrodiaspórico era o chicoteado. Dentro dessa realidade, é possível afirmar
a existência de harmonia inter-racial?
males sociais (rompimento da barragem de Brumadinho MG, Brasil e o
racismo estrutural) que são gestados dadas as posturas catatônicas e
maniqueístas que objetificam e invisibilizam parcelas da sociedade. Desde a
colonização, os povos pretos e indígenas foram explorados, minados de sua força,
de sua identidade ancestral e alijados da participação social. O campo da arte e
suas narratividades, neste caso a teatralidade, assim como em qualquer espaço
que a pessoa preta e afrodiaspórica se insira, emerge como trincheira e resistência
ao soterramento social e identitário a ele inferido pelo poderio branco hegemônico.
Percursos Metodológicos
Esta investigação se debruça em método de pesquisa implicado em que o
pesquisador está e/ou é atravessado diretamente pelo objeto/situação de
pesquisa, sendo essa uma possibilidade para as denúncias de negação de direitos
sociais. A pesquisa implicada é
[...] constituída na base por
etnocompreensões
, intercriticamente
construídas; sensibilizada por uma ideia de política de pesquisa e de
conhecimento de possibilidades emancipacionistas, a etnopesquisa
simplificada se identifica com a
heterogênese do protagonismo
dos
movimentos sociais e das ações afirmativas em educação a partir da
sua orientação etno e seu arké crítico (Macedo, 2012, p. 179).
Sobre a citada metodologia, os pesquisadores Mattos e Castro (2011, p. 45)
dizem que [...] fazer etnografia é um pouco de doação de ciência, de dedicação e
de alegria, de vigor e de mania, de estudo e de atenção. Fazer Etnografia é perceber
o mundo estando presente no mundo do outro, que parece não existir mais”. Para
o professor pós-doutor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira UNILAB, Basllele Malomalo (2021), a filosofia cosmológica africana
entende o homem e o que dele emana como parte integrante e integradora da
natureza, sendo ele uma partícula do Noun” (Deus para os egípcios de Nut). Nessa
direção, corpo, espírito e subjetividade comungam entre si e entre os espaços de
modo respeitoso, afetivo e criativo, o que se difere do modo com que o branco
social compreende a si mesmo, o outro e o mundo (Malomalo, 2021).
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O que o filósofo e professor doutor Mogobe Bernard Ramose (2010)10
menciona é que a partícula do Noun” aportada por Malomalo (2021) é conhecida
também como Nzambi”; Água Abissal Criadora, o Ser-Autogestato. Sobre isso, o
professor doutor da Universidade Estadual da Paraíba UEPB, Luis Tomas
Domingos (2011), em seu estudo
A Visão Africana em Relação à Natureza"
, evoca
que a:
[...] cosmovisão africana está estabelecida no Universo e é influenciada
pela ordem dos seres na natureza. Esta finalidade é independente dos
desejos do homem, mesmo das suas aspirações mais sublimes. Alguns
homens dão sentido à sua existência, orientados pela condição da sua
riqueza simbólica, de sua família e pelas suas qualidades hereditárias,
pelo poder religioso, acompanhados pelas doutrinas mitológicas e
filosóficas etc. Mas, na cultura Africana existe o parentesco original entre
o homem e a natureza. Um dos fundamentos da arte de viver do Africano
é a participação” ou a comunhão profunda com a Natureza. Podemos
situar as diferenças entre a arte de viver dos Ocidentais, europeus e a
arte de viver dos Africanos (Domingos, 2011, p.02).
Partindo deste olhar afro-centralizado é que surgiram os estudos práticos
para a construção do processo Corpo-Alvo: Poética e Singularidade de um Corpo
Preto Entre-Lugares”. Agora este estudo empírico do campo das artes da cena
firmaram seus pés nas teses de Malomalo (2021), Ramose (2011), (Domingos, 2011)
e nas propostas estéticas do TEN Teatro Experimental do Negro com
frontalidade nas práticas do Teatro do Oprimido” (1991) preconizado pelo
teatrólogo e dramaturgo Augusto Boal (1991). O resultado desse processo de
criação cênica resultou em um (re)pensar dos estudantes-encenadores sobre a
ocupação do corpo da pessoa preta e afrodiaspórica nos espaços da cena teatral
nacional e local, visto que os estereótipos que permeiam estes corpos os
direcionam para um represamento social de suas identidades, manifestações
artísticas da cena e de outras narrativas.
O Teatro Experimental do Negro, companhia teatral brasileira, fundada por
Abdias do Nascimento, nasceu como um espaço potencializador das vozes pretas
represadas socialmente, onde o fazer criativo, estético, poético e as inquietudes
dos encenadores pretos seriam entendidas e discutidas a partir do
10 Mogobe Bernard Ramose é um filósofo sul-africano, um dos principais pensadores que popularizou a
filosofia africana, especificamente a filosofia Ubuntu, internacionalmente.
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aquilombamento. O Teatro Experimental do Negro TEN não propôs somente um
modelo estético, mas uma estética preta em e para a cena.
De acordo com a professora doutora da Universidade Federal do Sul da Bahia
UFBA, Evani Tavares Lima (2010) em sua tese de doutoramento -
Um olhar sobre
o Teatro Negro do Teatro Experimental do Negro e do Bando de Teatro Olodum”
(2010), tem-se um reforço do exposto acima, mencionando a existência de três
categorias que estruturam e sistematizam o grupo TEN, são elas: i-) performance
negra manifestações populares, cosmológicas e religiosas; ii-) teatro de presença
negra estudo das poéticas ancestrais; iii-) teatro engajado negro destinado aos
aspectos políticos.
" Bagagem de Desjeitos” partiu da resistência às barbáries infringidas aos
corpos de pessoas pretas e afrodiaspóricas pelo racismo/racialização. Sobre o
percurso escolhido, Cassiano e Anjos (2018, p. 04), reforçam que [...]é por esse
ângulo, que se entende arte e política fundidas em um campo semiótico e
subjetivo, no qual as experiências subjetivas no seu fazer e apreciar, afetam o
indivíduo” de modo que venha a despertar no corpo preto e afrodiaspórico, criador
em artes da cena, [...] inquietudes políticas, afetivas e sociais, pois cremos que, se
a arte não for para criar inquietude, então já se faz morta [...]”.
O trajeto para a construção do espetáculo como um todo e de seus
processos de criação de cena, percorrem caminhos não sequenciais ganhando
ares de pluridisciplinaridade, uma vez que para a filosofia cosmológica africana, o
corpo e a corporeidade do sujeito ancestral cosmológico africano não está
desconexa do mundo e dos outros campos nele existentes, uma vez que tudo está
em estado de interconectividade. Nesse sentido, a ciência inventada na África pré-
colonial estruturou-se numa concepção holística e numa abordagem que oscilava
entre o que se denomina hoje de
multi, inter
e
transdisciplinaridade
11(Malomalo,
2021, p.06).
11 Doutor em Sociologia pela UNESP, docente no curso de Licenciatura em Ciências Sociais, Programa de Pós-
graduação em Mestrado Interdisciplinar em Humanidades (MIH/UNILAB).
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Escrevivências sobre a Cria(ação)
A construção da dramaturgia do espetáculo se deu de modo coletivo pelos
estudantes-artistas e resultou da conclusão do curso de Licenciatura em Teatro
pela Universidade Federal do Estado do Tocantins, Campus de Palmas (2019). O
processo contou com a participação de três estudantes-encenadores, sendo eles:
um homem preto retinto natural de São Paulo (primeiro autor do artigo), uma
mulher preta retinta, quilombola, nascida no Tocantins e um homem branco
autodeclarado homossexual, do Piauí. A produção audiovisual e direção de cena
foi realizada pelo segundo autor deste estudo, homem preto de pele clara, carioca
e docente do curso.
Para o psicólogo bielo-russo, Liev Vygotsky (1991) a escrita se trata de um
modo de representar a linguagem oral. A escrita diz respeito à significação, à
representação, às ideologias, aos conceitos e aos sentimentos por meio dos
símbolos de origem gráfica, aprofundando a relação entre a escrita e a os aspectos
sociais. O filósofo e pensador russo e de arte e cultura, Bakhtin (1981), menciona
que a escrita possui um caráter interativo, isso pois, para compreender a
linguagem escrita se há que entender a natureza sócio-histórica da palavra.
E nós, pretos e afrodiaspóricos, onde aporta a nossa palavra? Nessa direção,
optamos por segurar nas mãos da professora doutora da Universidade do Estado
da Bahia – UNEB, Conceição Evaristo, que cunhou o termo "escrevivência" que se
trata da junção das palavras "escrita” e vivência". O termo se apresenta de modo
mais tenaz do que a aglutinação de duas terminologias, mais dos seus efeitos e
signos sobre os corpos pretos e afrodiaspóricos. Propomos nesse processo de
criação cênica uma escrevivência impossível de ser " [...] lida como histórias para
'ninar os da casa grande' e sim para incomodá-los em seus sonos injustos"
(Evaristo, 2007, p. 21).
Deste modo, o teatro pode possibilitar a essas pessoas pretas o ecoar por
meio de sua corporeidade, gestualidade e de sua voz, bem como a construção de
múltiplas "escrevivências” que os habitam e secularmente tem sido escritas à
tinta branca”
Existe un residuo de la experiencia que habita en nuestro cuerpo
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individual y también en nuestros cuerpos sociales que es irreductible a la
palabra. Los saberes del cuerpo son otros tipos de conocimientos que
pueden ampliar, airear, expandir los horizontes epistémicos a los que la
academia eurocéntrica nos ha acostumbrado (Contreras, 2013, p. 85).
Ciente da multiplicidade dos povos e subjetividades africanas, este estudo
compreende que, mesmo norteado por condutas panafricanistas12, sabe-se que o
corpo preto retinto em experimentação cênico-teatral é um corpo originário de
uma ancestralidade anterior a ele. Trata-se de uma corporeidade escrita
secularmente e que, desde a colonização, tem resistido aos pontos finais” a ele
impostos pelo poderio hegemônico branco. Assim, segundo Cassiano, os pontos
finais quais nos referimos, trata-se do escárnio e da animalização de nossos
corpos, muito presentes nas artes da cena por meio da prática de
blackface”
(Cassiano, 2017–2023, s/p).
Ribeiro (2018, p. 32) afirma que comediantes faziam sucesso apresentando
para um público formado por aristocratas caucasianos personagens
estereotipados de pessoas negras com o intuito de ridicularizá-las”. O autor
supramencionado afirma ainda que além de pintar o rosto de preto, eles pintavam
exageradamente a boca de vermelho para chegar a uma representação ideal do
que julgavam ser o negro” (Ribeiro, 2018, p. 32).
O percurso estabelecido para a construção do espetáculo aportou-se com a
introdução de um questionário aberto apresentado aos estudantes-encenadores
no final do ano de 2018 para que pudessem manifestar seus posicionamentos
sócio-políticos de interesse que posteriormente viriam a se tornar temas para a
construção da dramaturgia. O que se propôs neste instante foi a compreensão
destes corpos-encenadores enquanto sujeitos pertencentes a grupos minoritário
(pretos, mulher-quilombola e homossexual) num período da história nacional na
qual discursos racistas, eugênicos e homofóbicos fervilhavam em um clima de
tensão social.
Partindo destes, durante o recesso de final do ano de 2019, o diretor do
12 Pan-africanismo nasceu da luta de ativistas negros em prol da valorização de sua coletividade étnico-racial.
Sua marca original é a construção de visões positivas e internacionalistas acerca desta identidade, entendida
como comunidade negra: africana e afrodescendente. Entre seus representantes, destacam-se intelectuais
como E. Blyden, W. E. Du Bois, M. Garvey, Frantz Fanon e K. NKrumah. (Barbosa, 2011/2012)
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espetáculo compilou uma miríade de materiais, que incluíam textos como uma
tradução do discurso
E eu não sou uma mulher?
, feito no século XIX por Sojourner
Truth (2014), trechos da peça
Terror e miséria no terceiro reich
, de Bertold Brecht
(2008), e da transcrição da obra
Intervenção no Rio: Como Sobreviver a uma
abordagem indevida
, de Ad Junior, Edu Carvalho e Spartakus Santiago, exibida na
exposição Histórias Afro-Atlânticas de 2018; assim como registros audiovisuais da
Alemanha e da Itália entre os anos 1930 e 1940, vídeos de operações policiais em
favelas brasileiras e declarações de integrantes da equipe do governo recém eleito,
incluindo trechos do discurso de posse do novo presidente.
Na atuação das performances multimídia, bem como na atuação
brechtiana, tudo parte e tudo volta ao real num questionamento que
busca analisar-lhe a situação. É, portanto, sobre a análise do real e sua
percepção pelo artista e pelo espectador que resulta o essencial do
trabalho de distanciamento (Féral, 2015, p. 237).
A combinação de elementos do distanciamento brechtiano com a utilização
de registros audiovisuais contemporâneos considerou a proposição metodológica
apresentada por Josette Féral (2015) ao abordar a relação entre a reprodução do
real fora de suas relações de modo fragmentado, não continuado passando
pela noção de desaceleração e imobilidade da imagem, da multiplicação detonada
de seu conteúdo, nos levando à reprodução no palco do real, sem trabalho sensível
da imagem, Féral (2015, p.237-239) relata que a:
É em virtude de as mídias autorizarem precisamente mais que qualquer
outra forma espetacular tal aproximação extrema, quase absoluta entre
a cena e o real, que o real encontra-se aí suprimido. De tanto reproduzir
o real com exatidão, de se lhe ajustar, elas acabam por se colocar no seu
lugar, por tragá-lo; o real midiatizado nada mais é que um simulacro,
ilusão, ponto de vista, rota de fuga.
Por meio de um processo evocativo imagético, com o uso de projeções
diretamente calçadas em registros audiovisuais não apenas artísticos, mas,
principalmente, documentais e jornalísticos, lançou mão de elementos
contemporâneos da lógica do distanciamento cênico, não do mesmo modo
proposto no passado por Bertolt Brecht, mas atualizado para as relações
contemporâneas, pois a:
[...] realidade da qual falava Brecht implicava a fé numa história universal
que se dirigia ao destino da humanidade e colocava em cena um homem
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universal, era uma realidade antes de tudo social e o homem aparecia aí
como um produto da coletividade; a realidade da qual fala a arte
performativa é mais atual num sentido. Essa realidade não é mais a da
sociedade; ela é individual e afeta o homem somente fora de toda a
ligação ao grupo; ela chega ao tema que tinha esvaziado o teatro
brechtiano (Féral, 2015, p. 240).
A composição das histórias e singularidades distintas que se aproximaram
pelo pertencimento afrodiaspóricos mantiveram as corporeidades de dois homens
pretos e de uma mulher preta quilombola, protagonistas de suas próprias
narrativas, frente ao corpo de um homem branco homossexual que, mesmo
pertencente a um grupo minoritário (comunidade homossexual), ainda assim, era
um corpo ocidental que se recusava em compreender o racismo/racialização
enquanto ideologia supremacista racial que subalterniza corpos de pessoas pretas.
Em entrevista ao jornal
Estado de São Paulo
o artista multi-linguagem Ícaro
Silva13 - homem preto retinto e homossexual, enfatiza que a identidade
homoafetiva não inocula um sujeito de ser racista. Ícaro Silva (2020) afirma que:
Eu ouvi muito, de muitos meninos gays brancos que eu não sinto
atração por negro, não gosto de negros. E eu pergunto mas você
conhece todos os negros do planeta Terra?. Como é que você pode saber
que você não gosta de uma pessoa baseada na etnia dela? Isso se
chama? Racismo”, concluiu ele, destacando que muitas vezes os negros
ou são hipersexualizados ou segregados dentro do movimento gay, e que
essa situação precisa mudar (Silva
apud
Malar, 2020).
As interrelações entre estes corpos (branco e afrodiaspórico/preto)
ocasionaram no fazer cênico teatral o reflexo das disputas sociais que se
apresentam também de modo externo ao palco. O ocidental se vale de dialéticas
de autoproteção a fim de justificar a racialização cometida por iguais. O corpo
colonizador é um corpo dotado de artimanhas” racializatórias, visto que expressa
concepções ideológicas como menciona Laban (1978). Anjos e Cassiano (2019)
afirmam que pertencer à África e suas diásporas é oposto a pôr-se a pensar África.
[...] saber e experienciar são campos completamente diferentes; é preciso
ser negro para sentir na pele essas mazelas, nesse ponto estamos
falando sobre dores vividas, como também é preciso ser [homem preto]
13 Ícaro Silva nasceu na cidade de São Bernardo do Campo, São Paulo, em 19 de março de 1987. Ele é ator e
apresentador de televisão. E atua em teatro e cinema. In. TELEVISÂO, Museu Brasileiro de Rádio e. Ícaro Silva
Biografias. Disponível em: https://www.museudatv.com.br/biografia/icaro-silva/ . Acesso em: 16 jun. 2023.
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para sentir o que é ter seu direito de ir e vir negado de forma declarada
pelos governos estadual e municipal, nesse caso estamos falando sobre
dores percebidas. Esse experimento pautou-se por meio da ampliação
do olhar e dos sentidos em prol de analisar não apenas o processo de
colonização como forma estrutural das negritudes brasileiras, levando-
me para um
transver
da realidade racista em que vivemos (Anjos e
Cassiano, 2019, p. 09).
O que Anjos e Cassiano (2019) mencionam atrela-se de modo direto ao pacto
da branquitude” apresentado pela professora doutora pela Universidade de São
Paulo USP, Cida Bento (2022). Este pacto atua como sustentáculo para
autoproteção do homem ocidental independente do que ele faça ou do que se
cometa ao homem preto africano ou afrodiaspórico. Trata-se de uma demarcação
territorial e da manutenção de privilégios hegemônicos.
O espetáculo que contou com duas apresentações, sendo elas nos dias 20 e
21 de março de 2019 no anfiteatro do Bloco-B” da Universidade Federal Tocantins
Campus de Palmas sofreu ataques a fim de silenciar e oprimir os estudantes-
encenadores devido à crítica sócio-política presente no espetáculo, por parte dos
estudantes do curso de Bacharel em Engenharia Civil - UFT- Campus de Palmas e
dos estudantes do curso Bacharel em Medicina da UFT- Campus de Palmas. Os
ataques ocorreram por meio de publicações ofensivas nas redes sociais e pela
retirada de cartazes da peça colados no campus de Palmas. Esta lógica de
opressão e exclusão foi a mesma experimentada historicamente pelos povos
colonizados pelo ocidente. Sobre isso, Njeri (2020) menciona que:
[...] compreender-se não universal e muito distante na escala de
humanidade do Senhor do Ocidente, o sujeito negro se fratura, sendo
inundado por uma série de memórias que corporificam a sua alienação
diante da sua crença em fazer parte dessa humanidade ocidental. Então
começa a enxergar com os olhos da consciência racial a dinâmica
estrutural e estruturante da sociedade em que está inserido e do cabelo
alisado, passando pelo clareamento da família e o eu nunca sofri
racismo até chegar no negro de pele branca e branco de pele negra, vai
se despindo dolorosamente de cada Eu de SI. Despindo-se do Ocidente
de forma tão violenta e confusa, que pode ser metaforizada enquanto
um surto afro ou um Afro surto. Nutrindo do conceito de surto - enquanto
um sintoma que surge por influência de diferentes fenômenos que
afetam as percepções, comprometem o equilíbrio mental e geram
mudanças comportamentais (American Psychiatric Association, 2014) -
para metaforizar a reação que o processo de consciência racial junto à
memória dos racismos vividos causam no sujeito negro contemporâneo
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aquilombado em míticas democracias raciais como o Brasil. E que,
acreditando nos logarítmos, destina toda a potência pedagógica que o
ódio e a pulsão palmarina trazem na lucidez racial, à textos, vídeos e
áudios que esvaziam o sentido prático da luta, criando uma militância
virtual capitalizada pela dinâmica do Ocidente, ao mesmo tempo que
imobiliza o fazer ativo da prática antirracista que tem a educação, a arte,
a autoproteção e autodeterminação como pilares fundantes (Njeri, 2020,
p. 192 -193).
O que discorre a professora pós doutora pela Universidade Pontifício Católica
do Rio de Janeiro PUC-Rio, Aza Njeri (2020, p. 192 -193) corrobora com a crítica
exposta em Bagagem de Desjeitos”, pelas comunidades pretas e pelos grupos de
enfrentamento ao racismo, que se estabelece por inúmeras frentes. O espetáculo
trouxe à tona uma nefasta estrutura de opressão sistematizada para sufocar as
pessoas pretas, uma vez que o sistema de segurança pública, o sistema legislativo,
em suma, é composto por brancos que vão se auto proteger (Bento, 2022).
A professora doutora e pesquisadora em semiótica da Universidade Pontifícia
Católica de São Paulo PUC/SP, Lúcia Santaella (2019, p. 07) nos diz que os [...]
fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que
apelos à emoção e à crença pessoal”. Neste sentido, o racismo/racialização -
sistema de excludência e segregação secular pautado na hierarquização de corpos
brancos sobre corpos pretos e indígenas - emerge como uma ideologia que tem
em diversos campos da sociedade espaço para sua disseminação.
[...] o ser negro foi produzido no campo das ideias a partir das
necessidades políticas que fizeram com que os conceitos elaborados em
diferentes áreas do conhecimento justificassem e reinventassem, a cada
momento, o lugar do negro na sociedade. Os pares conceituais selvagem
x civilizado”, cristão x pagão”, branco x negro”, caucasiano x africano”
foram exemplos de processos classificatórios engendrados a partir de
acordos globais de manutenção de poder e exploração. O ponto de vista
colonizador e eurocêntrico estabeleceu hierarquias em seus projetos de
dominação, que são especialmente virulentas contra a negritude (Silva,
2022, p. 151).
O racismo/racialização atua na sociedade brasileira de modo estrutural e
estruturante, não sendo nenhum indivíduo responsável absoluto por este abjeto
social, mas sim, o poder hegemônico. Este processo de criação surge atrelado ao
entendimento de que somente a pessoa preta e da afrodiáspora saberá das
dificuldades sobre o ser e o estar desse corpo preto e afrodiaspórico atuante no
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campo das narrativas artísticas, uma vez que circundam sobre este corpo
estereótipos jocosos, de violência e heterossexualização. No espetáculo,
buscamos demonstrar a conexão dessas violências na construção social do dia-
a-dia, seja na opressão policial, na tentativa de abuso doméstico e até na
exploração do trabalho. Não é do interesse compreender os comentários do
artista negro, católico praticante, de forte relação familiar, cuja provocação é a de
evidenciar a demasiada presença das marcas colonialistas, escravocratas e
católicas” (Barbosa, 2017, p. 40) na construção da identidade brasileira.
É evidente que pessoas pretas, no campo das artes da cena, querem, podem
e devem abordar outras temáticas que não a racialização de seus corpos e suas
identidades. Mas, enquanto um jovem negro atua em um espetáculo por pouco
mais de uma hora, outros três jovens negros terão sido assassinados (IBGE apud
Marques, 2017)14.
Este é o ponto fulcral em que o homem preto se apresenta entre o fio da
navalha da vida e da morte. O espaço entre-lugares para além de uma escolha
identitária sobre o ser, estar e compreender-se homem preto em diáspora tange
um caminho ideológico, uma vez que a sociedade racializadora tem para nós,
homens pretos, papéis definidos (o serviçal, o corpo sexualizado ou o marginal).
Tido esse entendimento o que faremos? Optamos então por despalavrar o sim
sinhô!” (Cassiano, 2017–2023, s/p).
Se propôs enquanto encenação, uma experimentação que buscava
compreender o estado de necropolítica e subjetividade das pessoas pretas.
Partindo do espaço denominado de entre-lugares (entre a necropolítica e a
subjetividade), buscou-se migrar para o gesto a realidade sócio-política vivida pelas
pessoas pretas e a violência histórica e coletiva a qual foram submetidas no
processo afrodiaspórico que segue vigente na opressão e na violência física e
psicológica contra pessoas pretas.
Uma das características do racismo é a forma como se aprisiona o corpo
preto às imagens fixas e estereotipadas, reservando ao racialmente hegemônico o
14 Pelos dados do IBGE, A cara 23 minutos ocorre o assassinato de um jovem negro (junção de pretos e pardos
segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IGBGE).
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privilégio de ser representado em sua diversidade. A branquitude, portanto, é
policromática, plena em sua diversidade. A negritude, no entanto, padece de toda
sorte de indagações” (Carneiro, 2011, p. 66).
Thiago Cassiano em cena - Corpo-Alvo: Poética E Singularidade de um Corpo Preto Entre-
Lugares. Espetáculo
Bagagem de Desjeitos
. Universidade Federal do Tocantins Campus
Universitário de Palmas (2019). Fonte: Foto de Gustavo Henrique. Acervo do espetáculo (2019).
Thiago Cassiano em cena - Corpo-Alvo: Poética E Singularidade de um Corpo Preto Entre-
Lugares. Espetáculo
Bagagem de Desjeitos
. Universidade Federal do Tocantins Campus
Universitário de Palmas (2019). Fonte: Foto de Gustavo Henrique. Acervo do espetáculo (2019).
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O professor doutorando e pesquisador do campo da comunicação Tarcízio
Silva (UFBA)15 em seu estudo,
Racismo algorítmico: inteligência artificial e
discriminação nas redes digitais
(2022), menciona que os dispositivos fotográficos
e de registro audiovisual têm histórias que podem dizer muito sobre a imbricação
das relações raciais na tecnologia. Intensificando a hiper representação do branco
em detrimento de outros grupos étnico-raciais na cultura midiática, padrões
tecnológicos invisíveis” como os citados reforçam o abismo do acúmulo de mídias
e objetos culturais (Silva, 2022, p. 154-156).
Permeado por
flashs
de comunidades periféricas sendo invadidas de modo
truculento pela polícia, entrelaçadas aos sons de tiros, explosões de bomba de gás
lacrimogêneo envoltos ao som de música clássica, evidenciaram a normatização
dos mais diversos tipos violência que recaem sobre o corpo das pessoas pretas e
afrodiaspóricas, enquanto a sociedade se apega à ilusão da inexistência destes
problemas sociais. Sobre o exposto, Rudolf Laban (1978) menciona a possibilidade
do corpo que se movimenta tornar-se produtor de conhecimento, esse corpo
produtor de conhecimento que menciona Laban se trata do corpo-político. O
corpo-político é fruto do despalavramento” físico, subjetivo e intelectual das
narrativas ocidentais colonizadoras, no qual a pessoa preta aterra-se em sua
ancestralidade afim de conhecer a si mesmo e o mundo que o cerca.
No conjunto ritualizado de procedimentos cosmogônicos, o corpo encontra
sua totalidade, resolvendo a dicotomia entre singular e plural, entre sujeito e
objeto. Ao mesmo tempo, a corporeidade origem a um tipo de percepção
sensorial, que pode ser de fato concebida como ecológica” (Sodré, 2017, p. 129).
O sociólogo Muniz Sodré (2017) aponta ainda que o humano é assim definido
de dentro para fora, negando a alteridade com base em padrões hierárquicos
estabelecidos pela cosmologia cristã e implicitamente endossados pela filosofia
secular. Daí decorre o julgamento de que o outro”
(anthropos)
não possui
plenitude racional, portanto, seria ontologicamente inferior ao humano ocidental.
É um julgamento que, na prática, abre caminho para a justificação da mais indizível
15 Doutorando em Ciências Humanas e Sociais (UFABC), Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas
(UFBA).
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violência (Sodré, 2017, p. 14).
Os estereótipos que circundam o corpo e a corporeidade das pessoas pretas
e afrodiaspóricas atuam como assassinos de subjetividades e de identidades,
sendo que, desde a primeira infância, o determinismo racial imbui possibilidades
e impossibilidades de atuação a este corpo. Cassiano, em seu instrumento de
pesquisa intitulado de Diário de Bordo Sentidos e Permissões de um Homem
Preto: Afetividades e Atravessamentos Epistêmico-Sociais”, menciona que o:
[...] desafio enquanto artista para a construção desta cena foi justamente
o de potencializar em meu corpo uma dor que não é minha, nem do meu
povo, mas imposta a nós pelo racismo e por nós sentida, ao mesmo
tempo que uma sutil canção clássica é ouvida. Que homem preto não se
assusta ao ouvir um som de tiro? Que homem preto não tenta se proteger
quando um agente de segurança pública se aproxima? Evidente que por
mais árduo que tenha sido o processo de construção da cena e as duas
apresentações do espetáculo, ter sido guiado por um diretor igualmente
preto me trouxe para um lugar de confiabilidade. Ser guiado por um
diretor preto trouxe-me uma sensação de pertencimento e de que o que
se propôs a discutir está distante da premissa de agradar aos
colonizadores. (Cassiano, 20172023, s/p).
O panafricanismo e a afro-centralidade emergem como caminhos para o
rompimento com a estrutura radicalizadora. Esse entendimento está fortemente
presente nos estudos de Abdias Nascimento (2004) e no Teatro Experimental do
Negro que preconizou, por meio do teatro pós-moderno, a abertura de um canal
para o reencontro das pessoas pretas com os processos criativos nas artes da
cena.
Considerações Finais
Pretendeu-se neste estudo, apresentar e discutir o processo de criação
cênica Corpo-Alvo: Poética e Singularidade de um Corpo Preto Entre-Lugares”,
que integra o espetáculo teatral pós-moderno Bagagem de Desjeitos”. Pautado
nas propostas do TEN – Teatro Experimental do Negro (Lima, 2010), a proposta de
construção cênica que fez afronte ao racismo/racialização infringida às pessoas
pretas e da diáspora africana na cena teatral e na sociedade brasileira (Marques,
2017) confirmou que o teatro pode ser um potente disparador para o protagonismo
de questões sócio-políticas que atravessam as pessoas pretas e afrodiaspóricas.
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Constatou-se nesta investigação que o campo das artes da cena assim como
em todos os espaços sociais protagoniza disputas étnico-raciais. De acordo com
Laban (1978), a semiótica apresentada pelo corpo corresponde às construções
ideológicas que atuam sobre o sujeito. Deste modo, ao propor uma
experimentação estética em teatro pós-moderno sobre as mazelas da racialização
impostas aos corpos das pessoas pretas e à sua subjetividade, este estudo tem
como intenção evocar a esses sujeitos e corporeidades a possibilidade de
comunicação.
O espetáculo que surgiu durante a ascensão de ideologias de extrema direita
aos poderes da República Federativa do Brasil, fez-se importante devido a
potencialização dos impactos do racismo/racialização ao corpo e à subjetividade
do corpo preto e afrodiaspórico. Devido ao campo das artes da cena se encontrar
majoritariamente ocupado por corpos brancos, inclusive por corpos brancos que
se propõem a pensar africanidade de modo deslocado as filosofias cosmológicas
africanas (Malomalo, 2021), o espetáculo em questão traz ao foco da discussão
questões que por vezes são negligenciadas, partindo de percepções afrocentradas.
Esse estudo se conclui reforçando a importância da afrocentralidade enquanto
força motriz de resistência às influências hegemônicas brancas no campo das
artes da cena que pretendem o silenciamento das narrativas pretas e
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Universidade do Estado de Santa Catarina
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Programa de Pós-Graduação em Teatro
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