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Dramaturgias
crip
: o ambíguo desfazimento do
corpo-organismo em cenas anti-antropocêntricas
Christine Greiner
Thany Sanches
Para citar este artigo:
GREINER, Christine; SANCHES, Thany. Dramaturgias
crip
:
o ambíguo desfazimento do corpo-organismo em cenas
anti-antropocêntricas.
Urdimento
Revista de Estudos
em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 3, n. 48, set. 2023.
DOI: 10.5965/1414573103482023e0109
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Dramaturgias
crip
: o ambíguo desfazimento do corpo-organismo
em cenas anti-antropocêntricas1
Christine Greiner2
Thany Sanches3
Resumo
O objetivo deste artigo foi apresentar as
dramaturgias crip
como uma lógica
operativa e política para criar dança. Desde os anos 1990, as principais pesquisas da
área, já haviam reconhecido a importância do corpo e do movimento, para além da
linguagem verbal e dos textos teatrais. Mas o que se instaura após 2000 com as
teorias
crip
é a ênfase no fracasso, no descentramento da vida humana e na
desfuncionalização do corpo-organismo como uma potência de criação aberta a
outros corpos (animados e inanimados). Artistas de diversos contextos culturais têm
criado suas dramaturgias da dança como dispositivos para evidenciar singularidades,
incluir outras vidas e ativar estratégias de criação não antropocêntricas. Neste
sentido, destacamos a pesquisa da coreana Jeong Geumhyung, da chilena Manuela
Infante e do brasileiro Eduardo Fukushima.
Palavras-chave
: Cripistemologias. Dramaturgias crip. Micropolítica não
antropocêntrica.
Crip Dramaturgies
: the ambiguous undoing of the body-organism in
anti-anthropocentric scenes
Abstract
The aim of this article was to present
crip dramaturgies
as an operative and political
logic to create dance. Since the years 1990, the main researches of the area, had
already recognized the importance of the body and the movement, beyond the
verbal language and theatrical texts. But what is established after 2000 with the
crip
theories is the emphasis in the failure, in the decentralization of human life and in
the defunctionalization of the body-organism as a power of creation open to other
bodies (animate and inanimate). Artists from diverse cultural contexts have created
their dance dramaturgies as devices to highlight singularities, include other lives, and
activate non-anthropocentric strategies of creation. In this sense, we highlight the
research of the Korean Jeong Geumhyung, the Chilean Manuela Infante and the
Brazilian Eduardo Fukushima.
Keywords
: Cripstemologies. Crip dramaturgies. Non-anthropocentric micropolitics.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Pedro Ribeiro Nogueira. Bacharel em letras
pela Universidade de São Paulo (FFLCH- USP) em 2012.
2 Livre-docente pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pós-doutorado na New York
University EUA. Pós-doutorado na Internacional Research Center for Japanese Studies Japão. Pós-
doutorado na Universidade de Tóquio Japão. Doutorado e Mestrado em Comunicação e Semiótica pela
PUC-SP. Graduação em Jornalismo. christinegreiner3@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/8331762292364125 https://orcid.org/0000-0002-6778-516X
3 Doutoranda junto ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP). thanysanches@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/8961471507057916 https://orcid.org/0009-0000-9376-5851
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Dramaturgias Crip
: el ambiguo deshacer del cuerpo-organismo en
las escenas anti-antropocéntricas
Resumen
El objetivo de este artículo era presentar las
dramaturgias crip
como una lógica
operativa y política para crear danza. Desde los años 1990, las principales
investigaciones en este campo ya habían reconocido la importancia del cuerpo y del
movimiento, más allá del lenguaje verbal y de los textos teatrales. Pero lo que se
establece después del año 2000 con las teorías
crip
es la énfasis en el fracaso, en
la descentralización de la vida humana y en la desfuncionalización del cuerpo-
organismo como un poder de creación abierto a otros cuerpos (animados e
inanimados). Artistas de diversos contextos culturales han creado sus dramaturgias
de danza como dispositivos para resaltar singularidades, incluir otras vidas y activar
estrategias no antropocéntricas para creación. En este sentido, destacamos las
investigaciones del coreano Jeong Geumhyung, la chilena Manuela Infante y el
brasileño Eduardo Fukushima.
Palabras clave
: Cripistemologías. Dramaturgias crip. Micropolítica no
antropocéntrica.
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O estudo das dramaturgias da dança é, relativamente, recente. As primeiras
pesquisas foram conduzidas na Bélgica em torno da década de 1990, e depois nos
Estados Unidos, na Alemanha e na Inglaterra4. Aos poucos, surgiram ainda novas
tentativas de ressignificação do termo dramaturgia para dança, afirmando a
necessidade de evidenciar os nexos de sentido da criação como: modo de olhar
(Bleecker, 2003 e Brizell e Lepecki 2003), dispositivo coreográfico de captura
(Lepecki, 2007), agenciamento (Hansen; Callison, 2015), fisicalidade somática
(Romanska, 2015), dramaturgia de novas mídias e outras materialidades (Eckersall;
Grehan; Scheer, 2017).5
A pergunta nem sempre evidente nessas variadas definições, era se a
dramaturgia da dança teria uma autoria individual (do dramaturgo ou
dramaturgista) ou seria, afinal, um agenciamento coletivo entre todos e tudo que
estivesse envolvido na criação da dança.
No que se refere à presença de objetos inanimados como acionadores de
movimento, talvez tenha sido a obra de Jerôme Bel,
Nom donné par l’ auteur
(1994)
uma das pioneiras a propor secadores de cabelo e aspiradores de como
dançarinos. E no Brasil, Alejandro Ahmed, do grupo Cena 11, que trouxe a cachorra
Nina para cena além de dispositivos tecnológicos de controle na obra
Skinnerbox
(2005). Fascinado por videogames e robótica, Ahmed nutriu durante muitas
décadas a curiosidade em relação aos operadores do movimento. Onde nasceria
o controle? É sempre o sujeito que controla a ação ou a ação se organiza em
conexão com o que está dentro e fora do organismo?
Estas seriam experiências de uma dramaturgia
crip avant la lettre
que
acionaria estranhezas a um campo supostamente limitado da dança, ampliando a
dramaturgia da dança para novas conexões: humano-não humano, organismo
4 O número 31 da revista belga
Nouvelles de Danse
(1997) foi uma das primeiras publicações relevantes,
trazendo artigos que mudaram radicalmente a visão de dramaturgia da dança. Posteriormente, foram
organizados outros números especiais em torno do tema como
On Dramaturgythe labor of the Question.
Women & Performance: a journal of feminist theory
(2003); e
On Dramaturgy. Performance Research
(2009).
5 Na coletânea
The Routledge Companion to Dramaturgy
(2015) organizada por Magda Romanska, ainda
muitas outras definições de dramaturgia como modos de colaborar, modos de comunicar, o dramaturgo
como curador, entre muitas outras interpretações.
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biológico e tecnologia, movimentos padronizados e reconhecíveis e movimentos
desestabilizadores das representações.
Introdução: o que seria dramaturgia
crip
Quando começamos a pesquisar a chamada
cripistemologia
- um termo
criado por Lisa Duggan em 2010 logo nos deparamos com o livro
Crip theory:
cultural signs of queerness and disability
, de Robert McRuer (2006). Como diz o
título, o autor relacionou singularidades corpóreas às culturas queer, assim como,
manifestos variados de pessoas consideradas fora do padrão heteronormativo
branco europeu, para organizar uma das primeiras cartografias da teoria crip.
Algumas pesquisas e depoimentos já vinham propondo discussões em torno
do tema, embora não usassem necessariamente esse vocabulário crip. O próprio
McRuer lembra de ativistas importantes como Cherríe Moraga e Gloria Anzaldúa
(1981) que publicaram, em 1981,
This bridge called my back: writings by radical
women of color
, propondo uma série de discussões sobre como não é possível
generalizar o feminismo como um movimento padronizado para toda e qualquer
mulher. Além disso, explicitaram a necessidade de repensar a noção de
borderland
e as condições
mestizas
de ambas.
Lisa Duggan, já havia discutido o tema das personalidades borderline em seu
livro de memórias,
Girl in need of a torniquet
, contestando a patologização das
identidades consideradas deficientes. E a temática se expandiu consideravelmente
quando Eve Kosofsky Sedgwick (1990), propôs uma epistemologia do armário
demonstrando como a metáfora do “armário” ia muito além das sexualidades não
binárias e poderia ser reconhecida em inúmeras situações nas quais pessoas fora
dos padrões precisavam esconder suas singularidades, fossem estas relacionadas
a posições políticas, cor da pele, ou qualquer outra singularidade corporal,
incluindo todo tipo de patologia ou condição
crip
.
Embora valendo-se de experiências distintas entre si, o ponto de partida de
todos esses estudos é a desestabilização da ordem das coisas e dos modos pelos
quais estereótipos são construídos, naturalizados e incorporados nas
complexidades sociais, econômicas e culturais. O desafio principal é descobrir
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estratégias para provocar mudanças e ampliar os ativismos. Na dança não foi
diferente. Para este artigo identificamos três tipos de dramaturgia
crip
: a
dramaturgia
crip
de animacidades que é gerada a partir da conexão com objetos
aparentemente inanimados; a dramaturgia
crip
de pontos de vida que transita pelo
devir vegetal; e a dramaturgia
crip
que converte a falha em estado de criação.
Dançando com objetos vivos: dramaturgia crip de animacidades
Para exemplificar a dramaturgia crip que parte de animacidades,
apresentaremos a artista Geumhyung Jeong, uma coreógrafa sul-coreana
conhecida por suas performances com manipulação de objetos. Através de
bonecos, manequins, máquinas e brinquedos sexuais, Jeong explora as
percepções do corpo feminino trazendo sempre algum questionamento de
gênero.
Jeong estudou interpretação na Universidade de Hoseo, Asan; dança e
performance na Universidade Nacional de Artes da Coreia, Seul; e cinema de
animação na Academia Coreana de Artes Cinematográficas, em Seul. Desde sua
estreia em 2004, participou de inúmeras exposições coletivas.
Para construir a sua dramaturgia de dança tem testado modos distintos de
lidar com as animacidades. Este termo animacidade, tem sido descrito de
maneiras variadas como uma qualidade de agência (no sentido deleuziano de
agenciar forças), consciência, mobilidade e vivacidade. De acordo com Mel Y. Chen
(2012), nas últimas décadas, a animacidade tem sido amplamente debatida na
linguística e geralmente se refere aos efeitos gramaticais da senciência (baixo nível
de consciência) ou da vivacidade dos substantivos. Quando pensamos na diferença
entre sujeitos e objetos, normalmente se atribui o movimento apenas aos sujeitos
e os objetos são vistos como coisas inanimadas. O que o debate de Chen
problematiza é justamente essa dicotomia, propondo que entre sujeitos e objetos
sempre uma instância de momento que, assim como na língua, se refere a
taxas de consciência e de vivacidade. Nada é absolutamente vivo ou morto.
As performances de Jeong estão justamente sintonizadas com esse
pensamento não dicotômico e usam a dança para criar uma dramaturgia que ativa
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estranhezas (crip) e animacidades diversas.
Normalmente, a coreógrafa começa trabalhando objetos em um exercício
bastante simples e cotidiano que, aos poucos, se desdobra em um movimento
repetido, obsessivo e erótico. Em
CPR Practice
(2013), utilizou um manequim e para
o
Fitness Guide
(2011), aparelhos de exercício.
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uma outra performance que
foi testada durante quase dez anos (de 2009 a 2017), Jeong interpreta um boneco
masculino e forja uma agressão contra si mesma, interpretando o boneco agressor
e a mulher vitima simultaneamente. Mais tarde, um aspirador substitui este
boneco e segue o movimento. Como controladora dos adereços em suas obras,
Jeong inverte a tendência de objetificar as mulheres na arte e se torna a mestra
do desejo masculino. Ao assumir concomitantemente o papel de mulher, ela não
nos deixa esquecer o corpo feminino como vítima.
O encontro entre Jeong e seus objetos animados é um assunto que se
anuncia sempre como algo do âmbito privado. Ela é a única intérprete no palco,
onde vai atravessando e manipulando várias máquinas e artefatos. Jeong se refere
a seus objetos na terceira pessoa e suas performances como "duetos", enfatizando
a dramaturgia de animacidades que pratica. Os espetáculos de Jeong convertem
os objetos em experiências humanas íntimas. O seu encontro com máquinas
lembra reflexões fantasiosas sobre o futuro da inteligência artificial e sua ameaça
subjacente de robôs dominando a humanidade, mas logo esses mitos se desfazem
porque o modo como trabalha com próteses e artefatos sugere que tudo é corpo
e não distensões de corpo. O que está fora também gera dramaturgia e movimento
e não apenas a vontade do sujeito. De fato, o que se em ação são os objetos se
convertendo em sujeitos pois, no desenrolar no espetáculo, essa diferenciação se
torna cada vez mais irrelevante. Embora seja conhecida principalmente como
uma artista da dança, Jeong também expõe sua coleção de objetos de
performance em espaços de galeria. Em
Private Collection
(2016) no
Atelier
Hermès
, em Seul, ela organizou seus objetos – manequins, modelos de anatomia,
controles remotos, dildos e equipamentos de construção em fileiras de rodapés
brancos. Em 2017, organizou uma segunda exposição na
Private Collection
da
Delfina Foundation
, em Londres, desta vez com o subtítulo
Unperformed Obj
ects.
A diferenciação entre objetos performados e não performados revela o modo
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como lida com as animacidades. Cada vez que um objeto é manipulado e age
sobre ela a dramaturgia se constitui em ação.
Dramaturgias de pontos de vida no devir vegetal
Manuela Infante é mais conhecida como diretora teatral, dramaturga e
musicista, embora em suas peças trabalhe com dramaturgia teatral de maneira
indistinta com a dramaturgia da dança. Licenciou-se na Universidade do Chile e
fez mestrado em Análise Cultural pela Universidade de Amsterdã. E em todo este
percurso, sempre demonstrou um interesse central no corpo em cena. O
que nos chama a atenção em sua pesquisa é o modo como este corpo em cena
testa o que chama de devir vegetal e o devir outro (inanimado), ocupando um
protagonismo para gerir todos os seus movimentos. Como explica Emanuele
Coccia (2018), a partir do momento em que pensamos a razão como fato vegetal
e não mais a partir do modelo de vida animal, fazemos coincidir matéria e razão.
A semente exprime uma racionalidade, no entanto, ela não se opõe aos corpos.
Não é consciente como um
self
, é uma forma imanente que a define. O mundo da
semente e o mundo vegetal de modo geral não opera na separação entre matéria
e forma, a vida de um indivíduo e a gênese do mundo. A visão de si e a visão de
mundo coincidem. Toda planta é uma invenção de corpo que faz coincidir a
contemplação de si e a contemplação do mundo.
É exatamente esta coincidência ou indistinção que constitui o cerne da
dramaturgia
crip
de Infante. Não se trata de pontos de vista, mas sim, de pontos
de vida. Em
Estado Vegetal
(2017) ou em um trabalho mais recente
Como
convertirse em piedra
(2021), a proposta é imitar a não-humanidade com o corpo
da obra. Ao invés de usar a mímese aristotélica, Infante busca o que chama de
loop
, através do qual narrativas e ações se sobrepõem.
Mais do que discutir as noções de pós-humano, Infante se interessa por criar
uma dramaturgia que tencione os parâmetros de vivo e não vivo, humano e não
humano. O que a árvore e a pedra nos ensinam? Testar o corpo a partir desses
outros estados de vida implica também em testar outra cena. O que agencia a
dramaturgia não é o conhecimento ou a visão do sujeito e sim a sua disponibilidade
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para abrir mão disso tudo.
As palavras e as situações são extraídas da cena como uma escavação
mineral. Infante chega a falar em uma dramaturgia mineral extrativista, usando o
termo para criticar as politicas coloniais e neoliberais que relegam certos
contextos culturais a lugares que fornecem materiais para outros enriquecerem.
Pensando no contexto político chileno que sofreu, a exemplo do Brasil, ações
coloniais e viveu ditadura militar, o foco da sua pesquisa artística é inverter o
processo extrativista a partir deste estranhamento de tornar protagonistas plantas
e pedras.
Neste caso, desumanizar-se não é uma ação predatória, mas um aprendizado
em que o corpo está sempre por construir, nunca é dado. Assim como a flor,
somos também um ato de bricolagem somática. Como explica Coccia: “a vida
como ato incessante de bricolagem somática, eis o que é existir para uma
planta” (2018, p.23).
O que a cena de Infante propõe é essa dramaturgia
crip
que não cessa de
bricolar corpos e outras vidas para existir.
Dramaturgia crip como falha
No caso de Eduardo Fukushima, a convivência com a falha aconteceu desde
a infância. O preconceito do pai com a dança, que seria coisa de mulher, o corpo
mestiço nipo-brasileiro que não pertence a lugar algum, a gagueira que desafia a
comunicação e durante muitos anos pareceu parceira de uma depressão que
impedia o corpo de sair da cama.
No entanto, como explica Jack Halberstam (2020) o fracasso ou a falha
podem ser convertidos em dispositivos de criação. De fato, é o que acontece com
todo universo queer que se recusa deliberadamente a produzir de acordo com
parâmetros neoliberais e os agenciamentos de poder heterocêntricos e brancos.
também uma ludicidade no fracasso, o rir do sucesso e da produtividade
intensa para viver uma vida menor, menos alinhada com as macropolíticas e
alimentada por insurgências que aqui podem ser consideradas como resultantes
de uma dramaturgia
crip
.
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Não foi fácil lidar com gagueira, a morte do pai e o corpo fora de padrões
desejáveis para um bailarino. A estatura pequena em desacordo com a estética
das danças mais tradicionais, acabou abrindo espaço para novas interlocuções
com artistas como Key Sawao e Ricardo Iazzetta, Beatriz Sano, Julia Rocha e
alguns professores e alunos do curso de Comunicação das Artes do Corpo (PUC-
SP), onde Fukushima se graduou, com destaque para a coreógrafa Vera Sala. Entre
o circo, o tai chi chuan, o butô, a dança contemporânea e outras técnicas não
ocidentais que pensavam o corpo em fluxo, Fukushima foi pouco a pouco
encontrando modos de pensar a sua dramaturgia
crip
de dança que partia das
falhas e as convertiam em processos de criação. Uma dessas estratégias
dramatúrgicas, particularmente presente nas relações com o butô, foi a
descoberta de aprofundar a falha na desestabilização do corpo humano a partir
das informações que vinham do ambiente. De acordo com o criador do butô
Tatsumi Hijikata (Uno, 2012), o corpo que dança seria um corpo morto, sem
nenhum tipo de essência, mas sempre em processo de ser tomado pelos
ambientes por onde transita e pelas entidades com as quais se comunica. Assim,
os movimentos do corpo que dança estariam distantes dos chamados passos de
dança e próximos de outros devires como o devir-pedra, devir-muro, devir-planta,
devir-fantasma. Esta possibilidade abriu para Fukushima novos caminhos. Além
de transcriar a gagueira em movimento, passou a testar múltiplas camadas de
movimento e aparente não-movimento, para lidar com estados não
necessariamente humanos. Destaca-se um solo recente intitulado
Cair
(2022), no
qual Fukushima testa um devir-pedra, problematizando a pedra como objeto
inanimado e o corpo que dança como sujeito animado. Além disso, a segunda
parceria com o diretor nipo-peruano Yudai Kamisato, provisoriamente chamada de
“Pessoas estranhas sobre o adeus ao leste asiático” (2023) lida com as hierarquias
ilusórias entre humanos, que buscam objetificar ou extinguir aqueles que estão
fora do padrão, como os japoneses mestiços, os japoneses de Okinawa (há no
processo um dançarino de Okinawa). Como tem discutido extensivamente Achille
Mbembe (2018) acerca do termo necropolítica, a conversão de humanos em
produtos (homem-moeda, homem-mercadoria, homem-objeto) deflagra um anti-
antropocentrismo perverso que não atribui valor às outras vidas, mas ativa um
extrativismo dos sentidos da humanidade.
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Mesmo quando a temática não antropocêntrica está evidenciada no percurso
de Fukushima, ela parece presente durante fases do processo como pode ser
observado em alguns espetáculos que foram escavando os caminhos de sua
pesquisa Destacam-se
Canto
(2007),
Como superar o grande cansaço
(2010) e
Homem Torto
(2012). O Canto, por exemplo, seria um canto da sala, onde o corpo
passa a testar o devir-parede. O grande cansaço é aquele que torna o corpo
inanimado, quase sem forças para continuar. O homem torto, que falha e foge dos
padrões habita o limite entre humano e não humano.
Com o reconhecimento nacional e internacional surgiram também outras
parcerias e premiações. Mas a constituição desta dramaturgia crip da falha nasce
desses primeiros experimentos, quando a gagueira da fala se converte em uma
gagueira de movimento que ao invés de impedir a comunicação começa agir no
plano baixo da linguagem, na quase-linguagem como propunham Antonin Artaud
e Hijikata. Não se trata mais do que significa, de qual é a narrativa ou a história,
mas da materialidade que escorre no movimento.
O corpo ou homem torto que não está adequado aos padrões, aquele que
mergulha na exaustão e no cansaço porque deixando esta opacidade emergir
será possível lidar com ela.
Seria empobrecedor imaginar que a dança de Fukushima propõe uma terapia
do movimento. Não tem nada a ver com isso, do mesmo modo que os autores
das
cripistemologias
não buscam se normalizar ou se curar. A falha e as doenças
agenciam novos mundos. É dessas singularidades que se alimenta a dramaturgia
crip. Não se trata apenas de estranhar mas de fazer da estranheza um modo de
existência.
Considerações finais
Não outro modo de conhecer que não seja com o corpo em movimento.
Por vezes estes movimentos são mínimos, quase invisíveis, por vezes, atravessam
grandes extensões. A questão não é conhecer muito ou conhecer bem, mas
conhecer a partir as conexões com o mundo. O que esses artistas nos ensinam é
que o mundo não é só humano. Trata-se de vidas outras, seres outros e inclusive
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objetos que aparentemente estão mortos inanimados.
Ao conectar corpos, ambientes e desejos, o que se dá a ver nas coreografias
crip são possibilidades que se abrem para fazer da dança um experimento de vida.
Diferente do discurso da dança moderna que via a dança como uma expressão de
si, do coreógrafo ou dançarino, a dança
crip
se dilui em outras vidas e a partir das
suas vulnerabilidades testa uma operação fabulatória que rompe os limites entre
ficção e verdade. Não porque a ela interessa ficcionalizar a vida para inserir
fantasias e utopias. Mas porque na tensão entre verdade e mentira, na operação
fabulatória ao ficcionalizar estados corporais dá-se a ver a dor do outro.
É disso que se trata. O mergulho em si para o outro e não como manifesto
narcísico de gênios criadores. O devir pedra, devir árvore, devir boneco ou devir
exaustão são experiências coreográficas e dramatúrgicas que fazem a vida de um,
a vida dos outros em uma ação micropolítica de combate para seguir com as
bricolagens somáticas das flores que nos ensina a criar junto.
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Recebido em: 29/06/2023
Aprovado em: 19/08/2023
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
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