Objetos máquinas, objetos da morte e da memória: a
poïein
kantoriana
Luciano Flávio de Oliveira
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-20, dez. 2023
O primeiro pega a mala e coloca sobre o guarda-roupa, e o segundo fala
“não, a mala estava sobre a mesa”. E a mesma coisa acontece com todas
as pessoas naquele espaço. O primeiro gêmeo diz que aquela pessoa
estava ali e o segundo diz “não” e a pessoa é removida. Até que eles
movem a eles mesmos. Então Kantor organiza o espaço, mas essa
energia que entra na forma de atores altera completamente esse espaço.
A porta se abre mais uma vez e uma pessoa entra e se coloca ao lado da
cama. A música que se ouve transforma esse espaço na reminiscência
de um funeral. A música aumenta, a porta se abre, e uma pessoa estranha
tenta entrar. Alguém ao lado da cama diz “ainda não” e empurra a pessoa.
A música volta, o estranho tenta entrar e a pessoa ao lado da cama
empurra ela de novo. A música aumenta, a porta se abre, e finalmente a
pessoa entra.9
Nessas cenas, além do jogo entre os gêmeos, a valise e o guarda-roupa,
percebemos novamente o valor dos objetos enquanto eles mesmos, ou seja, suas
funções primárias, e a manipulação de corpos humanos como se fossem objetos
(dejetos) abandonados em plena residência da família Kantor.
Por fim, a relação dos atores com os objetos no teatro de Kantor era sempre
de paridade. Não havia um elemento principal em que um sobrepujava o outro.
Aliás, não existia hierarquia entre os diferentes elementos de sua encenação (luz,
cenário, ator, texto, música, bonecos, objetos etc.). Nenhum deles era privilegiado.
Na cena kantoriana, ator e objeto constituíam um único ser, formando uma
unidade orgânica, real e não mecânica chamada, segundo Cintra, bio-objeto:
Da união de ator e figurino, sobressai uma estrutura livre que se justifica
única e exclusivamente como objeto de arte mas muito mais potente do
que qualquer experiência vital convencional devido à sua força de
expressão. Esse novo organismo deve constituir uma fusão íntima da
matéria do corpo humano e das formas cênicas que se desenvolverão no
espaço. [...] Em sua concepção, esse objeto muda o comportamento do
ator de uma maneira tal que um novo ator surge a partir de um processo
de fusão entre dois organismos, ou seja, o objeto faz nascer um novo
ator. Assim, se o objeto é habitado pelo ator, com esse procedimento o
ator se torna as vísceras do objeto. Seu sangue, sua alma (Cintra, 2012
apud Oliveira, p.41).10
9 Como essa conferência não está mais disponível no
Scribd,
um trecho, em inglês, do diálogo entre os
gêmeos “Uncle Karol” e “Uncle Olek”, semelhante ao que aqui está traduzido para a língua portuguesa, pode
ser encontrado na página 330 da obra
A Journey Through Other Spaces
–
Essays and Manifestos
(1944-
1990), de Tadeusz Kantor, traduzido por Michal Kobialka. PDF disponível em: <https://western-scenic-design-
11.wdfiles.com/local--files/november-8/kobialka-questfortheother.pdf>. Acesso em: 27 set. 2023.
10 Cintra, 2012 apud Oliveira, 2022, p. 41.