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O que devemos dizer?
A recriação da peça didática brechtiana em
Oratorium
,
do She She Pop
Artur Sartori Kon
Para citar este artigo:
KON, Artur Sartori. O que devemos dizer?
A recriação da peça didática brechtiana em
Oratorium
,
do She She Pop.
Urdimento
Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 47, jul. 2023.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573102472023e0207
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O que devemos dizer?
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, do She She Pop
Artur Sartori Kon
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-25, jul. 2023
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A recriação da peça didática brechtiana em
Oratorium
, do She She Pop
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Artur Sartori Kon
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Resumo
O artigo analisa a peça
Oratorium
, do grupo alemão She She Pop, e como ela busca
retomar o modelo brechtiano da Lehrstück para uma cena política contemporânea,
discutindo um dos temas mais urgentes da sociedade berlinense do seu tempo: a
questão da moradia. Assim observamos como certo teatro pós-dramático e cômico
encontra no “não-saber” um potencial emancipatório.
Palavras-chave
: Teatro alemão. Brecht. Estética e política.
What should we say?
Recreating Brecht’s learning plays in She She Pop’s
Oratorium
A
bstract
The article analyzes the play
Oratorium
, by the German group She She Pop, and how
it seeks to bring the Brechtian model of Lehrstück into a contemporary political
scene, discussing one of the most urgent themes of Berlin society today: the
question of housing. Thus, we examine how certain post-dramatic and comic theater
finds in “not-knowing” an emancipatory potential.
Keywords
: German theater. Brecht. Aesthetics and politics.
¿Qué debemos decir?
La recreación de la pieza didáctica brechtiana en
Oratorium
, de She She Pop
Resumen
El artículo analiza la obra de teatro
Oratorium
, del grupo alemán She She Pop, y
como busca actualizar el modelo brechtiano de Lehrstück para un escenario político
contemporáneo, al discutir uno de los temas más urgentes de la sociedad berlinesa
en su tiempo: la cuestión de la vivienda. Así, observamos cómo cierto teatro
posdramático y cómico encuentra en el “no-saber” una potencialidad emancipatoria.
Palabras clave
: Teatro alemán. Brecht. Estética y política.
1
Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Diego Fernandes Garcia Moschkovich,
mestre em Letras (Literatura e Cultura Russa) pela Universidade de São Paulo (USP).
2
Pós-doutorando em Artes Cênicas pela Universidade de o Paulo (USP). Bolsista da Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), processo 2021/13778-6. Doutor em Filosofia pela
Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Filosofia pela USP. Bacharel em Artes Cênicas pela Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP). Ator, dramaturgo e pesquisador na área de Estética e Filosofia do Teatro.
arturskon@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/4128124014358230 https://orcid.org/0000-0003-1282-4800
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Ao debater as relações entre estética e política no teatro, pode parecer que
estamos condenados a um eterno retorno do mesmo velho embate: de um lado,
a defesa de uma produção estética engajada (segundo moldes mais ou menos
estabelecidos e conhecidos); do outro, os que advogam certa liberdade da
atividade artística em relação a temas e formas pré-definidos (e que não deixaria
de conter também um compromisso político em seus próprios termos). Mas não
seria essa teimosa altercação reflexo de outra, exterior ao campo mais restrito do
teatro?
Fala-se muito da dificuldade de “união da esquerda” diante da ascensão da
extrema-direita. É o que enfrentam Edemilson Paraná e Gabriel Tupinambá (2022,
p.29), insistindo que “não existe uma origem comum para os diferentes ímpetos
emancipatórios que levam o nome de ‘esquerda’”, e portanto não “um espaço
homogêneo que tende naturalmente para a comunização ou para a harmonia”. À
medida que cada lado se “como uma agência de transformação social que é
atrapalhada pelo pacto silencioso que as outras frentes de luta têm com a
reprodução do mundo capitalista” (Paraná e Tupinambá, 2022, p.79), gasta-se
tempo e energia denunciando o oponente pelos fracassos e derrotas. No limite,
ambas as posições paralisam a busca por novas soluções, contentando-se com
um saber dado, não questionado, e assim se transformam no que o outro lado
acusa: suas próprias caricaturas (ou seja, reduzir o outro a uma caricatura parece
ser o caminho mais seguro para sofrer o mesmo processo).
Perante os impasses de uma política forçada de homogeneização, talvez mais
frutífero do que escolher lados seja tomar como ponto de partida o impasse
central à política do nosso tempo, traduzido pelas palavras do filósofo Jean-Luc
Nancy (2016, p.36):
o comunismo não pode mais ser nosso horizonte insuperável. Isso, de
fato, ele não é mais. Por outro lado, também não superamos nenhum
horizonte. Tudo se encaminha muito mais no sentido da resignação,
como se o desaparecimento, a impossibilidade ou a condenação do
comunismo formasse o novo horizonte insuperável. Essas reversões são
costumeiras; jamais criaram qualquer movimento. [...] Por essa razão, ao
declarar que o comunismo não é mais o nosso horizonte insuperável, é
preciso também declarar, com o mesmo vigor, que uma exigência
comunista comunica o gesto pelo qual devemos ir mais longe do que
todos os horizontes.
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Eis o grande dilema, do qual não é possível fugir, mas que também
precisamos admitir que ainda não temos condições de resolver. Mas, como alerta
o filósofo Rodrigo Nunes (2022, p.244), “é a forma de perguntar,
mais que a
resposta, que é capaz de produzir unidade
”, isto é, “‘produzir unidade’ é algo que
se faz no processo de fazer-se perguntas coletivamente inclusive ou
especialmente aquelas que nos permitem entender nossas diferenças –, e não
algo a se tentar fazer uma vez que, privadamente, tenhamos achado a resposta”.
3
Por isso mesmo, pode ser que se revele necessário como uma etapa
provisória, mas importante na reinvenção dos arranjos das esquerdas a invenção
de espaços coletivos em que possamos exercitar a formulação dos nossos
próprios problemas” – e não seria “irônico descobrir que ‘comunismo’ é um nome
que vai ganhar realidade histórica no século XXI primeiro como um método de
tratamento das contradições “não-antagônicas” dentro da esquerda, antes de se
constituir como uma estratégia de transformação da realidade como um todo?”
(Paraná e Tupinambá, 2022, p.53).
Ora, “conseguir o que a gente deseja, mas não o que a gente quer, é a própria
forma da comédia” (Paraná e Tupinambá, 2022, p.53), possível caminho para
escapar do impasse trágico, como buscaremos mostrar. Falando nesses termos,
talvez não seja tão inusitado buscar um espaço coletivo de formulação de
problemas em uma obra teatral.
Oratorium: Kollektive Andacht zu einem
wohlgehüteten Geheimnis
(“Oratório: meditação coletiva sobre um segredo bem-
guardado”), peça estreada em 2018 pelo grupo alemão She She Pop, faz Brecht
conviver com o teatro pós-dramático, une a narração épica ao depoimento
pessoal, produzindo um curto-circuito capaz de reacender uma faísca de vida no
debate cansado mais que solucioná-lo.
3
. Esse ponto, que tentarei desenvolver nas páginas seguintes, relaciona-se intimamente com a pesquisa de
pós-doutorado que estou desenvolvendo atualmente, intitulada “Uma política cômica do não-saber no
teatro contemporâneo: O poder das besteiras teatrais”. Naturalmente apenas uma parte das reflexões e
conclusões poderão ser apresentados aqui. Por isso convido quem tiver interesse em aprofundar essas
questões a procurar e ler mais quatro artigos que publicarei nos próximos meses, onde buscarei ampliar a
discussão a partir de quatro outras obras teatrais estreadas por grupos de diversos países nos últimos anos,
além de um texto publicado que explora alguns temas semelhantes em contexto brasileiro (ver Kon,
2022).
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Quem é “nós”?
Entramos na sala e nos sentamos, as luzes se apagaram, mas ninguém ocupa
o palco. Ao invés disso, é projetada em letras amarelas a frase “um membro da
plateia em voz alta”, seguida de dois-pontos. Logo surge em letras brancas a
fala desse espectador hipotético: “O que está escrito aqui deve ser lido em voz
alta/ Parte em solo parte em coro/ Quem deve falar será previamente indicado”.
Logo se nota que a interatividade permitida, ou melhor, requerida pelos criadores
é bem limitada: a fala seguinte, atribuída a “Todos”, é: “Compreendemos. Vamos
lá. O que devemos dizer?”. Não espaço para elaborar réplicas próprias, se
pode seguir com o roteiro dado ou calar (e deixar que ele siga sem sua
participação).
4
O She She Pop tornou-se conhecido pelos expedientes que “testam os limites
da comunicação” no “espaço protegido do teatro”, criando “um laço de
comunidade com os espectadores, que às vezes são apenas testemunhas
passivas, mas mais frequentemente coatores”, convidados a
game shows
ou a
atuar em cenas novelescas junto com os integrantes do grupo, ou até mesmo
instados a agredi-los (König, 2018). Segundo a performer e teatróloga Annemarie
Matzke (2005, p.104),
A história do She She Pop é uma história de questionamento e interação
do público [...]. O espectador foi integrado como componente visível da
configuração experimental do teatro. O encontro com o público é
encenado como confronto de igual para igual. Trata-se da tentativa de
envolver todos os presentes em uma situação real. Tentativa de
desconstruir hierarquias: uma decisão política.
Como vimos, “embora
Oratorium
transforme espectadores em agentes, a
performance os priva de qualquer autonomia pela natureza prescrita das falas”
(Potter, 2019). Mas não se trata aqui de criticar a obra pela falsa interação, um
autoritarismo disfarçado de horizontalidade, pois é justamente essa falsidade que
a peça explicita,
comicamente
. Que a provocação é aceita de bom grado parece
ser confirmado pelos risos quase constantes da plateia durante sua participação.
4
. Pude assistir à apresentação de
Oratoriu
m no Theatertreffen (mostra anual de dez peças eleitas as melhores
do ano no mundo germanófono, em Berlim) de 2019. Contudo, para o relato a seguir, baseio-me também na
gravação da peça, gentilmente cedida pelo grupo.
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Esse riso e essa comicidade nos guiarão a partir de agora. A graça parece
estar sobretudo no modo como o dispositivo cênico elaborado pelo She She Pop
propõe dividir a plateia em coros menores, forçando espectadores individuais a
reunirem suas vozes em grupos com identidades nitidamente delimitadas a partir
de alguns marcadores sociais que serão relevantes para a discussão proposta a
seguir: “o coro de homens sem renda fixa” ou “o coro de mães sem previdência
social”; o “coro dos ricos” e o “coro dos que estão bem de vida” (sem que seja
explicada a diferença entre eles), o “coro dos aposentados bem situados” e o “coro
dos aposentados mal situados”. Ademais, cada pequeno coletivo terá de dizer o
texto que lhe é atribuído, mas que não necessariamente corresponde ao que
gostariam de comunicar sobre si. Os “que estão bem de vida”, por exemplo,
reconhecerão a contradição: “O fato de que fomos manipulados e estamos falando
este texto que não escrevemos de modo algum significa que não sejamos
solidários, muito pelo contrário”.
A performer Lisa Lucassen (2018, p.11) recusa idealizar a interatividade: “a
responsabilidade pela noite é compartilhada, mas não simetricamente”, que “o
espaço de ação do espectador é limitado”, e a relação entre performers e público
“não é igualitária”, chegando a ser descrita como “uma versão teatral do pacto
sadomasoquista” (ou seja, a desigualdade “é negociada” entre as partes). Ora,
interessa justamente essa relação “tão concentrada e complexa e excitante que
pode servir como modelo para outras relações de poder assimétricas e que
precisam de esclarecimento na sociedade”; o encontro entre artistas e plateia se
torna um “teste experimental de um confronto público” (Lucassen, 2018, p.8), e
não algum tipo de situação “utópica” ou “democrática”. A complexidade e amplidão
de possibilidades é ressaltada pela performer:
Naturalmente pode-se pertencer a mais de um grupo e falar os textos
correspondentes. Talvez também alguém saia do grupo que tinha
escolhido, porque se conta que não está tão bem de vida assim e
isso por sua vez talvez seja notado por alguém sentado próximo. Cada
texto é falado ora por mais, ora por menos pessoas. Em alguns textos o
público a fica totalmente calado, frequente numa fala atribuída aos
“aposentados mal situados”, por exemplo. Isso não torna a apresentação
pior, pois fica explícito para todos que esse grupo não está representado
fisicamente, e por outro lado os presentes ainda podem ler (Lucassen,
2018, pp.26-7).
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No caso de
Oratorium
, o embate se dá desde o tema da propriedade privada,
“isto é, um tema que divide sociedades, separa amigos e representa um grande
tabu: a maioria das pessoas não gosta de falar sobre o que têm ou não têm”, e
quando colocados nessa situação “pobres tanto quanto ricos ficam com vergonha”
(Lucassen, 2018, p.26). A palavra parece central para a produção do grupo, ao
menos segundo a dramaturgista Aenne Quiñones (2018, p.117): “Onde muitos
desviam o olhar ou perdem a compostura por vergonha, é ali que se deve olhar
melhor. [...] O She She Pop usa o constrangimento como meio eficaz de minar
clichês sociais e abrir espaços de liberdade”, mantendo por isso “o gosto pelo
conflito e a atitude ofensiva”.
Nesse mesmo sentido, é cômico o modo como o próprio dispositivo é
tematizado e problematizado em algumas das falas projetadas no palco vazio,
como quando as “mães sem previdência” dizem que “esperam ter bons textos”
para enunciar, ou quando “todos” devem confessar que não estarem
“acostumados a falar em coro”, a que outro coletivo, o do She She Pop, responde
(e percebemos que seus integrantes também estão entre nós, sentados na plateia,
vestidos como nós, à paisana) que “não faz mal”. Mais adiante, um “coro de
alemães orientais que tiveram que frequentar comícios em massa” deverá dizer:
“Temos muita prática em ler textos difíceis que não fomos nós que escrevemos,
podem contar conosco!”; a eles se juntará um “coro de alemães ocidentais que
fizeram a crisma”, que também sabe “decorar tudo”. De fato, se traduzimos o
Andacht
do subtítulo da peça como “meditação” (seguindo a tradução para o
inglês feita pelo próprio grupo), o termo também significa “prece”, “devoção” e
“serviço religioso”, e Lucassen (2018, p.26) nota que, por meio do dispositivo coral
e participativo da peça, “é criado um som que conhecemos do Pai-Nosso
coletivo na igreja”.
Ora, essa autorreflexão não é mera ironia autorreferente, marca de uma
produção que foi descrita como “pós-moderna”. Quando “uma voz cética” é
instada a interromper o fluxo tranquilo da noite e perguntar “Quem é ‘nós’?”,
percebe-se o papel basilar que terá na peça a questão sobre a própria
exequibilidade da tarefa exigida pelas artistas. Pois se há algo incerto no presente
é a possibilidade de se falar na primeira pessoa do plural, superar individualidades
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para alcançar algo de comum para fundar um discurso coral. Como dirá o coro
das “mães sem previdência”, “falamos ao mesmo tempo, mas não somos todos
iguais”, a começar pelas diferenças econômicas entre as integrantes desse mesmo
coro. O “coro dos que estão bem de vida” diz: “não temos mais certeza se
queremos ou podemos falar sobre essas coisas”, e sugere que aceitaria seguir a
conversa sob duas condições: “vamos permanecer anônimos” e “não vamos nos
comprometer com nada”. Mas “uma voz radical” recusará, insistindo que “Esta
noite se fará cisões”. Um coro dos “que têm o coração no lugar certo” diz que
“estamos aqui para juntar tudo o que temos, ver o que isso é, olhar uns aos outros
nos olhos e usar tudo juntos”; mas “os lutadores de classe” insistem que “estamos
procurando um inimigo”, isto é, “os donos do poder” em oposição às “classes
populares, isto é, nós”. um grupo de “desanimados” dirá estar aqui “porque
saímos de nossos apartamentos sem grandes esperanças, simplesmente porque
tinha acabado a cerveja” e “não queríamos ficar sozinhos em casa”. ainda os
“teatrólogos”, os “entusiastas”, os “impacientes”: cada um tem um motivo para vir
ao teatro, seja assistir algo familiar ou testemunhar um acontecimento inaudito.
Essa capacidade de cindir, diferenciar e ao mesmo tempo agrupar indivíduos
isolados é o que move toda a peça. Como observa um crítico (Potter, 2019), “ficarei
sabendo que meu vizinho na plateia é rico e tem uma herança, enquanto ele ficará
sabendo que sou um ‘lutador de classe’ sem renda fixa”,
5
e avalia que essas
revelações “criam certo desconforto entre nós”; assim, “o coletivo é ao mesmo
tempo unido por passagens de texto atribuídas a todos e dividido por suas
situações econômicas únicas”. O que é plenamente consequente em um trabalho
inspirado acima de tudo pela poética teatral de Bertolt Brecht que “nunca
pensou em forma de uniformização, de fusão, de comunidade, de sentimento
coletivo, mas sempre em divisão do público, desmontagem de certezas (até da
própria)”, como nota Hans-Thies Lehmann (2009, p.395). Ora, Lucassen (2018, p.26)
diz que
Oratorium
não é apenas “nossa peça mais brechtiana até hoje”, como
também “resultado de uma longa pesquisa, uma tentativa muito séria” de
recuperar e concretizar a
Lehrstück
ou “peça didática” de Brecht, apesar de o
5
Obviamente não se pode pressupor que todos cumprirão com as regras do jogo “a sério”, mas mesmo a
possibilidade da “mentira” parece interessante para o She She Pop: Qual a sensação de ser do Coro de
Proprietários(as) quando na verdade não se possui nada?” (Gröschner, 2022, p.50)
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conceito ter sido “posteriormente rejeitado” pelo próprio propositor, em meados
dos anos 1930.
Ora, essa rejeição se deu menos por desejo do dramaturgo cuja obra tomou
outros rumos sobretudo devido às limitações impostas pelo exílio forçado após a
ascensão do nazismo, mas que no fim da vida ainda veria a peça didática
A decisão
como modelo para um “teatro do futuro” – do que pela fortuna crítica inicial, que
reverbera até hoje. Como explica Ingrid Koudela (1991, p.1-2), “as análises marxistas
das décadas de 50 e 70 sempre descreveram a peça didática como rua de mão
única ou descaminho”, “fase de transição” superada pela “fase madura do ‘teatro
épico/dialético’”, e por isso tais peças eram relegadas “à margem ou esteticamente
desqualificadas, [...] desprezadas por causa da rigidez da ação dramática, [...]
caracterizadas como ‘megafone do
Zeitgeist
’, ou ‘personificação de ideias’”.
Por trás da rejeição da
Lehrstück
a incompreensão de seu caráter de
“tentativas” (ou “ensaios”) de fazer “teatro sem público”. Opera “outro princípio de
conhecimento” em relação a didáticas tradicionais: não “‘doar’ conteúdos através
de uma relação autoritária entre aquele que ‘detém’ o conhecimento e aquele que
é ‘ignorante’ (Koudela, 1991, pp.99-100), mas o “exame coletivo de um recorte da
realidade de vida dos participantes”, o “experimento” ou “processo de
investigação”, como enfatiza Koudela (1991, p.94). Ou, como afirmou o próprio
Brecht (2019, p.599): “A peça de aprendizagem ensina, na medida em que nela se
atua, e não na medida em que é vista”. Algo que também poderia ser dito da
proposta de
Oratorium
. Como enfatizam Hans-Thies Lehmann e Helene
Varopoulou (2016, p.403), considerando “os aspectos basais do modelo da peça
didática, não é surpreendente ou casual o interesse renovado nelas” quando “hoje
os artistas buscam um teatro de inclinação pós-dramática, um teatro da situação”.
Mas que lembrar também que a peça didática surgiu “em uma situação
histórica na qual uma série de circunstâncias tornavam possível a sua realização”:
“grandes corais e teatros proletários que ansiavam por novas formas e materiais”,
ou ainda “grupos de radioamadores e de
agitprop
que necessitavam realizar seu
trabalho político com meios musicais e teatrais simples”, além de “(ao menos
algumas) escolas que elaboravam uma pedagogia de vanguarda”, e por fim “uma
luta de classes aguçada” e uma consciência de classe “altamente desenvolvida”
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(Koudela, 1991, p.8-9). Eis o ponto fulcral de diferença entre a
Lehrstück
brechtiana
e sua releitura no século XXI. Diferença histórica que leva Jean-Pierre Sarrazac
(2017, p.162) a negar a existência do coro nas dramaturgias modernas e
contemporâneas, exceto ali onde “uma verdadeira comunidade [que] se
converte em autor de uma ideologia, de um combate político ou de uma religião”
– é sintomático que o teatrólogo cite justamente o Partido Comunista no “coro de
controle” da peça didática
A Decisão
, de Brecht.
6
Talvez por isso não seja possível para o She She Pop construir a peça apenas
a partir do dispositivo participativo já descrito. Quando “um impaciente” da plateia
é instado a perguntar “o que estamos esperando?”, a réplica de “todos os demais”
é: “Estamos aqui sentados olhando na mesma direção. E vemos diante de nós um
espaço vazio. Um espaço público. Totalmente intocado”. Uma luz azulada sobe
aos poucos no palco. A “voz cética” de antes (ou outra?) pergunta “quem tem
permissão para subir aí? Quem determina isso?”, lembrando os limites da ação do
espectador. “Todos” respondem: “Não temos certeza. Fomos convidados”. O
cético: “por quem?”, e logo todos: “quem são vocês?”. Eis a ocasião para um novo
coro se apresentar.
Somos alguns de vocês
Os performers pois a peça não abolirá completamente a diferença entre
artistas e espectadores, como queria Brecht (se bem que ele previa que a
Lehrstück
, mesmo dispensando plateia, poderia também valer-se dela [ver Brecht,
2019, p.599]) sobem da plateia ao palco de modo cerimonial, ao som de uma
espécie de hino ao trompete, carregando bandeiras cujo significado não sabemos,
e que são dispostas em mastros sobre o palco para formar o único cenário que
se verá durante toda a peça. O elenco é composto tanto por integrantes do She
She Pop quanto por convidados, atores e não atores que devem representar a
diversidade de situações de moradores de Berlim (em outras cidades ou países,
6
. Fica patente a limitação de Sarrazac à dramaturgia escrita, ignorando a encenação. Mas houve quem
soubesse tornar produtiva a posição (conservadora) do francês, buscando inclusive fora do teatro “a
emergência de múltiplas formas de coralização” que não se encolhem, mas parecem antes “nutrir-se
exatamente da consciência da sua impossibilidade de dizer de forma plena esse comum [...] que, no entanto,
deseja[m], invoca[m], com a mesma intensidade”, como coloca Flora Süssekind (2022, p.13).
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como Bulgária e México, o grupo chamou habitantes locais para integrar o coro
após alguns dias de conversas e ensaios).
7
A transição espelha a própria trajetória
do grupo que, após peças “relacionais”, passou a preferir trabalhar com roteiros
mais fechados, mas transferindo para o próprio palco o diálogo com pessoas
exteriores ao coletivo: a partir de
Testament
(2010), o grupo optou pela relação
previamente ensaiada com não-atores, em encontros “melhor preparados e
melhor encenados”, mesmo perdendo certa “espontaneidade” (Lucassen, 2018,
p.21).
8
Os dez coreutas encaram a plateia, instada pelo mesmo dispositivo de antes
a perguntar: “Quem são vocês?”. Após um breve silêncio, vem a resposta coral:
“Somos alguns de vocês”. Para Lucassen (2018, p.27), “a peça toda é uma conversa
entre o coro treinado no palco e o coro destreinado na plateia”.
9
Quando “um coro
encara um coro”, diz Lehmann (2011, p.214-5), ele “pode funcionar cenicamente
como espelho e parceiro do público”, produzindo ainda um efeito de coletividade:
se “não se requer muito esforço para fazer o público associar o coro com massas
humanas reais, com o povo”, por meio do espelhamento também o público será
instado a questionar “a concepção do indivíduo inteiramente desligado da
coletividade”; assim, podem ser conjurados em cena “fantasmas sociais e anseios
de unificação”.
Mas a resposta não satisfaz o público (ou é o que lhe impõe o dispositivo),
que insiste: “Quem são vocês?” Eis que o coro se fragmenta em diversas
representações particulares, enunciadas por vozes individuais: “falo por todos
aqueles que, vira e mexe, têm que mudar de cidade ou país para encontrar
trabalho”, diz uma mulher; um homem fala “pelos estrangeiros que se mudaram
7
. Tanto Haß (2020) quanto Kuberg (2021) enfatizam o caráter nômade, migrante, do coro ao longo da história
do teatro europeu. Para Kuberg (2021, p.14), o coro é “uma instância do entre”, situado “não apenas entre
pátria e estrangeiro [...], mas também entre o fazer coletivo autônomo e a dependência da ação do sujeito
protagonista, entre homens e deuses e finalmente entre a diegese e a realidade extradiegética do público”.
8
.
Testamento
, provavelmente a peça de maior sucesso do She She Pop (pelo menos até Oratorium), também
foi a primeira a se apresentar no Brasil, em São Paulo, em outubro de 2012. Nela, as performers entravam
em cena acompanhadas dos pais, para refletir sobre afetos, responsabilidades, heranças e conflitos nas
relações familiares.
9
. Essa oposição entre um coro treinado e um destreinado poderia ainda indicar um coro de especialistas e
um coro de amadores, um de conhecedores e um de ignorantes. Mas o “gelerntes Chor” foi tirado pelo She
She Pop da
Peça didática de Baden-Baden
sobre o acordo, onde pode ser justamente um coro de amadores.
A suspensão da diferença entre aqueles que sabem e aqueles que não sabem é um dos pontos a ressaltar
tanto nas
Lehrstücke
quanto em
Oratorium
.
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para a Alemanha por amor”; uma integrante do She She Pop fala “pelos alemães
ocidentais que se mudaram para Berlim oriental nos anos 90” enquanto outra
coreuta fala “pelos alemães orientais expulsos de Prenzlauerberg e Pankow”
(bairros do Leste que têm experimentado forte gentrificação devido ao interesse
da juventude boêmia, ligada aos setores culturais). A performer Lisa Lucassen fala
“pelas filhas da Alemanha Ocidental, que podem arcar com o fracasso econômico
no trabalho artístico porque, no pior dos casos, podem contar com recursos da
família”, enquanto alguém fala “por todos os estudantes que financiam os próprios
estudos”, e uma terceira voz “por aqueles que, além de si, têm de prover para
outros também”. As diferenças e disputas são cada vez mais ínfimas, até risíveis:
“falo com sotaque francês, mas não falo pelos franceses, pois sou belga”; “não falo
pelos estrangeiros que acham que Berlim é pobre mas sexy”. A profusão de
representatividades gera cacofonia, todos tentam falar ao mesmo tempo. Teria
Sarrazac razão afinal? Na “falta de uma comunidade autêntica”, o coro se faria
impossível, deixando de si apenas “um avatar longínquo, [...] disperso, disseminado
e, sobretudo, discordante” (Sarrazac, 2017, p.162-163)?
Curiosamente, porém, após listarem à exaustão identidades e diferenças,
todos se unem de novo num coro, no centro do palco, para dizer: “Estamos
diante de vocês e... nós somos o
protagonista
”, no singular. “Legal, e o que você
quer?”, o público. A resposta reitera o intuito de um discurso coletivo,
potencialmente universal: “Eu quero falar. Quero falar por todos. Falo por mim, e
falo em nome de outros”. De fato, as várias identificações possíveis não são aqui
impeditivo à totalização, a um “nós” comum, mas dificuldade necessária. Para
Tristan Garcia (2021, p.59), “levando ao limite a imagem dessa multivocidade,
podemos vislumbrar o maior número possível de ‘nós’”, e “o que nos define é o
pertencimento simultâneo e contraditório a diferentes ‘nós’ que não podem
corresponder uns aos outros”; mas “temos que aprender a ouvir a cacofonia
desses modos diferentes de pertencimento”, pois “há apenas um mundo, e temos
apenas uma vida”. O pertencimento não tem que causar divisão: se “todos falam
por um grupo maior, todos falam por alguém qualquer”, então “todos ultrapassam
a si mesmos”, como formula Lucassen (2018, p.27). Apesar disso, o público deve
se mostrar cético, demandando “um ponto em que possamos ter em vista o todo”.
O que devemos dizer?
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“O sistema?”, perguntam os performers (o que soa genérico para seus
interlocutores, apesar de “excitante” para o coro sobre o palco, que ao final
concorda em desnudar também “todos os detalhes”).
Ora, a exposição cênica das relações sistêmicas sob o capitalismo é, ao
menos segundo a leitura hegemônica, o objetivo do teatro épico-dialético. E de
fato o título da cena seguinte é anunciado brechtianamente: “O catecismo da
posse”. Lucassen adianta-se e, lendo um pequeno rolo de papel que vai
desenrolando, canta as leis da propriedade privada numa melodia monótona
como a de uma prédica, e intercalando com um refrão entoado por todos:
Foi dito:/ No princípio era a terra, o planeta inteiro./ Ela pertencia a
todos nós./ Foi dito:/ [...] Quem quer que diga “É meu” primeiro assume
a posse. [...]
REFRÃO: As leis da economia se revelam/ Como a lei da gravidade/
Quando sobre nossas cabeças a casa/ Quebrando desmorona.
Foi dito:/ Cada ser humano tem uma propriedade em sua própria
pessoa./ [...] Foi dito:/ O direito à propriedade é o único cerne fixo e
sagrado do Estado./ John Locke disse isso./ (...) Foi dito:/ Que o trabalho
é a única propriedade do trabalhador [...]./ Isso foi Karl Marx.
Mas como compreender essa passagem? uma desnaturalização daquilo
que cotidianamente parece tão inexorável quanto a lei da gravidade (e
potencialmente igualmente catastrófico), cumprindo bem com o famigerado
distanciamento brechtiano. Mas trata-se de oferecer à plateia algum
conhecimento sobre a história da propriedade privada ou do pensamento sobre
ela, algum conteúdo que ela ainda não saiba, alguma teoria? Mas vimos que esse
didatismo que deu má fama ao teatro brechtiano não corresponde ao modelo da
Lehrstück
. Para desvendar essa questão, temos que seguir com o roteiro proposto
pelo She She Pop.
esquetes como “A mentira da sociedade do desempenho”, em que os
membros do coro falam sucessivamente, mas cada um completando frases
inacabadas do anterior (e imitando sua postura corporal), de modo a concatenar
em um único discurso contínuo depoimentos pessoais sobre o descompasso
entre trabalho e rendimento. Ou “A fábula do despejo”, em que uma escritora narra
sua expulsão do bairro onde morava por conta dos altos preços (dialogando com
O que devemos dizer?
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os espectadores que se identificarem como “proprietários de imóveis ou
potenciais compradores”). Ao longo das cenas, indivíduos se destacam do coro
para falar sozinhos, mas sempre apenas provisoriamente.
10
as bandeiras e
estandartes trazidos pelas performers para o palco são retirados dos mastros,
empunhados, balançados. Finalmente, são vestidos como roupas pois,
descobrimos, não se trata de tecidos bidimensionais, mas possuem camadas que
permitem a conformação ao corpo, na sofisticada concepção da figurinista Lea
Søvsø como se os performers encarnassem as ideologias em batalha, dando-
lhes vida, concretude e movimento.
O “catecismo da posse” também retorna, cantando a história da propriedade
imobiliária no pós-guerra alemão, sobretudo no ocidente capitalista e após a
reunificação, onde exerce papel ideológico fundamental (“quem tem casa própria
não faz revolução”, dizia o chanceler Adenauer, bordão repetido várias vezes pelo
coro), bem como as decisões políticas que levaram à crise habitacional do
presente em que o aumento exorbitante dos aluguéis tem tornado insustentável
para muitos seguir morando em Berlim. Mas a peça não parece querer esclarecer
o público sobre tais questões, e sim se inserir num debate público já em curso, e
do qual os espectadores alemães provavelmente estavam em alguma medida
inteirados.
Por isso mesmo, mais que o conteúdo de cada cena, importa o embate entre
elas. Por exemplo quando os próprios atores discutem sobre qual canção cantar
a seguir: a “da Empatia Cínica”? Mas ela “é só consciência pesada, não transforma
nada”. Então a “do Ódio e da Justiça”? Ou a “da Responsabilidade Individual”?
(Afinal “essa todo mundo conhece”, o que diz muito sobre a relação entre o
dispositivo coral-participativo e a investigação da peça no nível temático.) Mas essa
última se confunde com o “Elogio à Propriedade Imobiliária”, onde donos de casa
própria explicam a importância dela em suas vidas, inclusive revelando aquilo que
é anunciado como “detalhes constrangedores” (clichês como o quanto a pessoa
trabalhou para conseguir comprar aquele imóvel) e “contradições” (o fato de uma
10
. A relação entre coro e personagem é basilar na tragédia grega, como enfatizam Langner e Gospodarczyk
(2019, p.8-9): “enquanto a personagem se caracteriza pela ação, o coro permanece, em sua atitude
distanciada em relação aos acontecimentos dramáticos, independente”. Aqui, porém, essa oposição é
constantemente posta em questão e concretamente dissolvida pela cena.
O que devemos dizer?
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classe média gastar todo seu dinheiro para comprar um terreno cuja valorização
torna caro demais para ela construir algo nele), a despeito do efeito cômico e
pouco simpático que causam. Pois não interessa a censura moral e muito menos
defesa cínica de quem tem melhores condições, mas a reflexão política,
sistêmica. As falas individuais resultam em nova cacofonia, somada à música
crescente. A narradora então explica que “acabamos de ouvir a ‘Canção da
Sobrecarga Moral do Indivíduo’”.
Segue-se um entreato onde uma “figura alegórica” dança à meia-luz,
representando “a consciência pesada”. O que não acrescenta muito à discussão,
levando o público (sempre cumprindo o roteiro projetado) a resmungar, suspirar e
ao fim expulsar a dançarina gritando: “a consciência deve partir!” A cena soa como
um comentário sobre todo teatro político que toma como objetivo a
“conscientização”, sobretudo em tempos de “cinismo e falência da crítica” (Safatle,
2008, p.91-2), quando uma atitude de “sei muito bem, mas ajo como se não
soubesse” governa o modo de racionalização predominante no nosso tempo, cujo
caráter ideológico está menos na “falsa consciência” do que em práticas que
exercem “uma eterna paródia” ou uma constante “distância brechtiana” em
relação à consciência enunciada. Aliás,
Oratorium
não deixou de ser criticada por
não escapar totalmente a esse cinismo, ao oferecer igual empatia às diversas
vozes e posições sociais em conflito (Krieger, 2018).
Vejamos uma cena em que isso parece acontecer, um capítulo da “Fábula do
despejo”. Diante das queixas da escritora obrigada a receber os potenciais
compradores que depois a expulsarão do apartamento, o coro sugere que “eles
são iguais a você”: têm a mesma aparência, a mesma idade, são seus vizinhos.
Uma das coreutas, então, toma a frente e explica sua situação: nunca foi rica, mas
uma herança inesperada lhe dá pela primeira vez a chance de ter algo para deixar
para seus filhos. Isso leva um “coro dos herdeiros” dentre os espectadores (pouco
populoso, ainda mais porque uma rubrica projetada os constrange a ficar de pé) a
interromper a narração, dizendo discordar “sobre quem pertence a ele e quem
não”, já que “as diferenças entre nós são relevantes e o critério incerto”, ainda que
admitam dispor de dinheiro e moradia, o que “não tem que ser nenhum segredo”.
Seguindo essa deixa, a performer que representa os potenciais compradores
O que devemos dizer?
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convida o coro a subir ao palco como seu “reforço”, o que de novo é exigido pela
rubrica ao fundo. Eles são solicitados pelo restante da plateia a nomear a quantia
ou o bem que herdarão, e em seguida (pois a lista de espólios individuais ainda
não diz muita coisa) a calcular o valor total da soma de suas heranças, antes de
poder voltar a se sentar.
A cena acaba com um esclarecimento da representante dos potenciais
compradores: seu patrimônio ainda não é bem seguro, pois seus pais também não
têm casa própria, “mas falam muito sobre comprar uma, e sempre que jogam na
loteria têm certeza de que vão comprar”. Ora, o riso causado por essa revelação é
cínico ou crítico? Em
Oratorium
, combater o cinismo – mesmo sem poder vencer
inimigo tão enorme e onipresente não é distanciar-se (já que a distância é
terreno dele), mas
implicar-se
, nele inclusive. Aqui o
Verfremdungseffekt
brechtiano é mais bem traduzido por “estranhamento” do que “distanciamento”,
como estamos acostumados em português. Eis a palavra de ordem que o She She
Pop escolhe para o próprio trabalho:
Sich fremd werden
, “tornar-se estranho a si
mesmo”,
11
autorreflexão mais que descrição objetiva do mundo exterior. Nesse
sentido, dizer “nós”, falar na primeira pessoa do plural, relaciona-se ao
deslocamento que, lembra Lucassen (2018, p.31), Brecht propunha: “pensar em si
na terceira pessoa”. Sem deixar de ser esse “si”.
Agora nos sentamos aqui/ e olhamos o espaço
A luz abaixa um pouco. Os performers estão novamente reunidos no centro
do palco, em coro. Depois de um tempo, dizem: “O que está acontecendo?
Ninguém diz nada. (
Pausa
) Silêncio. (
Pausa
) Se ninguém diz nada, cada um está
sozinho. Todos pensam algo para si. [...] Mas o quê? Isso não para controlar”.
Durante as pausas, parecem esperar que a plateia responda, o que não acontece
sem a fala projetada. O coro segue, mas parece não saber concluir: “o pensamento
é...”; e o público completa: “privado?”. Curiosamente, o dispositivo de implicação
coletiva é agora empregado para discutir seus limites: “Cada um por si. (
Pausa
)
Quando se para de falar, a esfera pública entra em colapso. Simples assim. (
Pausa
)
11
. Nome do livro em que alguns integrantes do grupo expõem sua visão sobre o fazer teatral (Birgfeld, 2018).
A expressão ecoa ainda o
Sichanderswerden
, “tornar-se outro”, que move a experiência dialética em Hegel.
O que devemos dizer?
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Então digam algo”. Mas o público duvida poder criar algo de público com a
enunciação pré-determinada: “isso aqui não é esfera pública. É muito mais a
cabeça de alguma outra pessoa, dentro da qual estamos”.
O coro treinado não se dá por vencido: “E daí? É normal. Sempre se está em
uma cabeça ou em outra. Ou num sistema. Ou... num diálogo”. Como se dissessem:
é bem verdade que o sujeito coletivo criado em Oratorium é apenas uma ficção,
mas não tem problema, visto que todo eu é uma ficção
. Ou, como se tem
costumado falar na filosofia contemporânea, uma
performance
: “se somos
autênticos não é porque nos sustentamos como indivíduos concretos para além
dos papeis particulares que desempenhamos em nosso cotidiano” (essa ideia de
individualidade ou interioridade “é exatamente o que é inautêntico”), mas “somos
autênticos à medida que podemos nos tornar o que fingimos ser”, formula Gregor
Moder (2019, p.239). Constatação que embasa tanto a psicanálise lacaniana quanto
a
comédia
: “a operação cômica fundamental é a performance” ou a ideia de que
“algo uma relação, uma identidade pode ser tido como verdadeiro apenas à
medida que é performado”, ou seja, “apresentado e reconhecido como tal”, de
modo que a própria “verdade é da ordem do ‘teatral’” (Moder, 2019, p.235). Modo
interessante de pensar o potencial crítico (anticínico) do riso produzido pelo She
She Pop. Pois a comédia assim entendida – e não, como amiúde acontece, como
denúncia da mentira, do fingimento, em nome (explicitamente ou não) de alguma
pretensão de verdade não-teatral pode ser “a ferramenta mais adequada contra
a ideologia, precisamente ao mostrar que a identidade enquanto tal é performada;
ao mostrar uma rachadura nas pressuposições naturais e espontâneas da nossa
mente” (Moder, 2019, p.246).
E não era algo assim que Brecht queria do teatro? O próprio estranhamento,
lembra Lehmann (2016, pos.2559), “é, e isso foi muito pouco valorizado, também
uma teoria do cômico”. E se não traduzimos
Verfremdung
por “distanciamento”, é
que o riso brechtiano não envolve colocar-se de fora do mundo por criticar e
transformar. Como diz o coro de
Oratorium
: “Dependemos um do outro. Não tem
saída. Nós dizemos algo, vocês dizem algo. (
Pausa
) É a vez de vocês”. Parte do
público (“todos que não querem se esquecer de 68”) ainda insiste na postura
ostensivamente crítica: “A assim chamada esfera pública é uma forma de
O que devemos dizer?
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organização da ditadura da burguesia”. Curiosamente, o She She Pop não rebate
essa fórmula teórica, mas pede simplesmente: “Digam outra coisa’, gerando
muitos risos. Não se trata também de querer “combater” o conhecimento crítico
com outro conhecimento. A peça parece antes respeitar esse saber, mas apontar
para sua insuficiência, para a necessidade de ir além de sua eterna reafirmação,
que nos coloca num lugar seguro e confortável de detentores da verdade. O
que podemos dizer
para além daquilo que já sabemos?
Só assim nossas palavras
poderiam apontar não para o modo como as coisas são e têm sido, mas para algo
que ainda poderia ser, e que portanto ainda não é conhecido.
Talvez por isso o trecho seguinte do diálogo entre o coro treinado no palco e
o coro destreinado na plateia é cheio de cortes e reticências:
Todos: Nós...
She She Pop: O quê? Estão esperando?
Todos: Sim. Estamos esperando...
She She Pop: Por…?
Todos: ... por aquilo que aqui em seguida...
She She Pop: … vai ser dito?
Todos: ... ou por uma ação pela qual...
She She Pop: ... algo novo...
Todos: ... algo inesperado…
She She Pop: … seja representado? ... expresso? ... ou exigido?
A troca vai ficando cada vez mais rápida e fragmentada, cada lado falando
apenas uma palavra de cada vez, tentando criar juntos algum sentido: “Nós... não...
fazemos... a menor... ideia... do que... estamos... dizendo... aqui... mas... temos... uma
ideia... sobre... aonde... isso... vai dar... isto é... vai dar... no fato de que... nós....
vocês...”. De novo a projeção se abstém de indicar à plateia o que dizer, gerando
risos e a demanda impaciente do coro do palco: “sim?! O quê?!” Ainda com uma
palavra por vez de cada lado, os coros lamentam ter perdido o controle e
exprimem o desejo de escapar do sistema (ou da “farsa”) que os prende, o que só
seria possível se “... alguém... vier... e... nos...” Mas mais uma vez o roteiro não
oferece conclusão, apenas um grito de desespero: “Aaaaaaahhhhh...” O que
esperamos afinal? O que poderá quebrar o automatismo? O She She Pop levanta
hipóteses enquanto o público grita: “... e nos abater? E nos confortar?” Os gritos
param. O público sugere outra opção: “e se desculpar. (
Pausa
) E nos desculpar.” O
coro treinado mais uma: “e agradecer”. Ainda que não saibamos exatamente
O que devemos dizer?
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agradecer ou desculpar pelo quê, os participantes desempenharão seus papeis:
“Obrigado”, dizem os espectadores; “Nos desculpem”, dizem os
performers.
Como interpretar a cena que assim termina, sem maiores explicações?
Agradecimentos ou desculpas remetem à mesma insatisfatória ideia de
responsabilidade, de apontar os culpados que nos desgraçaram ou os heróis que
nos salvaram, de dividir a humanidade entre mocinhos e bandidos. Aqui esses
gestos perdem o conteúdo, mas seguem sendo
performados
, indicando outra
forma de responsabilização: não importa quem fez o quê, não importa de quem é
a culpa, estamos aqui para assumir mesmo aquilo que não é nossa
responsabilidade, pois ninguém mais o fará; então vamos logo com isso, e sigamos
para o que de fato importa. Como antecipamos, é contra a lógica de
responsabilização individual que o procedimento coral de
Oratorium
se dirige,
buscando criar um “nós” tão infinito quanto essa responsabilidade (e não apenas
uma profusão de “nós” particulares, moldados segundo a lógica do indivíduo).
Mas somos mesmo capazes de performar esse nós infinito para além do que
está dado, do que sabemos, conhecemos e pensamos, ou mesmo do que
nos foi prescrito pelo roteiro da peça? Uma música começa a ser tocada num
vibrafone. Lentamente, o coro se senta e nos as costas, menos um gesto de
recusa que um modo de se unir à plateia para ler as indicações projetadas ao
fundo da cena: “Alguns começam a cantar”. Ora, a princípio poucos se atrevem a
obedecer, não apenas porque podem se sentir muito mais expostos e
envergonhados cantando do que falando, mas também porque a canção proposta
“Because”, dos Beatles é difícil, apesar de conhecida, com seus melismas
(mudanças de nota em uma mesma sílaba) e notas longas. Se logo “outros se
juntam”, nem por isso o objetivo é alcançado: vemos aqui o maior fracasso em
realizar os coros propostos pelo She She Pop. Mas não se trata de uma cena
ridícula, como se poderia imaginar; se bem que é, sim, cômica, para além de
qualquer ridicularização, qualquer sentimento de superioridade de quem ri em
relação ao objeto do riso. Há, na mera tentativa de seguir cantando apesar dos
tropeços e desafinadas, cantando mesmo sem saber, certa beleza bem-
humorada, muito diferente daquela (séria) da boa execução técnica da canção.
podemos sentir a peça caminha para o fim, mas antes veremos a
O que devemos dizer?
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conclusão da “fábula do despejo”. O coro se divide: metade sugere que quem
paga aluguel e não tem o próprio apartamento poderá representar a cena; a outra
metade se recusa a ficar de fora, insistindo na solidariedade da enunciação coletiva
para além de identidades particulares (não sem reconhecer sua existência e
relevância). A solução é cômica: os que a princípio não pertenceriam a esse coro
falarão “fininho, em falsete, para todos lembrarem da sua hipocrisia”. Nada disso
muda o desfecho: o apartamento da escritora é vendido, e por um valor altíssimo
(comparável ao prêmio em dinheiro de um Nobel, maior valor e reconhecimento
que um escritor pode alcançar), o que resultará num aumento do aluguel
impraticável para a inquilina. Só lhe resta escrever a respeito, exprimir a sensação
de ser “mastigada e cuspida pela própria cidade”. Um coro de espectadores
nascidos na Alemanha Oriental a fala projetada: “Agora tudo parece sombrio.
Então gostaríamos de lhes dizer o seguinte: Nós estamos aqui. Lembramos vocês
de que um sistema também pode perecer”. Ainda que não saibamos bem como,
poderíamos acrescentar.
Os atores desvestem as bandeiras e estendem-nas como um grande tapete
no chão do palco. Ouvimos o breve epílogo intitulado “Visão de fora, apresentada
pelo indivíduo que não participou diretamente da economia local”. Sozinho, ele
conta que chegou à Alemanha sem nada, e sempre imagina que algum dia poderá
voltar a perder tudo; por isso, prefere não possuir muita coisa: “Alguém disse:
liberte sua mente da ideia de que algo lhe pertence por direito, de que você
mereceu algo, e assim poderá começar a pensar”. Essa mesma ideia não poderia
ser aplicada não só às propriedades imobiliárias de que a peça fala, mas também
às propriedades individuais, às particularidades de que dependemos para nos
definir, e à ideia mesmo de “posse de si”? Não será essa a experimentação coletiva
que a
Lehrstück
do She She Pop nos propõe? Mais que aprender algo (sobre o
mercado imobiliário, por exemplo), não se trata de se esvaziar de algo? Não será
algo dessa ordem o “segredo bem guardado” do subtítulo da peça? Não algo a ser
desvelado, mas algo a ser desocupado? Segundo Lehmann (2016, pos.4076), na
peça didática
o jogo tem precedência absoluta em relação à compreensão. Nenhum
sentido, então, que vem a ser apresentado, [...] como uma superfície de
escrita, vazia, por assim dizer, esperando que alguém escreva nela. A peça
O que devemos dizer?
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didática (Lehrstück) é, radicalmente realizada, literalmente uma peça
vazia (
Leerstück
).
Agora todos saem de cena, voltam a se sentar na plateia, como no começo
da peça. A projeção indica as falas finais. As “mães sem previdência social” e os
“homens sem renda fixa” lembram que a peça tinha sugerido, se não prometido,
“uma redistribuição” (de renda, supomos), e perguntam: “ainda se pode contar com
isso?” Os “teatrólogos” citam: “Brecht diz: Se alguém quer realizar uma traição pela
manhã, vai pela manhã ao Pedagógio e ensaia a cena em que uma traição. Se
alguém quer comer à noite, então vai à noite ao Pedagógio e ensaia a cena em que
se come”. As mães oferecem a justa objeção: “entre comer algo e só fazer ‘como
se’ tem uma diferença”. Ao que se responde: “É um ensaio, uma prática. Para mais
tarde”.
É curioso que justamente os pesquisadores de teatro tragam alguma
resposta. Mas são “todos os outros” os responsáveis por fazer algo com ela: “Pois
bem. Lembraremos do texto”. Não podemos saber quando, onde ou de que modo
essa lembrança nos será requisitada, nem o que faremos com ela quando chegar
o momento. Podemos, e devemos, preservar esse espaço de não saber.
A projeção indica que todos devem começar a entoar, com a boca fechada,
“uma única longa nota”. Quando a plateia fracassa em realizar a instrução, o
dispositivo zomba: “É para ser uma única nota, não várias diferentes. Todos se
juntam em uma única nota”, e então, como ainda não se conseguiu cumprir com
o esperado, “Parem. Chega de cantar”. Mas, diferente do caso da canção dos
Beatles, agora não teremos de ficar com o fracasso: “De novo, do começo. Alguém
entoa uma nota, sozinho. Aos poucos a nota se espalha. Todos entoam a mesma
nota”. Agora sim, a proposta é bem-sucedida. Se bem que isso não prova nada,
como lembra a projeção (que ninguém mais em voz alta): “Alguns dos que estão
cantando não querem se render a ilusões. Pensam que não concordamos de modo
algum, que nossa sociedade está dividida, temos interesses diferentes. Mesmo
aqui nesta sala. Essas vozes céticas param de cantar agora”. Mas isso não impede
o experimento de seguir: “Todos que ainda cantam acreditam na solidariedade. Ou
pelo menos tentam. Mesmo que eles mesmos achem um pouco ingênuo. Alguns
dos que cantam na verdade prefeririam chorar.” Mas a peça não desiste, buscando
O que devemos dizer?
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seguir apesar das dificuldades: “Essas vozes emotivas agora cantam um pouco
mais alto. Alguns dos que cantam estão felizes. Aqui e agora. Apesar de tudo”. E o
coral pode até se desdobrar, ganhar novos tons: “Esses felizes agora cantam novas
notas, uma bela harmonia”. Até mesmo os que desistiram têm uma segunda
chance: “As vozes céticas acrescentam notas completamente diferentes, em
novas harmonias”. Depois de um tempo produzindo e ao mesmo tempo ouvindo
esse novo som coletivo, a projeção comenta: “Ficou bom, né? Dá para continuar?”
De novo temos aquele riso sem superioridade. Por fim, “o canto aumenta” de
intensidade, a projeção faz uma contagem regressiva, e chegando ao zero a
última instrução: “Silêncio”. A peça acaba.
Naturalmente, o experimento tem enormes limitações comparado com os
desafios da práxis política. Uma crítica veio não de um pesquisador de teatro, mas
de um cientista social e ativista especializado em temas de gentrificação e políticas
de moradia, para quem a peça tem “na verdade uma tendência depressiva”, pois
apesar de “oferecer um ganho de conhecimento sobre muitos detalhes da
questão da moradia” e se organizar pela questão de “como nossa sociedade é
construída de modo desigual” – “não foram apontadas possibilidades de solução”
(Holm, 2019).
Mas cabe pedir isso? O próprio crítico concede que “o teatro não tem que
terminar com marteladas pedagógicas ou chavões combativos” e imagina que “o
silêncio ao final também poderia ser uma pausa para respirar: para depois voltar
a se organizar em coros sociais e levantar a voz” (Holm, 2019). O que o teatro nos
oferece é outra forma de pensar e imaginar caminhos e ações que podemos
empreender para enfrentá-las. A cena final, nesse sentido, parece resumir algo
recorrente em toda a peça: pode ser impossível entrar em concordância de uma
vez, criar uma coesão (uma solidariedade) de uma hora para a outra; mas com o
tempo, com a experiência, com algumas tentativas e alguma paciência, algo disso
pode
se tornar
possível. Sobretudo se estivermos dispostos a permitir que certa
desarmonia ressoe dentro dessa consonância, seja na forma das diferenças de
perspectiva, seja na dos tropeços e fracassos do caminho. Pois ambos são capazes
de mudar nossa visão sobre
o que
uma harmonia
é, para começo de conversa.
Insistimos em ver em
Oratorium
uma comicidade que não aponta
O que devemos dizer?
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cinicamente o fracasso e o não-saber, mas assume-os como necessários para o
aprendizado. Na comédia, “quando
alguma coisa dá em nada, então alguma outra
coisa surge desse nada
”, nota a filósofa Jamila Mascat (2019, p.68). Mas isso não é
apenas o
modus operandi
cômico: é também o cerne mesmo da
dialética
, isto é,
de toda uma tradição de pensamento político e do teatro que surgiu dela, tradição
que a peça ousa retomar mesmo contra seus autodeclarados defensores. A
verdadeira crítica dialética é
experiência
, isto é, constante fracasso da consciência
diante do mundo, levando-a a negar a si mesma em prol de um saber mais
complexo e acertado. Eis também, diz Mascat, como o engajamento revolucionário
precisa ser pensado no século XXI: implicando “inevitavelmente a exposição ao
fracasso, e a falibilidade não apenas como efeito colateral, mas como propriedade
constitutiva” (Mascat, 2019, p.70), sem com isso perder “a persistência de uma
ligação à objetividade e de um compromisso subjetivo de transformar o mundo”
(Mascat, 2019, p.71).
Dialética não é insistir em nossas teorias, mas levar a sério (comicamente)
tudo que se opõe a elas, para criar algo um nós mais amplo, mais comum,
mais universal. Vale a observação de Paraná e Tupinambá (2022, p.26) sobre a
situação das esquerdas hoje: um dos grandes obstáculos no caminho” é nossa
dificuldade em “reconhecer no inacabado os sinais de uma possível
conquista
, e
não apenas do atraso ou da incapacidade de reproduzirmos uma forma final
anteriormente planejada”; ou seja, que perguntar: qual forma “tem as fundações
sociais mais sólidas, aquela que só tem valor se esconder seus defeitos e limites,
ou aquela que sobrevive a eles?”
Referências
BIRGFELD, Johannes (org.).
She She Pop: Sich fremd werden
. Berlim: Alexander
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Recebido em: 08/03/2023
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Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br