1
A voz na cena contemporânea: a preparação vocal em
montagens brasilienses de peças curtas de Beckett
Valéria Cristina Machado Rocha
Para citar este artigo:
ROCHA, Valéria Cristina Machado. A voz na cena
contemporânea: a preparação vocal em montagens
brasilienses de peças curtas de Beckett.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 2, n. 47, jul. 2023.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573102472023e0209
Este artigo passou pelo
Plagiarism Detection Software
| iThenticate
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
A voz na cena contemporânea: a preparação vocal em montagens brasilienses de peças curtas de Beckett
Valéria Cristina Machado Rocha
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-18, jul. 2023
2
A voz na cena contemporânea: a preparação vocal em montagens
brasilienses de peças curtas de Beckett
1
Valéria Cristina Machado Rocha
2
Resumo
O presente artigo pretende apontar alguns dos aspectos que se
estabeleceram na cena teatral a partir de transformações e revoluções pós-
final do século XIX, período no qual pôde ser observado o entrelaçamento
entre artes plásticas, música, dança, cinema, vídeo e performance,
oportunizando uma pluralidade estética que transborda e excede o texto
dramático. Tais experimentações estimularam novos modos de compreender
como a voz emancipou-se de uma compilação de signos vinculados ao texto
dramático, reverberando em novos modos de acionamento para as práticas
e poéticas que tangenciam a voz. A partir desse panorama, serão
apresentados relatos das práticas vocais na montagem de algumas peças
curtas do autor irlandês Samuel Beckett desenvolvidas com intérpretes de
Brasília.
Palavras-chave:
Teatro contemporâneo. Voz. Preparação vocal.
1
Revisão ortográfica e gramatical realizada por Natália Leite Lopes, bacharela em Interpretação Teatral pela
Faculdade de Artes Dulcina de Moraes (FADM) e pós-graduada em Revisão de Textos pelo Centro
Universitário de Brasília (UniCEUB).
2
Doutoranda pelo PPGAC da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestra pela Universidade Federal de
Uberlândia (UFU). Especializada em Educação Física Escolar (Faculdade Alvorada Brasília- DF). Bacharela em
Artes Cênicas pela Faculdade de Artes Dulcina de Moraes (FADM), e Licenciada em Artes Visuais pelo Centro
Universitário Claretiano. Professora na Faculdade de Artes Dulcina de Moraes.
valeria.rocha24@yahoo.com.br
http://lattes.cnpq.br/6212668271380518 https://orcid.org/0000-0001-5808-8023
A voz na cena contemporânea: a preparação vocal em montagens brasilienses de peças curtas de Beckett
Valéria Cristina Machado Rocha
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-18, jul. 2023
3
Contemporary theater and voice: the context of vocal preparation
in Samuel Beckett's short plays
Abstract
This article intends to point out some of the aspects that were established in
the theatrical scene from the transformations and revolutions after the end
of the 19th century, a period in which it was possible to observe the
interweaving between plastic arts, music, dance, cinema, video and
performance, providing opportunities for an aesthetic plurality that overflows
and exceeds the dramatic text. Such experiments stimulated new ways of
understanding how the voice emancipated itself from a compilation of signs
linked to the dramatic text, reverberating in new ways of activating the
practices and poetics that touch the voice. From this panorama, reports of
vocal practices in the montage of some short pieces by the Irish author
Samuel Beckett, developed with interpreters from Brasilia, will be presented.
Keywords
: Contemporary Theater. Voice. Vocal Preparation.
Teatro contemporáneo y la voz: el contexto de la preparación vocal
en las obras cortas de Samuel Beckett
Resumen
Este artículo pretende señalar algunos de los aspectos que se establecieron
en la escena teatral a partir de las transformaciones y revoluciones
posteriores a fines del siglo XIX, período en el que el entrecruzamiento de las
artes plásticas, la música, la danza, el cine, el video y la performance pudieron
ser observados, brindando oportunidades para una pluralidad estética que
desborda y excede el texto dramático. Tales experimentos estimularon
nuevas formas de entender cómo la voz se emancipaba de una recopilación
de signos vinculados al texto dramático, repercutiendo en nuevas formas de
activar las prácticas y poéticas que tocan la voz. A partir de ese panorama,
se presentarán relatos de prácticas vocales en el montaje de algunas piezas
cortas del autor irlandés Samuel Beckett, desarrolladas con intérpretes de
Brasilia.
Palabras clave
: Teatro contemporáneo. Voz. Preparación vocal.
A voz na cena contemporânea: a preparação vocal em montagens brasilienses de peças curtas de Beckett
Valéria Cristina Machado Rocha
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-18, jul. 2023
4
A cena contemporânea e as relações com a voz
O teatro contemporâneo é identificado pelas revoluções estéticas
denominadas “vanguardas”
3
, popularizadas a partir de meados da década de 1950.
Tais transformações possibilitaram, entre tantos fatores, a transição do ator em
performer
, assim como a descrição de acontecimentos e relatos pessoais durante
a cena teatral, excedendo o texto dramático e impulsionando a quebra da ilusão
cênica. Esse teatro baseia-se e “é centrado na imagem e na ação e não mais sobre
o texto, apelo à uma receptividade do espectador de natureza essencialmente
especular ou aos modos das percepções próprias da tecnologia“ (Féral, 2008, p.
198).
Assim, convencionou-se conter uma diversidade de procedimentos de
criação cênica seja na encenação, nos processos colaborativos ou até mesmo
na produção de textos (dramaturgias) — sob essa nomenclatura, mesmo que tais
processos carreguem peculiaridades e em alguns casos não apresentem
semelhança alguma. Esse rompimento com as hierarquias textocentristas do
século XIX revelou a figura do intérprete como base para as variadas formas de
criação cênica, as quais reverberaram sobremaneira nas práticas e poéticas que
tangenciam a voz.
Com essa ruptura, o teatro contemporâneo do século XX deixou de
subordinar a montagem teatral a uma dramaturgia específica, oportunizando
outras formas de criação, por meio de práticas tanto colaborativas (quando todo
o coletivo de artistas participa da criação do espetáculo) quanto improvisacionais
(quando parte-se de improvisações com base em um roteiro de ações a partir do
qual o intérprete realiza a criação do espetáculo em comunhão com o espectador).
Além dessas, popularizaram-se formas diversas de apropriação da literatura, como
a encenação de poesias, romances e outros gêneros.
Observa-se no teatro contemporâneo uma “dramaturgia das vozes”,
conforme aponta Montenegro (2019) ao exemplificar a tendência das
3
As vanguardas europeias foram uma série revolucionária de movimentos artísticos iniciados em meados de
1909 nos quais buscou-se transgredir os estatutos da arte, extrapolando os limites da pintura. Os artistas
passaram a desenvolver outros suportes para as obras artísticas. Nesse período, surgiram as primeiras
performances art
(futurismo), em que o corpo é o próprio objeto de arte, e objetos do cotidiano ganharam
estatuto de obra pronta (dadaísmo/
ready made
).
A voz na cena contemporânea: a preparação vocal em montagens brasilienses de peças curtas de Beckett
Valéria Cristina Machado Rocha
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-18, jul. 2023
5
multiplicidades vocais a desestabilizar o
corpus
da personagem. Ou seja, uma
desestruturação na criação de personagens, o que as torna cada vez mais
irresolutas, visto que passam a “ser atravessad[as] por falas de origens incertas.
Misturam-se a identidades de seres representados. Seus contornos deixam de ser
claros e estão ali justamente para serem, pelo espectador, recompostos”
(Montenegro, 2019, p. 30). Citando Le Pors (apud Montenegro, 2019, p. 30), a autora
enfatiza como o teatro contemporâneo potencializa o fenômeno de
“deslocalização da personagem”, que “remete às questões acerca do lugar deste
no drama. Nessa forma múltipla onde as vozes se incluem e se excluem do
personagem, rompendo as fronteiras e deformando seus limites, elas as vozes
– tendem, mais radicalmente, a substituí-lo.”
Talvez um dos principais aspectos desse teatro seja, conforme aponta Silvia
Fernandes (2010, p. 11), a miscigenação entre as diversas linguagens artísticas,
como música, performance, dança, artes visuais e o cinema, evidenciando seu
hibridismo
4
. Ou seja, são produções teatrais que excedem os limites de suas
demarcações estéticas, tornando instável distinguir se são performance, dança,
ópera ou musical. Tais criações cênicas invertem significados tradicionais do teatro
e “mostram um processo de investigação transgressora, que submete o teatro de
seu tempo a uma prova de instabilidade” (Fernandes, 2010, p. 11). À vista disso,
observa-se nos espetáculos uma variedade de experimentações estéticas, as
quais recusam uma forma acabada, finalizada. Opta-se, em alguns casos, pelo
work in progress
, assim como por processos de pesquisa e laboratórios de
investigação cênica, em detrimento do resultado cênico, revelando o instante do
acontecimento teatral, o qual pode ser compartilhado com os espectadores.
Outra característica apontada por Fernandes (2010) é a inserção de situações
textuais e visuais originadas em outros contextos, como as que culminaram em
espetáculos cujas locações inserem os atores na arquitetura da cidade e
exacerbam o real em cena, evidenciando a oposição em relação à representação.
A voz, nesse contexto, assume uma cotidianidade, diferentemente da potência que
4
Ryngaert (2013), por exemplo, cita: o encenador americano Bob Wilson; Pina Bausch, com suas obras
coreográficas em que os bailarinos falam; e Tadeusz Kantor, com suas propostas chocantes nas quais
mescla artes visuais com os atores em cena. Esses artistas não vêm de uma tradição do teatro, mas das
artes visuais e da dança, e em várias de suas obras recorrem à voz como ponto de criação.
A voz na cena contemporânea: a preparação vocal em montagens brasilienses de peças curtas de Beckett
Valéria Cristina Machado Rocha
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-18, jul. 2023
6
o palco pode exigir. Outro aspecto pertinente salientado por ela são os recursos
da
performance art
, como o risco iminente que pode correr o ator ao longo do
espetáculo
5
quando coloca, em situações reais, seu próprio corpo em perigo. Do
mesmo modo, excedem-se “os limites da resistência física e emocional dos
intérpretes, pela resposta agressiva às questões políticas e sociais da atualidade
brasileira e, especialmente, pela diluição do estatuto ficcional” (Fernandes, 2010,
p. 107).
A aproximação com a performance também demonstra uma rejeição a
definições pré-estabelecidas acerca da criação e da apresentação das
personagens para os espectadores, assim como a interpretação de textos,
destacando “sujeitos desejantes”. Ou seja, são espetáculos que revelam a figura
do intérprete
6
, com aspectos de sua própria personalidade, o qual se expressa
através de sua autobiografia e de suas pulsões.
A emancipação do drama: a resposta por uma poética
contemporânea
Sarrazac (2017) acentua a existência de uma
crise
do drama
7
., porém atualiza-
a para a contemporaneidade e afirma que é insolucionável, pois aponta para a
relação do homem com seu tempo, ou seja, produto do meio e inserido em nossa
sociedade. Acerca desta, inclusive, podemos destacá-la como: fragmentada (posto
que o corpo é subutilizado), esgarçada pela revolução tecnológica, apressada,
automatizada, altamente medicada, robotizada, digitalizada, midiatizada e, por que
não dizer, carente de encontros e de afetos. Sarrazac (2017, p. 22) enfatiza ainda
ser necessário renunciar ao conceito de crise:
5
Um exemplo são as peças da companhia italiana Socìetas Raffaello Sanzio, nas quais instauram-se uma
tensão e a iminência de perigos reais ao corpo dos intérpretes.
6
Os espetáculos da atriz paulistana Janaína Leite, como
Stabat Mater
(2019), apontam para uma cena caótica,
possuindo um tênue limite entre vida real e ficção. A peça causa espanto e admiração, entre muitos fatores,
devido a sua hiperexposição, incluindo cenas reais de sexo e a presença de sua mãe no palco.
7
As análises sobre uma possível crise no drama moderno se iniciam com Peter Szondi, crítico literário e
teórico que discute em seu livro
Teoria do drama moderno
(2001) as revoluções que ocorrem no teatro
moderno desde o final do século XIX devido às mudanças ocorridas na sociedade e na cultura ocidental,
como a urbanização, a industrialização, a fragmentação da vida e a crise das grandes narrativas. Para ele, o
teatro como forma de arte não consegue mais dar conta das complexidades da vida moderna, resultando
em obras teatrais que rompem com a estrutura do drama clássico.
A voz na cena contemporânea: a preparação vocal em montagens brasilienses de peças curtas de Beckett
Valéria Cristina Machado Rocha
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-18, jul. 2023
7
As decepções e ilusões da pós-modernidade espaços dos possíveis
previamente reportados; espaços que pretendem fechar esse lugar
demasiado aberto, demasiado instável, “demasiado em crise” e “crítico”
da modernidade nos incitam ao contrário, a manter esse conceito de
crise em operação no seio da poética do drama. Substituindo, porém, a
ideia de um processo dialético com início e, sobretudo, “fim”, pela ideia
de uma crise sem fim, nos dois sentidos do vocábulo. De uma crise
permanente, de uma crise sem solução, sem horizonte preestabelecido.
A perspectiva de Sarrazac propõe, portanto, que o drama tenha transbordado
para uma espécie de desordem, e que a crise do drama contemporâneo tenha
proporcionado a criação por meio da fragmentação do diálogo em cena e de novas
experimentações para a escrita dramatúrgica, consequentemente alterando a
relação entre o intérprete e sua voz. Assim, não se busca solução para uma crise,
mas a compreensão de que a desordem e o caos são o novo horizonte para as
criações cênicas. Tais transformações nos diálogos afetaram sobremaneira o uso
da voz em cena, pois passaram a exigir outros modos de acioná-la.
Analisar os efeitos múltiplos da voz no teatro contemporâneo é perceber que
ela excede a linguagem. Nesse sentido, observa-se novamente a renúncia da
subserviência da voz como mensageira de um texto teatral. Para Lehmann (2008),
o ato da fala é um
acontecimento
, o qual transborda em complexidade, afastando-
se de um ideal de comunicação. Segundo ele (Lehmann, 2008, p. 252), “nas lacunas
da linguagem insinuam-se seus antagonistas e duplos: gagueiras, omissões,
sotaques, pronúncias defeituosas escondem o conflito entre corpo e palavra”.
Nota-se a intencionalidade em destacar o que é próprio da voz, nesse caso, sua
individualidade, realçando “assim a realidade concreta das sonoridades e dos
dialetos a heterogeneidade das competências linguísticas dos atores é
admitida” (Lehmann, 2008, p. 252).
O teatro contemporâneo também retraiu a figura da personagem, a qual,
segundo Sarrazac (2017), liberta a figura do intérprete. Sobressai, portanto, a voz
daquele que fala. Nesses tipos de drama “apaixonados pela voz e pelo ouvido”
(Sarrazac, 2017, p. 67), a representação torna-se um lugar de articulação entre a
dimensão fisiológica da voz e o que se assemelha a uma poética da voz.
A utilização e a experimentação de novos espaços acústicos para a cena se
revelaram basilares para a abordagem da voz. A realização de espetáculos em
A voz na cena contemporânea: a preparação vocal em montagens brasilienses de peças curtas de Beckett
Valéria Cristina Machado Rocha
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-18, jul. 2023
8
espaços não convencionais, como galpões, armazéns ou, em outros casos,
espaços reduzidos, exigiu do ator outra perspectiva acerca da utilização da voz. A
apropriação de espaços não convencionais ocasionou ainda outra maneira de
relacionamento com o espectador: a quebra da ilusão cênica – da quarta parede
permitiu que, a partir desse momento, o espectador passasse a desempenhar
papel ativo, e não apenas contemplativo, na cena. Observa-se, portanto, a
obstinação da cena contemporânea em se emancipar por meio de dramaturgias
que promovam experiências estéticas as quais desestabilizam o olhar do
espectador, colocando-o como elemento determinante da construção cênica.
O teatro contemporâneo e novos modos de acionamento de
pedagogias da voz para a cena
Analisar as revoluções ocorridas na cena teatral torna-se imprescindível para
o desenvolvimento de pedagogias vocais, pois tais transformações revelam como
a figura do intérprete modificou-se, o que por conseguinte alterou também sua
relação com a voz em performance. Esse fenômeno, consequentemente, exige
outras abordagens para metodologias do ensino de voz. “A contaminação entre as
artes, os textos, as culturas e as geografias foi considerada o ponto de partida para
a desfronteirização do trabalho do ator, entendido como intérprete de práticas
híbridas.” (Fernandes, 2010, p. 200).
Tal pluralidade impele a árdua tarefa de afirmar técnicas vocais que
abarquem as novas exigências para a cena. Nesse sentido, faz-se oportuno
desenvolver processos pedagógicos nos quais são desenvolvidas e potencializadas
as características intrínsecas do intérprete, prezando por sua sensibilidade e sua
percepção, possibilitando-o percorrer e se integrar à cena.
Os estudos práticos com a voz abrem-se, portanto, como um campo
fértil para o trabalho sobre si. Um caminho de transformação, seja em
um trabalho de refinamento pessoal através da voz ou associado ao
discurso, no plano artístico ou terapêutico, pois nela se conjectura uma
potência de integração (Montenegro, 2019, p. 33).
Em um contexto tão vasto, é pertinente destacar a individualidade do
intérprete consciente de seu processo e de seu desenvolvimento vocal. Conforme
aponta Montenegro (2019, p. 33), “isso coloca-se para o ator como necessidade de
A voz na cena contemporânea: a preparação vocal em montagens brasilienses de peças curtas de Beckett
Valéria Cristina Machado Rocha
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-18, jul. 2023
9
reconhecer e refinar o acesso aos elementos estruturantes de sua expressividade”.
Torna-se, portanto, indispensável desenvolver modos de acionamento da voz que
perpassem camadas sensoriais as quais revelem o encontro da voz com as
particularidades de cada indivíduo de modo a potencializá-lo, tornando-o atento
para a trajetória de sua voz e seus percursos dentro do corpo, oportunizando
processos, e não apenas a eficiência de sua voz.
Analisar estudos e conceitos da teatralidade contemporânea possibilita
desvelar fatores determinantes para compreender as transformações que os
métodos de ensino nas artes cênicas, especificamente o da voz, vêm sofrendo, de
profícuas revoluções. Elas anunciam práticas que visam à autonomia do indivíduo
e apontam para uma mescla de técnicas que surgem não apenas para preparar o
intérprete, mas como meio para a liberação da voz, possibilitando a este conhecer-
se através de uma diversidade de procedimentos.
A voz nas peças curtas de Samuel Beckett
A partir dessa contextualização da voz na cena contemporânea, compartilho
minhas experiências como atriz e preparadora vocal do espetáculo
Resta pouco a
dizer
8
, encenado inicialmente em Brasília, em meados de 2009, seguindo
temporada em diversos estados até 2017. A montagem continha peças curtas do
autor irlandês Samuel Beckett, além de performances autorais, que ao longo dos
anos foram sendo adaptadas, originando versões variadas. Da mesma forma, a
seleção dos textos também foi se alterando ao longo dos anos.
Cabe destacar que as peças escritas nesse período, principalmente em
Beckett, retratam o pós-Segunda Guerra Mundial e destacam a
incomunicabilidade e a fragmentação física e emocional do ser humano. Ademais,
as peças curtas de Samuel Beckett são radicais e verticalizam e transbordam
experimentações com a linguagem cênica, colocam o intérprete em constante
estado de atenção e vão além da impotência, da espera e da inação de sua famosa
dramaturgia
Esperando Godot
(escrita em 1953), na qual dois personagens,
Vladimir e Estragon, passam toda a trama esperando por alguém, Godot, que
8
O espetáculo
Resta pouco a dizer
foi dirigido por Adriano e Fernando Guimarães, diretores e encenadores de
Brasília. O projeto participou de festivais nacionais e internacionais.
A voz na cena contemporânea: a preparação vocal em montagens brasilienses de peças curtas de Beckett
Valéria Cristina Machado Rocha
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-18, jul. 2023
10
nunca vem.
Em um primeiro contato com as peças curtas de Beckett, evidenciam-se
talvez as exigências de suas rubricas. Em algumas obras, o autor estabelece o
ritmo das vozes e as variações tonais das falas das personagens, além da
velocidade do caminhar dos intérpretes e até mesmo o desenho de luz do
espetáculo. Em Beckett, as rubricas funcionam como um roteiro detalhado, como
pode ser visto neste trecho da peça Come and go, escrita em 1965:
Personagens: (
Idades indeterminadas
)
FLO
VI
RU
Nota: Saídas e entradas lentas, sem som ao caminhar.
Nota: Vozes- Tão baixas quanto forem possíveis de serem ouvidas. Sem
entonações, a não ser pelos três “Ohs” e pelas duas linhas que seguem.
Sentadas uma ao lado da outra da direita para a esquerda FLO, VI e RU.
Muito eretas, olhando para frente, mãos cruzadas sob o colo. Silêncio.
VI: Quando nós três nos encontramos pela última vez?
RU: Vamos ficar em silêncio. [
Silêncio. Saída Vi pela direita. Silêncio
.]
FLO: Ru.
RU: Sim.
FLO: O que você acha de Vi?
RU: Eu vejo pouca mudança. [
FLO move-se para o centro, sussurra ao
ouvido de Ru. Chocada
.] Oh! [
Elas se entreolham. FLO coloca o dedo sob
os lábios
.] Ela não percebe? (Beckett, 2021, p. 155).
Come and go
. Atrizes: Valéria Rocha e Camila Evangelista.
Direção: Adriano e Fernando Guimarães. Foto: João Telles.
A voz na cena contemporânea: a preparação vocal em montagens brasilienses de peças curtas de Beckett
Valéria Cristina Machado Rocha
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-18, jul. 2023
11
O detalhamento das rubricas pode fazer crer que as intérpretes apenas
obedecem às exigências do texto, afinal Beckett descreve o ritmo de fala, o silêncio
ao caminhar e a iluminação. E a criação das intérpretes, onde se encontra? Como
é estabelecido o contato delas com textos estruturados dessa maneira? Para
responder à questão, narro minha experiência como intérprete e preparadora vocal
da peça
Come and go
. Durante os primeiros ensaios, tentamos descobrir quem
eram as três mulheres. Chegamos a especular o que teria acontecido com cada
uma delas, mas eram apenas superstições, sem fundamentação no texto
dramático. Beckett apaga as trilhas do significado em suas peças curtas,
permanecendo em cena vozes que se relacionam com a materialidade da cena:
nesse caso, o vazio, a penumbra, a solidão e, talvez, a morte. As três mulheres
estabelecem um diálogo entre si que é constantemente interrompido. As falas são
curtas e monótonas, dão um aspecto cíclico aos diálogos e causam a sensação de
elas estarem em uma espécie de limbo, em um lugar indeterminado; a sensação
que evoca é um eterno
looping
, repetindo-se constantemente tanto o movimento
de cena quanto o texto.
Não pensamos na criação vocal das personagens por suas características
psicológicas, uma vez que o texto não menciona qualquer traço de distinção de
personalidade. Pelo contrário, nos esforçamos para falar de maneira idêntica, o
que exigiu uma conexão física e de ritmo, tom e cadência. Falávamos lenta e
pausadamente. O resultado ao longo dos ensaios foi que nossas vozes se
misturavam a ponto de ficar difícil discernir qual das atrizes estava falando.
Ainda acerca de Beckett e sua influência para o teatro contemporâneo, em
1972 o dramaturgo radicaliza e apaga ainda mais as personagens, explodindo a
experimentação cênica por meio da voz. Em seu pequeno texto
Not
I (de 1973), o
autor deixa o espaço cênico mergulhado em escuridão. Conforme as rubricas do
texto, a dois metros e meio do limite do palco encontra-se a intérprete, iluminada
frontalmente e inteiramente vestida e pintada de preto, restando apenas uma
boca sem gênero definido que, incessante e desesperadamente, fala de modo
muito rápido, sem parar, em uma espécie de monólogo verborrágico.
Trata-se de um fluxo contínuo no qual se notam, por meio de fragmentos e
repetições, as memórias e lembranças de uma senhora de 70 anos que
A voz na cena contemporânea: a preparação vocal em montagens brasilienses de peças curtas de Beckett
Valéria Cristina Machado Rocha
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-18, jul. 2023
12
aparentemente viveu solitária e melancolicamente após ter sido abandonada por
seus pais. Além disso, todo o texto é escrito de forma corrida e separado por
reticências, o que por vezes sugere que a personagem está formando seus
pensamentos de maneira confusa e sem coesão, convidando o espectador a
entrar no subconsciente dessa boca que fala e que não pode parar.
Mais uma vez, a trama da história é esgarçada, extrapolando os limites
cênicos e revelando uma boca sedenta, que ora grita, ora ri de desespero,
enquanto narra sua história, dando a impressão de que se perdeu em um espaço
vazio indefinido, condenada a falar pela eternidade. Ri de si mesma? De sua própria
condição? As respostas podem ser distintas, mas é inegável que a peça perturba
pelo rigor da presença da voz em cena, da língua da intérprete, que se personifica,
parecendo transformar-se em um ser à parte, como uma serpente a hipnotizar o
espectador, pronta para se libertar e saltar em direção à plateia, enquanto seus
dentes brancos e lábios negros se transformam em margens ou molduras para
que o som de sua voz reverbere pelo espaço.
Not I
. Atriz: Billie Whitelaw. Imagem retirada de vídeo no
YouTube
.
A boca clama para que tudo acabe, pede para que ela mesma pare de falar,
enquanto é atormentada por um zumbido incessante. No entanto, algo superior a
ela a faz continuar. Em
Not I
, a voz toma o espectador por meio de uma variada
sucessão de sensações, levando-o a construir imagens díspares e desconexas
através do som da voz. O que se destaca na peça e seduz o espectador é a
experiência que a voz produz, sendo por vezes opressiva, mas hipnótica,
promovendo uma experiência singular e individual.
É justamente por seu enigma que a estranheza da peça se destaca. A
A voz na cena contemporânea: a preparação vocal em montagens brasilienses de peças curtas de Beckett
Valéria Cristina Machado Rocha
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-18, jul. 2023
13
personagem vaga pela eternidade através de sua voz, desesperada. Exausta de sua
existência, libera sua energia em um fluxo verborrágico alucinatório, como pode
ser observado neste trecho da peça:
o—... o quê? o zumbido?... sim... o zumbido o tempo todo... assim
chamado... tudo aquilo junto... imagine! o corpo todo como se (tivesse)
ido... a boca... lábios... bochechas... mandíbulas... nunca... o quê?...
língua? sim... lábios... bochechas... mandíbulas... língua... nunca parados
um segundo... a boca em chama... fluxo de palavras... em seu ouvido...
praticamente em seu ouvido... sem captar a metade... nem um quarto...
nenhuma ideia do que ela está dizendo... imagine!... nenhuma ideia do que
ela está dizendo!... e não pode parar... sem parar... (Beckett, 2021, p. 362).
O apagamento da personagem, assim como a importância dada à voz,
também pode ser conferido na peça curta
Play
(de 1963), a qual se inicia com o
movimento de luz dos holofotes. Ao acender das luzes, apresentam-se para o
público três urnas idênticas, com cerca de um metro de altura, no interior das
quais os atores ficam sentados sem se moverem durante toda a apresentação.
Assim como
Come and go
, em
Play
o espaço onde a ação cênica acontece é
indefinido (como ocorre em várias outras obras do autor), podendo sugerir um
limbo ou outra dimensão que reiteradamente vai se acinzentando, como se
evaporasse e sumisse no vazio.
Em
Play
, sobram visivelmente apenas três cabeças falantes, que, segundo
consta nas rubricas do texto, devem ser rostos impassíveis, tão perdidos na idade
e no aspecto que parecem parte das urnas, sendo um homem (H), sua mulher (M1)
e sua amante (M2). Além disso, conforme as rubricas da peça, as vozes não devem
apresentar mudanças tonais, a não ser quando indicadas pelo texto. Para mais, as
falas devem ser ditas de forma vertiginosamente rápida ao longo de toda a peça
e devem responder instantaneamente ao projetor de luz quando este se dirige
especificamente para o rosto de determinada personagem.
A história narra um triângulo amoroso, destacando as inseguranças das
personagens e o ciúme, assim como a infidelidade e traição por parte do homem.
A trama poderia a priori ser um tema muito comum para uma peça de teatro. No
entanto, o que se destaca em
Play
não é o que está sendo dito, e sim
como
isso
se desenvolve. É uma dramaturgia completamente estraçalhada, que não segue
uma ordem aristotélica e apresenta diálogos misturados e embaralhados, o que
A voz na cena contemporânea: a preparação vocal em montagens brasilienses de peças curtas de Beckett
Valéria Cristina Machado Rocha
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-18, jul. 2023
14
torna a história fragmentada, além da potência das vozes em cena, as quais criam
mais uma vez musicalidade e tensão quase hipnóticas.
Ademais, o ponto de vista de cada uma das personagens é entrecortado pelas
falas das outras. ainda a presença constante do projetor de luz, que ao longo
da peça se transforma em uma espécie de personagem, pois, além de dialogar
com as demais, outorga o direito de falarem (ao iluminar os rostos) ou impede a
fala (ao deixar os rostos no completo escuro).
Assim, se em um primeiro momento as personagens relatam suas histórias
e suas frustrações amorosas, em outro passam a questionar sua própria
existência, do mesmo modo que divagam sobre a materialidade da incidência da
luz sobre sua cabeça, revelando um imbricado jogo entre representação e não
representação com os elementos físicos do teatro. No início da peça, ouvem-se
as três personagens:
Ao levantar a cortina, a escuridão é total. Cinco segundos.
Projetor fraco sobre os três rostos simultaneamente. Vozes fracas quase
ininteligíveis. M2, H, M1 simultaneamente.
M1 É... Estranho, escuridão ideal, e quanto mais escuro, pior, até a
escuridão total. Enquanto durar, está tudo bem, mas de chegar, a hora
chegará. Você vai ver, você vai me abandonar. Tudo ficará escuro,
silencioso, terminado, obliterado.
M2 Sim, é claro, um pouco perturbada, muitos diriam, coitadinha meio
perturbada. Quase nada, só um pouquinho, (
fraco riso esgarçado
), só um
pouquinho, na cabeça. Mas eu tenho minhas dúvidas. Estou bem. Pelo
menos por enquanto. Dou de mim o melhor. Faço o que eu posso.
H É... A paz, era o que se esperava. Tudo acabado, toda a dor, tudo
como se... nunca tivesse existido. de chegar (
soluço
), perdão, apagar
essa loucura, é, eu sei, mas assim mesmo era o que se esperava, a paz...
não simplesmente chegado ao fim, mas como se... nunca tivesse sido.
Os projetores se apagam. Escuridão total, cinco segundos. Fortes
projetores sobre as três caras simultaneamente. Voz normal. M2, H, M1
simultaneamente (Beckett, 2021, p. 297).
A peça rompe com a tradição criada pela representação, pois mesmo
havendo um texto, ele é dito de forma rápida e passa a provocar, pela voz, a
percepção do espectador. Não se trata especificamente de compreender o sentido
de cada palavra dita, o que por vezes é impossível, mas sim de provocar e envolver
o espectador com a voz dos atores, testemunhando o esvaziamento e o
A voz na cena contemporânea: a preparação vocal em montagens brasilienses de peças curtas de Beckett
Valéria Cristina Machado Rocha
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-18, jul. 2023
15
esgarçamento da linguagem. Com isso, Beckett, conforme constata Sarrazac
(2017), busca a inconstância e a impossibilidade de ação para suas personagens.
A incomunicabilidade é o fator principal de estranhamento da peça,
mostrando que as personagens, mesmo não tendo motivos para continuar suas
ações, ou mesmo sua existência, permanecem perpetuamente em um vazio
cinzento. Isso desestabiliza o espectador, que é tomado pelas vozes apresentadas
em cena. São elas que ocupam o espaço cênico, dilacerando a égide da razão e
da busca incessante do homem pela razão.
Isto posto, observa-se no teatro contemporâneo a tendência das
multiplicidades vocais a desestabilizar o corpus da personagem (Montenegro,
2019). Ou seja, há uma desestruturação na criação de personagens, o que as torna
cada vez mais irresolutas.
A preparação vocal nas peças curtas de Beckett
À vista da discussão levantada neste artigo acerca do teatro contemporâneo
pelas peças curtas de Samuel Beckett, faz-se oportuno refletir: como estabelecer
uma prática vocal em uma cena multifacetada? Que treinamento deve ser
proposto aos intérpretes? De modo a responder a essas e outras questões,
apresento as transformações adotadas em procedimentos pedagógicos ao longo
de anos de pesquisa em voz, como professora e preparadora vocal. Cabe destacar
que existe uma diversidade de procedimentos pedagógicos que oportunizam ao
intérprete relacionar-se com sua voz. Isto posto, apresento aqui um modo pessoal
de trabalho, no qual constatei a potência em afirmar as características individuais
dos intérpretes, promovendo sua autonomia. Se antes carregava a crença em
práticas e métodos em que utilizava-se a repetição de maneira a aumentar a
potência
e a
eficiência
da voz em cena, ou ainda a aplicação de métodos criados
por outros preparadores vocais, hoje descobri que em um mundo fragmentado e
caótico como este em que estamos vivendo, faz-se oportuno despertar a
sensibilidade do intérprete, estimulando suas capacidades de percepção.
Lembro-me, durante o processo de montagem de
Play
, de como eram
debatidas as estratégias de como preparar o trio de intérpretes para o desafio
A voz na cena contemporânea: a preparação vocal em montagens brasilienses de peças curtas de Beckett
Valéria Cristina Machado Rocha
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-18, jul. 2023
16
proposto pela peça. Não pensávamos ou discutíamos especificamente sobre a
construção de personagens, no sentido de representar ou criar um corpo ou uma
voz específicos para cada uma, definir quem eram, como eram etc. Em vez disso,
treinávamos diariamente para
potencializar a voz
, realizando exercícios
respiratórios ritmados com contagem, de modo a expandir em um curto período
de tempo a potência inspiratória-expiratória.
Ainda acerca da respiração, fazíamos alguns exercícios físicos para as
musculaturas abdominais, além de exercícios articulatórios, com o objetivo de
aumentar a
eficiência
da voz. Por fim, fazíamos exercícios de projeção vocal, nos
quais treinávamos vocalizes e escalas musicais com a sonoridade das vogais
abertas (a, é, ó). Explorávamos as ressonâncias dos seios paranasais, utilizando
técnicas vocais para modificar os padrões habituais de cada um, ambicionando
maior brilho e potência em cena.
Em
Play
, cada consoante e vogal é fundamental e essencial para o processo.
Portanto, de modo a contemplar esse desafio, inventamos trava-línguas para
praticar e auxiliar o desenvolvimento da voz em cena. De modo geral, os atores
eram guiados por meio da técnica, era algo exterior a eles. Logo, eram também
reiteradamente
corrigidos
após as apresentações para que nos treinos seguintes
pudessem aprimorar aquela técnica, buscando um ideal de fala em cena.
Analisando por outros parâmetros, acredito que naquela época olhava para
os atores como atletas, que precisavam exercitar-se e executar tarefas. Pensava
constantemente em estratégias para intensificar sua performance em cena. Havia,
por assim dizer, um ideal para a voz, e metas deviam ser alcançadas. A cada nova
apresentação, sempre estive presente como preparadora vocal, viabilizando e
criando meios de prepará-los.
No contexto atual, acredito, sim, que peças como
Play
e
Not I
de fato exigem
muita habilidade técnica dos intérpretes. No entanto, atualmente não os olharia
como atletas, afinal são e continuam sendo intérpretes, que possuem suas
histórias assim como relações individuais com a voz. Dessa forma, não proporia
treinos respiratórios ritmados, nos quais geralmente o foco é dado à inspiração
diafragmática, expandindo as costelas, ampliando e fortalecendo os apoios etc. Na
A voz na cena contemporânea: a preparação vocal em montagens brasilienses de peças curtas de Beckett
Valéria Cristina Machado Rocha
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-18, jul. 2023
17
verdade, o reflexo de uma inspiração tida como ideal acontece quando um
esvaziamento apropriado dos pulmões, ou seja, na qualidade da expiração,
conforme também afirma Souchard (1989). Isto posto, proporia relaxamentos e
exercícios de dança, para que a respiração dos intérpretes se alterasse
naturalmente, conforme a necessidade e os movimentos ocorressem e, a partir
dessa motivação, auxiliaria a atenção para as mudanças que decorressem, de
modo a estimular a percepção do movimento, assim como a busca por modos de
acioná-lo. Com isso, despertaria sua consciência sobre as musculaturas envolvidas
e sobre como seu corpo encontra determinadas dinâmicas respiratórias.
Acerca das repetições utilizando trava-línguas para exercícios de articulação,
substituí esse processo, pois, como o próprio nome diz, ele impede/dificulta a
expressão da palavra, podendo deixar o intérprete frustrado por não conquistar
determinadas sequências rítmicas, sendo demasiadamente racional. Sobre a
articulação, atualmente busco desenvolver com os atores músicas que eles
próprios improvisam, de modo livre e intuitivo. Quanto ao fortalecimento muscular,
a dança pode ser um meio de aumento de força e resistência.
Para concluir, acredito que é necessário despertar nos intérpretes a confiança
e a autonomia, para que não dependam exclusivamente de uma preparadora
vocal. Acredito que quando o intérprete descobre por si e em si os trajetos para
sua voz em seu corpo, esta torna-se mais perceptível. Por conseguinte, facilita
revisitar e retomar determinados exercícios. Em suma, a evolução do teatro
contemporâneo trouxe consigo uma ampliação das possibilidades criativas e uma
abordagem mais holística para as artes cênicas, com a voz e o corpo do intérprete
assumindo papel fundamental na construção da cena teatral.
Referências
BECKETT, Samuel.
Teatro completo
. São Paulo: Edições 70, 2021.
LEHMANN, Hans Thies.
Teatro pós-dramático
. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo.
Sala
Preta
, São Paulo, v. 8, p. 197-210, 2008.
A voz na cena contemporânea: a preparação vocal em montagens brasilienses de peças curtas de Beckett
Valéria Cristina Machado Rocha
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-18, jul. 2023
18
FERNANDES, Silvia.
Teatralidades contemporâneas
. São Paulo: Perspectiva, 2010.
MONTENEGRO, Mônica de Almeida Prado.
O corporal: concepções e prática. Uma
abordagem de trabalho de voz para o ator
. 2019. Tese (Doutorado em Pedagogia
do Teatro) Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2019.
SARRAZAC, Jean Pierre.
Poética do drama moderno
. São Paulo: Perspectiva, 2017.
SOUCHARD, Philippe Emmanuel.
Respiração
. São Paulo: Summus, 1989.
SZONDI, Peter.
Teoria do drama moderno
. São Paulo: Cosac Naify, 2001.
RYNGAERT, Jean-Pierre.
Para ler o teatro contemporâneo
. São Paulo: Martins
Fontes, 2013.
Recebido em: 24/04/2023
Aprovado em: 02/07/2023
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br