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O prazer da voz
José Batista (Zebba) Dal Farra Martins
Para citar este artigo:
MARTINS, José Batista (Zebba) Dal Farra. O prazer da voz.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 3, n. 48, set. 2023.
DOI: 10.5965/1414573103482023e0206
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O prazer da voz
José Batista (Zebba) Dal Farra Martins
Florianópolis, v.3, n.48, p.1-20, set. 2023
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O prazer da voz1
José Batista (Zebba) Dal Farra Martins2
Resumo
O texto desenvolve uma reflexão no âmbito das relações entre
voz
e
experiência
,
discorrendo sobre o prazer da voz, em confronto com o medo e o trabalho de voz. No
percurso, em que o prazer da voz deságua em prazer no teatro, o autor ensaia diálogos
com o escritor Roland Barthes (O prazer do texto) e artistas teatrais, como Cicely Berry
(
Voice and the Actor
), Isabel Setti (
O corpo da palavra não é fixo deixa-se tocar pelo
tempo e seus espaços
) e Bertolt Brecht (
Pequeno Organon para o Teatro
). Trata-se de
um itinerário ao encontro do prazer da voz que vibra, corta, historiciza e assombra.
Palavras-chave
: Voz. Prazer. Trabalho. Assombro. Vocalidade contemporânea.
The pleasure of the voice
Abstract
The text develops a reflection within the scope of the relations between
voice and
experience
, discussing the pleasure of the voice, in confrontation with fear and voice
work. Along the way, in which the pleasure of the voice leads to pleasure in the theater,
the author essays dialogues with the writer Roland Barthes (
The pleasure of the text
)
and theatrical artists, such as Cicely Berry (
Voice and the Actor
), Isabel Setti (
The body
of the word it is not fixed, it lets itself be touched by time and its spaces
) and Bertolt
Brecht (
Small Organon for the Theatre
). It is an itinerary to meet the pleasure of the
voice that vibrates, cuts, historicizes and astonishes.
Keywords
: Voice. Pleasure. Work. Astonishment. Contemporary vocality.
El placer de la voz
Resumen
El texto desarrolla una reflexión en el ámbito de las relaciones entre
voz y experiencia
,
discutiendo el placer de la voz, en confrontación con el miedo y el trabajo de la voz. En
el camino, en el que el placer de la voz conduce al placer del teatro, el autor ensaya
diálogos con el escritor Roland Barthes (
El placer del texto
) y artistas teatrales, como
Cicely Berry (
La voz y el actor
), Isabel Setti (
El cuerpo de la palabra no es fijo, se deja
tocar por el tiempo y sus espacios
) y Bertolt Brecht (
Breviário de Estética Teatral
). Es un
itinerario para encontrarse con el placer de la voz que vibra, corta, historiza y asombra.
Palabras clave:
Voz. Placer. Trabajo. Asombro. Vocalidad contemporánea.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Diego Andrade de Carvalho. Doutorando
em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Literatura Brasileira pela USP.
2 Livre-docência pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutorado pela Universidade de Barcelona
Espanha. Doutorado em Engenharia Civil pela USP. Mestrado em Engenharia Civil pela USP. Graduação em
Matemático pela Universidade de Taubaté (UNITAU). Professor Associado pesquisador livre-docente sênior
do Departamento de Artes Cênicas (ECA-USP) e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC).
Músico, encenador, ator e cantor, professor e pesquisador. dalfarra@usp.br
http://lattes.cnpq.br/1202945496384216 https://orcid.org/0000-0002-1165-1293
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…quando a produção é sem controle,
o aprendizado pode se transformar em prazer
e o prazer em aprendizado.
(Brecht. Organon, Apêndice)
Não é incomum haver quem se refira ao trabalho de voz no teatro como uma
atividade para resolver o
problema
da voz. Recentemente, chamou minha atenção,
em um texto de uma orientanda, a significativa quantidade da ocorrência desta
palavra no primeiro parágrafo, arrematado com a
flexão problematização da voz
.
Este tratamento da pedagogia da voz imprime mais ênfase nas dificuldades
inerentes não só a este campo específico, mas concernentes à árdua tarefa a que
se expõem atores, atrizes e aprendizes, na lida cotidiana do teatro. Na entrada da
Escola de Arte Dramática se lia
Teatro é duro
, lema cunhado por Alfredo Mesquita,
seu fundador.
A ideia da voz como um problema, um empecilho, uma barreira a ser
superada, encontra eco na palavra trabalho. Como se sabe, a etimologia de
trabalho
ensina que o vocábulo vem de
tripalium
, um instrumento de tortura,
formado por três paus aguçados em que se prendia o escravo para ser supliciado.
Hannah Arendt, no livro
A condição humana
(Arendt, 1987, p. 58), afirma que “todas
as palavras europeias para ‘labor’ o latim e o inglês
labor
, o grego
ponos
, o
francês
travail
, o alemão
Arbei
t significam dor e esforço e são usadas também
para dores do parto.3 Labor tem a mesma raiz etimológica que
labare
(‘cambalear
sob uma carga’)”. De outra parte, trabalho se opõe a ócio, que em grego se diz
Skholè
, raiz da palavra
escola
. No mundo dos homens livres, era preciso tempo
livre para contemplar. Hannah Arendt esclarece que o espaço da casa, em que
vigorava o labor do escravo para garantir a satisfação das necessidades da família,
privava
seu dono da atuação pública, de fato o objeto de realização plena do
cidadão, ao passo que o filósofo se colocava ainda fora (e acima) destas duas
instâncias, no ócio e na contemplação. As propostas vibracionais da Maud Robarts
e Grotowski, em sua última fase, nomeada por Peter Brook
arte como veículo
,
correspondem atualmente à criação desse espaço ocioso e contemplativo,
dedicado a descobertas sutis (Quilici, 2013).
3 Evidência deste imbricamento semântico é o uso de trabalho de parto para o ato de dar à luz.
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Entretanto, as pressões ocasionadas pelas diretrizes produtivas da sociedade
contemporânea ocidental (mas crescentemente global) transformaram a escola
justamente no espaço de preparação para o trabalho, num processo gradativo que
se acelerou na segunda metade do século passado.
***
Trabalhar é se juntar com as coisas, se separar das pessoas.
Manuelzão
(Rosa, 1984, p. 187)
Será preciso, portanto, associar às poéticas pedagógicas da voz o prazer das
descobertas que o acesso aos ritmos vibratórios e aos fluxos das ressonâncias
propicia. Isso exige, sem dúvida, um redimensionamento do tempo, para que
estudemos não o evidentemente útil, mas também o supostamente inútil. No
limiar do processo de aula ou de ensaio, cantar pode ser um ato pleno para o
contato e a coesão entre atores, atrizes, aprendizes, professoras e encenadores.
Cantar não é um dom, cantar é bom
, diz o poeta Chacal. E mesmo que se admita
ser um dom, é preciso movê-lo, como reza Djavan. As dificuldades que a prática
teatral impõe não desaparecem, mas seu enfrentamento se fortalece com o elixir
da alegria e do prazer. Escutemos Assis Valente, compositor baiano, negro, quando
fala das artimanhas de sua gente para
oblívio dos males e pausa nas aflições
:
Alegria pra cantar a batucada
As morenas vão sambar
Quem samba tem alegria
Minha gente era triste e amargurada
Inventou a batucada
Pra deixar de padecer
Salve o prazer! Salve o prazer!
(Valente e Maia, 1996)
***
A Alegria é manifesta.
Tui é o lago que alegra e refresca todos os seres.
Tui é ainda a boca.
A Alegria significa prazer.4
(I Ching, 1982, p. 495)
“A alegria é a prova dos nove”, escreve Oswald de Andrade no
Manifesto
4 Hexagrama 58. Tui / Alegria (Lago).
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Antropófago
(Andrade, 2017, p. 36). O que ele queria dizer com isso? No tempo em
que não havia calculadora eletrônica, a prova dos nove era utilizada para conferir
se estava correta uma soma, subtração, multiplicação ou divisão. Trata-se de uma
série de regras reveladoras da coerência estrutural interna das operações
numéricas. Analogamente, a alegria deve pulsar no interior dos processos cênicos,
como matriz de seu movimento. É disso que Meyerhold fala quando preconiza que
“a alegria torna-se a esfera sem a qual o ator não pode viver, mesmo quando deve
morrer em cena” (Meyerhold, 1914, p. 12). O atributo da alegria é a leveza, oposto
ao peso do medo até pra dizer: ao peso do mundo, da morte. Por isso, o
remédio para a atração gravitacional do chão do palco é a leveza do salto, da figura
que se conecta com as alturas, com o céu. O mergulho no oceano deve sempre
permitir o voo livre nos ares.
Sem que se enuncie desta forma, o prazer está presente nas propostas de
Cicely Berry e Kristin Linklater. Para Cicely Berry, notável professora inglesa,
referência na dicção poética de Shakespeare e colaboradora de Peter Brook em
diversas obras, é necessário distender tensões indesejáveis presentes no corpo,
para abrir os espaços de circulação do ar. No livro
Voice and the actor
, de 1972,
este processo se desenvolve por meio de alguns movimentos simples, focados na
percepção do peso e na soltura de articulações. A prática amplia as salas de ar e
prepara os exercícios respiratórios, destinados a “saber dosar a energia cinética da
voz”. Em seguida, Cicely coloca o aprendiz em ação: sugere dizer um texto da peça
Cimbelino
, de Shakespeare, cujo tema gira em torno do medo e de uma atitude
serena para enfrentá-lo (Berry, 1973, p. 26). Minha tradução brasileira pode
incorporar dizeres de cantador nordestino:
Sem Medo
. Experimente cantar:
Sem medo do sol ardente
Nem do inverno gelado
O descanso sorridente
Depois de cumprido o fado
O rapaz, a moça só
Tudo um dia vira pó.
Sem medo dos poderosos
Nem da vingança tirana
Cientistas miraculosos
Sabedoria cigana
Sem comida ou paletó
Tudo segue e vira pó.
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Sem medo da trovoada
Nem do raio cintilante
Sem medo do camarada
Nem do inimigo arrogante
Amantes jovens sem dó
Acabam sempre no pó.
Nenhum encanto te renda!
Nem feitiço ou encomenda!
Nenhum fantasma nem lenda!
Nada de mal te surpreenda!
Serena consumação
Todo dia mansidão!
(Shakespeare, 1975, p. 800)5
O posicionamento do tema do medo como primeiro ato do processo
pedagógico lembra a posição
desse inimigo do conhecimento
na poética de Myrian
Muniz. Entretanto, diferentemente da inglesa, a mestra brasileira faz eco ao
pessimismo de Drummond, no
Congresso Internacional do Medo
:
E depois, morreremos de medo
E sobre nossos túmulos nascerão flores
Amarelas e medrosas
(Martins, 2020a, p. 52).
5 Fear no more the heat o' the sun
Nor the furious winter's rages;
Thou thy worldly task hast done,
Home art gone, and ta'en thy wages:
Golden lads and girls all must,
As chimney-sweepers, come to dust.
Fear no more the frown o' the great;
Thou art past the tyrant's stroke;
Care no more to clothe end eat;
To thee the reed is as the oak:
The sceptre, learning, physic, must
All follow this, and come to dust.
Fear no more the lightning-flash,
Nor te all-dreaded thunder-stone;
Fear not slander, censure rash;
Thou hast finish'd joy and moan:
All lovers young, all lovers must
Consign to thee, and come to dust.
No exorciser harm thee!
Nor no witchcraft charm thee!
Ghost unlaid forbear thee!
Nothing ill come near thee!
Quiet consummation gave:
And renowned by thy grave!
(Tradução nossa)
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Chama a atenção o enfoque fortemente poético da proposta de Cicely Berry,
no sentido de colocar aprendizes no trato com a palavra, já no primeiro encontro.
Ou seja, o longo caminho de preparação da voz acontece pari passu com o gesto
da palavra. Kristin Linklater, ao contrário, separa estes dois momentos. Sua prática
visa liberar a voz
, objetivo declarado no título de seu principal livro,
Freeing the
natural voice
, lançado em 1976, no qual o primeiro passo não é desenvolver
habilidades respiratórias, mas entrar em contato com seu sopro, em um ato
fisiológico simples: o suspiro (Linklater, 1976, p. 28). O suspiro é mínima porção de
ar que se torna mínima porção de voz, um fóton de
phoné
que se libera, surfando
no prazer do alívio corporal que provoca. Esta estratégia se solidariza com o
objetivo da professora escocesa, pois se a meta é liberar a voz, nada mais coerente
que esta poética (no sentido de um fazer) se alicerce na liberação da menor porção
de voz. A dimensão mínima do suspiro dependerá de cada ator, atriz ou aprendiz,
em contato com seu corpo, em situação relacional, pois a voz se realiza entre dois.
À liberação de um suspiro surdo, seguem-se um sonoro e a sustentação da
vibração, distendidos anteriormente lábios, língua, mandíbula e palato mole, para
flexibilizar os espaços de ressonância. O prazer do ar torna-se prazer sonoro.
***
Cicely Berry e Kristin Linklater admitem que a ressonância da voz não se deve
concentrar apenas na máscara. É preciso permitir a viagem do som pelo corpo,
que Grotowski perseguirá obstinadamente, especialmente no período de Wroclaw
(Martins, 2011). A escuta cumpre um papel fundamental na expansão das
possibilidades vibratórias do ser, pois que embasa o tráfego da relação entre
mestre e aprendiz, na calibragem do posicionamento do som.
***
Roland Barthes, no livro
O prazer do texto
, questiona: “Escrever com prazer
me assegura – a mim, o escritor o prazer de meu leitor? De modo algum. Esse
leitor é mister que eu o procure (que eu o ‘drague’),
sem saber onde ele está
. Um
espaço de fruição fica então criado. Não é a pessoa do outro que me é necessária,
é o espaço […]” (Barthes, 1987, p. 8).
O prazer da voz implica o prazer da escuta? De modo algum. Porém, a
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emissão prazerosa coloca no jogo também a escuta de quem diz e o espaço criado
com quem escuta convida à fruição.
***
um silêncio na escuta, silêncio fecundo, como a pausa presente na
respiração, soprada por Artaud quando afirma que o ator deve ser um “atleta do
coração” (Artaud, 2006, p. 154). Artaud enumera os ciclos respiratórios em
masculino
, a inspiração;
feminino
, a expiração; e,
andrógino
, o silêncio, a pausa de
retomada do ciclo, que guarda ainda os afetos presentes no dito, em tensão
com o dizer que virá. A pausa assim concebida articula magneticamente o fluxo
da voz e das palavras, dirige a variação dos andamentos, determina o jogo dos
contrastes, estreita o contato com os ouvintes.
Em um dos capítulos sobre a questão da voz teatral em seu sistema,
Stanislavski propõe três tipos de pausas para o estudo e a dicção do texto: lógica,
psicológica e
luft-pause
, uma tomada imperceptível de ar, por necessidade
fisiológica (Stanislavski, 2001, p. 157-203). Esta tipologia deixa claro o espaço da
atuação stanislavskiana, primordialmente restrito às relações privadas. Brecht
expande a função das pausas, para criar brechas de estranhamento, interrupções
de fluxo, cortes históricos, em perspectiva social e política (Brecht, 1978, p. 36).
Essa proposição não se limita somente a uma poética de atuação e encenação do
autor alemão, mas está presente em sua escrita, sobre o que observa Roberto
Schwarz, no prefácio de
A Santa Joana dos matadouros
:
O ritmo da dicção é submetido ao andamento argumentativo, que tem
musicalidade específica, a qual vai primar também sobre a musicalidade
da palavra. Na condução do verso, ocorre algo da mesma ordem, através
da valorização complexa de sua pausa final, que é o resultado de um
truque simples: Brecht não põe vírgula no fim da linha, o qual em
consequência pode mas o precisa ter função de virgular, dúvida
esta que obriga sempre a um intervalo (Schwarz, 2009, p. 12).
***
… é o próprio
ritmo
daquilo que se lê [se diz, se escuta] e do que não se
[não se diz, não se escuta] que produz o prazer dos grandes relatos
[Para dizer, eu leio, a leitura antecede a performance].
Não devorar, não
engolir, mas
[…]
aparar com minúcia, redescobrir
o lazer das antigas
leituras
. (Barthes, 1987, p.19. Grifos e comentários nossos)
Lê pouco, mas, ao ler, rumina tua leitura,
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A fim de gravá-la dentro de tua lembrança;
Infeliz o glutão que come sem medida,
Que toma tudo e nunca há de algo reter.
(Quadra XXV da “Nova moral di Colletet”, 1685
Apud Ferrari, 2019, p. 142)
***
O prazer da voz é um prazer desinteressado não é usufruto, a voz como
coisa útil, utilizável. Não se trata de devorar, mas de saborear as palavras. Quando
saboreamos um alimento, é preciso destruir antes de deglutir: o sentido do
movimento é de fora para dentro, para garantir prazeres e nutrição.6 Ao contrário,
o sentido vetorial da vocalidade poética aponta para fora: eu saboreio para dizer
a alguém. Portanto, saborear será um ato de lapidação e de descoberta, que
impulsa a viagem da palavra ao encontro de corpos e provoca sentidos. Se na
deglutição alimentar há sucessão de ações – respirar, saborear, engolir –, no dizer
as ações são simultâneas expirar, saborear, ressoar, ritmar, lançar. O sabor
coincidente com o dizer ratifica a não-linearidade da voz.7 Neste ponto, é
imprescindível lembrar do lugar da palavra contemporânea, esvaziada e
desincorporada pela disseminação crescente de uma linguagem meramente
informativa. O filósofo espanhol José Luis Pardo alerta:
Hay un intento en marcha para librar al lenguaje de su incómodo espesor,
un intento de borrar de las palabras todo sabor y toda resonancia, un
intento de imponer por la violencia un lenguaje liso, sin manchas, sin
sombras, sin arrugas, sin cuerpo, la lengua de los deslenguados, una
lengua sin otro en la que nadie se escuche a sí mismo cuando habla, una
lengua despoblada (Pardo apud Larrosa, 2000, p. 94).
Desta língua dos deslinguados extirpou-se o seu sabor de boca, pois
Para acceder al lenguaje, tenemos que hablar una lengua (la o las
6 Diz Hannah Arendt, na seção
Labor e fertilidade
, de sua grande obra
A condição humana
: “Ambos [o trabalho
e o labor] são processos devoradores que se apossam da matéria e a destroem: o ‘trabalho’ realizado pelo
labor em seu material é apenas o preparo para a destruição final deste último” (Arendt, 1987, p. 112). Podemos
dizer que a vocalidade poética projeto de atuação da atriz, do narrador, do cantor, da performer
encontra-se entre o
se
r e o
fazer
, entre o
labor
e o
trabalho
. O labor instaura um saber orgânico, o trabalho,
um saber poético, de fabricação. A observação de Hannah Arendt nos instiga a indagar: o que a voz destrói
quando se lança? De fato, uma queima energética própria dos processos corporais, mas há também uma
espécie de poda no teor de memórias, pensamentos e emoções: quando eu digo, eu coloco para fora,
desabafo, confesso, declaro. Parece haver aí também uma destruição, no sentido da transformação
inerente ao labor, quando garante a manutenção do ciclo vital.
7 Barthes sugere uma anisotropia do texto: “Se você mete um prego na madeira, a madeira resiste
diferentemente conforme o lugar em que é atacada: diz-se que a madeira não é isotrópica. O texto
tampouco é isotrópico: as margens, a fenda, são imprevisíveis” (Barthes, 1987, p. 49). Assim também a voz
e a vocalidade poética, pluralidade corporal de ritmos, ressonâncias, respirações.
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materna/s, al menos en principio) y hablarla desde dentro, con nuestra
propia voz (manifestando nuestros dolores y placeres con ella) y con
nuestra propia lengua. Y ello hace que las palabras nos dejen un residuo
en la punta de la lengua, un sabor de boca (dulce o amargo, bueno o
malo), lo que ellas nos hacen saber (nos dan a saborear) de nosotros
mismos y que nadie más que nosotros puede saber, porque nadie más
puede saborearlas con nuestra lengua y nuestra boca, porque a nadie
más pueden sonarle como a nosotros nos suenan (Pardo, 2004, p. 53).
O sabor de boca suscita e estimula o prazer da voz.
***
A ressonância na máscara e a prática de salmodiar compõem a estratégia
hegemônica de uma pedagogia da voz afinada à escola tradicional francesa,
desenvolvida por Maria José de Carvalho e Mylene Pacheco, na Escola de Arte
Dramática, e registrada pela professora Terezinha Zaratin, no seu livro
Comunicação verbal. Educação vocal
(Zaratin, 2010). A prática, ancorada em
procedimentos presentes no canto lírico, busca a emissão da
voz grande do ator
,
a partir do abaixamento da laringe, posição correspondente à abertura máxima do
canal da voz, em posição distendida. Não obstante a situação otimizada para a
emissão, preconizada por Grotowski quando diz mantenha a laringe aberta, o ato
de salmodiar visa fixar a ressonância e sustentá-la com alta intensidade,
buscando-se uma dicção própria de personagens trágicos, mensageiros, deuses,
heróis. Mylene Pacheco apresenta um exemplo interessante desta abordagem,
quando trabalha a sustentação do dizer em um poema de Fernando Pessoa:
Boiam leves desatentos
Meus pensamentos de mágoa
Como no sono dos ventos
As algas cabelos lentos
Do corpo morto das águas
(Pessoa, 1955, p. 120).
O gesto da voz fica aqui completamente realizado, pois sustenta a ação de
boiar na leveza (intensa) de pensamentos e algas.
***
“Mylene Pacheco morreu poucos meses. A beleza imponente das vozes
trabalhadas por ela nos deixou antes ou permanece como eco distante, referência
de qualidade que ainda não encontrou corpo de igual grandeza” (Setti, 2007, p. 25).
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Isabel Setti inicia assim um artigo, cujo título anuncia o trânsito da voz no corpo
que o tempo histórico impôs:
O corpo da palavra não é fixo deixa-se tocar pelo
tempo e seus espaços.
Prossegue assim o seu depoimento:
Eu sentia grande admiração pela potência, pela clareza, pela bela
ressonância das vozes de Mylene, mas experimentava desconforto com
a falta de naturalidade daquela expressão, com a padronização da
entonação e, principalmente, com a ausência de contato daquela técnica
com a experiência da coisa dita (Setti, 2007, p. 25).
Emerge desta fala a falência da ideia de uma técnica única para a voz teatral,
como se a questão vocal pudesse admitir solução única, padronizada na
entonação. Pois muitos modos de prazer vibratório e cada poética definirá
técnicas associadas, conjuntos de práticas prazerosas de aprendizagem,
destinadas a superar desafios específicos.
A fala de Isabel Setti afere ainda o divórcio da técnica com o que se diz.
Aparecem daí dicotomias entre corpo e voz, som e sentido, cuja superação impõe
um enfrentamento com a própria linguagem. Não por acaso, nota-se o surgimento
de vários neologismos para dar conta da integridade destas instâncias
fragmentadas: corpo-voz, corpovoz, corpo-vocal, corpooral, palavra-corpo.
Constatando que muito se perde em estudar a literatura oral sem atentar para os
corpos e vozes dos sujeitos que a criaram e propagaram, Paul Zumthor propôs
substituir
oralidade
por
vocalidade
(Zumthor, 2000). A vocalidade, portanto,
pressupõe a solidariedade entre corpo e voz. Este liame também é fonte de prazer.
Como é bom quando as vibrações ritmam o flutuar do corpo e um fluxo
instantâneo percorre os circuitos conectivos do assombro.
***
Em situação teatral, nos processos de relações em movimento,
vocalidade
diz-se
vocalidade poética
. Entre
vocalidade
e
vocalidade poética
, é a dimensão do
adjetivo poética que posiciona ator, atriz, performer e aprendiz no espaço entre
ficção e não-ficção, terreno transitório próprio do contemporâneo. Nesta
perspectiva, um aspecto essencial das
pedagogias da vocalidade po
ética será criar
condições de ensaiar saberes para dimensionar o raio de irradiação da ressonância
no trânsito rítmico da atuação.
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***
A cultura Malinkê da Guiné Conacri é uma das linhagens musicais, artísticas,
bailadas, e tem seu fundamento no conceito de que os instrumentos “falam”, isto
é:
reproduzem a voz, discursam, dialogam, criam frases relacionadas ao
momento presente, conduzem as danças, trazem uma grande herança
de provérbios, conceitos sociais, conselhos e sabedoria dos ancestrais,
combinando eternamente e harmonicamente, duas polaridades:
Respeito
e Alegr
ia.8
***
Se fosse possível imaginar uma estética do prazer textual, cumpriria
incluir nela: a escritura em voz alta. […] Na Antiguidade, a retórica
compreendia uma parte olvidada, censurada pelos comentadores
clássicos: a
actio
, conjunto de receitas próprias para permitir a
exteriorização corporal do discurso: tratava-se de um teatro da
expressão, o orador-comediante “exprimia” sua indignação, sua
compaixão, etc. A escritura em voz alta não é expressiva; […] é
transportada, não pelas inflexões dramáticas, pelas entonações
maliciosas, os acentos complacentes, mas pelo
grão da voz
, que é um
misto erótico de timbre e de linguagem
, e pode portanto ser por sua vez,
tal como a dicção, a matéria de uma arte: a arte de conduzir o próprio
corpo (daí sua importância nos teatros extremo-orientais) (Barthes, 1987,
p. 84-85).
Na vocalidade poética, o grão da voz não nega o logos pelo protagonismo da
phoné
, mas aposta na
vocalização do logos desvocalizado
(Cavarero, 2011 p. 50),
em um dizer que se constrói em trânsito, na dobra entre o íntimo e o público. Não
se trata de isolar o som do sentido, mas de liberar conexões na ressonância. O
dizer em trânsito no encontro com a pessoa se constitui
entre nós
, não se apoia
na apropriação do texto pelo ator, mas antes que ele se deixe levar pelo fluxo das
frases, exponha-se aos impulsos dos versos, contagie-se pelos rastros das
palavras na ponta da língua (Martins, 2020, p. 175).
O prazer da voz. Vocalizar o logos. Entre o fonético e o fonológico, entre dizer
e cantar, entre som e sentido.
***
Habito um texto como habito uma cidade para orelhas atentas e olhos
distraídos, sempre há alguma surpresa em esquinas antigas.
8 Disponível em: https://estudiomawaca.com/evento/as-africas-da-africa-com-marina-de-mello-e-souza-
usp-e-fantakonate-guine-e-luis-kinugawa-djembedon/. Acesso em: 15 maio 2023. Grifo nosso.
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***
Pois em toda ação a intenção principal do agente, quer ele aja por
necessidade natural ou vontade própria, é revelar sua própria imagem.
Assim é que todo agente, na medida em que age, sente
prazer em agir
;
como tudo o que existe deseja sua própria existência, e como, na ação, a
existência do agente é, de certo modo, intensificada, resulta
necessariamente o prazer... Assim, ninguém age sem que (agindo)
manifeste o seu eu latente (Dante, apud Arendt, 1987, p. 188).
O prazer se realiza na voz quando ela supera sua camada mais superficial de
comunicar e age nas pessoas e na cidade, quando ela é capaz de afetar corpos e,
na sua reflexão, deixar-se afetar, quando ao mesmo tempo lança e permite o
toque vibrante entre nós. A ação da palavra exige seu facho de sombra, seus
espectros de silêncios, seus ruídos singulares.
O prazer da voz. Vocalizar o logos. Entre nós.
***
Toda uma pequena mitologia tende a nos fazer acreditar que o prazer (e
singularmente o prazer do texto) é uma
ideia de direita
. A direita, expede-
se para a esquerda, com um mesmo movimento, tudo o que é abstrato,
aborrecido, político, e as pessoas guardam para si o prazer: sejam bem-
vindos entre nós, vocês que chegam enfim ao prazer da literatura! E à
esquerda, por moral (esquecendo-se
os charutos de Marx e Brecht
),
suspeita-se, desdenha-se qualquer “resíduo de hedonismo”. À direita, o
prazer é reivindicado contra a intelectualidade, o clericato: é o velho mito
reacionário do coração contra a cabeça, da sensação contra o raciocínio,
da “vida” (quente) contra “a abstração” (fria) […] À esquerda, opõe-se o
conhecimento, o método, o compromisso, o combate, à “simples
deleitação” (no entanto,
e se o próprio conhecimento fosse por sua vez
delicioso?
) (Barthes, 1987, p. 31-32).
***
Entre os colaboradores de Bertolt Brecht, cujo processo criativo sabemos
coletivo, Hanns Eisler ocupa um lugar especial. A sólida formação marxista infunde
uma atitude dialética em suas poéticas musicais e teatrais, atitude revolucionária
que provoca no ouvinte e no executante “ternura e força, perseverança e
flexibilidade, impaciência e prudência, exigência e devoção” (Brecht apud Betz,
1982, p. I).9 Para Eisler a diversão é condição necessária da educação pelo teatro,
9 Sobre ele, diz Brecht: “Sua atitude global é revolucionária no mais alto sentido. Esta música desenvolve no
ouvinte e no executante os impulsos e as luzes mais potentes de uma época em que a produtividade de
todo tipo é a fonte de todo prazer e toda moralidade. Ela criou uma nova ternura e uma nova força, uma
nova perseverança e uma nova flexibilidade, uma nova impaciência e uma nova prudência, uma nova
exigência e uma nova devoção”. No original: His holy attitude is revolutionary in the highest sense. In both
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pois
Uma sociedade que se educa deve ser ensinada pelo palco desde que a
educação seja divertida onde a educação não é diversão, já é obsoleta.
[…] A arte não foi liberada de suas mais primitivas necessidades de
servir a sociedade e entreter a sociedade? Agora, tenho que admitir, e
você também10, que não de fato nenhuma oposição entre entreter e
servir. O velho Brecht mostrou em seu Organon: entreter o servir e o
entretido pode servir [à sociedade] (Eisler e Bunge, 2014, p. 220 e 225).11
Eisler evoca um preceito brechtiano contido no Pequeno Organon para o
Teatro. De fato, o primeiro excerto do breviário postula: “O ‘Teatro’ consiste em
produzir representações vivas de fatos humanos tramados ou inventados, com o
fim de divertir” (Brecht, 1963a, p. 15).12 Antes, no Prólogo, Brecht já define “o teatro
como um lugar de diversão, desde o ponto de vista de uma estética” (Brecht, 1964,
p. 100), prenúncio da análise sobre “[...] cual es el género de recreación que nos
agrada!” (Brecht,1963a, p.15).
Trata-se, portanto, de tipificar e abordar os prazeres teatrais, no sentido de
encontrar a forma de prazer mais prazerosa, já que
o prazer que ele [o teatro] busca é sua única justificativa,
verdadeiramente necessária e suficiente. […] Não se deve mesmo exigir
do teatro que ensine o que quer que seja, a não ser a
maneira de obter
prazer de se mover
, no corpo ou no espírito: mas nada de mais útil
(Brecht, 1963b, p. 174).13
O movimento do corpo ou do espírito do pensamento, que é um passeio
the listener and the executant this music develops the powerful impulses and insights of an age that in
which productivity of every kind is the source of all enjoyment and morality. It brings forth new tenderness
and strength, endurance and versatility, impatience and foresight, challenge and self-sacrifice”. (Tradução
nossa)
10 O interlocutor de Eisler é Hans Bunge, em conversação extraída do belo livro
Brecht, Music and Culture.
Hanns Eisler in conversation with Hans Bunge
. Trata-se de uma série de entrevistas, com temas extraídos
de memórias de Eisler sobre registros de Brecht em seu Diário.
11 A society that educates itself needs to be taught by the stage only as long as education is fun where
education isn't fun any longer it's already obsolete. […] Hasn't art already been liberated from its most
primitive needs to serve society rather than to entertain society? Now, I have to admit, and you too, that
there isn't really any opposition between entertaining and serving. The older Brecht has shown that in his
Organum
: to entertain the serving and the entertained can serve. (Tradução nossa)
12 El "Teatro" consiste en producir representaciones vivas de hechos gumanos tramados o inventados, con el
fin de divertir. (Tradução e Grifo nosso)
13 Le plaisir qu'il procure est la seule justification, à vrai dire indispensable et suffisante. [...] On ne devrait
même pas lui demander d'enseigner quoi que ce soit, sinon peut-être la manière de prendre du plaisir à se
mouvoir, sur le plan physique ou dans le domaine de l'esprit;mais rien de plus utilitaire. (Tradução e grifo
nosso)
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do espírito gera prazer e é somente isso que o teatro pode ensinar: formas de
se mover com prazer. Sendo movimento, o gesto da voz participa deste prazer.
Nessa prospecção,
a catarse aristotélica, a purificação pelo terror e pela piedade, ou a
purificação do terror e da piedade, não é urna ablução realizada
simplesmente de uma forma recreativa, é, sim,
uma ablução que tem por
objetivo o prazer
. […] Dizer que o teatro surgiu das cerimônias do culto
não é diferente do que dizer que o teatro surgiu precisamente por se ter
desprendido destas; não adotou a missão dos mistérios, adotou, sim,
o
prazer do exercício do culto, pura e simplesmente
(Brecht, 1964, p. 101-
102. Grifos nossos).
Fosse o teatro continuidade cerimonial do rito dionisíaco, seria religião
diferenciando-se do culto, o teatro dele se descola.
O percurso brechtiano de análise das formas de prazer no teatro converge
para sua dimensão revolucionária, em que “a arte extrairá diversão da nova
produtividade, produtividade esta que tanto pode melhorar a nossa existência e
que, uma vez livre de obstáculos, pode vir a ser, em si própria, o maior de todos
os prazeres” (Brecht, 1964, p. 107. Grifo nosso).
***
É, sobretudo, o desejo de desenvolver a nossa arte em diapasão com a
época em que ela se insere que nos impele, desde já, a deslocar o nosso
teatro, o teatro próprio de uma época científica, para
os subúrbios das
cidades
; ficará, a bem dizer, inteiramente à disposição das vastas
massas de todos os que produzem em larga escala e que vivem com
dificuldades, para que nele possam
divertir-se
proveitosamente com a
complexidade dos seus próprios problemas (Brecht, 1964, p. 108. Grifos
nossos).
Para Brecht, o prazer teatral contemporâneo provém das situações de
assombro causadas por novos entendimentos14 de condições sociais e políticas,
que estruturam e controlam, sob perspectiva histórica. Os operadores teatrais
desse processo os efeitos de estranhamento, no plano da dramaturgia, e os
gestos, no plano da atuação e encenação “têm apenas como objetivo despojar
os acontecimentos susceptíveis de serem influenciados socialmente no libelo de
familiaridade
que os resguarda, hoje em dia, de qualquer intervenção” (Brecht,
14 Na acepção de tensões que tendem para um sentido.
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16
1964, p. 116. Grifo nosso).
Estranhar significa historicizar
, inserir cortes na narrativa, convidar cena e
público, participantes do ato teatral, à reflexão sobre a realidade
desnaturalizada
.
Para isso, é necessário
ser capaz de produzir em si
um olhar [uma escuta]
de estranheza idêntico
àquele com que o grande Galileu contemplou o lustre que oscilava. As
oscilações surpreenderam-no, como se jamais tivesse esperado que
fossem dessa forma, como se não entendesse nada do que se estava
passando; foi assim que descobriu a lei do pêndulo. O teatro, com as suas
reproduções do convívio humano, tem de suscitar no público uma visão
semelhante, visão que é tão difícil quanto fecunda. Tem de fazer que o
público fique assombrado, o que conseguirá, se utilizar uma técnica que
o
distancie de tudo que é familiar
(Brecht, 1964, p. 117. Grifos e comentário
nossos).
Trata-se do prazer do estranhamento como fonte de assombro. Nos campos
sonoro e musical, Brecht propõe frequentemente o jogo agudo de oposições entre
dizer e cantar como modo de estranhamento: as canções rasgam o tecido
narrativo e instauram perspectivas épicas, historicizantes. Nesta direção, o samba
de breque constitui-se em uma forma brasileira com este potencial, ao se
desenrolar nas oposições críticas entre a voz que canta e a voz que fala nos
breques.15
Criam-se possibilidades de contato com as
sombras
do texto. Para Roland
Barthes (1987, p. 43-44. Grifos nossos),
O texto tem necessidade de sua sombra: essa sombra é
um pouco
de
ideologia,
um pouco
de representação,
um pouco
de sujeito: fantasmas,
bolsos, rastos, nuvens necessárias; a subversão deve produzir seu próprio
claro-escuro. (Diz-se correntemente: “ideologia dominante”. Esta
expressão é incongruente. Pois a ideologia é o quê? É precisamente
a
ideia enquanto ela domina: a ideologia pode ser dominante.
Tanto é
justo falar de “ideologia da classe dominanteporque existe efetivamente
uma classe dominada, quanto é inconsequente falar de “ideologia
dominante”, porque não ideologia dominada: do lado dos “dominados”
não há nada, nenhuma ideologia, senão precisamente e é o último grau
da alienação a ideologia que eles são obrigados (para simbolizar, logo
para viver) a tomar de empréstimo à classe que os domina. A luta social
não pode reduzir-se à luta de duas ideologias rivais:
é a subversão de
toda ideologia que está em causa
).
***
15 Desenvolvi as articulações entre estranhamento e samba de breque na seção Premeditando Brecht do livro
Palavra Muda. Sobre poéticas para vozes em Estado de Sítio. (Martins, 2020b, p. 151-171)
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Toda esta fundamentação imbrica-se na tarefa
de recrear os filhos de uma era científica, proporcionando-lhes
o prazer
dos sentidos e a alegria
. [...] Do prazer sexual extraímos deveres conjugais,
o prazer artístico está ao serviço da cultura, e aprender não significa
conhecer aprazivelmente, mas, sim, aferrar o nariz ao objeto do
conhecimento. Nada do que fazemos representa um esforço aprazível, e,
para justificarmos os nossos atos, não invocamos o que gozamos com
isto ou com aquilo, mas, sim,
quanto suor nos custou
(Brecht, 1964, p.
133. Grifos nossos).
O percurso de Brecht no
Pequeno Organon
parte do prazer do teatro, enfoca
o prazer do ator no contato com o assombro e aponta finalmente para o
espectador, que
[…] gozar como diversión el tremendo e infinito trabajo que le procura la vida,
y también el carácter terrible de su incesante transformarse. El teatro debe
consentirle autoproducirse del modo más sereno, ya que de los variados modos
de existencia nace el arte más sereno” (Brecht, 1963a, p. 64 – Grifos nossos).
***
Minha era, minha fera, quem ousa,
Olhando nos teus olhos, com sangue,
Colar a coluna de tuas vértebras?
(Mandelstam, 2001)
Para o poeta russo Osip Mandelstam, sua era, portanto que lhe é
contemporânea, é animal com o dorso partido, a exigir a ousadia de repará-lo com
a própria vida. Propositor desta metáfora como um dos modos de desenvolver a
questão “O que significa ser contemporâneo?”, o filósofo italiano Giorgio Agamben
conclui:
O poeta
[...] é aquele que deve manter fixo o olhar nos olhos do seu século-fera16,
soldar com seu sangue o dorso quebrado do tempo.
[…] enquanto contemporâneo, é essa fratura, é aquilo que impede o
tempo de compor-se e, ao mesmo tempo, o sangue que deve suturar a
quebra.
[...] contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para
nele perceber não as luzes, mas o escuro.
16 Diz Agamben: “Em 1923, Osip Mandelstam escreve uma poesia que se intitula ‘O Século(mas a palavra
russa vek significa também ‘época’)” (Agamben, 2009, p. 59). Haroldo de Campos traduz “era”, que enfatiza
não se tratar de um ponto fixo no tempo, como a virada de século, mas um fluir constante dessa quebra.
Podemos até imaginar o
Angelus N
ov
us
de Klee e Benjamin habitante deste lugar intensamente presente.
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Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade,
obscuros.
É como se aquela invisível luz, que é o escuro do presente, projetasse a
sua sombra sobre o passado, e este, tocado por esse facho de sombra,
adquirisse a capacidade de responder às trevas do agora (Agamben,
2009, p. 59-72).
Gesto e ação plenos de ressonância e ritmo
nos chiaroscuros da palavra-luz e da palavra-sombra
entre som e sentido
tom e semitom
dizer e cantar
conservação e ruptura
tradição e inovação
familiaridade e estranhamento
entre nós
a vocalidade contemporânea
se arrisca em habitar essa fratura
no prazer dialético
que vibra
corta
historiciza
e assombra.
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