O que devemos dizer?
A recriação da peça didática brechtiana em
Oratorium
, do She She Pop
Artur Sartori Kon
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-25, jul. 2023
como Bulgária e México, o grupo chamou habitantes locais para integrar o coro
após alguns dias de conversas e ensaios).
A transição espelha a própria trajetória
do grupo que, após peças “relacionais”, passou a preferir trabalhar com roteiros
mais fechados, mas transferindo para o próprio palco o diálogo com pessoas
exteriores ao coletivo: a partir de
Testament
(2010), o grupo optou pela relação
previamente ensaiada com não-atores, em encontros “melhor preparados e
melhor encenados”, mesmo perdendo certa “espontaneidade” (Lucassen, 2018,
p.21).
Os dez coreutas encaram a plateia, instada pelo mesmo dispositivo de antes
a perguntar: “Quem são vocês?”. Após um breve silêncio, vem a resposta coral:
“Somos alguns de vocês”. Para Lucassen (2018, p.27), “a peça toda é uma conversa
entre o coro treinado no palco e o coro destreinado na plateia”.
Quando “um coro
encara um coro”, diz Lehmann (2011, p.214-5), ele “pode funcionar cenicamente
como espelho e parceiro do público”, produzindo ainda um efeito de coletividade:
se “não se requer muito esforço para fazer o público associar o coro com massas
humanas reais, com o povo”, por meio do espelhamento também o público será
instado a questionar “a concepção do indivíduo inteiramente desligado da
coletividade”; assim, podem ser conjurados em cena “fantasmas sociais e anseios
de unificação”.
Mas a resposta não satisfaz o público (ou é o que lhe impõe o dispositivo),
que insiste: “Quem são vocês?” Eis que o coro se fragmenta em diversas
representações particulares, enunciadas por vozes individuais: “falo por todos
aqueles que, vira e mexe, têm que mudar de cidade ou país para encontrar
trabalho”, diz uma mulher; um homem fala “pelos estrangeiros que se mudaram
. Tanto Haß (2020) quanto Kuberg (2021) enfatizam o caráter nômade, migrante, do coro ao longo da história
do teatro europeu. Para Kuberg (2021, p.14), o coro é “uma instância do entre”, situado “não apenas entre
pátria e estrangeiro [...], mas também entre o fazer coletivo autônomo e a dependência da ação do sujeito
protagonista, entre homens e deuses e finalmente entre a diegese e a realidade extradiegética do público”.
.
Testamento
, provavelmente a peça de maior sucesso do She She Pop (pelo menos até Oratorium), também
foi a primeira a se apresentar no Brasil, em São Paulo, em outubro de 2012. Nela, as performers entravam
em cena acompanhadas dos pais, para refletir sobre afetos, responsabilidades, heranças e conflitos nas
relações familiares.
. Essa oposição entre um coro treinado e um destreinado poderia ainda indicar um coro de especialistas e
um coro de amadores, um de conhecedores e um de ignorantes. Mas o “gelerntes Chor” foi tirado pelo She
She Pop da
Peça didática de Baden-Baden
sobre o acordo, onde pode ser justamente um coro de amadores.
A suspensão da diferença entre aqueles que sabem e aqueles que não sabem é um dos pontos a ressaltar
tanto nas
Lehrstücke
quanto em
Oratorium
.