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Contradramaturgia e Corp.oralidades Pretas: outro
ponto de vista sobre a noção de dramaturgia
Laudemir Pereira Santos
(Lau Santos)
Para citar este artigo:
SANTOS, Laudemir Pereira (Lau Santos).
Contradramaturgia e Corp.oralidades Pretas: outro ponto
de vista sobre a noção de dramaturgia.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 3,
n. 48, set. 2023.
DOI: 10.5965/1414573103482023e0110
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Laudemir Pereira Santos (Lau Santos)
Florianópolis, v.3, n.48, p.1-24, set. 2023
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Contradramaturgia e Corp.oralidades Pretas: outro ponto de vista
sobre a noção de dramaturgia1
Laudemir Pereira Santos2
(Lau Santos)
Resumo
O presente artigo objetiva problematizar o conceito de dramaturgia originalmente
conhecido e difundido desde os escritos de Aristóteles no livro
Poética
. Abordou-se
como ideia de contradramaturgia uma noção que está imersa em uma
complexidade filosófica de “saberes e fazeres” afro-ancestrais, visto que o conceito
de dramaturgia não conta das necessidades basilares das danças afro-brasileiras.
Como suporte teórico-filosófico foram utilizadas reflexões de pensadores/as que
fazem uso de epistemologias africanas, afro-brasileiras e anticoloniais. Defendeu-se
a tese que as necessidades organizacionais das narrativas e corporeidades pretas,
apresentadas a partir de suas danças afrodiaspóricas estão conectadas à
sinuosidade
corpoexistencial
do pensamento e à circularidade dos acontecimentos.
Os caminhos metodológicos desenvolvidos fazem parte de um conjunto de ações
teórico-práticas sobre presença cênica e corporalidades afro-brasileiras em cena
desenvolvidas ao longo de nossa atuação como artista-pesquisador.
Palavras-chave
: Dramaturgia. Aristóteles. Afrodiáspora. Danças negras. Elinga.
Counterdramaturgy and black corporalities: another point of view
on the notion of dramaturgy
Abstract
This article aims to problematize the concept of dramaturgy originally known and
spread since Aristotle's writings in the book
Poetics
. As an idea of
counterdramaturgy, a notion that is immersed in a philosophical complexity of Afro-
ancestral “knowledge and doings” was approached, since the concept of dramaturgy
does not deal with the basic needs of Afro-Brazilian dances. As a theoretical-
philosophical support, reflections of thinkers who make use of African, Afro-Brazilian
and anti-colonial epistemologies were used. The thesis was defended that the
organizational needs of black narratives and corporeities, presented from their
afrodiasporic dances, are connected to the existential corpus sinuosity of thought
and to the circularity of events. The methodological paths developed are part of a
set of theoretical-practical actions on scenic presence and Afro-Brazilian
corporalities on stage developed throughout our work as an artist-researcher.
Keywords
: Dramaturgy. Aristotle. Aphrodiaspora. Black dances. Elinga.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Aldy Vergés Maingué. Graduado em Letras
Português/Inglês pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
2 Pós-doutorado na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Doutorado em Teatro na Universidade do Estado
de Santa Catarina (UDESC). Mestrado em Teatro na UDESC. Especialização em Teatro no Conservatoire
National Supérieur D'art Dramatique, CNSAD, França. Graduação em Letras pela Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC). lau_ator@hotmail.com
http://lattes.cnpq.br/9100427803012023 https://orcid.org/0000-0001-5096-3452
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Contradramaturgia y Corporalidades negras: otro punto de vista
sobre la noción de dramaturgia
Resumen
Este artículo tiene como objetivo problematizar el concepto de dramaturgia
originalmente conocido y difundido desde los escritos de Aristóteles en el libro
Poética
. Como idea de contradramaturgia, se abordó una noción que está inmersa
en una complejidad filosófica de “saberes y haceres” afroancestrales, ya que el
concepto de dramaturgia no trata con las necesidades básicas de las danzas
afrobrasileñas. Como soporte teórico-filosófico se utilizaron reflexiones de
pensadores que hacen uso de epistemologías africanas, afrobrasileñas y
anticoloniales. Se defendió la tesis de que las necesidades organizativas de las
narrativas y corporeidades negras, presentadas desde sus danzas afrodiaspóricas,
están conectadas con la sinuosidad del corpus existencial del pensamiento y con la
circularidad de los acontecimientos. Los caminos metodológicos desarrollados
forman parte de un conjunto de acciones teórico-prácticas sobre la presencia
escénica y las corporalidades afrobrasileñas en escena desarrolladas a lo largo de
nuestro trabajo como artista-investigador.
Palabras clave
: Dramaturgia. Aristóteles. Afrodiaspora. Danzas negras. Elinga.
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IWÁ3 - Princípio da Existência
Exu matou um pássaro ontem com a pedra que atirou hoje4
(Provérbio Africano)
Salve! Começamos5 este texto saudando vocês, leitores/leitoras. Ao saudá-
los, evocamos as nossas existências que, neste instante, estão conectadas através
da vibrAção6 das palavras que dançam dentro de seus olhos na medida em que
são lidas. A ação performativa que se instaura a partir do nosso contato, ou melhor,
da conexão, ainda que feita à distância, não presencialmente, está demarcada por
uma ideia do corpo em movimento (o que escreve e o que lê) e da leitura das
palavras que aparecem ordenadas textualmente de forma discursiva. O caminho
que propomos para esta nossa conversa está divido em quatro partes: 1) IWÁ -
Princípio da Existência; 2) ÀBÁ - Princípio da Ori.entação das coisas no mundo; 3)
ASÉ - Princípio da Realização; 4) ELINGA – Princípio da Ação Corp.oral. Cada parte
apresentada é um fragmento do corpo textual que se materializa à medida que os
olhos de vocês dançam entre os intervalos das páginas preenchidos por vocábulos
e suas sonoridades. Para além da função estrutural, cada tópico representa
princípios africanos relacionados à criação do mundo, de ações corp.orais e de
outras realidades (im)possíveis. Durante a leitura deste artigo os aconselhamos a
desobedecerem à ordem estrutural dos tópicos apresentados. Não se privem de
3
Iwá
é um termo da língua iorubá. Pode ser entendido como uma das três forças que constituem o universo
na concepção do povo nagô. Normalmente está relacionada ao princípio da existência. Para maiores
informações ler: Dos Santos, 2012.
4 Provérbios populares transmitidos oralmente por Mestres/as da cultura popular brasileira, Babalorixás e
Ialorixás dos candomblés brasileiros. Este provérbio colocado como epígrafe é fruto de minhas anotações
particulares em conversas com estes Mestres/as ou lideranças religiosas.
5 Utilizo a primeira pessoa do plural durante todo texto por entender que não ando só, não escrevo só. Este
texto é construído por várias vozes que vieram antes de mim, somos várias vozes! E como diz o provérbio
bantu-ubuntu:
Eu sou porque nós somos!
6 Durante a leitura do texto, em alguns momentos, leitores/as vocês encontrarão palavras que são grafadas
com um ponto final separando sílabas, ex.:
corp.oralidade
, ou com uma de suas letras em caixa alta
(maiúscula) como na palavra
VibrAção
. Esta forma de grafar as palavras é utilizada nos textos deste autor
que vos fala como uma estratégia estética e política. Meu intuito é chamar atenção para existência de outras
palavras dentro de uma mesma palavra, além de fazer uma provocação rítmica, visual, contracolonial na
língua portuguesa - ainda que escreva em português-brasileiro a maioria dos meus textos. Neste sentido,
busco descolonizar minha escrita em função de sua leitura, leitores/as. A ideia é que entremos em um fluxo
continuum
durante a leitura que começa pelo sentido da visão e que, quem sabe, possa ser dançada
sensorialmente por todo corpo.
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organizar suas leituras como bem entenderem. Instaurem, se assim o quiserem,
processos de apreciação textual de outra ordem. As frases, as sonoridades, as
orações, os parágrafos, os conteúdos, as narrativas e o tema, neste momento,
podem ser interpretados como caminhos, caminhos para uma dança individual e
corporificada pelas palavras e pela produção autônoma de (im)possíveis sentidos.
Aviso aos leitore/as
: este texto é destinado, principalmente, àqueles/as que
desejam exercitar, pelo menos por um instante, um certo afastamento das lógicas
tradicionais eurocêntricas no que diz respeito à organização de
ações/movimentos/gestos/sonoridades para construção de narrativas. Não existe,
portanto, nenhuma pretensão hegemônica ou absolutista em nossas proposições.
O que seria, consequentemente, uma contradição com nossas proposições
estético-filosóficas. Nossa intenção é chamar atenção para um outro ponto de
vista. Uma perspectiva para além das indicações eurorreferenciadas de possíveis
composições narrativas, sejam elas: verbais, corporais, gestuais, musicais etc. No
mais, esperamos que vocês desfrutem e que possamos estabelecer diálogos
expressivos no campo das artes da cena.
Dito isto, passaremos para o objetivo deste artigo que é problematizar o
conceito de dramaturgia na dança e linguagens afins. O intuito das provocações
comunicadas ao longo do texto é instaurar uma crise paradigmática em relação
ao conceito grego de dramaturgia, que tem como matriz epistemológica a
literalidade como ordenação narrativa. O conceito de dramaturgia é originalmente
conhecido e difundido desde os escritos do filósofo e escritor grego Aristóteles
através do seu livro
Poétic
a. A palavra ação, drama, na língua grega, é a raiz do
termo dramaturgia = drama(ação)/
turgia
(ofício/trabalho). Portanto, podemos
entender que o termo drama/turgia significa a função dada para ação durante a
produção de narrativas. Pois bem, ainda que o conceito aristotélico de dramaturgia
tenha sido reconfigurado em diversos momentos da história do teatro por teóricos
e pesquisadores/as, autores/as das artes cênicas e da literatura, suas bases
sempre estiveram alicerçadas no campo da literatura, ou seja, da compreensão e
produção de narrativas, que em sua maioria fazem uso da lógica textual como
forma de condução sistêmica para seu desempenho emocional e comunicacional.
Entendemos que outras possibilidades narrativas que priorizem o corpo, por
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exemplo, ao usarem este
modus operandi
, dramaturgia, se tornam reféns desse
nexo argumentativo para instaurar canais de comunicabilidade. Afirma Aristóteles:
“O pensamento inclui todos os efeitos produzidos mediante a palavra: dele fazem
parte o demonstrar e o refutar, suscitar emoções (como a piedade, o terror, a ira
e outras que tais) [...]” (Aristóteles, 2003, p.131)
Neste sentido, como nos indica Aristóteles através da “Poética”, poderíamos
afirmar que a noção de dramaturgia, em sua raiz primária, está diretamente
alinhavada às tessituras da literalidade. A palavra escrita, portanto, é a razão
estrutural e estruturante da ordenação de ações e emoções para produção dos
textos dramáticos. Florence Dupont (2017) faz considerações críticas sobre a
noção de dramaturgia ao reconhecer que os europeus se agarram a uma ideia de
narrativa da antiga Grécia. Para esta autora:
Aristóteles é, assim, desde o século XVII, o álibi para um teatro do texto,
isolado das outras artes do espetáculo, sem dança, sem música, sem
canto. O fiador de um teatro em ruptura com as tradições teatrais do
resto do mundo, sejam os teatros indianos, chineses, balineses,
japoneses ou persas, sejam os espetáculos ritualísticos que encontramos
no Magreb, na África ou na América todos lançados para as margens.
Tal é a arrogância da cultura europeia, que se afirma origem e modelo
(Dupont, 2017, p.3).
Como nos demonstra Dupont, a intelectualidade europeia, apoiada nos
pilares gregos, determina uma configuração para o teatro a partir do século XVII
que o isola das outras artes e prioriza o texto literário. Sendo assim, continua
Dupont: “Aristóteles teria assim, em plena consciência de causa, inventado uma
“arte poética”, uma
poietike tekhne
, fundada numa mimesis e num
mythos
que
ele retoma de Platão, mas à sua maneira, a fim de definir, de modo textual e não
ritual, a tragédia e a epopeia” (Dupont, 2017, p.5).
É no contrafluxo das ideias veiculadas pelos intelectuais europeus,
defensores de uma arte da cena distanciada das corporeidades e das ritualidades,
que são elaboradas as considerações apresentadas no desenrolar deste artigo. O
desafio aqui proposto não é o de dizer o que é dramaturgia nem o que ela deverá
ser, e sim fazer vocês, leitores/as, pensarem sobre outros pontos de vistas não
eurorreferenciados de leitura e interpretação do ser-no-mundo. O que
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abordaremos como ideia de contradramaturgia7 neste estudo é uma noção que
está imersa em uma complexidade filosófica de “saberes e fazeres” afro-
ancestrais. Portanto, defendemos a tese que as necessidades organizacionais das
narrativas e corporeidades pretas, apresentadas a partir de suas danças
afrodiaspóricas, são de outra ordem, ou seja, estão conectadas a uma ideia de
pensamento sinuoso (Santos, 2022a). Enfim, estão concatenadas com uma ideia
de
corp.oralidade
e de circularidade existentes nos fundamentos das cosmogonias
africanas.
Em nossas investigações, o corpo é o lugar que produz, recebe e conduz
de forma rítmica as ações cênicas. O ritmo é determinado na conexão
dessas ações com o instante presente, não existe procura por uma
logicidade narrativa no sentido ocidental de um ordenamento congruente
das ações cênicas; a coerência interna dessas ações corporais está
atrelada a outros critérios e sentidos, não existe uma lógica espaço-
temporal linear determinante. A sobreposição, o acoplamento das
sensações do corpo em movimento delineiam campos imagéticos
riscados no espaço por emoções; emoções estas guiadas por uma
musicalidade tecnicamente produzida na figura rítmica da síncopa. Essa
perspectiva de inscrição no mundo, firmada nas matrizes africanas,
determina as especificidades dos processos criativos aqui estudados, e
os diferencia do modo europeu de agir e produzir possibilidades frasais,
sejam elas musicais, verbais e/ou corp.orais (Santos, 2022a, p.11).
O percurso desenvolvido pelas experienciações relatadas acima traz em si o
caráter inseparável de proposições políticas e estéticas na medida em que se
tornam pertinentes e relevantes as discussões atuais de ações anticoloniais,
contracoloniais ou decoloniais no campo das artes, em nosso caso das artes
cênicas, especificamente da dança, tema deste artigo. Enfim, é importante
considerarmos que o conceito grego, europeu, de dramaturgia não conta das
necessidades basilares de ordenação de práticas performativas não europeias,
entre estas as danças africanas e afro-brasileiras. A visão reducionista dos
europeus desde uma lógica sintagmática, linear e dependente da palavra escrita
como fundamento organizativo dos acontecimentos no tempo e no espaço, como
7 O termo contradramaturgia é grafado desta forma sem hífen por entendermos que o conceito grego de
dramaturgia foi engolido por
Exu Elegbara
, “a boca que tudo come”, e regurgitado como um contradiscurso
anticolonial que traz no corpo, e não na literalidade, a potência organizativa e sensorial da produção de
ações narrativas no campo das artes da cena. Observamos que a representação do Orixá Exu é aqui utilizada
como uma metáfora contra o racismo epistêmico com base nas cosmogonias africanas e afro-indígenas.
São provocações para pensarmos outras formas estéticas de ler e inventar realidades.
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indiciou Aristóteles, tem como função restringir, elitizar e subalternizar outros
grupos étnicos. Percebam a reflexão do pensador africano Achille Mbembe sobre
as estratégias de dominação do colonizador:
A sujeição também precisa estar inscrita na rotina da vida cotidiana e nas
estruturas do inconsciente. O potentado deve habitar o súdito de modo
tal que este não possa mais exercer sua faculdade de ver, ouvir, cheirar,
tocar, imaginar, deixando até de sonhar sem que seja em referência ao
significante mestre que agora o domina e o obriga a gaguejar e titubear
(Mbembe, 2018, p.225).
Desse modo, defendemos a tese de que a dramaturgia atual com
fundamentos incontestáveis na “arrogância da cultura europeia, que se afirma
(como8) origem e modelo” (Dupont, 2017, p.3) para produção de narrativas de
qualquer ordem, não se diferencia de sua raiz histórico-literária com lógicas
etnocêntricas deterministas bem definidas por seus “mestres” e que nos obrigam
a gaguejar e titubear na hora de contarmos nossas histórias. Neste sentido, não
consideramos em nenhum momento de nossas reflexões o conceito
contemporâneo de dramaturgia expandida que aborda outras linguagens
(dramaturgia da dança, dramaturgia do corpo, dramaturgia da cena, dramaturgia
da luz etc.) como uma proposição que se diferencia dessa arrogância cultural
europeia pautada pelo mito de uma lógica discursiva positivista. A ideia de
contradramaturgia apresentada nesta pesquisa é uma ação estética e política
contradiscursiva, faz parte de uma dinâmica
exusíaca
assentada em uma
percepção espiral do espaçotempo, que age contra o aprisionamento narrativo das
danças africanas e afro-brasileiras, bem como de outras práticas performativas
subalternizadas por uma lógica cartesiana, hegemônica e eurorreferenciada. Como
indicia o provérbio apresentado no início dessa conversa, leitores/as, a dinâmica
energética de Exu é atemporal, multiaxial e faz parte de um pensamento sinuoso
no qual a compreensão e apreensão espaço temporal de nossa
corpoexistência
é
outro, pois “ontem é hoje sendo ontem sem deixar de ser hoje”. No mais, é
vocês voltarem para o provérbio no início do texto.
8 Inserção da palavra “como” na citação foi por mim colocada para ajudar o/a leitor/a. O meu intuito é expandir
a compreensão dada pela reflexão de Florence Dupont.
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ÀBÁ9 - Princípio da Ori.entação das coisas no mundo...
Quando não souberes para onde ir,
olha para trás e saiba pelo menos de onde vens
(Provérbio Africano)
Um corpo que dança é um corpo-pergunta. Um corpo que fala, pergunta,
pergunta sobre sua "escuta" de ser-no-mundo. Busca descolonizar a ideia de uma
dramaturgia que ainda hoje, no século XXI, nos é imposta como modo operacional
hegemônico de ordenação de movimentos, sonoridades, gestos e ações para
produção de narrativas textuais, corporais e até musicais. “É necessário
desconstruir totalmente a
Poética
10, até o seu fundamento, para revelar seus
postulados etnocêntricos, apresentados hoje em dia como um saber
inquestionável”, nos anuncia Florence Dupont (2017, p.10).
Nessa perspectiva se faz importante observarmos as transformações que
atravessam as artes da cena desde o final do século XX até os dias de hoje, no ano
23 do Século XXI. O quadro sugestivo sobre a desconstrução e reconfiguração
dramatúrgica, que nos apresentam alguns pesquisadores e pesquisadoras
contemporâneos/as “bem intencionados/as” e que visam expandir a concepção
aristotélica de dramaturgia para além de sua forma matricial textocêntrica, deve
ser questionado. No nosso entendimento, essas sugestões devem ser abordadas
com muita desconfiança e parcimônia, visto que, por vezes, estão abarrotadas de
armadilhas conceituais colonizadoras. Neste sentido, abrimos aqui um parêntese
para, apenas, elencar alguns guarda-chuvas conceituais contemporâneos11 como:
o Teatro Pós-Dramático12 (Hans-Thies Lehmann), Teatro Performativo (Josette
9
Àbá
é uma palavra africana da língua iorubá. Poder ser traduzida como uma das três forças do universo na
concepção do povo nagô. “É o princípio que induz, que permite as coisas terem orientação [...].” Ou seja, que
vislumbrem a obtenção de um fim. Para maiores informações ler: Dos Santos, 2012.
10 É importante avisar ao leitor/a que a
Poética
aqui mencionada por Florence Dupont é o livro de Aristóteles.
11 É considerável ter em mente que acepção de contemporaneidade se relativiza com uma enorme velocidade
na atualidade. Os interesses geopolíticos do capitalismo moderno são determinantes para definir os limites
da
contempo
rane
idade
. Na concepção do que é contemporâneo estão implícitas duas ideias, a saber: a
ideia de temporalidade cronológica e a ideia de simultaneidade corpoexistencial. Neste sentido, a relação
binária entre tradição e contemporaneidade faz parte de uma complexidade geopolítica colonialista, ou seja,
de subordinação dos povos não europeus.
12 O Livro do alemão Hans-Thies Lehmann,
O Teatro s-Dramático
, publicado em 1999 na Alemanha, foi
lançado no Brasil em 2008 pela editora paulista Cosac & Naify. Lehmann apresenta neste livro exemplos
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10
Ferál)13, Performance (Richard Schechner)14,
Performise
(Patrice Pavis)15, que visam
debater uma possível ruptura com a ideia de drama, texto, dentro dos paradigmas
aristotélicos. A ênfase de suas pesquisas se concentra na reconfiguração do
conceito de performance e performance-arte. Não podemos esquecer que os
artistas da performance-arte negam um ponto nevrálgico da
Poética
de Aristóteles
que é a ideia de representação, o que supostamente não os permite pensar em
possíveis releituras do drama ou de “expansão dramatúrgica”. Desta maneira, seria
paradoxal estabelecer uma relação entre dramaturgia e performance-arte.
Acreditamos que a performance-arte, de certa forma, se aproxima das
manifestações africanas e afro-brasileiras comentadas neste texto. Ressaltamos,
ainda, que o objetivo deste artigo, ao discutir a dramaturgia da dança, não é
aprofundar os conceitos da cena contemporânea surgidos no Estados Unidos e/ou
Europa sobre
performance, performise, performativo, pós-dramático
;
apresentados pelos autores supracitados.
Não encontramos em nossas investigações nenhuma abordagem de
acontecimentos cênicos africanos, afro-latinos, afro-brasileiros, enfim, da diáspora
africana nas obras destes autores que fizesse algum arrazoado das práticas
performativas, danças afro-diaspóricas, neste caso, a partir das singularidades de
seus valores sociais, filosóficos, simbólicos, religiosos e políticos. Ou seja, a maioria
dos pesquisadores europeus e norte-americanos continuam debatendo,
conversando entre si e ditando suas visões hegemônicas da cena contemporânea
e para cena contemporânea. Entretanto, por uma questão “natural” de
hierarquização, racismo epistêmico, alguns intelectuais e artistas são incapazes de
nos quais, supostamente, o drama (entendido como texto) perde o protagonismo em função da ascensão
da teatralidade. Entretanto, muitas são as controvérsias sobre as afirmações do que seria um Teatro Pós-
Dramático.
13 O conceito Teatro Performativo cunhado pela pesquisadora franco-canadense Josette Féral surge como
uma crítica à ideia de desaparecimento do drama no teatro contemporâneo. Féral identifica na
reconfiguração do conceito de performance como a grande revolução do Teatro Contemporâneo. Para mais
informações ler o livro: Féral, 2015.
14 O termo performance tem suas origens no francês antigo
: parformance
, de
parformer
(fazer, cumprir,
conseguir, concluir). O gênero performance arte surge no Estados Unidos na metade do século XX. O diretor
americano Richard Schechner é um dos grandes difusores do Estudo da Performance. Para mais
informações ler: Schechner, 2000.
15
Performise
é um termo conceitual utilizado pelo pesquisador francês Patrice Pavis e sua intenção é localizar
o processo de hibridação de linguagens presente, na contemporaneidade, nas artes cênicas:
encenação+performance = performise. Para maiores informações ler: Pavis, 2010.
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11
enxergar e reconhecer a dimensão dos valores estéticos, éticos e epistemológicos
produzidos por outros grupos étnicos fora do eixo europeu. Ainda hoje em pleno
século XXI existe um olhar
ex-ótico
e subordinador por parte de alguns pensadores
da arte contemporânea para obras de artistas africanos, indígenas e da diáspora
africana como um todo.
Pois bem, por uma questão de
àbá
, orientação, retornaremos aos escritos de
Florence Dupont, no intuito de tensionar a concepção de drama apresentado por
Aristóteles. A ideia é compreender porque na Poética, Aristóteles opta por se
distanciar da materialidade da cena e valoriza “[...] uma acção inteira e completa,
com princípio, meio e fim, para que, una e completa, qual organismo vivente, venha
a produzir o prazer que lhe é próprio” (Aristóteles, 2003, p.138)
A argumentação de Dupont sobre o livro
Poética
, considerado pelos
pensadores europeus um monumento teórico bem estruturado, é de que as
reflexões apresentadas pelo autor grego foram construídas “longe de qualquer
prática cênica” (Dupont, 2017), sendo este o fator que o torna uma armadilha
montada por arcabouços teóricos que se justificam entre si.
[...] a
Poética
é uma armadilha, porque o texto de Aristóteles e essa é
sua força e sua fraqueza - é de uma coerência total. Construída longe de
qualquer prática cênica, a
Poética
é um monumento teórico cujos
elementos, todos, se sustentam e se justificam necessária e
reciprocamente uns aos outros (Dupont, 2017, p.10).
A citação acima, portanto, abre caminhos para compreendermos a razão da
não valorização do corpo no drama aristotélico e, consequentemente, na
concepção de dramaturgia adotada pelos gregos e adaptada pelo teatro europeu
desde a era medieval. Reforça ainda Dupont que “O aristotelismo tornou-se o
paradigma do teatro ocidental (Dupont, 2017, p.88). Influenciados por preceitos
cristãos, nos quais o corpo16 é considerado como a “abominável vestimenta da
alma”, os/as atores/atrizes sofreram com ideias pudorosas da sociedade
eclesiástica, e seus corpos serviram apenas como um “gramofone” para os
interesses dos autores dramatúrgicos da época. A voz bem impostada e um texto
16 O corpo era visto pela Igreja como algo pecaminoso. A igreja passou a emitir padrões para ato sexual, ou
seja, ditava as regras de controle da utilização do corpo para a população,
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12
bem articulado era o bastante para estes autores.
Isto posto, a separação do teatro/drama de outras linguagens artísticas como
a dança, na qual o corpo é o elemento central, se torna uma evidência. Não nos
cabe aqui fazer uma análise moral do clássico teatro europeu. O que nos interessa,
leitores/as, são as consequências das proibições da igreja no que diz respeito ao
corpo, na produção de narrativas e suas reverberações na história da humanidade.
Entretanto, somos impulsionados a afirmar que a negação do corpo em cena na
antiguidade e a maneira como o corpo negro se movimenta, ginga, balança os
quadris produzindo uma “gramática incorporada” (Tavares, 2020) rica em
epistemologias ancestrais, assustou e assusta até os dias atuais a moralidade
estética euro-ocidental. O Projeto Colonialista com respaldo da igreja determina
que os corpos negros não têm alma. Tal afirmação objetiva justificar a escravização
e a comercialização destes corpos. Para a igreja e para os colonizadores europeus
“[...] o negro é representado como o protótipo de uma figura pré-humana incapaz
de escapar de sua animalidade, de se autoproduzir e de se erguer à altura de seu
deus” (Mbembe, 2018, p.41). É neste contexto que se potencializa o textocentrismo
nascido na helênica Grécia, se nega a força expressiva do corpo, e é (re)criada uma
dramaturgia exclusivista, racista, colonizadora e preconceituosa que nega os
“saberes e fazeres” de outros grupos étnicos que não sejam europeus. A ideia
implícita de uma dramaturgia universal, representada pela bíblia e pelos autos
trazidos pelos missionários da igreja, exerceu um papel operacional muito
importante no processo de catequização dos colonizados. As “palavras sagradas”
do catolicismo eram enfiadas nos corpos dos povos originários e dos africanos
mediante a teatralização de escritos bíblicos. Toda possibilidade de exposição
expressiva do corpo dos povos originários ou africanos era considerada como uma
“ação do demônio”, ou seja, um sacrilégio.
No palco colonial, o corpo negro-indígena, que em nossos estudos é
considerado um território sagrado e um arquivo epistêmico, foi submetido a
procedimentos desumanos, dramáticos e, por que não dizer, dramatúrgicos que
visavam à destruição de suas memórias ancestrais e suas gramáticas
corp.orais
,
“O corpo do colonizado deve se tornar o seu túmulo” (Mbembe, 2018 p.195). Porém,
a resistência e a resiliência dos povos africanos trazidos ao Brasil para que sua
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carne fosse comercializada produziram ações transgressoras. A troca de senhas
corp.orais
entre grupos étnicos africanos transformou seus corpos, suas
corporeidades - danças, símbolos, artes marciais, crenças - em armas libertadoras
contra a opressão dominadora do colonizador.
Observamos que as experiências “dramatúrgicas” e domesticadoras dos
jesuítas tinham como objetivo produzir e organizar narrativas verbais
irreconhecíveis no contexto cultural desses grupos étnicos. Ou seja, o objetivo
primeiro destes representantes da igreja católica foi impor, através de
“encenações”, modos de pensar, de se comportar e consequentemente instituir
uma outra língua, uma língua estrangeira, a sua língua de colonizador. Não
obstante, para os africanos na situação de diáspora,
àbá
, o princípio que induz, que
permite as coisas terem orientação (Dos Santos, 2018, p.75) é espiral e faz parte
de outro princípio, o princípio dinâmico da comunicação representada pela força
energética e resiliente de seus corpos-arquivo. Isto significa que uma forma usada
para combater essas práticas de domesticação do colonizador foi
estrategicamente perpetuar, durante séculos, os símbolos da
adinkra
17, para
comunicar seus saberes. Assim a ancestralidade é representada no movimento
sinalizado na imagem do pássaro
sankofa
.18
ASÉ19 - Princípio da RealizAção
Mas é sempre por sua
corporeidade que o
homem participa do processo de ação.
Milton Santos (2006, p.51)
O sentido implícito no princípio de realização,
asé
, é o de potencializar a
materialização das ações no universo. Convém pensarmos sobre a materialidade
17 A palavra
adinkra
pertence a um antigo sistema africano de escrita criado pelos povos acã (Akan), que
habitam a região de Gana, na África Ocidental. São símbolos do Gana que representam conceitos ou
aforismos. São encontrados em tecidos, cerâmicas, logotipos etc. No Brasil podemos encontrar
adinkras
em
portões e janelas de ferro.
18 Imagem de um pássaro olhando para trás que significa os dizeres que estão colocados na epígrafe deste
texto.
19 A palavra
asé
é um termo africano da língua iorubá. É considerada como uma das três forças do universo
na concepção do povo nagô. Pode ser traduzida como energia vital, a força de materialização das coisas na
cosmogonia nagô.
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dessas ações tomando como ponto de partida as artes da presença. Nos estudos
e nas práticas que desenvolvemos sobre a “condição20 de presença” e as
corp.oralidades
pretas nas danças e práticas performativas afrodiaspóricas, uma
das primeiras descobertas que fizemos está diretamente relacionada à
importância fundamental do corpo como autor de narrativas. A ideia de drama,
ação, não faz parte de uma visão pautada pela literalidade e sim pela corporeidade.
“Trata-se, sim, da recusa da separação absoluta entre o dentro (corpo) e o fora
(mundo) que leva a uma dimensão transbordante quanto às estruturas da
representação restrita às palavras (Sodré, 2017/2018, p.81). Neste sentido,
consideramos a ação
corp.oral
um ato político, assim, o corpo negro em
movimento imprime uma condição de presença21: é um corpo-pergunta, um
corpo-território, um corpo-arquivo que através de sua ancestralidade alimenta
estratégias enunciativas sinuosas, circulares e não lineares. Enfim, em outras
palavras, o corpo negro na condição de dança transporta gestualidades que não
são condizentes com a ideia de linearidade discursiva presente na dramaturgia
aristotélica. Por suas especificidades, as danças negras, ou melhor, as práticas
performativas de matriz africana, nas quais as linguagens cênicas estão integradas
e se complementam, não nos permitem encaixá-las com as variantes
contemporâneas de organização de um discurso cênico, como: dramaturgia da
dança, dramaturgia do corpo, dramaturgia do ator etc.
O atalho que escolhemos para complexificar a ideia de organização das ações
na dramaturgia aristotélica e suas variantes atuais, parte do pressuposto que as
reconfigurações e atualizações conceituais do drama grego, feitas por intelectuais
europeus majoritariamente, não descontruíram a lógica operativa de sua
construção discursiva. Não valorizam os saberes e fazeres produzidos pelo corpo
desde sua diversidade cultural. Ainda que sejam proposições fragmentadas de
movimentos, combinações visuais ou frases rítmicas, observamos, ainda, a
potência impositiva do cartesianismo determinando inícios-meios-fins, mesmo
20 Em nossos estudos no
Sistema Elinga
não consideramos a noção europeia de “estado de presença”.
Operamos com a ideia de “condição de presença” que está assentada na condição sociocomportamental
do corpo negro no contexto da diáspora africana no Brasil.
21 Faço questão de registrar que a presença do corpo negro na sociedade brasileira muitos anos sofre ações
racistas, por parte de uma elite branca colonizadora.
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que não estejam necessariamente nesta ordem. A abordagem da ação no teatro
europeu é eminentemente verbal, portanto, o foco narrativo se mantém na
realização de discursos. Como afirma Sandra Corradini (2010, p.20):
A problemática que se instala nas relações entre dança e teatro a partir
da consolidação da dramaturgia no campo da dança de certa forma
parece estar relacionada ao equacionamento das variáveis
composicionais da obra coreográfica segundo uma lógica organizativa
teatral, as quais, por vezes, tendem a suprimir a lógica que organiza as
relações entre os elementos na dança.
Na análise feita por Dupont do texto de Aristóteles, a autora faz uso de uma
reflexão do alemão Hans-Thies Lehmann para reiterar que, mesmo sofrendo
reconfigurações ao longo dos séculos, essa noção de um aristotelismo dramático
pautada no discurso escrito continua sendo o paradigma imposto como
dramaturgia universal.
No teatro europeu persistiu por séculos um paradigma que se distingue
muito claramente das tradições teatrais não europeias. Enquanto, por
exemplo, o kathakali indiano ou o teatro japonês apresentam
estruturas radicalmente diferentes e se compõem geralmente de danças,
de coros e de música, se articulam em torno a tipos de cerimônias
litúrgicas, de textos narrativos e líricos, na Europa o teatro significa:
realização de discursos e de ações sobre o palco graças a uma imitação
realizada pela atuação dramática” (Lehmann apud Dupont, 2017, p.51).
Neste sentido, ponderamos que as “novas dramaturgias”, voltadas para
outros elementos das artes cênicas como a dança (dramaturgia da dança) e o
corpo (dramaturgia do corpo) por exemplo, que supostamente deveriam operar a
partir de valores outros, ainda utilizam procedimentos derivados de lógicas
operacionais literárias para materializar narrativas não verbais. Portanto,
deduzimos que existe, ainda, uma forte influência do aristotelismo dramático
como elemento condutor destas composições cênicas. Não podemos esquecer
que o conceito alemão de dança-teatro (
Tanztheater
), cunhado inicialmente por
Rudolf Laban e John Koss no início do século XX e difundido mundialmente pela
coreógrafa Pina Bausch, surge da dramatização de gestos e ações retirados do
cotidiano. A singularidade criativa das obras cênicas de Pina Bausch surge em uma
encruzilhada europeia de gestos, movimentos e ações do cotidiano misturadas a
partir dos procedimentos organizacionais da dramaturgia teatral.
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Dito isto, salientamos, mais uma vez, que nas práticas performativas22
afrodiaspóricas, afro-brasileiras, a fusão entre as linguagens da dança, teatro,
música, canto e contação de histórias é uma realidade estética desde seus
primórdios ancestrais. Em um processo complexo que se opõe ao paradigma
grego, são misturadas nas danças de matriz africana a teatralidade, a
musicalidade, a performatividade e a espiritualidade: “A cinestética (movimento e
sentimento) das experiências cotidianas é, portanto, um conjunto de recursos
microfísicos para o processo comunicativo [...] (Tavares, 2020, p55). Essa
singularidade delineada pelas cosmopercepções africanas revelam uma
constelação de fenômenos indiciados por procedimentos organizacionais que
fazem parte de uma prática corp.oral milenar.
Ou seja, a aplicabilidade integrada dessas linguagens desconstrói o
protagonismo do texto e induz outros pontos de vista sobre a produção de
possíveis narrativas verbais ou não verbais, nas quais a notoriedade do corpo se
faz essencial. Deste modo, observamos que nas danças e expressões artísticas de
matriz africana: “O corpo aparece como potente manifesto de múltiplos cenários
e figura-fundo de toda a construção do processo para o qual ele atua de maneira
consistente a evocar o estado de ser, a condição do estar e a manifestação do
pensar” (Tavares, 2020, p. 22). Sendo assim, em diálogo com a afirmação de
Tavares, o intuito do estudo apresentado neste artigo é expandir o campo
operacional de organização de ações, movimentos e gestualidade na dança e nas
artes da presença de modo geral. Para esse propósito, as reflexões aqui
desenvolvidas se configuram como um modo particular de pensar, agir e
reconhecer caminhos
corpo.gráficos
entendidos, em nosso caso, como
contradramaturgia
.
São provocações que visam inscrever e escrever na fisicalidade da linguagem
do evento cênico, no seu corpo, sugestões para vocês, leitores/as, exercitarem a
deglutição da dramaturgia aristotélica e regurgitação - como faz exu “a boca que
tudo come” - de outras formas de contar histórias. Compreender como o corpo
negro opera desde suas cosmogonias africanas, afro-brasileiras, para arquitetar
linguagens que presentifiquem mundos é uma das finalidades desse estudo.
22 Prefiro denominar desta maneira ao invés de usar a expressão “teatro não europeu”
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Vejamos o que nos diz, mais uma vez, o antropólogo Julio Tavares (2020, p. 23):
O corpo negro, simultaneamente afro-brasileiro e afrodiaspórico, leva a
deglutição de culturas a sério como metáfora, como performance e como
linguagem na recepção do outro. Linguagem que nasce do corpo, corpo
que cresce na linguagem. Esta prática interacional e produtora de
renovados sentidos que adentra o universo do colonizador como um
marcador cultural é também uma prática deglutidora dos sentidos da
alteridade. Instrumento para escrever e inscrever a própria narrativa.
Potente a ponto de permitir o aparecimento de uma nova pragmática na
qual o operador centra-se na totemização do corpo, espaço do agir,
pensar, combater, orar e jogar.
O pensamento que nos é apresentado por Tavares (2020) nos orienta no
sentido de tomar para si a responsabilidade de revelar que a dramaturgia
aristotélica não conta de práticas cênicas nas quais o processo comunicacional
é de outra ordem, ou seja, que não se restringe a uma ordenação sintagmática das
ações no tempo e no espaço subordinados apenas às vontades textuais.
Ressaltamos, mais uma vez, que percebemos fenômenos aristotélicos implícitos
nessas novas concepções de dramaturgia da cena contemporânea. Portanto, a
afirmação do mestre Muniz Sodré corrobora com o que tem sido apresentado no
texto até aqui. Afirma Sodré: “Na realidade, pensamento nenhum emerge
exclusivamente das palavras [...] e sim principalmente da
espacialidade
instaurada
pelo corpo em sua vinculação com o entorno ético e existencial [,,,]” (Sodré,
2017/2018, p.81). Pragmaticamente existe um empenho de nossa parte em buscar
outros princípios no campo da linguagem cênica que não usem a lógica linear das
dramaturgias eurorreferenciadas. Isto é, rastreamos nas investigações do Sistema
Elinga
, na qual a contradramaturgia e as cosmogonias africanas e afro-brasileiras
são princípios que potencializam fluxos plurissensoriais, gestualidades, ações
entre corpos, enfim, formas sinuosas, movimentos sinuosos, pensamentos
sinuosos que encantem outros corpos, quando na condição de dança. Afinal, nesta
conversa, leitores/as, o corpo preto, afrodiaspórico, afro-brasileiro, é o senhor de
suas exegeses; o lugar sagrado que produz e sofre os acontecimentos do ser-no-
mundo. O que definimos como contradramaturgia, portanto é:
[...] anticolonial, nega os paradigmas comportamentais, socioculturais e
concepções estéticas coloniais. É
anticoreográfica
no que diz respeito à
organização de um corpo que rabisca o espaço. É no chão e nega a
verticalidade euro-ocidental do balé para organizar o corpo no
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18
espaçotempo
(Santos, 2022b, p.190).
Convém ressaltar que as danças afro-brasileiras no contexto da diáspora
africana acontecem no espaço de conexão com os deuses africanos e afro-
brasileiros e em diálogo direto com a natureza. O corpo do/a dançarino/a em
movimento balança sincopadamente seguindo a ondulação da coluna, os pés
encontram no chão a ancestralidade, os ombros e as mãos em movimentos
circulares acariciam o vento, empurram ondas ou cortam cabeças. Ao contrário
das proposições dramatúrgicas europeias, como versamos em parágrafos
anteriores, é na corporeidade que se materializa o contradiscurso, a razão pela
qual o corpo negro se movimenta. Assim dizendo, são
corpoemas
que por
intermédio da expressão
corp.oral
produzem vibrações
sonorogestuais
que
revelam saberes ancestrais, experiências singulares arquivadas em princípios
dinâmicos para além da matéria. Estes princípios manifestados fisicamente nas
formas
corpo.gráficas
das danças africanas e afrodiaspóricas fazem parte de uma
ação sociopolítica e, consequentemente, estética do corpo negro no momento de
sua “condição de presença”: a este momento denominamos
Émí Ewá
23 (Santos,
2020a). Isto é, nestes instantes, nas danças africanas e afrodiaspóricas, o passado
se apresenta atravessado por memórias gestuais que se materializam em cada
movimento riscado no ar. Em cada pisada no chão se instaura uma ação política,
uma dança que na sua contemporaneidade nos remete à uma dinâmica espiral do
presente onde o corpo é texto e memória, estabelecendo um diálogo com
tambores ancestrais e produzindo
Asé
!
ELINGA24Princípio da Ação Corp.oral.
A sola do pé conhece toda sujeira da estrada.
(Provérbio Africano)
O Sistema
Elinga
é um conjunto de princípios sobre Presença Cênica, ou
melhor, sobre a Condição de Presença, que investigamos à luz das
23 Expressão iorubá que pode ser traduzida em português por: “Eu Sou”.
24 Palavra da língua africana Umbundo, que pode ser traduzida para o português como: Ação, Iniciativa. No
Sistema
Elinga
a relação entre a ideia de ação e de composições cênicas sempre estará afeiçoada a uma
organização protagonizada pelo corpo. É ele, o corpo, e suas
corp.oralidades
que constroem indicações para
possíveis narrativas. Ou seja, antes de qualquer referência escrita precede os valores das corporeidades.
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cosmopercepções africanas e afro-brasileiras no campo das artes cênicas. Estes
princípios estão diretamente relacionados às cosmogonias africanas,
afrodiaspóricas e afro-brasileiras. As linguagens da dança, teatro, performance,
circo, música, e mesmo as tecnologias do audiovisual são abordadas de forma
integrada como normalmente acontece nas práticas cênicas africanas e afro-
brasileiras. A separação entre estas linguagens séculos se configura como parte
de um posicionamento da sociedade europeia e seus interesses colonialistas. A
natureza exclusivista de suas ações colonizadoras estava assentada, creio que
ainda estão, em preceitos morais, socioculturais, patrocinados pelos interesses da
igreja em priorizar valores conservadores. Um dos principais objetivos eclesiásticos
era “calar” o corpo dos indivíduos devido à sua potência expressiva, sua capacidade
transgressora e libertadora. Gostaríamos de frisar que, na atualidade, se costuma
denominar por dança contemporânea e/ou performance contemporânea práticas
artísticas que fazem uso das linguagens cênicas de maneira hibridizada, tal qual
as danças das tradições africanas e afro-brasileiras. Bom, mais tarde, voltarei
neste assunto.
Isto posto, voltemos, queridos/as leitores/as, ao foco de nossa conversa que
questiona o conceito de dramaturgia que nos é imposto pelos paradigmas
europeus. No Sistema Elinga organizar ações, corporeidades, pensar, investigar e
criar proposições
coreocênicas
, segundo os fundamentos das cosmopercepções
africanas e afrodiaspóricas, são formas éticas e estéticas (
est.ética
25) de
respondermos desde uma perspectiva negro-indígena aos ataques sofridos
diariamente por meio dos dispositivos de poder, melhor dizendo, pela
“colonialidade de poder” como demarcou o sociólogo peruano Anibal Quijano
(2005). Neste sentido, o corpo negro-brasileiro, que é ao mesmo tempo arquivo e
arma (Tavares, 2012), se apresenta como um caminho metodológico para outros
pontos de vista sobre um possível entendimento da dramaturgia contemporânea.
Afinal, o:
[...] aristotelismo parece ter progressivamente colonizado os teatros
25 A palavra “estética” grafada desta maneira simboliza que os povos africanos e os povos originários não
separam suas ações estéticas de suas obrigações éticas. A arte é consequência da vida cotidiana e da
organização social do povo.
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europeus e
do resto do mundo
26 à medida que deixavam de ser práticas
ritualizadas e codificadas, mesmo que não se tratasse mais do que de
rituais sociais. É por isso, como veremos, que a atualidade do
aristotelismo está ligada à invenção da encenação e à modernidade. É
por isso que não é assim tão fácil ser não aristotélico (Dupont, 2017, p.17).
As provocações que procuramos desenvolver durante a construção desse
texto não têm como propósito negar absolutamente a produção de narrativas
corporais ou verbais de artistas da cena contemporânea que fazem uso do
conceito de dramaturgia. O que está sendo colocado em xeque é a imposição
histórica da ideia de uma dramaturgia contemporânea “eurorreferenciada” como
a única maneira de organização de narrativas verbais ou não verbais. Reiteramos
que este formato não contempla a complexidade e a diversidade sociocultural de
populações não-europeias nas suas interpretações do mundo.
Consideramos, portanto, que o conceito de dramaturgia expandida ou
dramaturgia contemporânea ainda se encontra ancorado em uma longa tradição
eurocidental de ordenação comunicacional regida por procedimentos
dramatúrgicos exclusivistas. Assim sendo, atentamos, ainda, para o fato de que a
utilização de alguns princípios dramatúrgicos contemporâneos em espetáculos de
dança não anula, necessariamente, uma lógica organizativa que opera no campo
da literalidade. O que argumentamos desde as cosmogonias africanas e afro-
brasileiras faz parte de uma realidade composicional sensorial, na qual o corpo é
o elemento artesanal da lógica narrativa, o assentamento das produções de
nossas exegeses. Um outro ponto de vista, um ponto de vista que seja deslocado
da ideia matricial de dramaturgia. Uma lógica operacional baseada na intimidade
corpoexistencial
do encontro corpo do espectador com os artistas da cena.
Vejamos como exemplifica este encontro o filósofo François Frimat:
Com a dança, uma vez instalado no espaço, a evolução dos
acontecimentos me impõe uma espécie de auto afetação na medida que
estou na presença de alguma coisa que desaparecerá rapidamente, tal
qual é produzida. Ou seja, que poderá subsistir como recordação de
uma experiência íntima” (Frimat, 2010, p.20).27
26 Inserção minha para uma melhor compreensão da discussão proposta por este artigo.
27 Avec la danse, une foi installé, dans le lieu, le déroulement des événements m’impose une certaine auto-
affection dans la mesure je suis em présence de quelque chose que va disparâitre aussitôt qu’il s’est
produit , qui ne pourra subsistier que sous la forme du souvenir d’une experiénce intime. (Frimat, 2010,
p.20). (Tradução nossa)
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Ao usar como exemplo o pensamento de Frimat, procuramos identificar as
negociações feitas durante o encontro presencial entre os corpos que ocupam um
mesmo espaço e a produção de corporeidades estabelecidas pela dinâmica
sensório-afetiva entre o corpo do/a espectador/a e dos/das dançarinos/as. Ou
seja, a qualidade existencial do acontecimento cênico é determinada pela
singularidade do momento enquanto uma relação cinestésica tal qual afirma
Tavares (2020), ao versar sobre as particularidades de um conjunto de recursos
microfísicos que agem para o processo comunicativo nas danças de matriz
africana. Neste sentido, nas danças de matriz africana, um corpo em movimento,
um corpo na condição de dança se desloca como um corpo-pergunta que vibra,
irradia ondas energéticas - que em nosso entendimento, perspectivas lineares, não
hibridizadas no que diz respeito às linguagens, não conseguem dar conta. As
práticas artísticas africanas e da diáspora africana brasileira, em nossos estudos,
são compostas a partir das sutilezas organizacionais de seus movimentos
corp.orais
, pelas nuances combinatórias dos gestos e justaposições de ações
reveladas pelo corpo-arquivo.
São as mutações sensório-afetivas produzidas pela sonoridade dos
instrumentos percussivos que evocam a ancestralidade e instauram uma
“alquimia do vazio”, que potencializará a “ritualização do instante” (Santos, 2020a)
na sua imaterialidade. Portanto, reconhecemos a existência de uma certa
aproximação da experiência relatada por Frimat com a noção de
contradramaturgia que defendemos em nossos estudos. A contradramaturgia se
alimenta de pulsações sonoras e gestuais no encontro do corpo com as
cosmossensações circunstantes para gerar composições coreocênicas.
Consequentemente, na noção de corp.oralidade, o corpo e as sonoridades internas
e externas ao corpo cumprem um papel de elo com uma outra ordem do real
pautada entre materialidade e imaterialidade do acontecimento cênico. Os
movimentos são justapostos sem a obrigatoriedade de uma ordenação narrativa.
São as
pul.sAções
das corporeidades que traduzem as camadas vibracionais
perceptíveis e organizáveis da estrutura correlacional composta pelos corpos dos
presentes na condição de dança. Como nos indica José Wisnik: “O som tem um
poder mediador, hermético: é o elo comunicante do mundo material com o mundo
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22
espiritual e invisível.” (Wisnik, 2017, p.30). A relação entre o mundo material e o
mundo espiritual, bem como a hibridação de linguagens fazem parte da
complexidade filosófica das danças africanas e afrodiaspóricas. Ainda que, como
afirma Frimat (2010), a dança contemporânea tenha adotado a hibridação de
linguagem na busca por outras experiências sensoriais, desconfiamos que a ideia
de uma dramaturgia da dança universal engloba estratégias colonizadoras de
domesticação de corpos não-europeus. Propósitos historicamente vigentes desde
a Poética de Aristóteles, que por sinal, leitores/as, defendia a ideia de superioridade
de uma raça em relação à outra.
As consequências práticas disso na contemporaneidade são criações cênicas
que, muitas vezes acreditando serem de vanguarda por usarem o termo
dramaturgia associado a outras linguagens cênicas, esquecem de olhar para a
realidade estrutural e estruturante da longa história conservadora e colonialista da
suposta invenção do teatro, da dança e suas variantes cênicas definidas como: “o
milagre grego, uma doutrina universalista e literária do teatro das origens e das
origens do teatro” (Dupont, 2017, p.16). É importante registrar que na África, nas
Américas, na Índia, no Japão, na China e outros cantos do planeta existiam outras
civilizações produzindo outras formas de ler e se inscrever no mundo antes do
contato com os europeus.
Bom, leitores/as, chegamos até aqui defendendo a importância do corpo
como um fundamento diferencial na produção de narrativas não verbais e não
lineares, ou seja, outros pontos de vista para composições coreográficas,
coreocênicas
e suas corpografias. Portanto, a discussão aqui apresentada traz para
o protagonismo o corpo afro-brasileiro que em movimento “[...] age de forma
transgressora, debochada, opondo-se a um comportamento determinado por
regras colonizadoras” (Santos, 2020b). Nas encruzilhadas trilhadas pelo Sistema
Elinga
, a voz do corpo nos conduz para os entrelugares da oralidade e das
corporeidades, “A grande importância outorgada ao corpo [...] não se trata de uma
subjetivação ancorada em estruturas lógicas da representação, mas nos
posicionamentos de potência corporal inscritos em um território” (Sodré,
2017/2018, p.101). No Sistema
Elinga
o corpo é território, o corpo é o local que
“abriga as representações do cosmos e de todos princípios cosmológicos,
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23
portanto, as divindades” (Sodré, 2017/2018, p.101). O corpo, então, na
contradramaturgia não é um depósito de palavras escritas, de indicações literárias,
ou parte de uma ordenação determinada por pensamentos exclusivista que negam
a diversidade corpoexistencial inscrita por diálogos ancestrais que acontecem
além do mundo material. O corpo contradramatúrgico, então, ginga escrevendo e
inscrevendo rebeliões anticoloniais!
Por isso, em Elinga, leitores/as, gingamos, logo (re)existimos!
Salve nossa Ancestralidade Afro-brasileira!
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Recebido em: 30/06/2023
Aprovado em: 08/09/2023
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
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