O prazer da voz
José Batista (Zebba) Dal Farra Martins
Florianópolis, v.3, n.48, p.1-20, set. 2023
A fim de gravá-la dentro de tua lembrança;
Infeliz o glutão que come sem medida,
Que toma tudo e nunca há de algo reter.
(Quadra XXV da “Nova moral di Colletet”, 1685
Apud Ferrari, 2019, p. 142)
***
O prazer da voz é um prazer desinteressado – não é usufruto, a voz como
coisa útil, utilizável. Não se trata de devorar, mas de saborear as palavras. Quando
saboreamos um alimento, é preciso destruir antes de deglutir: o sentido do
movimento é de fora para dentro, para garantir prazeres e nutrição.6 Ao contrário,
o sentido vetorial da vocalidade poética aponta para fora: eu saboreio para dizer –
a alguém. Portanto, saborear será um ato de lapidação e de descoberta, que
impulsa a viagem da palavra ao encontro de corpos e provoca sentidos. Se na
deglutição alimentar há sucessão de ações – respirar, saborear, engolir –, no dizer
as ações são simultâneas – expirar, saborear, ressoar, ritmar, lançar. O sabor
coincidente com o dizer ratifica a não-linearidade da voz.7 Neste ponto, é
imprescindível lembrar do lugar da palavra contemporânea, esvaziada e
desincorporada pela disseminação crescente de uma linguagem meramente
informativa. O filósofo espanhol José Luis Pardo alerta:
Hay un intento en marcha para librar al lenguaje de su incómodo espesor,
un intento de borrar de las palabras todo sabor y toda resonancia, un
intento de imponer por la violencia un lenguaje liso, sin manchas, sin
sombras, sin arrugas, sin cuerpo, la lengua de los deslenguados, una
lengua sin otro en la que nadie se escuche a sí mismo cuando habla, una
lengua despoblada (Pardo apud Larrosa, 2000, p. 94).
Desta língua dos deslinguados extirpou-se o seu sabor de boca, pois
Para acceder al lenguaje, tenemos que hablar una lengua (la – o las –
6 Diz Hannah Arendt, na seção
Labor e fertilidade
, de sua grande obra
A condição humana
: “Ambos [o trabalho
e o labor] são processos devoradores que se apossam da matéria e a destroem: o ‘trabalho’ realizado pelo
labor em seu material é apenas o preparo para a destruição final deste último” (Arendt, 1987, p. 112). Podemos
dizer que a vocalidade poética – projeto de atuação da atriz, do narrador, do cantor, da performer –
encontra-se entre o
se
r e o
fazer
, entre o
labor
e o
trabalho
. O labor instaura um saber orgânico, o trabalho,
um saber poético, de fabricação. A observação de Hannah Arendt nos instiga a indagar: o que a voz destrói
quando se lança? De fato, há uma queima energética própria dos processos corporais, mas há também uma
espécie de poda no teor de memórias, pensamentos e emoções: quando eu digo, eu coloco para fora,
desabafo, confesso, declaro. Parece haver aí também uma destruição, no sentido da transformação já
inerente ao labor, quando garante a manutenção do ciclo vital.
7 Barthes sugere uma anisotropia do texto: “Se você mete um prego na madeira, a madeira resiste
diferentemente conforme o lugar em que é atacada: diz-se que a madeira não é isotrópica. O texto
tampouco é isotrópico: as margens, a fenda, são imprevisíveis” (Barthes, 1987, p. 49). Assim também a voz
e a vocalidade poética, pluralidade corporal de ritmos, ressonâncias, respirações.