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O que diz respeito ao pinheiro, aprenda do pinheiro; o que
diz respeito ao bambu, aprenda do bambu
Paloma Bianchi
Ana Krein
Para citar este artigo:
BIANCHI, Paloma; KREIN, Ana. O que diz respeito ao pinheiro,
aprenda do pinheiro; o que diz respeito ao bambu, aprenda do
bambu.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 3, n. 48, set. 2023.
DOI: 10.5965/1414573103482023e0104
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O que diz respeito ao pinheiro, aprenda do pinheiro; o que diz respeito ao
bambu, aprenda do bambu1
Paloma Bianchi2
Ana Krein3
Resumo
Pa. está em Florianópolis, A. em São Paulo. As duas decidem escrever um artigo
acadêmico sobre dramaturgia da dança. As alunas de Pa. estão confusas. O que é
ser dramaturgista? Pa. responde que dramaturgia é prática. Pa. conta para A. que fez
alguns exercícios práticos de dramaturgia com as alunas, deu errado. Nas aulas, as
alunas ou davam ordens, ou davam dicas, ou diziam se gostavam. Isso fez com que
A. tivesse uma ideia para o título do artigo: Ordem, dica ou gosto? Os desvios e
equívocos do trabalho de dramaturgistas. Pa. se interessa mais pela primeira
resposta que deu para as alunas: dramaturgia é prática. Pa. e A. decidem que esse
artigo seria decorrência de uma prática à distância em que A. e Pa. seriam artistas e
dramaturgistas uma da outra.
Palavras-chave
: Dramaturgia da dança. Processo em dança. Prática dramatúrgica.
Ferramentas dramatúrgicas.
From the pine tree, learn of the pine tree; from the bamboo, learn of the
bamboo
Abstract
Pa is in Florianópolis, A. in São Paulo. Both decide to write an academic paper about
dance dramaturgy. Pa.'s students are confused. What exactly does it mean to be a
dramaturgist? Pa. answers that dramaturgy is a practice. Pa. tells A. that she
conducted some dramaturgical practices with her students, but it went wrong. In
class, students either gave orders, tips, or said whether they like it or not. That led
A. to come up with an idea for the title of the paper: Order, tip or taste? The
deviations and misconceptions of the work of dramaturgists. Pa. is more interested
in the first answer she gave to her students: dramaturgy is a practice. Pa. and A.
decide that this paper would be the outcome of a remote practice in which A. and
Pa. would be artists and dramaturgists of each other.
Keywords
: Dance dramaturgy. Dance process. Dramaturgical practice. Dramaturgical
tools.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Elisabeth Hargrave da Silva Bianchi,
graduada em Letras pela Universidade Santa Ursula (RJ).
2 Doutora em Teatro na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com período sanduiche na
Universidad de Zaragoza, Espanha. Mestre em Teatro pela UDESC. Graduação em Comunicação das Artes
do Corpo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professora-colaboradora no curso de
Bacharelado em Dança na Universidade do Estado do Paraná (UNESPAR). Artista da dança professora e
pesquisadora. Participa do Coletivo Mapas e Hipertextos desde 2013. bianchi.paloma@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/0602271354700034 https://orcid.org/0000-0003-2983-0465
3 Mestre em Estudos Coreográficos: pesquisa e representação pelo Centro Coreográfico Nacional de
Montpellier-FR em parceria com a Universidade Paul Valéry III. Possui Bacharelado e Licenciatura em Dança
pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É artista e pesquisadora independente.
ana_krein@yahoo.com.br
http://lattes.cnpq.br/6660495004449470 https://orcid.org/0009-0003-5721-427X
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Lo que se refiere al pino, aprende del pino; lo que se refiere al bambú, aprende
del bambú
Resumen
Pa. está en Florianópolis, A. en São Paulo. Las dos deciden escribir un artículo
académico sobre dramaturgia de la danza. Las estudiantes de Pa. están
desorientadas. ¿Qué significa ser dramaturgista? Pa. responde que la dramaturgia es
una práctica. Pa. cuenta a A. que ha hecho unas prácticas de dramaturgia con las
estudiantes y le han salido mal. En clase, las estudiantes daban órdenes,
indicaciones, o decían si les había gustado. A A. se le ocurrió una idea para el título
del artículo: ¿Orden, indicaciones o gusto? Los desvíos y equívocos del trabajo de
dramaturgistas. A Pa. le interesa más la primera respuesta que dio a las alumnas: la
dramaturgia es una práctica. Pa. y A. deciden que este artículo sería el resultante de
una práctica a distancia en la que A. y Pa. serían artistas y dramaturgistas una de la
otra.
Palabras clave
: Dramaturgia de la danza. Proceso en danza. Práctica dramatúrgica.
Herramientas dramatúrgicas.
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AVISO - guia de navegação
Esse texto é efeito de um processo que teve início nos primeiros dias de fevereiro
de 2023, quando A. e Pa. decidiram que não iriam escrever sobre dramaturgia,
como se ela fosse um objeto de estudo a ser investigado a partir de ambiente
controlado e distanciado. Se a dramaturgia da dança se em processo, mais
justo seria se dispor a entrar em um processo para que ela emergisse dele.
Durante esses meses, A. e Pa. descobriram diferentes procedimentos e formas de
lidar com o que aparecia. Esse artigo tenta não trair o processo ao transformá-lo
no formato escrito. Pela investigação ter se dado em diferentes camadas,
apresentar o trânsito entre elas se faz fundamental para dar conta da experiência.
a. O que se lê a seguir combina realidade e ficção;
b. Os elementos propostos para este artigo são possibilidades de
ferramentas dramatúrgicas;
c. As capturas de tela de
WhatsApp
indicam o envio de proposições entre
A. e Pa.;
d. As imagens com texto entre [colchetes], denominadas como
dramaturgia
paralela
, são inserções que se descolam do corpo do texto, ao mesmo
tempo que incidem sobre os assuntos tratados; isto é, simultaneamente
pertencem e não pertencem ao texto. Os termos que dão título a essas
inserções têm origem nesse processo de investigação em específico;
e. Todas as imagens são documentações do processo, de autoria de A. e de
Pa. Então, fazem parte de seus acervos pessoais.
Proposições
02 de fevereiro de 2023, primeiro encontro entre Pa. e A. Ainda não começou o
carnaval. Durante 4 meses, as duas pretendem desenvolver práticas artísticas e
produzir documentações para pesquisar as dramaturgias envolvidas. Pa. pergunta
para A.: como começar quando a intenção não é um resultado artístico, mas a
investigação de um processo dramatúrgico? As duas escolhem e apostam em
começar a prática por meio de proposições.
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Trabalhar com proposições, para elas, tem a ver com lançar um convite para outra
pessoa de maneira precisa, mas ao mesmo tempo aberta. Não é tarefa fácil,
porque pode se tornar uma prisão ou, pior, pode deixar a pessoa tão livre a ponto
de tudo poder acontecer, ou nada. Uma proposição não é uma pergunta a ser
respondida, mas algo a ser vivido, um algo que não se sabe onde vai dar, mas que
cria parâmetros para um caminho. Dessa forma, A. fez uma primeira proposição
para Pa. e vice-versa.
Quando A. fala sobre o entre atividades cotidianas, ela delimita um campo: não é
em qualquer momento, é justo naquele momento quando se termina algo e outra
coisa ainda não se iniciou. Nesse momento muita coisa pode acontecer, mas não
tudo. O entre também é um convite para entender o tempo e o que se faz com
ele; um compasso de espera, mas quando o convite é lançado para perceber
essa espera, ela deixa de ser espera e se torna atenção. Pelo menos foi assim que
Pa. sentiu: convidada a ficar atenta na espera e perceber o que ocorre ou não
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nesse espaço/tempo.
Da mesma maneira, ao convidar A. para atentar para as relações que ela possa vir
a ter com criaturas não-humanas, Pa. delimita um campo. Não é qualquer
encontro, também não é com qualquer existente. A. passa a ter um
direcionamento de escuta e olhar, descentraliza a hierarquia e centralidade do ser
humano, entende que os elementos a serem trabalhados podem ser de diferentes
naturezas. A. escolheu trabalhar com algo inanimado, um glitter para testar o que
ele poderia desencadear como material, materialidade e seus agenciamentos.
Uma proposição coloca em jogo uma situação que não precisa, talvez nem deva,
ser resolvida. Nesse sentido ela restringe - porque não se trata de "vale-tudo", -
porque não possui um objetivo específico e final; uma proposição indica rotas
possíveis, mas não define um ponto de chegada. Talvez por isso seja tão
importante a escolha das palavras usadas em uma proposição. A. (2023) fala que
a escolha demanda ética e cuidado, pois uma linha tênue entre contorno e
agência:
Como ter um procedimento que contorno suficiente e que
agenciamento o suficiente? Com as proposições, para fazer muitas
coisas diferentes, mas vai ter contorno. Não é que o imprevisível não
possa surgir, mas não é propondo uma maçã que vai sair um melão.
Palavras geram coisas, elas possuem performatividade e produzem efeito, como
disse Austin (1962). Em um trabalho de arte, uma proposição e as palavras
contidas nela deixam marcas e desenham o próprio trabalho.
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Como olhar para o que foi produzido?: Ferramenta 1
No dia 02 de março, uma quinta-feira à tarde, elas se encontraram pela segunda
vez. Pa. falou de sua surpresa com a primeira documentação de A.. Ela sabia que
seria algo sobre o carnaval, mas não previu que teria o glitter como protagonista,
tampouco que a documentação seria um texto ficcional sobre a agência
onipresente do glitter. Como algo tão minúsculo pode dominar um período do ano
de modo tão avassalador?
Para dar conta da empreitada, em vez de olhar para o texto como um todo, Pa. foi
observando as palavras escritas, selecionou algumas, selecionou outras mais.
Percebeu que poderia criar categorias com elas, pois havia coisas em comum.
Primeiro separou os verbos categoria
verbos.
Depois percebeu que havia palavras
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que caracterizavam algo ou outorgavam qualidades; como não queria usar o termo
adjetivo, nomeou a categoria como qualidades e características. Também notou
que algumas delas poderiam ser definidas como afirmações então categorizou
dessa forma:
afirmações
. Havia uma pergunta, portanto: perguntas. Para evitar a
categoria substantivo e abarcar aquelas outras palavras que sobravam (sempre
sobram palavras), Pa. entendeu que elas poderiam ser pistas para o futuro
categoria
outras pistas
.
Enquanto Pa. categorizava, A. fez uma lista de nomeações de tudo que aparecia
nas documentações de Pa. As produções de Pa. foram de diferentes mídias e
naturezas: vídeo, texto, áudio, gif e fotografia. A. se perguntou quais eram as
relações entre todos os materiais. O que aparecia de comum entre eles? Quais
eram as especificidades de cada um? As palavras entre e cotidiano da proposição
foram o chão dos materiais produzidos: desde a panela de pressão, passando pela
própria Pa., a pausa para o cigarro, até a barata.
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A. conta para Pa. que, quando empregou a palavra
entre
na primeira proposição,
já estava pensando que ela poderia gerar algo já inscrito na lógica da dramaturgia.
A. diz que “o
entre
é um lugar dramatúrgico; o trabalho da pessoa dramaturgista
atua exatamente
nos entres
."
entre. prep.: Expressa a relação de lugar no espaço que separa duas
pessoas ou coisas; [...] Exprime a preferência de uma coisa em relação a
outras; Indica alternativa na escolha de um ou dois termos opostos;
Estabelece a ideia de fatos mal observados em meio a uma manifestação
barulhenta; [...] Indica reciprocidade de ação; [...] Exprime o intervalo de
tempo que separa dois fatos ou duas épocas; Mostra a diferenciação de
qualidades; Expressa a parte de uma totalidade (Michaelis, 2015, s/p).
Na conversa daquela tarde, A. e Pa. descobriram que a estratégia de nomear, listar
e categorizar era também uma ferramenta de trabalho dramatúrgico: observar o
que estava acontecendo nas documentações, dar nomes, categorias e visualidades
para esses acontecimentos. Elas criaram um documento
online
específico para a
inserção de palavras que viam, descobriam, observavam, identificavam e
presumiam de cada documentação. Ao longo de todos os meses de pesquisa, o
documento foi sendo alimentado com palavras que aludiam às operações que
ocorriam nas documentações. Assim apareceu a ferramenta que chamaram de
dramaturgia paralela
.
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A princípio A. e Pa. não sabiam como acionar a
dramaturgia paralela
: incluiriam nas
proposições ou documentações? Seria ferramenta de análise, ou apenas a
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documentação da memória do processo? Poderia ser tudo isso ou nada disso.
Sabiam que a
dramaturgia paralela
é o
outro daquilo
, pois todo
aquilo
gera um
outro daquilo
. Parece confuso e não é. Imagine que
aquilo
é o que se escolhe fazer
voluntariamente. Nesse fazer, esse aquilo ganha forma, se materializa em um certo
arranjo. No entanto, como menciona Elizabeth Povinelli (2016, p. 420), "todo arranjo
instaura seus próprios possíveis desarranjos e rearranjos", isto é, o
outro daquilo
ou, nas palavras de Povinelli,
aquilo-outro
. A. e Pa. sabem que não se podem
descartar elementos que emergem do processo apenas porque ainda não
possuem uma forma ou lugar definidos. Elas sabem que nada é descartável para
a dramaturgia.
Outro-daquilo, aquilo-outro, fantasmas
, são termos que podem nomear o que
emerge de sobra durante os processos. Sobra não é lixo, é resíduo que pode se
atualizar em situações que ainda não se revelaram. Na culinária essa situação
aparece com frequência. Sobrou arroz? Bolinho de arroz. Sobrou frango assado?
Salada de frango. O pão velho se transforma em farinha de rosca, e assim por
diante. O ingrediente original se transforma preservando aquilo que é, sendo outro:
outro-daquilo, aquilo-outro
. Rita Lobo (2022, s/p) denomina esse processo de
reaproveitamento para evitar desperdício e até comenta sobre a possibilidade das
sobras planejadas: "Quando você vai preparar uma refeição, aproveita que está
com a mão na massa e adianta alguma etapa de outra receita. Quem cozinha uma
batata, cozinha duas. Se vai assar um frango, aproveita e manda uns legumes
de carona pro forno". Na dramaturgia, trabalhar com as sobras não é algo tão
simples e direto, é preciso ter calma e observar. Observar mais um pouco, colocar
à margem sem perder de vista, sem esquecer. Aguardar o momento oportuno para
que as sobras recobrem relevância. O planejamento, então, não consiste em
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"adiantar alguma etapa" do processo, mas em saber que sobras vão existir, e que
é necessário atentar para que não se desperdice uma oportunidade. A
dramaturgia
paralela
aparece como outro do processo, um descolamento que diz sobre o
trabalho e ao mesmo tempo abre a possibilidade para outros desdobramentos.
Retrabalhar a proposição: Ferramenta 2
Ainda naquele 02 de março, elas decidem relançar as proposições incluindo os
termos e as categorias da
dramaturgia paralela
. Dias depois, A. envia uma
proposição para Pa. e vice-versa. Nessa operação, a
dramaturgia paralela
se torna
ferramenta nos processos de criação e também material que modula as
experimentações. Na proposição enviada a A., Pa. insistiu nos encontros entre
humanos e não-humanos e incluiu as palavras que apareceram na primeira
documentação de A. como material para A. transformar os encontros. Por outro
lado, em sua proposição para Pa., A. manteve o espaço do
entre
como lugar de
habitação incluindo diretivas mais concretas e precisas orientadas por palavras e
frases documentadas na
dramaturgia paralela
:
Como resultado, Pa. produziu 18 documentações diferentes a partir dos termos
pensar/ver ver/pensar, ócio, duração de algo
da
dramaturgia paralela
:
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Em vez de aderir por completo à proposição de Pa., A. formulou parâmetros a
partir da proposição, uma espécie de orientação de como mover a proposição
original: 1.
Fazer derivas em São Paulo e filmar ou fotografar a partir da proposição
de Pa. para A.; 2. Legendar essas imagens/vídeos somente com as palavras de A.
selecionadas por Pa
., isso resultou em 15 documentações que entrelaçam texto,
imagem e vídeos curtos.
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Teria sido o procedimento de A. uma desobediência? No processo de A. e Pa., que
tem por objetivo pesquisar o fazer dramatúrgico, a resposta às proposições, tanto
nas estratégias de documentar, como nas próprias documentações, é também
uma possibilidade de investigar e de desenvolver a própria proposição. Pa. (2023)
diz: "Quando você olha muito para uma coisa, quando você olha muito para algo,
aquilo vai desprendendo fios. você vai soltando esses fios. Então não é
necessariamente uma desobediência, talvez seja abrir a trama do que a gente nem
sabia que tinha para ver o que se desprende". Para A., a desobediência se torna
relevante quando seu movimento é compreendido como lugar de agenciamento
dentro da proposta, E A. (2023) pergunta: “Como que a gente se entende dentro
desse contorno da proposição, o que que a gente tem de mobilidade dentro do
que foi proposto?”
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As posições de Pa. e A. são complementares. Se por um lado é necessário um
certo tipo de escuta para que a proposição ganhe vida e se desdobre, por outro
o lugar de manuseamento da artista, um mover junto com a proposição. Então,
não se trata exatamente de uma desobediência, mas de reconhecer que tanto a
proposição como a artista são agentes da relação.
Como fica evidente por essas segundas documentações, A. e Pa. não estão
trabalhando em um ambiente relativamente controlado de uma sala de ensaio. O
que fazem, fazem no cotidiano, nas suas casas, nos seus trânsitos entre um lugar
e outro, em viagens de trabalho e de descanso. A natureza da condição do trabalho
marca o próprio trabalho. Pa. está em deslocamento entre duas cidades e roda ao
menos 700 km por semana. Parte da pesquisa ocorre nesse trânsito de espaço-
tempo. É nele que aparecem, por exemplo, as bananas, o mapa e a placa área de
escape. A proposição de A. para Pa. convida Pa. a escolher termos da
dramaturgia
paralela
para ela documentar em momentos
entre
. Enquanto estava no caminho
entre Florianópolis e Curitiba, abordou o termo
pensar/ver ver/pensar
. Pa. viu uma
bananeira, pensou que a banana é uma das frutas mais comuns no Brasil. Decidiu
contar quantas bananeiras veria ao longo de 10 minutos do trajeto. Foram 49
bananeiras ou conjunto de bananeiras - é difícil uma bananeira estar sozinha.
Documentou o trajeto, documentou as bananeiras, buscou expressões idiomáticas
e frases feitas com o termo
banana
. Pensou que a banana faz parte da dieta
brasileira. Pensou no Brasil, viu uma bandeira, viu outra bandeira e outra e outra e
uma mais. Documentou as bandeiras também. Pensou o quanto havia de
coerência em ver tantas bandeiras brasileiras nas varandas, nas janelas, nos postos
de gasolina, hasteadas em indústrias, no trajeto entre Santa Catarina e Paraná4.
A. está fazendo malabarismos entre três trabalhos diferentes, rodando a cidade
de São Paulo em um mesmo dia. É nos intervalos entre cada um dos trabalhos
que espaço para as experimentações desse processo. Por isso ela decidiu fazer
derivas pela cidade e ativar um olhar atento para com as criaturas não-humanas.
Escadas rolantes, elevadores, árvores, relógios e aparelhos de som, criaturas
4 Os estados de Santa Catarina e Paraná representam uma parcela grande das pessoas que votaram no ex-presidente
Bolsonaro em 2022. A bandeira, nos últimos anos, foi usada como elemento ideológico pela parcela da população que
apoia as ideologias propagadas pelo então presidente do Brasil.
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moventes cada uma a sua maneira, com ritmos próprios, se relacionando com
outras criaturas moventes.
Os recortes do cotidiano documentados por A. se acumulam em imagem e vídeo.
A. olha para a lista de palavras da
dramaturgia paralela
. Como colocar essas
palavras nessas imagens? Como colocar essas imagens nessas palavras? Como
colocar as mesmas palavras em imagens diferentes? A. se interessa pela
investigação em como as palavras transformam o sentido das imagens, o modo
de percebê-las e vice-versa. Foi nesse jogo de quebra-cabeça entre imagens e
palavras que o tempo passou e A. não conseguiu realizar tudo o que precisava
fazer naquele dia.
O trabalho do trabalho
Parece óbvio dizer que todo trabalho deve considerar as circunstâncias de vida
das pessoas envolvidas nele. No entanto, geralmente o óbvio é percebido apenas
como entrave para o trabalho, e não como sendo a própria condição de realização
do trabalho. Não ter tempo, não ter energia, não conseguir cumprir compromissos,
ter outras urgências, outros trabalhos, outros problemas, são condições comuns
para quem trabalha com arte. Não é glamuroso; ao contrário, é efeito dos métodos
contemporâneos da flexibilização e precarização do trabalho e da informalidade
predominante na área. A dramaturgista Bojana Kunst (2015) discute esses temas
em seu livro
Artist at Work, Proximity of Art and Capitalism
, no qual discorre sobre
as políticas do trabalho de artistas: não o resultado artístico, mas os modos de
trabalho do campo da arte, que, para ela, estreitam a relação entre arte e
capitalismo.
Mas isso tem a ver com dramaturgia da dança? Sim. Por um lado, à dramaturgia
da dança cabe a responsabilidade de encontrar aberturas para que o mundo entre
na obra, a incumbência de considerar as implicações políticas e sociais imanentes
ao trabalho e a descoberta dos modos possíveis de essas implicações se
materializarem na carne do trabalho.
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Por outro, também cabe à dramaturgia da dança compreender qual é o trabalho
do trabalho, que vai desde entender como se dão as relações entre as pessoas
que participam do processo até considerar as condições de trabalho do trabalho.
E o "bicho pega", pois a contradição é intrínseca e incontornável. A. (2023) fala
que é preciso entender os jeitos porque "jeito é trabalho. Não é 'jeitinho'". Nesse
processo não cabe o "troféu tudo-de-si".
Linhas de desdobramentos: Ferramenta 3
É abril. Pa. está em Curitiba e da sua janela dá para escutar o piano e os gritos da
professora de balé que aula em uma academia de dança vizinha a seu
apartamento. A. continua em São Paulo e está escrevendo projetos. A. e Pa.
pensam juntas nos próximos passos. Com o intuito de pesquisar possíveis
desdobramentos das proposições dramatúrgicas, elas decidem fazer uma divisão:
A. desenvolverá uma nova proposição a partir dos materiais produzidos por Pa.,
Pa. desenvolverá uma nova proposição trabalhando a própria proposição anterior.
Isso aponta para dois caminhos: olhar para o que foi produzido ou olhar para o
que foi proposto; trabalhar a partir dos resultados ou a partir das indicações.
Trabalhar a partir das proposições:
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É possível observar o quanto as proposições estão presentes no desenho das
documentações. As indicações dramatúrgicas se tornam visíveis. As proposições
de Pa. para A. percorreram um caminho contínuo do começo ao fim, se
aprofundaram e se desdobraram em nuances e detalhes. Dessa forma, as
documentações de A. são contínuas, as variações aparecem das repetições.
Trabalhar a partir dos materiais:
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Ao trabalhar com os materiais, A. lançou uma proposição com base em uma das
documentações de Pa.:
área de escape
. O trabalho no
entre
ainda existe, mas se
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tornou vestígio. Os desdobramentos que Pa. realizou para o material criado
anteriormente foram surpreendentes, com novos elementos, como a máscara, a
nudez, a água, que provocam outras camadas de sentidos.
Vocabulários no campo da dramaturgia: Ferramenta 4
Pa.: Você acha que a dramaturgia é uma linguagem?
A.: Boa! Eu acho que sim.
Pa.: Eu também.
A.: Por quê?
Pa.: Eu não sei porque, mas eu acho (Bianchi; Krein, 2023).
Pa. e A. se conheceram em 2021, em um grupo de pesquisa sobre dramaturgias na
dança. Elas são dramaturgistas alguns anos e começaram a conversar sobre
como cada uma trabalha. Constataram que, nos processos dramatúrgicos de cada
uma, um vocabulário específico foi sendo desenvolvido ou reapropriado de outros
contextos vocabulários que se tornaram ferramentas de trabalho aplicáveis em
processos de criação diferentes.
Elas insistem que palavras também dão forma aos trabalhos e que precisam ser
escolhidas a dedo. Composição é diferente de improvisação, restrição não é a
mesma coisa que parâmetros de conduta. Palavras geram sentido e sentido é
dramaturgia. Palavras têm história e contexto. Por isso, quando transformam essas
palavras em modo de trabalho, A. e Pa. se preocupam em referenciar,
contextualizar e acessibilizar o porquê da escolha desses termos. Alguns deles
referenciam conceitos criados por pesquisadoras(es) de diferentes áreas de
conhecimento, como, por exemplo, Possibilitância5 de James J. Gibson, e
Parentesco, de Donna Haraway.
Pa. e A. fizeram uma lista do que cada uma utiliza como vocabulário em suas aulas
e trabalhos dramatúrgicos. Nessa lista, palavras que as duas usam com o
mesmo sentido, palavras em comum que usam com sentidos diferentes e
palavras específicas de cada uma. Pa. (2023) fala para A.: "Eu acho que a
dramaturgia da dança tem pressuposto e tem ferramentas. A questão é que não
essas são compartilhadas em nível global, como técnicas de dança ou modos de
5
Affordance
no inglês.
O que diz respeito ao pinheiro, aprenda do pinheiro; o que diz respeito ao bambu, aprenda do bambu
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dirigir, coisas mais sistematizadas". A. e Pa. não têm a intenção de criar verdades
ou sistematizar uma linguagem para a dramaturgia da dança. O seu intuito é
compartilhar como cada uma trabalha.
Agência
: Todos os materiais, materialidades, temas, sujeitos, coisas, narrativas,
artista, dramaturgista, obra, entre outros, são elementos constituintes de agência,
ou seja, são dotados de ações e intencionalidades. As agências de cada elemento
podem ser de naturezas distintas, mas se relacionam entre si. Considerar o
agenciamento dos elementos de um processo de criação corresponde ao trabalho
da pessoa dramaturgista.
Ferramentas
: São os meios, instrumentações, recursos que uma pessoa
dramaturgista pode acessar, desenvolver, recorrer para realizar um determinado
trabalho de dramaturgia. As ferramentas criadas podem ser aplicáveis a diferentes
processos de criação.
Filiação
: 1. É o que diz respeito à formação artística de quem está criando a obra.
Ex.: uma artista possui formação em Danças Urbanas e Butô, e desse modo seus
trabalhos poderão conter rastros dessa formação. 2. A
obra/trabalho/espetáculo/performance pode ter filiação estética/poética/política
com outras obras/referências/artistas que não estão diretamente relacionados
com formação. 3. É situar na história da arte/dança/performance onde essa artista
ou trabalho está.
Linhas de intensidade
: A curva dramática clássica teatral segue a ordem início,
complicação, clímax, resolução e conclusão em um gráfico que corresponde ao
tempo de intensidade X tempo da obra. Ao excluir a curva dramática clássica, e
pensar em linhas de intensidade, é possível trabalhar na dramaturgia da dança
com o gráfico tempo de intensidade X tempo da obra.
Material
: É o que é produzido no processo de criação, a parte pelo todo. Ex.:
material coreográfico, material de improvisação, objeto, texto, etc. Não
necessariamente vão estar todos presentes ou visíveis no produto artístico final.
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Materialidade: 1. Do que é feito cada material? Da qualidade, característica ou da
natureza do material. Ex.: os objetos cênicos são de plástico rígido; o material
coreográfico é feito de movimentos cotidianos. 2. Da concretude da criação, o
impalpável vira palpável. Ex.: dar materialidade para uma ideia. 3. Materialização
de um elemento através de outros formatos. Ex.: a materialidade de um texto
pode estar presente como leitura, como legenda, como fala, etc.
Movimentos do trabalho
:
Horizontal: quando a pessoa dramaturgista trabalha na relação entre elementos,
pessoas, objetos, coisas, materiais, materialidades, redistribuindo hierarquias,
trabalhando com diferentes possibilidades de conexões.
Vertical: quando a pessoa dramaturgista, junto com outras pessoas do processo,
decide aprofundar determinado elemento, material ou tópico da criação.
Espiralar: 1. quando a pessoa dramaturgista se movimenta em torno de um ponto,
sem se fechar, se distanciando e se aproximando. 2. quando a pessoa
dramaturgista utiliza o recurso do retorno e, cada vez que retorna a um ensaio, a
um material, a uma referência, considerando a ação do tempo, outras perspectivas
são levantadas. Pensar o tempo espiralar tem como referência a autora Leda Maria
Martins (2021).
Mundo entrar na obra
: Em um processo de criação é preciso que a pessoa
dramaturgista atente para como a obra conversa com o mundo. Quais são as
implicações políticas do trabalho? Como questões sociais aparecem no trabalho?
Como uma questão pessoal de uma artista, por exemplo, incide para além da
própria artista? A máxima de que tudo que é pessoal é político precisa ser
observada, pois, para que ocorra a transição entre essas duas instância, é
necessário o manuseio meticuloso do material.
Parentesco
: Relaciona com a concepção da cosmovisão indígena e também com
o conceito de
fazer parentesco
de Donna Haraway, onde não a matriz
tradicional de hereditariedade e de árvores genealógicas, mas uma concepção de
família rizomática, de multiespécies e não sanguíneas, pautada por relações de
alianças, comunidade, entre outras. Na dramaturgia,
fazer parentesco
pode ser
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considerado relacionar artistas e obras que não necessariamente possuem
ligações diretas, mas em que possibilidades de identificação, alianças,
contribuições e colaborações mútuas, e também aproximar do que não é familiar.
Margem
: Nos momentos de ensaio, a pessoa dramaturgista pode atentar para o
que está acontecendo à margem do trabalho: como estão os corpos quando não
estão em performance? Quais são os assuntos tratados nas conversas antes ou
depois do ensaio? Nos intervalos dos ensaios o que ocorre? O que está
acontecendo no corpo de quem observa o ensaio? Tudo que está à margem, ou
seja, fora do que se entende por o
trabalho
, pode ser material a ser observado e,
talvez, incluído nele.
Possibilitância
: Possibilitância,
affordance
em inglês, termo cunhado por James J.
Gibson, se refere à concepção de que cada ambiente contém inscrito em si seus
modos de uso e manuseio, suas possibilitâncias, suas
affordances
. Da mesma
maneira, todo objeto tem inscrito em sua forma suas possibilidades de uso. Assim,
não necessidade de atribuição de sentido, pois o sentido está contido na
própria coisa. Essa concepção busca sair da lógica da interpretação, da tentativa
de outros sentidos para além daqueles que existem na própria materialidade.
Em um trabalho artístico, de se considerar as possibilitâncias de cada elemento,
sejam materiais ou conceituais. O que o elemento possui inscrito em sua forma?
Isso não quer dizer que se deve obedecer às suas possibilitâncias, é possível
transgredi-las, desde que se saiba que estão sendo transgredidas.
Problema
: A dramaturgia não tem como objetivo resolver problemas presentes na
criação, mas eles podem impulsionar ou se desdobrar em potencialidades para a
criação.
Coreografando problemas
, de Bojana Cvejic (2015) e
Ficar com o problema
,
de Donna Haraway, são referências para pensar como lidar com o
problema
dentro
da dramaturgia.
Relação
: Quais são as relações entre os elementos do trabalho? O que o encontro
produz? Mais do que considerar cada elemento em separado, pensar na relação é
compreender que nenhum elemento existe por si mesmo: seu sentido se constrói
em relação. Relação também diz respeito a como a obra se implica com o mundo.
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Segredo
: O segredo é da ordem do processo de criação, fundamental para que a
obra/espetáculo/performance exista, mas é uma escolha das pessoas envolvidas
no processo não dar acesso ao público. É algo que pode dar complexidade e
sustentação para o trabalho criado.
Sobras
: As sobras, diferentemente do segredo, são o que não entrou nas escolhas
para o produto final da criação, o público não terá acesso, mas poderia ter. As
sobras também podem sempre ser revisitadas, podem ser descartadas ou
reaproveitadas.
Tônus
: Relaciona-se com a abordagem de educação somática Eutonia, para a qual
todos os organismos vivos possuem tônus, estados de transição e movimentos
entre contração e distração. Na dramaturgia é possível pensar que todos os
elementos do trabalho em relação possuem tônus. O tônus está em quais
elementos? Na performance, na luz, no som? É um trabalho com tônus alto ou
baixo, ou que modula? Como o tônus do trabalho mobiliza o público?
Inventário de operações: Ferramenta 5
“Chega um momento, em que o momento chega” – A. manda para Pa. a figurinha
no
WhatsApp
. É tempo de festa junina. Para a construção de um pensamento
dramatúrgico, elas entendem que precisam olhar para as produções como um
todo: as documentações, as proposições, as conversas, as anotações, os modos
de trabalho, as múltiplas operações envolvidas em cada processo. Como fazer
isso? Elas realizaram uma última proposição: Pa. irá re-ver / re-ler / re-visitar / re-
lembrar todas as documentações que A. desenvolveu e as conversas que tiveram
sobre o trabalho artístico em processo. A. irá fazer a mesma coisa para Pa., a
artista, e para o trabalho de Pa. Se em momentos anteriores a preposição
entre
foi foco de algumas proposições, no momento atual a preposição para ganha
relevância no que as duas chamaram de
inventário de operações
.
para. prep.:
Indica destino para um local; Indica direção; Indica proximidade
espacial ou temporal; Indica intenção; [...] Indica propriedade específica; Indica
utilidade ou finalidade; Indica período de tempo; Indica capacidade ou
qualificação; Indica avaliação ou conjecturas a respeito de condições, qualidades
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etc.; Indica resultado desfavorável; Indica restrição; Indica proporção entre dois
termos; Indica tendência [...] (Michaelis, 2015, s/p).
Como a artista opera? Como o trabalho artístico que está sendo desenvolvido
opera? O que pode um dizer sobre o outro? E como esse mapeamento pode
apontar direções para seguir?
Pa. e A. combinaram um encontro no dia 02 de junho para apresentar uma
para a
outra os
Inventários de operações
. A. não teve tempo de terminar o
inventário
,
então este dia foi um encontro de Pa. para A.
Inventário de operações
para A.
A primeira ação de Pa. foi listar tudo que percebeu nos trabalhos de A., para em
seguida categorizar a partir de perguntas.
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Além do que foi listado acima, Pa. lançou outras proposições para o futuro,
apresentou referências e indicou possíveis parentescos e as filiações do trabalho
de A.
Na mesma semana, elas marcaram outro encontro, dessa vez seria um dia de A.
para Pa., A. fez o Inventário de operações a partir de outra lógica de organização,
que contém imagens e gráficos. Ao contrário de A., o trabalho de Pa. possui uma
grande diversidade de modos de fazer, materialidades e mídias. A. entendeu que
o Inventário de operações, específico para Pa., "pedia" a visualização do conjunto
dos elementos em relação. O gráfico 1 corresponde a como Pa. opera na produção
de materiais para as suas documentações:
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A imagem abaixo relaciona o conjunto e a justaposição de linguagens e mídias
presentes nas documentações: qual é o trânsito em que o trabalho de Pa. se situa?
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A imagem 3 nomeia e explicita as lógicas de agenciamento de Pa. na realização da
proposição 3.
O gráfico 4 mostra as escolhas de Pa. no processo de criação da série prints
performativos e evidencia modos similares de operação de outras documentações
desse processo.
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O gráfico 5 coloca em imagem como Pa. trabalhou na série de vídeos-
performances. Considerando que o trabalho de Pa. se organiza em séries, A.
propõe a mesma lógica para uma possível continuidade do trabalho.
Além dos itens listados acima, A. oferece referências e afiliações do trabalho de Pa.
Cada uma organizou, nomeou, materializou, situou, deu outras visualidades, fez
relações, ofereceu sugestões de referências e possibilidades de caminhos para
continuidade. Tudo em um documento. Elas comentam que foram
surpreendidas pela ferramenta pois, mesmo já tendo atuado como dramaturgistas
em diversos trabalhos, elas nunca haviam produzido nada parecido com isso. Pa.
(2023) diz:
Nos últimos dois encontros, quando eu compartilho os seus procedimentos e você
os meus, foi inesperado o que surgiu [...]. De alguma maneira, mais do que qualquer
outra vez, eu consegui ver coisas que não identificava com tanta clareza em outros
trabalhos. Tem um lugar que é diferente. Uma evidência muito grande que eu não
estava esperando.
uma discussão recorrente entre dramaturgistas sobre a invisibilidade do trabalho
das pessoas dramaturgistas. Em um dos primeiros textos sobre dramaturgia da
dança, Marianne Van Kerkhoven (1994) diz que o trabalho de dramaturgia se dissolve
no processo e se torna invisível. Ana Pais (2016) coloca que a invisibilidade da
dramaturgia da dança é estranha e desconhecida, e que seu regime de visibilidade
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está incrustado na encenação. A. e Pa. têm dificuldade em afirmar que a
dramaturgia está associada à invisibilidade. Para A. e Pa., talvez seja estranha e
desconhecida a sua visibilidade, e não sua invisibilidade. Estranha porque não
adquire forma única: ela se mostra de maneiras singulares em cada processo.
Desconhecida por não ser possível afirmar onde está ou onde não está. Elementos
como figurino, design de som e de luz, direção, coreografia são visíveis e
identificáveis. A dramaturgia da dança não, pois ela se torna vestígio que se dispersa
como linhas que se entrelaçam formando a trama do trabalho.
O Inventário de operações, por exemplo, é a visibilidade das possibilidades do
trabalho da pessoa dramaturgista. Por um lado, ele evidencia a quantidade de
materiais e operações mobilizadas pelas artistas. Por outro, trazem possíveis
desdobramentos para o que foi feito, ao incluir referências de diversas ordens -
os parentescos -, relações com outros trabalhos artísticos - as filiações -, bem
como reflexões sobre outras possibilidades de sentido. O Inventário de operações
olha para a artista: o que ela faz, como ela faz, quais são os materiais recorrentes.
Ele olha para a obra: o que a obra move, quais são seus pontos de fuga, o que
ainda está em estado embrionário.
O
Inventário de operações
foi a última etapa do processo. Isso não significa que o
processo terminou por completo. Em certo aspecto, o processo de criação pode
estar se iniciando agora. Pesquisas não têm fim. Para que se encerrem, é preciso
que se escolha terminar, uma decisão, seja porque algo foi alcançado até aquele
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ponto, isto é, um trabalho suficiente e satisfatoriamente coerente, seja pela
interferência do tempo. No caso desse processo, o tempo foi fator decisivo. O foco
de A. e Pa. não era criar um trabalho de dança acabado, configurado, com começo,
meio e fim. Elas se dispuseram a investigar o processo dramatúrgico e olhar para
o que aparece enquanto transcorre. De fevereiro a junho, A. e Pa. lançaram
proposições, fizeram documentações, investigaram cada etapa. Elas poderiam
podem seguir, tanto investigando o processo do fazer dramatúrgico, como
desenvolvendo seus trabalhos artísticos, ou ambos. Reelaborando Leda Maria
Martins (2022), a dramaturgia, “aqui, é uma coreografia de retornos”.
O que diz respeito ao pinheiro, aprenda do pinheiro; o que diz respeito ao
bambu, aprenda do bambu.
A frase que nome a esse artigo é atribuída a Matsuo Bashô, poeta japonês do
estilo Haikai, e é uma das referências de Pa. para A. no
Inventário de operações
.
De maneira sintética e poética, Bashô coloca que para conhecermos algo, para
aprendermos algo, temos de nos dispor a um tipo de relação em que a distância
entre sujeito e objeto quase inexiste. Eduardo Viveiros de Castro (2015) apresenta
a mesma questão de outra forma quando discute os modos de conhecer
ameríndios. Se nas epistemologias ocidentais conhecer é objetivar, coisificar, ver
de fora e reduzir a intencionalidade do objeto ao máximo, nas epistemologias
ameríndias conhecer é atribuir o máximo de intencionalidade ao que se quer
conhecer. Nessa lógica, a relação se estabelece entre dois sujeitos com agência, e
não entre sujeito e objeto. A. e Pa. se dispuseram a estar em um processo em que
a dramaturgia da dança não é objeto de estudo, mas sujeito com agentividade. A
e Pa. conduziram o processo, mas também foram conduzidas por ele. Nada do
que ocorreu ao longo desses meses se deu de modo arbitrário. Houve escolhas,
mas essas se deram a partir do que ocorria.
O que diz respeito à dramaturgia da
dança, aprenda da dramaturgia da dança
. Essa é uma das possibilidades para
compreender o processo de A. e Pa.
O que diz respeito ao pinheiro, aprenda do pinheiro
. Aqui, a palavra
respeito
aparece também como pista: de se respeitar os processos de criação e tudo
aquilo que os constitui. Respeito é marco zero da dramaturgia da dança: respeitar
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o desejo de artistas, respeitar os materiais, as materialidades, e as agentividades
de todos esses elementos. Para respeitar é preciso que a pessoa dramaturgista se
disponha a mudar de ponto de vista, sair da própria perspectiva e realizar um
deslocamento de seus próprios pressupostos sobre dança para se desvencilhar
de seu gosto pessoal. No entanto, respeitar não é estar refém do desejo de artistas,
dos materiais e das materialidades. Dramaturgistas também são sujeitos do e no
processo, portanto possuem agentividade para questionar, problematizar, inquirir
e propor.
Outra possível pista dessa frase concerne às ideias de parentesco e de filiação. Ao
pensar especificamente sobre processos de criação, entendendo que uma obra
de dança é a construção de mundo que comporta certas coisas e outras não,
devido as suas condições inerentes, Pa. (2023) propõe uma analogia:
Eu estava pensando que não para ter nada alienígena. Por exemplo,
na Terra. O que pode existir na Terra? O que ela dá conta que tenha? As
condições, quais são as condições? Eu acho que vou aprender pouco do
pinheiro se eu for pensar no tubarão. Se eu pensar no tatu bola, talvez eu
aprenda algo sobre o pinheiro, por proximidade, considerando que
possivelmente compartilham um bioma. Tem algum lugar que pode ser…
O tubarão vai ser mais difícil, apesar de que o ecossistema da Terra é
uma loucura, tá tudo-junto-misturado.
Para A. (2023), essa frase é o drama das pessoas dramaturgistas. Por um lado, a
profissão
dramaturgista da dança
ainda não é tão reconhecida, o que acarreta uma
esparsa circulação de conhecimento e compartilhamento de modos de fazer. Por
outro, se cada trabalho é um trabalho, uma dificuldade em produzir
procedimentos genéricos que possam ser transpostos de um processo a outro:
Eu vejo que o drama do dramaturgista é que a gente tem as ferramentas,
mas cada trabalho é cada trabalho. Sempre. Por mais que a gente fale:
isso". Como faz? Como estuda? Como aprende? Cada criação é uma
coisa. Isso é complicado, como é que se estipulam parâmetros? Que é o
que estamos tentando fazer o tempo todo. Eu sinto que é um pouco
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disso. A gente vai aprender fazendo, olhando para a coisa, que é AQUI.
A. e Pa. se dispuseram a entrar em um processo para investigar o fazer de
dramaturgistas da dança, uma operação metalinguística: usa a própria linguagem
para investigar a linguagem. Durante esse tempo, descobriram e desenvolveram
ferramentas de trabalho: proposições, documentações, conversas, entrevistas
mútuas,
dramaturgia paralela, inventário de operações
. A. e Pa. também
descobriram e desenvolveram operações, por exemplo, quando decidiram que A.
iria trabalhar a partir de proposições, enquanto Pa. trabalharia com os materiais.
Cada um desses caminhos abre perspectivas distintas. Se A. trabalhasse a partir
dos materiais, possivelmente a produção resultante se constituiria com outra
formatação. O mesmo iria ocorrer se Pa. trabalhasse a partir de proposições, e não
com os materiais. Por sua vez, a
dramaturgia paralela
é tanto ferramenta de
trabalho, quanto operação, pois seleciona, nomeia, transpõe; é ferramenta que
incide e opera o próprio trabalho. A
dramaturgia paralela
extrapolou o processo e
se tornou elemento linguístico deste artigo.
O que diz respeito ao pinheiro, aprenda do pinheiro; o que diz respeito ao bambu,
aprenda do bambu
. A última conclusão possível para o enunciado de Bashô é: o
que diz respeito ao trabalho, aprenda do trabalho. A última conclusão também foi
o último ato desse processo. O
Inventário de operações
é um mergulho no
trabalho para extrair o que ele tem de visível, o que ele tem de invisível, o que ele
tem de futuro. Olhar para cada elemento, cada operação, cada escolha para
aprender com ela o que ela é. Também é a abertura para outros possíveis,
desdobramentos de futuros por vir.
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antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
Recebido em: 30/06/2023
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Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br