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Coreografar a crise - uma dramaturgia do
contexto presente
Marina Souza Lobo Guzzo
Para citar este artigo:
GUZZO, Marina Souza Lobo. Coreografar a crise - uma
dramaturgia do contexto presente.
Urdimento
Revista
de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 3, n. 48,
set. 2023.
DOI: 10.5965/1414573103482023e0103
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Coreografar a crise - uma dramaturgia do contexto presente
Marina Souza Lobo Guzzo
Florianópolis, v.3, n.48, p.1-19, set. 2023
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Coreografar a crise1 - uma dramaturgia do contexto presente2
Marina Souza Lobo Guzzo3
Resumo
Este texto se desenvolve como uma dança, como uma dramaturgia de gestos
possíveis para coreografar o presente em suas complexidades e mobilidades. Essa
construção dramatúrgica, por sua vez, possibilita imaginar uma coreografia a partir
das noções de encantamento e refúgio, como práticas (im)possíveis para pensar o
papel de artistas e criadores diante da crise climática. É válido lembrar que a
dramaturgia, aqui, não é entendida como manual ou partitura, mas sim como um
campo aberto para abrir linhas de fuga de um problema em que as palavras não dão
mais conta. Espera-se que estas palavras vazem, que se esparramem e que gerem
desejo de movimento. É preciso imaginar, fabular, especular, e a especulação exige
corpo. É uma relação terrena. Exige que nos joguemos, e que joguemos num outro
plano de mudança. Coreografar, pausar, aterrar, rebolar, “outrar”, deslocar
protagonistas e partilhar são algumas pistas para começar.
Palavras chave
: Coreografia. Crise climática. Dramaturgia. Gestos.
Choreographing the crisis - a dramaturgy of the present context
Abstract
This text evolves like a dance, like a dramaturgy of possible gestures to choreograph
the present in its complexities and mobility. This dramaturgical construction makes
it possible to imagine a choreography based on the notions of enchantment and
refuge, as (im)possible practices for thinking about the role of artists and creators in
the face of the climate crisis. It is worth recollecting that dramaturgy, in this case, is
not understood as a manual or musical score, but rather as an open field to open
lines of flight from a problem where words are no longer enough. These words want
to be spread out and arouse a desire for movement. It is necessary to imagine, to
fable, to speculate, and speculation requires a body. It is an earthly relationship. It
demands that we play and play in another plan of change. Choreographing, pausing,
landing, rolling, dancing, moving protagonists and sharing, are some clues to get
started.
Keywords:
Choreography. Climate crisis. Dramaturgy. Gestures.
1 Esse artigo é uma versão adaptada do capítulo que foi originalmente escrito e publicado no livro:
Guzzo, M. S. L. Choreographing the CrisisEnchantments, Refuges, and Impossible (Re)positionings. In:
Dietachmair, P., Gielen, P., & Nicolau, G. Sensing Earth: Cultural Quests Across a Heated Globe. Bruxelas: Valiz,
2023.
2 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Iasmin Martins Alvarez Costa, graduada
em Letras com habilitação em Português e Inglês pela Universidade Católica de Santos (UNISANTOS).
3 Pós-doutorado em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (ECA-USP). Doutorado e Mestrado em
Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora Adjunta da Unifesp
no Campus Baixada Santista, pesquisadora do Laboratório Corpo e Arte e coordenadora do Núcleo
Interdisciplinar de Dança. marina.guzzo@unifesp.br
http://lattes.cnpq.br/5559657064845007 http://orcid.org/0000-0002-9978-4014
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Coreografía de la crisis - una dramaturgia del contexto actual
Resumen
Este texto se propone como una danza. Se ofrece como una dramaturgia de gestos
posibles para coreografiar el presente, en sus complejidades y movilidad. Esta
construcción dramatúrgica, a su vez, permite imaginar una coreografía a partir de las
nociones de encantamiento y refugio, como prácticas (im)posibles para pensar el
papel de los artistas y creadores frente a la crisis climática. Es organizado aquí
algunos para componer una dramaturgia coreográfica. Recordando que aquí la
dramaturgia no se entiende como manual o partitura. Sino más bien como un campo
abierto para abrir líneas de fuga de un problema donde las palabras ya no alcanzan.
Palabras que desean que se filtren, se esparzan y generen ganas de movimiento. Es
necesario imaginar, fabular, especular. Y la especulación requiere un cuerpo. Es una
relación terrenal. Exige que juguemos y juguemos en otro plan de cambio.
Coreografiar, pausar, aterrizar, rodar, bailar, mover protagonistas y compartir, son
algunas pistas para empezar.
Palabras clave
: Coreografía. Crisis climática. Dramaturgia. Gestos.
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Dramaturgia do presente
Sabemos que não solução para o problema da crise climática. O
movimento que se apresenta é de um grande equívoco de relação planetária.
Coreografias e fluxos de destruição, sofrimento e tragédia.
No esgotamento das tentativas de racionalizar o que seria possível fazer
diante disso, é preciso imaginar o impossível. Fazer um contrafeitiço (Pignarre e
Stengers, 2005) e lançá-lo ao vento. Uma coreografia que ensaia novas políticas
de existência e posiciona humanos e não humanos para experimentar formas
radicais de aprender a viver, sentir, saber e, principalmente, mover.
Este texto se desenvolve como uma dança, como uma dramaturgia de gestos
possíveis para coreografar o presente em suas complexidades e mobilidades. Essa
construção dramatúrgica, por sua vez, possibilita imaginar uma coreografia a partir
das noções de encantamento e refúgio, como práticas (im)possíveis para pensar
o papel de artistas e criadores diante da crise climática.
O refúgio, aqui, é entendido a partir das ideias de Bona (2020), que entende a
experiência poética e a "reabilitação de sonhos" como uma forma de seguir e
sobreviver diante da crise climática. Ou seja, a noção de refúgio não é física,
real e territorial, mas também o sonho, o desejo e a cosmopoética como "ponto
de vida" (Coccia, 2018).
Diante da intrusão de Gaia, é necessário "fazer pegar novamente como se
diz das plantas a capacidade de pensar e agir juntos" (Stengers, 2015, p. 148).
Toda a experimentação, no sentido de fomentar mudanças diante da crise, deve
ser estética e, portanto, política. Não como uma representação, e sim, antes, como
"produção de repercussões" (Stengers, 2015, p. 148), ou de "caixas de ressonância".
Experimentar e fazer agir, uns com os outros, pois "cada êxito, por mais precário,
tem sua importância" (Stengers, 2015, p.148).
Porém, como estarmos juntos diante de tantas distâncias? Como nos
aproximar apesar das desigualdades? Como pensar mobilidades a partir do que
pode ser e existir como artistas em lugares diferentes do mundo? Como nos
aproximar, se a própria crise sugere que permaneçamos e sustentemos práticas
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locais, sustentáveis e regionalizadas?
Aqui, não se trata de pensar em separar grupos, mas é importante ressaltar
que, embora todos vivamos no mesmo planeta em crise, nem todos
experimentamos a crise da mesma maneira. Não estamos no mesmo barco.
Alguns navegam em super iates transatlânticos; outros, em uma jangada com
amarrações frágeis. Outros, ainda, estão lançados ao mar, literalmente, nadando
para buscar algum pedaço de qualquer coisa como apoio para se viver (ou
sobreviver), numa vida náufraga. A coreografia de criação de refúgios é, portanto,
uma responsabilidade de todos, principalmente daqueles que estão mais seguros
em terra firme.
Mas como essa proposição se numa prática de vida? Como sair do plano
de ideias e ideais, discursos e teorias, e poder agir? Novamente, invoco este texto
como uma dança: a tentativa de um “saber-fazer-corpo”.
A dança nos possibilita entender que o movimento é a maneira como vamos
constituindo o mundo e como ele nos constitui. E não é qualquer movimento: é
um gesto. Gestos são carregados de todas as dimensões perceptivas, afetivas e
simbólicas que estão envolvidas na organização do corpo e, portanto, do mundo.
O gesto é um "sistema que se organiza em torno de um modo de sentir e de
perceber particulares” (Lima, 2013, p. 106). O “sentir” e o “perceber” são construídos
na relação do corpo com o ambiente, que está dentro e fora do corpo, ao mesmo
tempo. Assim, a noção de gesto nos possibilita pensar a dimensão do sensível na
produção do corpo, necessária para pensar questões de mobilidade, de arte e de
ambiente. Toda e qualquer ação faz diferença.
Gestos são sempre emaranhados e existem a partir dos outros. O gesto se
no encontro. Trata-se de educar nossa "empatia cinestésica" (Foster, 2011) e
entender que cada gesto promove o gesto do e no outro, que nossa dança também
dança com a terra, que estamos todos juntos nessa relação de movimentos,
grandes ou pequenos.
O termo “empatia cinestésica” busca explicar a conexão entre artista e
público, que depende da história de quem faz e assiste, e das tecnologias
presentes no momento de construir a experiência cênica. No entanto, podemos
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ampliá-lo para a experiência artística como um todo. A experiência cinestésica
vem da intenção, do desejo de compartilhar o sensível e de movermos juntos.
A empatia é uma possibilidade de decifrar essa percepção ou, como
argumenta Susan Foster (2011), a empatia consiste no ato de proporcionar
sensações cinestésicas com as imagens que sintetizam suas experiências física e
emocional. Que gestos empáticos são possíveis para criação de refúgios no
contexto presente?
Organizo aqui alguns desses refúgios para compor uma dramaturgia
coreográfica. Lembrando que dramaturgia, aqui, não é entendida como manual ou
partitura, mas como um campo aberto para abrir linhas de fuga de um problema
em que as palavras não dão mais conta. Palavras que desejo que vazem, que se
esparramem e que gerem desejo de movimento. É preciso imaginar, fabular,
especular. E a especulação exige corpo. É uma relação terrana. Exige, que a gente
se jogue e jogue num outro plano de mudança. Numa "cama de gato" aquele
jogo dos fios –, como diz Donna Haraway (2019, p. 87):
Jogar cama de gato é sobre dar e receber padrões, deixar cair fios,
fracassar e às vezes encontrar algo que funciona, algo consequente e
talvez até bonito, que não existia antes; é sobre transmitir conexões que
importam, sobre contar histórias com mãos sobre mãos, [...] sobre criar
condições para o florescer finito no mundo terreno.
Coreografar
Antes, é importante ampliar a própria ideia do gesto de coreografar. Se
olharmos a etimologia da palavra “coreografia”, vemos que ela tem origem do
grego
khorus
(círculo) e
graphe
(escrita, representação). O elemento “círculo” é
uma referência às danças circulares e à orquestra, local no qual o coro teatral
grego dançava.
Coreografar, no sentido etimológico, é desenhar, gravar o espaço com o corpo
em movimento (Guzzo, 2021). Coreografar é sempre se colocar em relação ao
tempo, ao espaço, à escrita, ao movimento. Coreografar é organizar possibilidades
de gestos de transformação – no espaço e no tempo.
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André Lepecki (2010) sugere que, em 1700, a palavra “coreografia” ou
chorégraphie
passa a agenciar escrita e movimento, corpo e signo, papel e chão
(Lepecki, 2010). Ainda segundo o autor, o termo
chorégraphie
passa a ser utilizado
para a transcrição ou registro das danças.
As danças, que antes ocorriam em espaços públicos e profanos, ficaram
confinadas a um local específico, o teatro, servindo à monarquia durante o século
VI. A evolução da dança como uma forma artística independente no Ocidente, a
partir do Renascimento, passou a estar cada vez mais alinhada com a busca por
constante mobilidade.
O ímpeto da dança em apresentar o movimento de maneira espetacular se
transforma em seu atributo moderno, conforme definido por Peter Sloterdijk “[...]
como uma era e modo de existência onde o cinético se alinha com 'aquilo que na
modernidade é o mais real’” (ênfase adicionada ao original).
À medida em que o projeto cinético da modernidade se converte na ontologia
da modernidade, o projeto da dança ocidental se alinha cada vez mais com a
produção e a exibição de um corpo e de uma subjetividade aptos para executar
essa incessante motilidade (Lepecki, 2006, p. 17).
O mesmo André Lepecki (2006), em
Exhausting dance: performance and the
politics of movement
, aponta vários modos de criar e existir a partir da pausa, ou
do corpo imóvel. Na ambivalência do termo “exaurir”, existe, para Lepecki (2006),
uma dança que também nos cansa por sempre propor a mesma estrutura de
movimento, sem pensamento ou proposta de problematização do tempo
presente. Ao mesmo tempo, indica também um desejo de repensar o que seria
uma política de movimento, de esgotar a ideia de movimento.
Coreografar, aqui, é entendido como o verbo que nos possibilita nos
posicionarmos e reposicionarmos a partir de nossos próprios corpos para pensar
a crise climática e a mobilidade artística.
Pausar
O primeiro gesto que proponho para esse texto-dança é a pausa.
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Um dos aspectos mais importantes da crise climática é a escala de
velocidade e de volume da produção que nós, humanos, colocamos como ritmo
planetário. Precisamos, antes de qualquer coisa, pausar. No entanto, é importante
garantir sustento para que isso seja possível para todos.
A capacidade da atividade artística pode ajudar a construir novos regimes de
percepção e nos fazer ganhar potência como recurso inestimável da existência
humana para defrontar os desafios da emergência climática – ou Capitaloceno –
para incluir o sistema econômico como centro da crise.
Não é possível falar em crise sem falar no sistema capitalista neoliberal que
sustenta a maneira em que o regime e mercado das artes estão fundados.
Portanto, precisamos combater as desigualdades que o sistema propõe também
no campo de quem protagoniza esse mercado.
Façamos uma longa e profunda respiração.
Sente na cadeira de maneira a sentir seus apoios, seus dois pés no chão.
Sua coluna no espaço, com suas curvas de sustentação.
Feche os olhos.
Descanse por um breve momento.
Aterrar
Seguindo para o segundo gesto-pensamento: aterrar. Bruno Latour (2020) já
usou esse gesto em seu livro publicado recentemente, mas gostaria de focar no
aterramento que diz respeito ao chão, propriamente dito.
Aterrar é fazer “particular e imanente de ação cujo principal objeto é aquilo
que Paul Carter chamou, no seu livro The Lie of the Land, de ‘política do chão’”
(Lepecki, 2012, p. 47). Para Carter (apud Lepecki, 2012), a “política do chão” é estar
atento a todos os elementos de uma situação, principalmente suas
particularidades físicas, ou seja, o chão em que estamos pisando, de maneira a
incluir o chão com tudo que ele carrega como conhecimento situado e o corpo
para compor a história. Visíveis e invisíveis que habitam o espaço do encontro.
Humanos e não humanos que habitam e movem o chão. O chão que carrega
histórias e lutas, memórias e ancestralidades.
O chão que é também nosso futuro. Coreografar a partir do chão, aterrar em
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seu próprio território e poder levá-lo com você é assumir que toda coreografia é
política, ou “coreopolítica”, (Lepecki, 2012). Aterrar é estar atento ao seu próprio
gesto, ao seu próprio chão. A partir dessa atenção, saber que do nosso chão local,
podemos também sentir a Terra, com toda sua história: camadas geológicas e
emocionais que constroem a dramaturgia da nossa existência.
Sinta seus pés no chão. Sinta o peso do seu corpo. Sinta a textura dessa
superfície. Se puder, deite no chão, role no chão, sinta o chão. É com ele e a partir
dele que podemos impulsionar todo e qualquer gesto.
Aquilombar
Do chão, do ancestral, trago o próximo gesto: aquilombar. Peço licença para
usar esse termo vindo da palavra
kilombo
, de origem bantu, que, no Brasil, é
definido como “quilombo”, ou local no qual pessoas negras escravizadas fugidas
reuniam-se, cuidavam-se e mantinham viva a memória do "ponto de vida" que as
sustentavam.
Uma das formas mais importantes de resistência a
plantation
consistia em
fugir e se misturar à floresta. Essa prática, conhecida como marronage4, é uma
oposição social, política e cultural que esteve frequentemente na origem de
formação de sociedades organizadas que compartilhavam a preparação para
guerra, para festa e para uma vida comum (Glissant, 2014; Bona, 2020).
Mesmo com o fim do regime escravocrata (que ainda se perpetua pelas
plantations
), a ideia de quilombo como refúgio é sustentada como uma tecnologia
e dispositivo de sobrevivência e resistência contra as formas de opressão
(Nascimento, 2006). "Aquilombar-se é o movimento de buscar o quilombo, formar
o quilombo, tornar-se quilombo. Ou seja, ‘aquilombar-se’ é o ato de assumir uma
posição de resistência contra-hegemônica a partir de um corpo político"
(Nascimento, 2006, p.141).
4 Marronage remete ao marrom, termo que vem do espanhol cimarrón (selvagem). O termo designa o escravo
que, durante a escravidão, fugia da plantation ou da habitação e se refugiava nos morros e nas florestas do
entorno. Essas fugas eram praticadas individualmente ou em pequenos grupos. Alguns marrons
permaneciam isolados por muito tempo; outros, se constituíam em bandos em torno de um chefe, ou se
integravam a um bando constituído. Em português, corresponde ao quilombo e à figura do quilombola.
(Glissant, p.89, 2014)
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E, uma tecnologia coreográfica importante que o quilombo ensina é a noção,
a estratégia e a consciência de que estar e fazer junto amplia a potência de ação
e transformação, a consciência de partilha. Um conhecimento ancestral da cultura
afro-brasileira que merece ser citado, difundido e compreendido com respeito e
cuidado (Guzzo, 2022).
Faça alianças para seus trabalhos. Contrate um profissional do Sul-Global
para seu projeto. Pague melhores cachês para quem é menos conhecido. Crie
condições para trabalhar com mães e seus filhos. Faça grupos e estratégias
coletivas. Não estamos sozinhos. Monte estratégias para criar um plano comum.
Outrar
Coreografar a crise climática é coreografar com e para o outro peça-chave
para que consigamos pensar saídas para além de discursos. “Outrar” seria o quarto
gesto para coreografar a crise. O "outro” é, aqui, o não-humano.
Autores como Latour (2020), Stengers (2015), Haraway (2019) e Tsing (2019)
apontam que, junto com o Antropoceno5, a separação de natureza e cultura não
se sustenta. Sendo assim, deveríamos (ou ousaríamos) pensar que as construções
filosóficas, artísticas e políticas da história da civilização ocidental foram baseadas
na estabilidade climática que caracterizou o Holoceno ou seja, em condições
ecológicas estáveis o suficiente para que a percepção humana deixasse de
perceber e sentir o protagonismo dos agentes não-humanos nas questões da
existência, das coletividades, criando a ideia de uma “natureza” que existe como
pano de fundo ou palco, inerte, sobre o qual a ação humana age (Guzzo; Taddei,
2019). O mais preocupante não é que o capitalismo não se importa com a
atmosfera, mas que a atmosfera não se importe com o capitalismo (Stengers,
2015).
Pensar a crise diante da inclusão do outro é também incluir um sentido de
pertencimento, de refúgio e de vida em potência. E a arte tem essa maneira de
fazer ao evocar presenças e imanências diversas: visíveis e invisíveis.
5 Haraway e Tsing criticaram o termo Antropoceno, sugerindo Capitaloceno, ou Plantationoceno, para tirar a
centralidade do Antropos e colocar foco no sistema econômico que produz morte, miséria, exclusão e
extermínio de espécies.
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O campo das Artes e da Cultura tem grande responsabilidade em promover
essa tarefa. É justamente no encontro sensível que podemos inventar novos
modos de existir, sentir, sonhar e confabular.
Importante delimitar que não é qualquer arte que faz isso. Gosto de pensar
a partir da proposição de Dénetém Touam Bona (2020, p. 34):
[...] uma arte que seja como a celebração da terra, celebração do céu,
celebração do cosmos. Uma arte que seja um grande Sim à vida. E sendo
assim, uma arte que nos obriga a dizer Não. A dar testemunho do
intolerável, do imundo, da destruição do mundo: quer se trate da 6a.
Extinção em massa das espécies vivas ou da sinistra agonia do direito de
asilo.
A proposição de uma arte que realmente esteja engajada em formas de
transformações sociais, e que não reproduza o que o mercado de arte coloca
como urgência por sua agenda estabelecida em calendários e espaços
delimitados e acessados por poucos. Até porque a crise climática passa a ser mais
um produto para vender um certo tipo de arte que serve a uma minoria que
frequenta museus e galerias. Um circuito que também imprime modos de
exclusão e exploração da natureza, dos objetos e dos trabalhadores culturais
(Guzzo, 2022).
O gesto a ser forjado como artistas é o sentido de imaginar “outros”, regimes
de percepções e sensibilidades. Produzir mais do que uma "obra", e sim
experiências de saúde imaginativa, subjetiva e social, sem idealizações mágicas ou
fórmulas prontas (Guzzo, 2022).
Uma arte que é múltipla e diversa também pode intensificar
sensibilidades e percepção do problema diante do qual estamos situados, sem
necessariamente apontar soluções. É habitar o problema, como diz Donna
Haraway (2019). Não haverá uma única solução, mas múltiplos exercícios, saídas
imaginárias e especulativas de narrativas que possam contar outras histórias sobre
outros mundos, outras espécies e outras paisagens.
Dance com plantas, com animais, com a terra, com o vento, com o mar.
Chame para dançar quem é muito diferente de você. Quem você nem consegue
imaginar. Aproxime-se do estranho. Toque nele.
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Deslocar protagonistas
Esse seria um gesto fundamental para que toda essa dança fosse possível, e,
talvez, o mais difícil deles: deslocar protagonistas.
Isso exigirá articulações e alianças mais profundas. Justamente são essas
alianças e articulações pensadas entre diferentes povos e culturas como
protagonistas de ações de transformação que incluem humanos e não humanos,
que Haraway (2016) aponta como sendo estruturais para o desenvolvimento do
próprio problema (a crise climática). Devemos nos voltar a elas, para a ideia de
companheirismo intraespecífico (Haraway, 2016) ou, como diria Ailton Krenak, a
parentes e vizinhos. Todos somos vizinhos (Krenak, 2016), mas alguns não têm
nem casa para morar.
O gesto importante de pensarmos é o deslocamento de protagonistas, mas
não apenas para manter o sistema de distanciamento que muitas vezes a arte
promove, mas para aproximar, avizinhar, repensar, reviver.
A destruição decorrente da colonização gera um movimento que Antonio
Bispo dos Santos, ou Nêgo Bispo (2015), chama de “contra-colonização”. Ele se
refere a todos os processos de resistência e de luta em defesa dos territórios dos
povos contra- colonizadores, com seus símbolos, as significações e os modos de
vida. Em sua trajetória nessa luta, Nêgo Bispo espalha, com sua obra e
pensamento, uma chance de um "devir quilombola", para entender a terra e o
território no sentido de universos existenciais vinculados, não somente a produção
econômica, mas aos corpos e aos espíritos desses povos, para poder cuidar e
proteger os territórios físicos e simbólicos que estão em jogo nessa guerra de
mundos (Bispo, 2015).
Porque mesmo que queimem a escrita/ Não queimarão a oralidade/
Mesmo que queimem os símbolos/ Não queimarão os significados/
Mesmo queimando o nosso povo/ Não queimarão a ancestralidade
(Bispo, 2021, s/p).
Nesse sentido, as alianças estabelecidas promovem diferentes ontologias, ao
estabelecer diálogos e trocas entre mundos e formas de vidas distintas. O
deslocamento de protagonistas, pode ser pensado como trânsito e travessias de
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saberes. Coreografias de diáspora, que consideram o corpo e as diferenças como
possibilidade de (re)existência e futuros (Silva, 2018).
Arte como exercício de alteridade (Para além de quem o circuito e o mercado
definem como "outro"). Uma arte que se torne acessível à imaginação, ou que se
proponha como abertura ética a ser vislumbrada com a dissolução da ideia de
"entendimento" para ideia de imaginação (Silva, 2019).
Se você tem uma oportunidade de apresentar seu trabalho, convide junto
outra pessoa que não teria condições para ir com você. Abra espaços para convidar
pessoas que não foram ainda chamadas. Mude os protagonistas das suas ações e
criações - incluindo não humanos na cena. E para curadores: curem outras
pessoas e não somente aquelas que você gosta e conhece (que agradam o
mercado).
Encantar
E como somos a natureza? Primeiro, partindo da ideia de que não estamos
separados dela. É no campo estético e sensível que essa aproximação ganha
potência de ação e pode nos ajudar a sair de uma perspectiva teórica. Trago aqui
a perspectiva do encantamento como uma prática política de vida que pode ajudar
a preparar esse "contra-feitiço" coreográfico.
A noção de encantamento de acordo com Simas e Rufino (2020) é a própria
integração entre todos as formas que habitam a paisagem, entre o visível e o
invisível (materialidade e espiritualidade) e a conexão entre diferentes espaços-
tempos (ancestralidade). O “encantado” é quem circula entre esses tempos e
planos, e que transmuta a opressão colonial, a domesticação em instauração de
mundos e paisagens diferentes. "Ou seja, o encante é fundamento político que
confronta as limitações da chamada consciência das mentalidades
ocidentalizadas" (Simas e Rufino, 2020, p. 7).
E encantar tem a ver com se aproximar de saberes e práticas presentes na
força das culturas afro-ameríndias. São esses nossos vizinhos e “outros” que
sustentam maneiras de encarar o final do mundo diversas vezes, de muitas
formas, por muitos e muitos anos.
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Existe uma vasta manifestação das "encantarias" presentes em todas as
encruzilhadas do mundo, sobretudo, no Brasil. É como se fosse importante um
resgate também de conteúdos para preservar, junto a essas paisagens, os
encantes, os encantados, a encantaria. Tecnologias de existir, diante das
plantations e do desencanto - desertos da monocultura.
O encantado é aquele que obteve a experiência de atravessar o tempo e
se transmutar em diferentes expressões da natureza. A encantaria, no
Brasil, plasmada na virada dos tambores, das matas e no transe de sua
gente cruza inúmeros referenciais para desenhar nas margens do Novo
Mundo uma política de vida firmada em princípios cósmicos e
cosmopolitas (Simas e Rufino, 2020, p. 6).
Organizar uma roda com um grupo de pessoas, cantar, tocar tambores,
rebolar, gingar, fazer uma umbigada. É na gira que todo o encantamento acontece.
Rebolar
Assim como Malcom Ferdinand (2022) propõe pensarmos a crise climática a
partir do mundo caribenho e de sua história e mares de exploração, proponho
dançarmos a crise a partir do rebolado que surge no Brasil.
É preciso descolonizar a crise, mas principalmente a maneira como
pensamos sobre ela. Me junto a Taísa Machado (2020) para trazer a “ciência do
rebolado”, ideia que apresenta propostas concretas para lidar com temas como a
libertação dos corpos femininos, o enfrentamento ao racismo e a circulação por
territórios periféricos todas ações necessárias e relacionadas com a maneira que
sentimos a Terra e comungamos com ela.
Rebolar é poder enxergar a dança e o gesto como possibilidade de reinventar
a percepção que se tem sobre a produção cultural das periferias. Taísa fala
especialmente sobre as favelas cariocas, local onde nasce o funk mas podemos
pensar em muitas outras culturas periféricas que têm no quadril o gesto de
invenção do mundo.
É pelo quadril de uma mulher que chegamos ao mundo, é por ele que
também podemos nos conectar a ele e à maneira como ele está em nós. Rebolar
Coreografar a crise - uma dramaturgia do contexto presente
Marina Souza Lobo Guzzo
Florianópolis, v.3, n.48, p.1-19, set. 2023
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é muito mais que se mover: é também mover sensualidades, fertilidades,
espiritualidades. Mover o quadril pode nos ajudar a nos consertar à ancestralidade,
e por isso, ao futuro.
Sinta seus pés no chão, ouça o som do funk, do samba, dos tambores.
Comece a mover o quadril. Desenho círculos com ele. Desenho o símbolo do
infinito com seu quadril. Sinta-se conectado
.
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A desigualdade social imposta aos povos não-europeus é muito grande no
campo das artes. Vivemos realidades cinéticas de mobilidade, difusão e circulação
discrepantes. Talvez seja um momento para a Europa repensar alianças de
destruição que causou e causa no mundo subalterno ao seu "centro".
Daqui do sul global, não conseguimos ainda pensar em "diminuir" fluxos de
trabalho ou deslocamento, uma vez que temos os fluxos totalmente excluídos
por políticas públicas ou privadas de economia. Tampouco temos a possibilidade
de andar de trem para emitir menos carbono.
Por aqui, queremos e precisamos continuar viajando. Precisamos circular
ideias, precisamos de estrutura para criação, precisamos de respeito, escuta e
possibilidade de encontros. Precisamos ganhar em euros. Precisamos que ainda
se faça um programa de difusão de artistas nas Américas e que esses possam
circular para outras partes do mundo. Precisamos que a cultura e a arte recebam
incentivo digno, que os artistas deixem de passar fome ou de ter que fazer
atividades paralelas para sustentar seus processos criativos.
A crise climática é fruto de uma sociedade desigual perante os processos de
destruição do colonialismo. Tentar resolver a crise sem pensar ou considerar as
desigualdades sociais é mais um meio de reforçar essa estrutura, desde sua forma
de contratação e distribuição de renda, até os meios de patrocínios institucionais
de empresas que poluem e destroem o meio ambiente.
Se a crise climática deflagrada no Antropoceno nos é comum como uma
crise política e estética e a arte não separada da vida portanto, da natureza , o
cuidado e a potência da imaginação de outros mundos possíveis têm papel
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fundamental. Como diz Dénètem Touam Bona (2020), as ecologias simplificadas
das plantations exigem uma reabilitação da potência do sonho e da poesia: "essa
inteligência sensível, que retesa o arco-íris do possível" (Bona, 2020, p. 10).
Circular, encontrar e voar possibilitam a apreensão do mundo como
totalidade viva, com a experiência de comunidade, de comum, com tudo que nos
atravessa e nos compõe: vegetais, minerais, águas, ar, e as outras pessoas. Isso
pode ser feito no quintal de casa, mas também pode ser feito num festival de arte,
numa grande exposição, numa mostra.
Ao invés de propor a redução de mobilidade artística e cultural, talvez
devêssemos imaginar justamente o contrário. Ampliar para que novos
protagonistas apresentem suas obras, sonhos, ideias, refúgios, tecnologias.
Ampliar modos de circulação e trânsito. Até porque, a partir da noção de
encantamento, existem muitas formas de se deslocar e se mover que não utilizam
carbono, avião, trem, mas um saber simples de se fazer pele, de saber cuidar, de
conseguir dançar com os diferentes humanos e não humanos.
Com a natureza como protagonista de nosso anseio pela vida, e não como
"pano de fundo" separado de nós. Sem medo ou esperança, mas com consciência
de reposicionamento (Tsing, 2019), e, por isso, é também uma dança. Mudar a
posição de corpos no espaço, "dançar" mundos para trazê-los à existência. Essa
"dança" inclui a poética, a estética, a transmutação de valores e ideais. É radical, e
muito difícil de fazer, sobretudo diante da força do desencanto que se apresenta.
Coreografar a crise, dançar com ela e a partir dela. Com um movimento de
corpo espiralado que sempre alcança o outro, que estende a mão, a escuta, a
empatia. Como nos lembra Leda Maria Martins (2021), dançar, para muitas culturas
não-brancas e ocidentais, pode ser uma forma de rememorar, de voltar, de
incorporar. É pelo corpo que se move no tempo que dançamos, “um tempo que
não elide as cronologias, mas que a subverte” (Martins, 2021,p. 42), um jeito de
seguirmos encantados com a potência da vida.
Para encerrar, uma pequena dança: respire fundo novamente. Sinta seus pés
no chão. Olhe em volta. Sinta a Terra, e tudo que nela habita, incluindo você. Crie
a presença necessária no mundo e faça outros (re) posicionamentos.
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Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br