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Cabaré das Divinas Tetas
: cruzamentos entre
palhaçaria, arte
drag
e feminismos
Dagmar Teixeira Bedê
Raquel Castro de Souza
Para citar este artigo:
BEDÊ, Dagmar Teixeira; SOUZA, Raquel Castro de.
Cabaré
das Divinas Tetas
: cruzamentos entre palhaçaria, arte
drag
e feminismos.
Urdimento
– Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 47, jul. 2023.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573102472023e0110
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Cabaré das Divinas Tetas
: cruzamentos entre palhaçaria, arte
drag
e feminismos
Dagmar Teixeira Bedê | Raquel Castro de Souza
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-20, jul. 2023
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Cabaré das Divinas Tetas
: cruzamentos entre palhaçaria, arte
drag
e feminismos1
Dagmar Teixeira Bedê2
Raquel Castro de Souza3
Resumo
Este artigo se propõe a abordar o contexto no qual surgiu a plataforma de
criação Divinas Tetas, de Belo Horizonte. Será traçada uma breve análise da
trajetória de articulação de mulheres palhaças na capital mineira, nas duas
primeiras décadas do século 21, e levantados questionamentos sobre os
conceitos de palhaçaria feminina, arte drag, cabaré, gênero e feminismos.
Trata-se de um estudo de caso dos caminhos “palhacísticos” e “cabareteiros”
que constituem parte da trajetória do movimento da palhaçaria feminina
belo-horizontina. Ou (para sermos palhaças mais diretas) quem são as
Divinas Tetas, onde vivem, o que comem, como se reproduzem. Como
referências teóricas e bibliográficas para este estudo, são citadas(os) as(os)
autoras(es) Lili Castro, Daiani Brum, Ana Fuchs, Melissa Caminha, Erminia
Silva, Renata Saavedra, Cleber Braga, Judith Butler, Manuela Castelo Branco
de Oliveira e Neyde Veneziano.
Palavras-chave
: Palhaças. Circo. Arte
drag
. Arte feminista. Cabaré.
1 Revisão ortográfica e gramatical realizada por Alice Bedê Lotti. Graduada em Letras, pela Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG). Especializada em Revisão e Preparação de Textos, pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais (PUC Minas). alicebede@gmail.com
2 Mestranda em Artes Cênicas, pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Especializada em Gestão
Cultural, pelo Centro Universitário UNA. Graduada em Jornalismo, pela Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais (PUC Minas). Palhaça, “cabareta”, faquiresa, atriz, performer, diretora, produtora e gestora
cultural. dagbede@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/0724476004044334 https://orcid.org/0000-0001-6144-2775
3 Doutora em Artes, ênfase em Artes da Cena, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) com
estágio de pesquisa (“doutorado-sanduíche”) no Centro de Pesquisa EURORBEM (dupla tutela: Université
Paris-Sorbonne/CNRS), bolsa PDSE/CAPES. Mestre em Artes, pela UFMG. Graduada com Licenciatura em
Educação Artística/Habilitação Música, pela UFMG. Prof.ª de Artes Cênicas na
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). raquel.souza@ufop.edu.br
http://lattes.cnpq.br/5717381473209922 https://orcid.org/0000-0002-0698-857X
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Cabaré das Divinas Tetas
: intersections between clown, drag art
and feminisms
Abstract
This article is about the context where the platform Divinas Tetas of Belo
Horizonte was raised, a brief analysis of the way of articulation of women
clowns in the capital of Minas Gerais on the first two decades of the 21st
century, and the questions about the concepts of female clowns, drag art,
gender and feminisms. It is a case study in the “clowning” and “cabaristic”
paths that constitute part of the trajectory of the female clown movement in
Belo Horizonte. Or (to be more direct clowns) who are the Divinas Tetas,
where they live, what they eat, how they reproduce. This article brings as
theoretical and bibliographical references the authors Lili Castro, Daiani Brum,
Ana Fuchs, Melissa Caminha, Erminia Silva, Renata Saavedra, Cleber Braga,
Judith Butler, Manuela Castelo Branco de Oliveira and Neyde Veneziano.
Keywords
: Clowns. Circus. Drag art. Feminist art. Cabaret.
Cabaré das Divinas Tetas
: intersección entre el clown, el drag art y
los feminismos
Resumen
Este artículo se propone abordar el contexto en el que surgió la plataforma
de creación Divinas Tetas, de Belo Horizonte. Se hará un breve análisis de la
trayectoria de articulación de las payasas en la capital de Minas Gerais, en las
dos primeras décadas del siglo XXI, y se cuestionarán los conceptos de
trabajo de clown femenino, arte drag, género y feminismos. Se trata de un
estudio de caso en los caminos del “clowning” y “cabareteros” que
constituyen parte de la trayectoria del movimiento femenino de clown en
Belo Horizonte. O (para ser clowns más directos) quiénes son las Divinas
Tetas, dónde viven, qué comen, cómo se reproducen. Este artículo trae como
referencias teóricas y bibliográficas a las autoras Lili Castro, Daiani Brum, Ana
Fuchs, Melissa Caminha, Erminia Silva, Renata Saavedra, Cleber Braga, Judith
Butler, Manuela Castelo Branco de Oliveira y Neyde Veneziano.
Palabras clave
: Payasas. Circo. Drag art. Arte feminista. Cabaret.
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drag
e feminismos
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A plataforma Divinas Tetas4 surgiu em 2017, exatamente no dia oito de
dezembro, às 20 horas, com a criação coletiva do espetáculo
Cabaré das Divinas
Tetas
, que teve direção artística de Adriana Morales. Ele nasce com o desejo de
discutir cenicamente por meio da comicidade, da linguagem circense e da
performance
, questões sobre feminismos e feminilidades.
Durante o espetáculo, o público é convidado a adentrar um universo que
passeia pelo grotesco, pela comicidade e pelo burlesco, em um jogo
intimista que
re-humaniza
o encontro e fala sobre a fatalidade de ser
quem se é, aberta ao mundo, falível e imperfeita. Um exercício de
liberdade plena que amplia a percepção de mundo e valoriza o riso, esse
grande desestabilizador da ordem (Manifesto do
Cabaré das Divinas
Tetas
, 2017, n.p.).5
Nos primeiros dois anos de atividade, o grupo era formado por seis palhaças
e um ator6, performando como drag queen e assumindo a figura de mestre de
cerimônias. A partir da metade do ano de 2019 até os tempos de hoje, início de
2023, a plataforma de criação alcança novos lugares, tanto na sua estrutura como
nos seus modos de pensar. O grupo conta com um elenco fixo de cinco artistas
sendo três palhaças e dois artistas
drag
7 (
drag queen
e
drag queer
), corpos
artísticos diversos em suas origens, performatividades de gênero e narrativas. Essa
multiplicidade está também presente na dramaturgia, que o espetáculo deixa
de focar exclusivamente na comicidade dita feminina ampliando a discussão para
outros gêneros e corpos dissidentes.
Com a entrada de Eli Nunes no elenco fixo do Cabaré (em 2019), durante a
transição e reconhecimento de sua identidade não-binária, a mudança de
perspectiva da plataforma de criação foi potencializada. não se trata mais de
um cabaré que foca em comicidade feminina, mas sim que busca, na diversidade
de gênero, formas de expressão artística, tendo o humor e o sarcasmo
4 Para conhecer mais sobre a plataforma: https://www.instagram.com/plataformadivinas/ e
https://www.youtube.com/c/CabaredasDivinasTetas.
5 Texto de criação coletiva que compunha o espetáculo.
6 A plataforma de criação era formada por: Adriana Morales, Bruna Toledo, Dagmar Bedê, Daniela Rosa, Luciene
Oliveira, Poliana Tuchia e Rafael Bacelar.
7 Atualmente a plataforma tem como elenco fixo: Adriana Morales, Dagmar Bedê, Eli Nunes, Poliana Tuchia e
Rafael Bacelar. O grupo também conta com colaboração dos artistas Idylla Silmarovi e Will Soares e com a
produção de Bela Leite.
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direcionados ao sistema heterocisnormativo patriarcal como caminhos
principais.
Para que seja analisada a performatividade do espetáculo
Cabaré das Divinas
Tetas
, é necessário entender historicamente o contexto em que esse movimento
se apresenta. A plataforma de criação começa, na verdade, muito antes do
momento “vamos fazer um cabaré”, como uma das tantas reverberações da
movimentação feminista no mundo, no Brasil, em Minas Gerais, em Belo Horizonte.
E, buscando mais um recorte no movimento de palhaçaria feminina, ou de
mulheres palhaças especificamente, segue o mesmo contexto: mundial, nacional,
local.
pouco mais de uma década, surge uma forte articulação de mulheres
palhaças no cenário belo-horizontino, o que não existia antes. pouco mais de
uma década, surge uma forte articulação de mulheres palhaças no cenário belo-
horizontino, o que não existia antes. Havia poucas artistas mineiras representantes
dessa arte que não fossem do gênero masculino, como Nélida Prado (Grupo
Kabana), Ângela Mourão (Teatro Andante) e Miriam Tavares. Aos poucos, essa
presença foi aumentando com artistas como Paula Manata e Tina Dias (Grupo
Armatrux); Adriana Morales (Grupo Trampulim e, posteriormente, uma das
fundadoras da Divinas Tetas); Juliana Pautilla; Marisa Riso (Cia da Bobagem);
Mariana Rabelo; Elizabete Penido; Júnia Bessa (Teatro Terceira Margem); entre
outras figuras presentes no Coletivo de Palhaços de Belo Horizonte8, assim como
em diversos movimentos artísticos, grupos ou carreiras solo. Mas, ainda assim,
comparado ao número de palhaços homens, o número de mulheres era bastante
reduzido. Certamente, quanto mais se pesquisa a palhaçaria feita por mulheres
em anos passados, mais dificuldades se encontram no processo de
“desocultação”. Como disse Manuela Castelo Branco, no artigo “‘Sapatadas da
vida’, ou por uma ‘ciência gaiata’”:
8 O Coletivo de Palhaços de Belo Horizonte atuou na capital mineira principalmente entre os anos de 2004 e
2017. Reunia palhaços e palhaças para trocas e compartilhamentos do ofício e realizava projetos como o
festival/encontro Semana Interplanetária de Palhaços e a ocupação de espaços públicos Quaquaraquaquá.
“Formado por grupos, palhaços e artistas de rua, o Coletivo de Palhaços é uma rede democrática e
horizontal, que desde 2004 mantém encontros regulares na capital mineira, onde artistas e grupos pensam
uma dinâmica de trabalho que além da produção de espetáculos, aprofundam a pesquisa dos meios
expressivos instigando inovações na atuação cômica” (texto de criação coletiva utilizado em projetos do
Coletivo, 2008).
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[...] ao olhar para o estudo da palhaçaria feminina, o percebo tanto como
espaço de trabalho, de criação e de autoironia quanto um espaço/tempo
de recuperação e de desocultação de tanta coisa… Um espaço que é uma
ruína. Numa ruína sabemos que mais alguém esteve lá. Não vemos quem,
não sabemos exatamente quando. [...] Não que a palhaçaria esteja em
ruínas, ou seja em si uma ruína, mas, para palhaças como eu, que
transitam buscando referências femininas, a sensação de ruína, de
soterramento e de escavação, é frequente. E de desocultação, pois
parece que as precursoras de nossas palhaçarias estão escondidas,
soterradas, invisibilizadas, ocultas pelo tempo e pelo sistema patriarcal
da história (Cardoso, 2020, p. 145).
As palhaças, uai!
Era 2008, ano em que o Coletivo de Palhaços de Belo Horizonte vivia seu
auge. A quarta edição da “Semana Interplanetária de Palhaços”9 era realizada com
uma equipe gestora de aproximadamente 15 pessoas10 todas palhaças(os)
atuantes. A programação incluía diversas oficinas, espetáculos, cabaré, roda de
conversa, entre outras intervenções espontâneas. Esse evento foi um divisor de
águas no campo das artes
claunescas
locais, devido ao seu impacto e extensão –
foram 29 dias de programação intensa por toda a cidade.
Anos depois, Marcelo Bones11 foi mediador de um bate-papo ocorrido após a
apresentação da Cia Circunstância12, durante a programação do 53º FESTA13, em
Santos/SP (2011), e falou da importância do movimento originado pelo Coletivo de
Palhaços. Por causa de sua extensa programação de oficinas de iniciação às várias
linhas de pesquisa sobre palhaçaria e comicidade, as ações do festival causaram
9 A Semana Interplanetária de Palhaços era um festival realizado pelo Coletivo de Palhaços de Belo Horizonte.
Com sete edições realizadas, o festival juntava uma grande variedade de palhaças e palhaços em sua gestão,
produção e participação. Sua última edição realizada foi em 2017, até o momento.
10 A equipe gestora era formada por Bete Penido, cero Silva, Cristiano Pena, Diego Gamarra, Diogo Dias, Junia
Bessa, Lis Nobre, Louisa Mari, Luciano Antinarelli, Marcelo Castillo, Mariana Rabelo, Marisa Riso, Matheus
Ramos, Rafael Marques e Thiago Araujo.
11 Marcelo Bones é diretor, professor e pesquisador teatral. Além de sua extensa trajetória na áreaBones é
um dos fundadores do Teatro Andante, um dos grupos teatrais mais antigos de Belo Horizonte –, Marcelo
pertenceu à velha guarda dos palhaços “não tradicionais” da cidade, apresentando-se inclusive junto com o
Coletivo de Palhaços em parques e ruas da capital.
12 A Cia Circunstância é um grupo que pesquisa palhaçaria e arte de rua em Belo Horizonte. Atualmente é
formada por Dagmar Bedê, Diogo Dias, Evandro Heringer, Luciano Antinarelli, Miguel Safe e Yasmine
Rodrigues. Para saber mais sobre o grupo: www.ciacircunstancia.com.br.
13 Festival Santista de Teatro: https://festivalsantistadeteatro.com.br/.
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um
baby boom
de palhaços e palhaças, iniciando uma nova geração que,
principalmente a partir de 2008, aumentou e se multiplicou pela cidade.
Em 2012, o Grupo Trampulim14 um dos grupos de circo em atividade mais
antigos de Minas Gerais convocou palhaças e aspirantes para uma intervenção
feminista na Marcha das Vadias15. No momento em que a marcha parou na Praça
da Estação de Belo Horizonte, ponto central da cidade, esse grupo de 11 palhaças,
que foi batizado com o nome Cinta-liga da Justiça, invadiu a manifestação com o
tema: “soltar a perereca da vizinha que está presa na gaiola”16. Esse movimento
coletivo de mulheres fomentou o desejo de uma maior articulação entre palhaças,
que acabou resultando na criação da rede de palhaçaria feminina Coletivo Calcinha
de Palhaça17. Essa rede se formou em 2013 com a criação de um grupo no
Facebook, com o objetivo de ampliar a pesquisa e buscar referências sobre
mulheres palhaças, além de buscar estratégias e soluções para driblar os desafios
de atuar como palhaça em um mercado predominantemente masculino.
Pretendia também criar espaços e oportunidades para mulheres palhaças ainda
em descoberta, que iniciavam os passos no universo da palhaçaria, para que essas
artistas pudessem se encontrar objetiva e subjetivamente, experimentar e criar.
Em conexão, tanto com o movimento feminista quanto com o movimento
global de mulheres palhaças, Lili Castro, em seu livro
Palhaços: multiplicidade,
performance e hibridismo
, fala sobre a guinada de mulheres nesse campo
artístico:
[...] na virada do século XX a
palhaça
se firma como um novo tipo
cômico no panorama circense e teatral. A palhaça assim como o
14 Fundado em 1994, o Grupo Trampulim atualmente é formado pelos palhaços Adriana Morales, Tiago Mafra,
Poliana Tuchia, Chaya Vasques e Rafael Protzner. Para mais informações sobre o grupo:
www.trampulim.com.br.
15 A Marcha das Vadias (ou
Slut Walk
, em inglês) é uma manifestação feminista que começou em Toronto
(Canadá) e se espalhou por todo o mundo.
16 Em referência à música
Perereca da Vizinha
, marchinha de carnaval de autoria de Dercy Gonçalves e
Jonathan, lançada em 1964, de acordo como site https://immub.org/compositor/dercy-goncalves.
17 Um dos principais projetos realizados pelo Coletivo Calcinha de Palhaça, entre 2013 e 2021, foi a criação do
Calendário de Comicidade Feminina, lançado quase anualmente pelo coletivo. O projeto começou com uma
ideia da fotógrafa Lina Mintz e da palhaça Dagmar Bedê de produzir um calendário no estilo dos calendários
sensuais de mulheres pendurados em borracharias, porém protagonizados pelas palhaças do coletivo
temática essa que foi se alternando ao longo de suas edições. A ideia começou com recursos das próprias
artistas e alcançou reconhecimento nacional no meio artístico circense.
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palhaço nasce de uma criação pessoal e intransferível, baseada nas
características e habilidades de cada artista. Dessa forma, as mulheres
passaram a mergulhar em suas próprias questões emocionais, físicas
e sociais o que, na prática, gera uma multiplicidade de criações
singulares (Castro, 2019, p. 83).
Nessa busca pelo conhecimento e encontro com a persona “palhacística”,
cada uma das artistas do Coletivo Calcinha de Palhaça traçou seu caminho,
algumas vezes individualmente e muitas vezes coletivamente. Como uma das
reverberações das articulações proporcionadas por esse Coletivo, em 2016, na
oportunidade do chamamento de propostas artísticas para a programação da
segunda edição da DiversaS – Mostra Feminista de Arte e Resistência18, foi criado
o espetáculo de variedades que viria a se chamar
Roda Saia Palhaça
.
Com iniciativa de Dagmar Bedê e posterior dramaturgia e direção de Adriana
Morales, o espetáculo contava com um elenco rotativo de 13 palhaças, sendo elas
Dagmar Bedê, Daniela Rosa, Elisângela Souza, Jessica Tamietti, Juliene Lellis, Lais
Oliveira, Lori Moreira, Luciene Oliveira, Lud Benquerer, Luiza Fontes, Mariana
Carvalho, Rocio Paredes e Thais Oliveira. O espetáculo teve uma grande circulação
durante o ano de 2016, sendo apresentado em festivais mineiros, como o Festival
Palhaça na Praça, em Belo Horizonte; o Encontro Internacional de Palhaços do
Circovolante, em Mariana; e o Projeto Matriz, festival realizado em Conceição do
Mato Dentro.
Para esse espetáculo, muitas das palhaças que faziam parte do elenco ainda
não tinham número próprio, gerando, assim, a oportunidade de troca e criação
direta entre as artistas. Uma das cenas que se destacaram foi o número “Mamá”,
de Dagmar Bedê, baseado no número de circo “Não pode tocar aqui”. Em sua
versão tradicional, entra um palhaço tocando um instrumento, até que aparece
um segundo e o proíbe de tocar. Isso se repete e, na terceira vez, o oprimido faz
alguma traquinagem com a autoridade. Segue a versão apresentada no espetáculo,
18 DiversaS Mostra Feminista de Arte e Resistência é uma mostra de arte e cultura feminista, organizada
horizontalmente por diversas artistas e gestoras da cidade de Belo Horizonte. A mostra surgiu em 2015 e
teve três edições.
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transposta para a realidade de uma mãe recém-parida com o filho no colo19:
Entra a palhaça com um bebê no colo puérpera, na estética decadente
daquela que acabou de parir, não consegue dormir à noite por causa da
criança, tem as mamas doloridas e sua vida toda de cabeça para baixo
por causa do bebê que acabou de chegar. A palhaça se senta em um
banco, com toda dificuldade com que isso possa ser feito, e, no momento
em que ela relaxa, a criança começa a chorar. No desespero para parar o
choro, ela tira o peito para fora da roupa e amamenta o filho. Nesse
momento, entra outra palhaça, vestida como autoridade, assusta-se com
a cena e diz:
Está proibido mamar aqui.
A palhaça-mãe, envergonhada, interrompe a amamentação e, quando a
autoridade sai, ela fala:
Já que não pode mamar aqui, vou mamar ali.
Ela se dirige para o outro lado do picadeiro, e toda a ação se repete,
fazendo com que ela mude novamente de lugar para o centro do
picadeiro. Na terceira vez em que a rotina se repete, a palhaça-mãe se
rebela, diz um pequeno texto de contestação e anuncia que a autoridade
será multada. Daí, a palhaça-mãe coloca os peitos para fora outra vez e
começa a jorrar leite na cara de todos que estão presentes, inclusive no
público.
Ao analisar a concepção do número “Mamá”, podemos citar aqui um texto de
Daiani Brum que comenta o texto de Melissa Caminha sobre a construção e
dramaturgia adotadas por palhaças:
Essa perspectiva corrobora a afirmação de Melissa Caminha, segundo a
qual:
Las mujeres cuentan sus historias a partir de sus experiencias e
vivencias como mujeres, como cuerpos situados y construidos
históricamente según discursos, fuerzas y prácticas de significación
específicas y contextuales
(Caminha, 2015, p. 29). Olhar de tal forma para
os aspectos de cada mulher é perceber em que contextos sociais,
étnicos, econômicos e de orientação sexual elas estão situadas. Melissa
afirma, ainda, que: “O riso é uma ferramenta feminista para desestabilizar
as normas e construir realidades alternativas ao sistema patriarcal”
(Caminha, 2015, p. 80). (Brum, 2018, p. 458).
Das Tetas Divinas
A trajetória relatada foi fundamental para o amadurecimento e a construção
de um cenário favorável para a criação do
Cabaré das Divinas Tetas
, em 2017. Com
toda a efervescência do movimento de palhaçaria dita feminina, um ano após a
19 Esse foi o mote para a criação do número. A artista estava puérpera, com um filho de 2 meses e, no final
do número, lança verdadeiramente leite materno do próprio peito nas outras palhaças em cena e no público
em geral.
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circulação de um espetáculo
claunesco
inteiramente realizado por palhaças, a
cada dia, mais e mais palhaças se firmavam no mercado artístico da cidade.
A seguir, uma das idealizadoras da Divinas Tetas, Dagmar Bedê que é
também uma das autoras deste artigo –, relata sua perspectiva da experiência de
criação do
Cabaré
:
O desejo de criar um cabaré de palhaças existia algum tempo. É enorme
a proximidade entre espetáculos circenses e cabarés, seja por questões de
estética e de formato, seja pela dramaturgia. Relacionamento direto com o público,
números/cenas que começam e terminam em si mesmas, possibilidades de
roteiro aberto, humor, música, espaço são alguns dos vários conceitos que
aproximam O as duas linguagens. Ao participar, junto com a palhaça Daniela Rosa,
do Encontro Palco do Asfalto20 , em outubro de 2017, aos poucos fui
(re)conhecendo alguns cabarés de comicidade feminina, como o Caixa de
Pandora21 e o Cabarelas22 , além do Cabaré das Martas23 que tivemos a
oportunidade de trazer para Belo Horizonte durante a programação da Mostra
Tudo, realizada pela Cia Circunstância. Tudo isso servia como combustível ao
desejo de criar algo nessa linguagem. E a maior inspiração veio na noite feminina
do Encontro: era um cabaré composto por números de palhaças que participavam
do “Palco do Asfalto” e tinha como mestre de cerimônias a drag queen paulistana
Jhenny (Renato Lima). Nesse momento, tudo se conectou: o que buscávamos não
era um espetáculo inteiramente feito por palhaças falando sobre mulheres
formato abordado no espetáculo Roda Saia Palhaça. Voltamos para Belo
Horizonte, eu e Rosa, com a missão de chamar palhaças que sabíamos que teriam
números para contribuir em um cabaré de comicidade feminina e de convidar o
ator Rafael Bacelar para assumir com sua persona drag queen a mestre de
20 Palco do Asfalto é um encontro de circo, palhaçaria e Teatro de Rua, idealizado e realizado pelo Circo do
Asfalto em Santo André/SP. O grupo é formado pelo casal Fran Marinho e Douglas Marinho, e seus filhos
Theo e Quinã. Mais informações em https://www.instagram.com/circodoasfalto/.
21 Espetáculo idealizado por Fran Marinho, do Circo do Asfalto.
22 Coletivo de mulheres circenses e palhaças de Ribeirão Preto/SP. Mais informações
https://www.instagram.com/cabarelas/.
23 Espetáculo latino-americano realizado por mulheres palhaças e circenses, sediado em São Paulo/SP.
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cerimônias do espetáculo.
Historicamente, uma ligação direta entre o circo e o cabaré o que se
observa até fisicamente se considerarmos que havia um circo instalado ao lado
do famoso cabaré francês
Le Chat Noir
, que vários artistas do circo também
participavam de apresentações no cabaré e vice-versa.
O que alguns autores e pesquisadores da história do teatro não m como
foco é que muitas das apresentações nos teatros, que se queria fossem
de elite ou naquelas que apresentavam gêneros de music-halls, os cafés-
concertos e os cabarés, exibiam espetáculos de variedades que
continham, também, números circenses. Na prática, artistas das várias
áreas ocupavam os mesmos espaços e atraíam o mesmo público; não
havia como negar a contemporaneidade entre espetáculo circense e
outras produções artísticas, em particular as teatrais e musicais, e o
quanto o linguajar e a prática circense estavam presentes nas atividades
de outras artistas “não circenses” (Silva, 2010, p. 73).
uma grande tradição de cabarés na cena circense, mas nem sempre esses
estão preocupados com essa carga “revolucionária” característica da linguagem.
Apesar disso, percebe-se uma rede de cabarés de comicidade feminina se
formando, principalmente na América Latina (com representantes em todas as
regiões brasileiras). Com o passar dos anos, a força do circo contemporâneo e a
maior participação de mulheres, da população negra e da comunidade
LGBTTQIAP+24 potencializou o discurso e a transgressão estética do espetáculo.
Desde o princípio da criação do Cabaré das Divinas Tetas, havia a certeza de
que esse espetáculo não poderia se reduzir apenas a uma ideia genérica e
idealizada de “ser mulher”. Afinal, o que é o feminino? Como definir esse conceito?
Discutir o feminino pode ser também falar sobre a possível ausência dele? E seria
possível de fato alcançar essa ausência?
Pensar em termos de gênero nos remete ao clássico artigo de Joan Scott,
em que a historiadora norte-americana reconhece que “homem” e
"mulher" são “categorias vazias e transbordantes; vazias porque elas não
têm nenhum significado definitivo e transcendente; transbordantes
porque, mesmo quando parecem fixadas, elas contêm ainda dentro delas
definições alternativas negadas ou reprimidas” (Saavedra, 2011, p. 37).
24 A sigla LGBTQIAP+ se refere a lésbicas,
gays
, transexuais, transgêneros, travestis,
queer
, intersexo, assexuais,
pansexuais entre outras identidades de gênero e orientações sexuais.
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A plataforma de criação Divinas Tetas e o espetáculo
Cabaré das Divinas
Tetas
nasceram juntos, em 2017, na cidade de Belo Horizonte, pelo ajuntamento
de artistas de diversos grupos e trajetórias. Sem qualquer tipo de financiamento e
pouco conhecimento teórico e acadêmico sobre a linguagem específica do cabaré,
esse coletivo fez sua primeira apresentação em um improvisado espetáculo de
variedades. O local escolhido foi a Casa Circo Gamarra – um misto de alojamento
para artistas viajantes, local de treino e centro cultural administrado pelo artista
circense argentino radicado no Brasil, Diego Gamarra25.
A Casa Circo Gamarra está localizada próximo à Vila Dias, uma comunidade
periférica do bairro Santa Tereza, conhecida como reduto boêmio da capital
mineira, berço de grupos, blocos de carnaval e demais movimentos artísticos
expressivos tanto na região belo-horizontina quanto nacionalmente, como o Clube
da Esquina26. A espacialidade é fundamental para um espetáculo de cabaré, e a
Casa Circo Gamarra dispunha do local ideal para encontro de palhaças,
drags
,
cabaretas27 e o público. Como afirma Cleber Braga, “historicamente, a
espacialidade do cabaré permitiu o desenvolvimento de uma teatralidade que não
oculta nem silencia seu público, ao contrário, convida-o à transgressão das
convenções sociais” (Braga, 2021, p. 12).
O formato do
Cabaré das Divinas Tetas
– cujo nome tem como inspiração a
música
Vaca Profana
, de Caetano Veloso se aproxima do Teatro de Revista, ao
ser entendido como espetáculo de variedades. Nas palavras da pesquisadora
Neyde Veneziano:
Que podem ser separadas em compartimentos, em seções, sem que haja
interferência de informação de um para o outro. São os espetáculos de
25 Segundo Gamarra, o lugar funciona como “Um porto-seguro dos ‘viajeiros’”, explica o artista de 40 anos,
com seu sotaque portenho. Construído nos últimos dez anos, de forma colaborativa e com materiais
descartados, a casa conta hoje com oito quartos, seis banheiros e três cozinhas, além de um picadeiro para
os circenses ensaiarem sua arte.” Disponível em: https://www.hojeemdia.com.br/entretenimento/picadeiro-
de-sonhos-casa-circo-gamarra-acolhe-artistas-circenses-de-passagem-pela-capital-1.615417. Acesso em:
jun. 2022.
26 De acordo com o
site Wikipédia
, o “‘Clube da Esquina’ é um termo usado para se referir a um grupo de
músicos, compositores e letristas, surgido na década de 1960 em Belo Horizonte Minas Gerais. Tendo
figuras como, Milton Nascimento, Toninho Horta, Wagner Tiso, Borges, Beto Guedes e rcio Borges, a
sonoridade do Clube da Esquina é intensamente caracterizada como inovadora.” Disponível em :
https://pt.wikipedia.org/wiki/Clube_da_Esquina. Acesso em: jun. 2022.
27 O termo “cabareta” é utilizado para referenciar artistas de cabaré.
Cabaré das Divinas Tetas
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variedades nos quais um esquete pode ser seguido de um número de
dança, que por sua vez poderá ser seguido por um quadro de
malabaristas ou por uma declamação sentimental etc. Seguem tal
modelo o circo, a pantomima, o music-hall, o cabaré, a ópera bufa, o
Teatro de Revista (Veneziano, 2013, p. 24).
Sempre trabalhando com comicidade e música, o
Cabaré das Divinas Tetas
consegue tocar em assuntos tabus como menstruação, identidade de gênero,
sexo-gênero dissidentes, liberdade sexual, autoritarismo, entre outros. O roteiro é
aberto, o que significa que a cada apresentação tanto os números quanto a ordem
podem ser modificados, exceto quatro cenas coletivas coreografadas que
acontecem no início, no meio e no final do espetáculo, que servem para guiar a
dramaturgia geral da peça. sempre participações especiais, e o espetáculo
como era de se esperar de uma peça de palhaçaria,
drag
e cabaré se adapta
continuamente com o intuito de se atualizar. Em 2022, a plataforma de criação
estreia sua segunda montagem intitulada Ladeira a Bausch, com direção de
Christina Streva, mergulhando mais profundamente no universo cabareteiro e
tendo, conforme sua identidade, a presença em cena de palhaças e
drags
.
Palhaçaria feminina, arte
drag
e cabaré
Uma percepção que foi aflorando à medida que o grupo experienciava cada
vez mais o cabaré é a grande proximidade que existe entre a linguagem da
palhaçaria principalmente com recorte de gênero e a arte
drag
. Certamente
cada arte tem suas particularidades, mas o fato de se montar, a busca por uma
expressão que tem como matéria-prima a própria experiência, o humor, o jogo do
improviso, a relação direta com o público, tudo é um diálogo direto entre as duas
expressões artísticas. Uma simples definição da arte drag diz respeito a
performatividade de gênero: e a palhaçaria feminina não seria, também, uma
performatividade de gênero? Seria a peruca o “nariz vermelho” da
drag
? Em seu
livro
Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade
, Judith Butler
aborda a diferença entre sexo anatômico, identidade de gênero e performatividade
de gênero, analisando-a sob a perspectiva da arte
drag
:
A performance do
drag
brinca com a distinção entre a anatomia do
performista e o gênero que está sendo performado. Mas estamos, na
verdade, na presença de três dimensões contingentes da corporeidade
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significante: sexo anatômico, identidade de gênero e performance de
gênero. Se a anatomia do performista já é distinta de seu gênero, e se os
dois se distinguem do gênero da performance, então a performance
sugere uma dissonância não entre sexo e gênero, e entre gênero e
performance. [...] Ao imitar o gênero, o drag revela implicitamente a
estrutura imitativa do próprio gênero assim como sua contingência
(Butler, 2003, p. 196).
Apesar de a anatomia do performista não ter que ser necessariamente
diferente do gênero que está sendo performado existem muitas pessoas que se
identificam como mulheres e atuam como
drag queens
, por exemplo –, essa
citação de Butler é importante para entender essa persona como uma expressão
artística de determinado gênero. E tanto palhaças como palhaços, mesmo sem
precisar dialogar diretamente com algum tema caricatural de certo gênero,
também performam sobre aquilo com que o artista se identifica ou que pretende
questionar o que se configura sempre como uma performatividade de gênero.
Nas palavras de RuPaul28, “Nascemos nus, o resto é
drag
29.
Ao se fazer uma análise um pouco mais profunda sobre a performatividade
da palhaçaria para depois entender sua relação com a linguagem de cabaré e arte
drag
, é necessário buscar e elencar quais são as características estéticas e
dramatúrgicas de cada expressão artística. Lili Castro explicita a ligação direta da
palhaçaria com os conceitos ligados aos “
Estudos da Performance
”:
Na arte performática, a tendência é o engajamento total do artista, que
se expõe e corre riscos, colocando em cena sua presença, jogando com
seu corpo e com suas qualidades expressivas. A espinha dorsal deste tipo
de espetáculo não é uma figura fictícia criada a partir de um texto
dramático, mas o próprio intérprete em suas ações. Ao invés de um
personagem, o ator joga com sua persona artística. É instaurada uma
estética que evidencia a presença, em oposição ao paradigma da
representação mimética. Trata-se de criar algo a partir de si, de colocar
em cena uma referência à sua própria identidade” (Castro, 2019, p. 98).
Nesse trecho, ao descrever uma interseção entre a palhaçaria e estudos da
28 RuPaul Andre Charles (San Diego, 17 de novembro de 1960), mais conhecido como RuPaul ou Mãe das
Drags
,
é um ator,
drag queen
, supermodelo, autor e cantor americano, que se tornou conhecido nos anos 1990,
quando apareceu em uma grande variedade de programas televisivos, filmes e álbuns musicais. [...] Desde
2009, ele produz e apresenta o reality show de competição
RuPaul's Drag Race
, pelo qual recebeu quatro
prêmios Emmy, em 2016, 2017, 2018 e 2019, como melhor apresentador de
reality show
. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/RuPaul. Acesso em: 29 jan. 2023.
29 Essa frase foi retirada da canção
Born Naked
, de RuPaul Andre Charles.
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performance
, Lili Castro demonstra também a ligação entre
performance
,
palhaçaria, arte
drag
e a própria linguagem de cabaré. Em todos esses conceitos,
trabalha-se a ideia de
persona
, da criação artística com base no próprio ator ou
atriz que a desenvolve. O jogo cênico, presente tanto nas palhaças quanto nas
drags
e cabaretas, é vivo. Assim, por mais que haja estruturas cômicas mínimas
por trás da ação performática, a atuação depende intensamente da reação do
público, o que invariavelmente implica participações ativas no espetáculo
mesmo que involuntárias. Esses elementos trazem a sensação de frescor e de que
tudo pode acontecer no espetáculo, pois o imprevisto e o improviso estão
constantemente em jogo. Dessa forma, Castro diz que “O palhaço, relacionando-
se e improvisando, não somente se expõe a riscos e fracassos, mas, sobretudo,
faz do erro matéria-prima de sua criação” (Castro, 2019, p.103).
Além de a palhaçaria trabalhar diretamente com o erro, a palhaça ou o
palhaço são o próprio erro – assim como a persona drag. Algo que não se encaixa,
que escapa da norma, ao mesmo tempo em que brinca com ela e a usa para seu
próprio deleite. Certamente que o erro, como diz Lili Castro, é a grande matéria-
prima da palhaçaria em geral, mas drags e cabaretas30 também se utilizam desse
artifício para prender a atenção do público e fazer com que as pessoas se
identifiquem ou estranhem o que acontece em cena. Nessa ligação direta entre
palhaçaria e arte drag, citamos as palavras de Manuela Castelo Branco, a palhaça
Matusquela:
Outrossim, acredito que, na palhaçaria feminina hoje, busquemos por
nossas mulheridades a partir do que emana desde a pessoa da intérprete
e criadora até a “criatura” palhaça em fricção com a realidade que se
apresenta: machista, misógina, racista, colonialista, conservadora, entre
outras. E como penso nessa travestilidade da palhaçaria como uma
travestilidade sempre autopoética, aí sim, reencontramo-nos cara a cara,
palhaças, palhaços e drags. Afinal, uma drag também pode ser entendida
como uma obra de arte baseada numa travestilidade autopoética para
além das questões de gênero que todas essas obras de arte parecem
carregar, certo? (Cardoso, 2020, p. 162).
Inevitavelmente, várias perguntas emergem de todas essas reflexões.
30 O erro, nas linguagens
drag
e cabaré pode não estar presente escancaradamente, como acontece
comumente em cenas de palhaçaria, mas também subjetivamente ao se pensar a drag como uma
performance de gênero e de cabaretas, que utilizam
a priori
uma linguagem transgressora e sarcástica. O
erro se refere aos padrões estéticos e comportamentais que a sociedade espera de cada indivíduo.
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fronteiras para a palhaçaria? Existiria o conceito palhaça-
drag
ou
drag
-palhaça, ou
estaríamos sendo redundantes? A expressão artística de uma palhaça que
investiga trejeitos e pensamentos majoritariamente masculinos poderia ser
chamada de palhaço-
king
(na junção de
drag king
com palhaço)? Por que,
inicialmente, pensamos que palhaçaria feminina deveria ser realizada por
mulheres, sejam elas cis ou trans? Não seriam os seres compostos pelo equilíbrio
(ou não) entre masculino e feminino? Seria possível um homem (cis ou trans) criar
uma obra considerada como palhaçaria feminina? Pessoas não-binárias poderiam
realizar obras de palhaçaria feminina?
A citação da Manuela Cardoso é importante nesse contexto por ser, até o
momento, o único texto a que tivemos acesso com uma ligação direta entre a
linguagem da palhaçaria e a arte
drag
. Cardoso reconhece, no trecho citado, essa
“travestilidade autopoiética" em que se encaixam artistas
claunesco
s,
transformistas e cabaretas, ao trazerem como matéria-prima de suas
performances
sua própria vivência e olhar sobre o mundo, por meio de suas
personas
.
Atualmente, uma grande crítica, dentro do movimento de mulheres
palhaças, ao conceito “palhaçaria feminina”. Percebe-se que esse conceito muitas
vezes limita, em vez de expandir como se palhaças fossem obrigadas a expressar
padrões que simbolizam o comportamento de uma mulher heteronormativa,
buscando sempre imprimir a estética do dito feminino. De acordo com Judith
Butler, as pessoas não nascem com suas identidades de gênero
preestabelecidas. Pelo contrário, essas identidades são fabricadas e criadas a
partir da vivência no mundo e dos aprendizados de normas pela repetição de
signos que têm como função regulamentar padronizar os corpos no sentido de
determinado gênero.
Se a verdade interna do gênero é uma fabricação, e se o gênero
verdadeiro é uma fantasia instituída e inscrita sobre a superfície dos
corpos, então parece que os gêneros não podem ser verdadeiros nem
falsos, mas somente produzidos como efeitos da verdade de um discurso
sobre a identidade primária e estável (Butler, 2003, p. 195).
É certo dizer que, como explicita a palhaça e pesquisadora Ana Carolina
Müller Fuchs, “a palhaçaria feita por mulheres é um espaço de luta política” (2022,
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p. 34). E é fundamental que esse espaço seja valorizado e priorizado ao se pensar
nessa outra forma de expressar a comicidade que por séculos foi pensada e
protagonizada pelo universo masculino. Porém, é uma grande armadilha para essa
luta formatar e padronizar essa palhaçaria, supondo-se que se origina toda do
mesmo ponto de partida. Fuchs propõe um olhar sobre o fazer da mulher palhaça
“tendo como princípio a ideia de feminino como um espaço de ruptura, de
multiplicidade, de diversidade, de proliferação de formas de gênero que, mesmo
contendo os referenciais heteronormativos” (2022, p. 37), busca ainda assim o
rompimento desse conceito. Movimento esse que ela intitula de “palhaçaria
feminino-feminista” (2022, p. 37).
Essas questões vêm ao encontro do que a palhaça e pesquisadora Melissa
Caminha fala da necessidade de “desconstruir a comicidade patriarcal”. Segundo
Caminha (2022, p.246),
Desconstruir a comicidade patriarcal implica, portanto, repensar o
conceito de humano, humanidade, monstro, monstruosidade,
feminilidade, masculinidade, diferença, normalidade, cidadania,
descapacidade, entre outros tropos conceituais e discursivos que
utilizamos em nossas práticas como artistas, pedagogas e ativistas,
militantes em prol de uma democracia do riso.
Se pensarmos que a criação artística na palhaçaria, na arte
drag
ou na
linguagem de cabaré deve passar quase obrigatoriamente por uma pesquisa e
trajetória do indivíduo artista antes de se apresentar ao mundo, é fundamental
que esse processo respeite irrestritamente a expressividade de cada ser em
relação a seu gênero, seus gostos e sua essência.
Ao se analisar a origem do termo “comicidade feminina”, ou mesmo o seu
recorte mais específico, “palhaçaria feminina”, percebe-se que inicialmente foram
criados para se diferenciar da comicidade e palhaçaria realizadas por homens. “
Y
también como forma de contra producir una comicidad de payasas lejos del modo
hegemónico de masculinidad que encontramos en muchas performances de
payasos y en la historia del circo y del teatro
(Caminha, 2015, p. 129). Porém, o
discurso e os questionamentos acerca de gênero e identidades foi se
aprofundando com o passar do tempo e, como abordado anteriormente, o
“feminino” muitas vezes trai seu próprio propósito de libertar, ao ditar regras e
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expectativas sobre gestos, discursos e posturas.
Entendemos que, assim como o movimento feminista, em algumas de suas
manifestações, ajudou a criar mais espaços para a luta LGBTQIAP+31 e vice-versa
–, o movimento de palhaçaria feminina também escancarou as portas do circo
para outras manifestações de gênero, corpos e poéticas dissidentes. Claro que
ainda estamos longe de um ambiente realmente democrático e inclusivo, mas a
cada dia as pautas ganham mais espaço. É muito importante que mulheres
palhaças marquem seu lugar e se fortaleçam nessa realidade patriarcal e
normativa (dentro e fora do circo), mas é indispensável que se respeitem todas as
corporeidades e expressões por mais diversas que possam ser.
Sin embargo, esta “comicidad femenina” a pesar de la fuerza política
que tuvo en un primer momento, de reivindicar el oficio de payasa con
“a” y apostar por incluir diversas feminidades en performances y
discursos , limita seriamente cuerpos, formas y discursos cómicos de
mujeres que no se identifican con la idea de feminidad. Este tema es
bastante importante si traemos para la payasaría aportaciones feministas
y queer sobre la construcción de la identidad de género, del deseo y la
sexualidad. Lo femenino y la feminidad han sido y continúan siendo
categorías de sexo y género bastante criticadas por inúmeras mujeres y
feministas que encuentran en ello una de las principales categorías
culturales que las mujeres deben combatir no sólo en su lucha por la
libertad e igualdad, sino que en la lucha por la desestabilización de la
norma en tanto disciplina que restringe la sexualidad, el deseo y la vida
misma.
[...] sigo creyendo que la categoría “comicidad femenina” no es la
adecuada para un arte que se propone subversiva y contestadora como
es el arte de la payasa (Caminha, 2015, p. 130).
E, voltando à problematização sobre homens (cis ou trans) ou pessoas não-
binárias poderem ou não produzir comicidade feminina, por que não? Pensamos
que é uma tarefa “um bocado” problemática e trabalhosa para o homem cis,
devido a todo seu lugar de privilégio em uma sociedade na qual se encontram “no
topo da cadeia alimentar”. Mas quem sabe? Ademais, muito mais nos interessa
uma comicidade ou palhaçaria feminista do que simplesmente feminina.
Todo esse não lugar na sociedade heteronormativa expresso por grupos
marginalizados, como mulheres e comunidade LGBTQIAP+, traz para a estética do
31 Além de outras lutas de minorias políticas, mas principalmente movimentos que dialogam diretamente com
gênero, mulheres negras e gordofobia, por exemplo.
Cabaré das Divinas Tetas
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drag
e feminismos
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espetáculo
Cabaré das Divinas Tetas
um clima de urgência e liberdade que
diretamente se conecta aos estudos sobre a linguagem de cabaré. E, no momento
em que esse processo é capitaneado por figuras artísticas também
marginalizadas, como as palhaças – e aqui é importante dizer sobre as mulheres
e artistas transformistas, toda a performatividade se potencializa como forma
de comicidade aliada à contestação crítica, política e social.
Gêneros dissidentes, corpos dissidentes, país em decadência. Estamos em
guerra, e quais são nossas armas? Por aqui, narizes vermelhos, perucas, purpurina
e paetês. A revolução vem por meio do riso.
Click, bum
! E o espetáculo tem que continuar.
Referências
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prosa, verso e rebolado!.
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Recebido em: 30/01/2023
Aprovado em: 31/05/2023
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br