A voz na cena contemporânea: a preparação vocal em montagens brasilienses de peças curtas de Beckett
Valéria Cristina Machado Rocha
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-18, jul. 2023
torna a história fragmentada, além da potência das vozes em cena, as quais criam
mais uma vez musicalidade e tensão quase hipnóticas.
Ademais, o ponto de vista de cada uma das personagens é entrecortado pelas
falas das outras. Há ainda a presença constante do projetor de luz, que ao longo
da peça se transforma em uma espécie de personagem, pois, além de dialogar
com as demais, outorga o direito de falarem (ao iluminar os rostos) ou impede a
fala (ao deixar os rostos no completo escuro).
Assim, se em um primeiro momento as personagens relatam suas histórias
e suas frustrações amorosas, em outro passam a questionar sua própria
existência, do mesmo modo que divagam sobre a materialidade da incidência da
luz sobre sua cabeça, revelando um imbricado jogo entre representação e não
representação com os elementos físicos do teatro. No início da peça, ouvem-se
as três personagens:
Ao levantar a cortina, a escuridão é total. Cinco segundos.
Projetor fraco sobre os três rostos simultaneamente. Vozes fracas quase
ininteligíveis. M2, H, M1 simultaneamente.
M1 – É... Estranho, escuridão ideal, e quanto mais escuro, pior, até a
escuridão total. Enquanto durar, está tudo bem, mas há de chegar, a hora
chegará. Você vai ver, você vai me abandonar. Tudo ficará escuro,
silencioso, terminado, obliterado.
M2 – Sim, é claro, um pouco perturbada, muitos diriam, coitadinha meio
perturbada. Quase nada, só um pouquinho, (
fraco riso esgarçado
), só um
pouquinho, na cabeça. Mas eu tenho minhas dúvidas. Estou bem. Pelo
menos por enquanto. Dou de mim o melhor. Faço o que eu posso.
H – É... A paz, era o que se esperava. Tudo acabado, toda a dor, tudo
como se... nunca tivesse existido. Há de chegar (
soluço
), perdão, apagar
essa loucura, é, eu sei, mas assim mesmo era o que se esperava, a paz...
não simplesmente chegado ao fim, mas como se... nunca tivesse sido.
Os projetores se apagam. Escuridão total, cinco segundos. Fortes
projetores sobre as três caras simultaneamente. Voz normal. M2, H, M1
simultaneamente (Beckett, 2021, p. 297).
A peça rompe com a tradição criada pela representação, pois mesmo
havendo um texto, ele é dito de forma rápida e passa a provocar, pela voz, a
percepção do espectador. Não se trata especificamente de compreender o sentido
de cada palavra dita, o que por vezes é impossível, mas sim de provocar e envolver
o espectador com a voz dos atores, testemunhando o esvaziamento e o