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A palhaçaria feminista do
Circo di SóLadies | Nem SóLadies
Entrevista com Kelly Lima, Tatá Oliveira, Verônica Mello
(integrantes do Circo di SóLadies | Nem Só Ladies)
Concedida à Fernanda Dias de Freitas Pimenta
Para citar este artigo:
PIMENTA, Fernanda Dias de Freitas. A palhaçaria
feminista do Circo di SóLadies | Nem SóLadies.
[Entrevista concedida a Fernanda Dias de Freitas
Pimenta].
Urdimento -
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v.1, n.46, p.1-27, abr. 2023.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101462023e0503
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
A palhaçaria feminista do Circo di Nem SóLadies
Entrevista concedida a Fernanda Dias de Freitas Pimenta
Florianópolis, v.1, n.46, p.1-27, abr. 2023
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A palhaçaria feminista do Circo di SóLadies | Nem SóLadies
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Fernanda Dias de Freitas Pimenta
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Resumo
O Circo di SóLadies | Nem SóLadies é um grupo de palhaçaria que costuma
trazer, em suas dramaturgias, realidades e temas relativos ao universo das
mulheres, de pessoas não binárias, e daqueles que são considerados corpos
dissidentes, os não privilegiados pelo patriarcado. Se intitulam fazedoras/e de
palhaçaria feminista, preterindo o termo feminina. O grupo discorre sobre
seus trajetos de formação, os paralelos entre palhaçaria e gênero, assim
como suas pesquisas e vivências. O texto é fruto da primeira parte de
entrevista1 realizada com o grupo em outubro de 2021.
Palavras-chave
: Circo di SóLadies | Nem SóLadies. Feminismos. Palhaçaria
feminista. Estudos de gênero.
The feminist clowning of the Circo di SóLadies | Nem SóLadies
Abstract
Circo di SóLadies | Nem SóLadies is a group of clowns that usually bring, in
their dramaturgies, realities and themes related to the universe of women,
non-binary people, and those who are considered dissident bodies, those note
privileged by the patriarchy. They call themselves feminist clowning makers,
neglecting the term feminine. The group discusses their training paths, the
parallels between clowning and gender, as well as their research and
experiences. The text is the result of the first part of an interview with the
group in October 2021.
Keywords
: Circo di SóLadies | Nem SóLadies. Feminisms. Feminist clowning.
Gender studies.
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A entrevista na íntegra está disponível no link: https://youtu.be/eM0L9QLc5ww
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Doutorado em Artes Cênicas, pela Universidade de Brasília (UnB). Mestrado em Artes da Cena, pela
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Graduação em Direito, pela Pontifícia Universidade Católica
de Goiás (PUC Goiás). freitasfefe@yahoo.com.br
http://lattes.cnpq.br/1867774120856758 https://orcid.org/0000-0002-1311-4176
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La payasada feminista del Circo di SóLadies | Nem SóLadies
Resumen
Circo di SóLadies | Nem SóLadies es un grupo de clowns que suele traer, en
sus dramaturgias, realidades y temas relacionados con el universo de las
mujeres, las personas no binarias y las que son consideradas cuerpos
disidentes, no privilegiados por el patriarcado. Se autodenominan payaseras
feministas, dejando de lado el término femenino. El grupo discute sus
caminos de formación, los paralelismos entre el clown y el género, así como
sus investigaciones y experiencias. El texto es el resultado de la primera parte
de una entrevista con el grupo en octubre de 2021.
Palabras clave
: Circo di SóLadies | Nem SóLadies. Feminismos. Payasadas
feministas. Estudios de género.
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Entrevista concedida a Fernanda Dias de Freitas Pimenta
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Um dos grupos de palhaçaria mais atuantes no Brasil é o Circo di
SóLadies | Nem SóLadies
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, de São Paulo. O grupo
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é conhecido no meio da
palhaçaria por desenvolver espetáculos, cenas e vídeos, com temáticas que
abordam dramaturgias feministas. São criações que questionam e refletem sobre
as condições de vida de mulheres e os demais oprimidos pelo patriarcado vigente.
O grupo concedeu a entrevista de maneira
online
, em outubro de 2021.
O Circo di SóLadies | Nem SóLadies se intitula um grupo de palhaçaria
feminista, mesmo sabendo que o termo pode gerar preconceitos em ambientes
conservadores. Consideram que a palhaçaria feminista é um meio de exercer
questionamentos, pois busca cobrar e pressionar a equidade entre gêneros. A
hegemônica palhaçaria masculina por vezes apresenta dramaturgias que não
condizem com a ideia de equidade de gênero, principalmente números da
palhaçaria clássica, também chamada de tradicional.
Como relatou a palhaça Karla Concá em relação à algumas palhaçarias
masculinas (Brum, 2018, p.461):
A mulher que está assistindo, muitas vezes, se sente violentada, por
que as gags são sempre batendo, são sempre com um porrete batendo
na mulher, ou correndo atrás da mulher, sempre colocando a mulher em
uma situação de inferioridade, sexualização e submissão.
Na esteira de uma dramaturgia própria e que explicitasse seu posicionamento
3
O Circo di SóLadies | Nem SóLadies, que completa 10 anos em 2023, é um grupo formado por artistas que
pesquisam a linguagem cômica na cena teatral, circense e audiovisual. O grupo foi criado em 2013 partindo
da percepção de que havia ainda um pequeno espaço dado à mulher nas artes cênicas em se tratando de
comicidade e linguagem da palhaçaria. Desde o início da formação do grupo, trabalham com criação de
esquetes, intervenções cênicas e espetáculos com dramaturgia própria, utilizando o jogo cênico, o improviso
e estudos teóricos sobre o feminismo, como elementos fundamentais para a conexão e interação com o
público, estimulando imaginação para a conquista do estado da graça e do riso. O grupo criou, em 2017,
um canal no
YouTube
, se aprofundando na linguagem audiovisual e conta com um repertório de espetáculos
e intervenções, entre eles: o infantil "
Estupendo Circo di SóLadies
", que circulou pelo Circuito SESC de Artes
2019 e no Itaú Cultural; o infanto/juvenil "
Choque-Rosa
", com direção de Luciana Viacava, e circulou na
Mostra Sesc Cariri de Culturas 2018-Ceará, o espetáculo "
A Tenda
", dirigido por Karla Concá, do Grupo As
Marias da Graça (RJ). Em 2021 o grupo foi contemplado pelo Fomento ao Circo com o projeto "
Des.Cantadas
o Show
", e estrearam em setembro de 2022 o espetáculo/
show
musical Concerto em Cores com direção
de Tereza Gontijo.” Texto disponível no site do Circo di SóLadies | Nem SóLadies, no seguinte
link
:
https://circodisoladies.com.br/ Acesso em: 29 dez. 2022.
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O grupo Circo di SóLadies | Nem SóLadies antes se chamava apenas Circo di SóLadies. A mudança no nome
se deu em decorrência do reconhecimento identitário de Tatá, que a partir de 2021 passou a se reconhecer
como pessoa não binária. Por isso, por vezes elas/ile ainda dizem, inclusive durante a entrevista, apenas
Circo di SóLadies.
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contrário à condição de vida daqueles que não desfrutam dos privilégios do
patriarcado, o Circo di SóLadies | Nem SóLadies se utiliza de diversas ferramentas.
Dentre elas, para exemplificar, algumas que são recorrentes entre palhaças: a
releitura de cenas clássicas e a paródia. A releitura de cenas da palhaçaria
clássica acontece, na remontagem do grupo, adotando uma ótica feminista,
colocando a mulher (e pessoas
queer
) e os temas que circundam a vida dela,
como elementos que protagonizam a cena. Paródia também é outro instrumento
dramatúrgico bastante utilizado pelo grupo. Elas/ile subvertem músicas misóginas,
machistas e/ou violentas, em obras disparadoras de riso e reflexão entre os
espectadores.
A entrevista faz parte da pesquisa de Doutorado provisoriamente intitulada
Subversivas: dramaturgias feministas na palhaçaria de mulheres
, desenvolvida na
Universidade de Brasília
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, desde setembro de 2020. O estudo se baseia na análise
de obras cênicas de palhaças brasileiras contemporâneas, identificando os
elementos dramatúrgicos feministas contidos nas criações.
Kelly Lima (palhaça Greice), Tatá Oliveira (palhace Augustine) e Verônica Mello (palhaça
5
A pesquisa teve o apoio da Capes, de abril de 2021 a abril de 2022. No momento, a pesquisa conta com a
bolsa da FAP-DF, desde setembro de 2022. A orientação é da Profa. Dra. Nitza Tenenblat.
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Úrsula), em foto de divulgação do espetáculo Estupendo Circo Di SóLadies
6
.
Olá, eu sou Fernanda Pimenta, estou desenvolvendo a pesquisa de
Doutorado provisoriamente intitulada
Subversivas: dramaturgias feministas
na palhaçaria de mulheres
, desenvolvida na Universidade de Brasília, e estou
aqui com Tatá Oliveira, Verônica Mello e Kelly Lima, do Circo di SóLadies |
Nem SóLadies, grupo de palhaces de São Paulo. Sejam bem-vindes! Vou
começar então perguntando, na verdade, pedindo pra que vocês façam um
breve relato sobre a trajetória de vocês até se encontrarem e formarem o
Circo di SóLadies | Nem SóLadies.
Kelly Lima
- Eu posso começar, que eu sou a mais velha (risos)? Bom eu
sou a Kelly Lima, palhaça Greice. A minha formação acadêmica é em Jornalismo,
com Habilitação em Roteiro Para Cinema, TV, Teatro e Rádio. Trabalhei durante
algum tempo em agências de publicidade, na área de planejamento. E quando eu
tinha trinta e cinco anos eu tinha dois filhos adolescentes e me separei de um
relacionamento de vinte anos, um relacionamento super complexo, cheio de
abusos, e etc., e comecei a buscar um processo de me aprofundar um pouco mais
nas histórias e tentar, dentro desse aprofundamento, buscar também uma posição
profissional, porque a publicidade não me atendia. Eu precisava de um lugar
onde eu pudesse transcender toda essa vivência de trinta e cinco anos, que eu
tinha na época, e que eu precisava de mais espaços. Então eu comecei fazendo
cursos de teatro, contação de histórias, até chegar na linguagem da palhaçaria. E
a partir daí foi um apaixonamento, um encanto total, e eu comecei a me aprofundar
cada vez mais e decidi que era isso que eu queria fazer mesmo, né?!
A princípio eu falei “ah, vou trabalhar como produtora cultural”, sempre
pensei muito nos bastidores, assim, porque eu achava que o palco não era o meu
lugar, achava que era muita exposição pra mim, e etc. E aí eu fui percebendo que
havia um magnetismo pra estar ali no palco, pra olhar para o público, pra
compartilhar com parceires de cena... Então eu fui me encantando cada vez mais,
e eu fui me jogando cada vez mais, até que rompi completamente com a
publicidade e me tornei uma palhaça profissional. E é isso, passei por alguns
grupos, tanto de teatro quanto de palhaçaria. Tive um processo também onde
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Fonte: https://muralzinhodeideias.com.br/programese/criancas-emcasacomsesc-recebe-o-espetaculo-
estupendo-circo-di-soladies/
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trabalhei muito como voluntária, como palhaça de hospital. Aí conheci Tatá numa
das escolas, em uma das formações. E a gente trabalhou juntes num grupo de
palhaços de hospital e quando esse grupo acabou, eu fiquei meio órfã, assim, e aí
eu pedi abrigo, e foi isso. Me aceitaram! (risos) Agora eu passo a palavra.
Veronica Mello
- Vou pegar tá, porque eu sou a segunda mais velha! (risos)
Que besta isso (entre dentes, com ironia)! Bom, eu sou formada em Artes Cênicas
pela UNICAMP, eu formei em noventa e cinco isso revela idade (risos)! E aí, desde
que eu me formei eu participei de diversos grupos de teatro, meu foco era a
pesquisa de... eu fui pesquisar bastante a questão da performatividade por um
bom tempo, assim. Narratividade e performatividade no Teatro. Aqui em São Paulo
eu participei de vários grupos de teatro (com ênfase em “teatro”). E como que
apareceu a palhaçaria na minha vida: antes de eu começar a falar da palhaçaria,
eu também fiz pós graduação em Técnica Klauss Viana, que eu gosto muito dessa
pesquisa do corpo, do ator, da atriz, de atroz... Do ator em cena, né, dessa questão
do corpo, como que esse corpo pode transformar, criar novas relações, então por
isso a performance me pegou muito assim, a performatividade, e eu participei
de vários grupos pesquisando isso. Na UNICAMP, a minha relação com a palhaçaria
se deu dentro da UNICAMP mesmo, e depois com pesquisas, né?! Tinha o Lume
ali do lado, eu nunca fiz o Lume, mas tinha muitos colegas que faziam e eu assistia
muito. E eu vim vindo, né, dentro da pesquisa da performatividade, dessa relação
que eu acho que a palhaçaria se conecta muito. E eu fui pesquisando, eu
conheci Tatá, que a pessoa que é ‘mie companheire’ é difícil falar essa palavra
assim! (se referindo ao não binarismo de Tatá).
Tatá
- Minhe.
Verônica
- Minhe companheire! (risos) E assim, acho que o conhecimento
da palhaçaria se deu muito empiricamente, muito praticamente, e também a partir
de vários cursos que eu fui fazendo, e como Kelly também, né?! Então, até chegar
no Circo di SóLadies, eu tava no olhar de fora do Circo di SóLadies, sem estar
no grupo ainda. Fiz o olhar de fora, tipo Tatá e Lilian iam fazer um espetáculo,
performance, intervenção, e eu ficava de fora e falava “oh, porque vocês não
trabalham isso...” Tipo o olhar de fora “pitaquento” (risos), e dali, em 2016, eu, Kelly
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e Vanessa entramos pro grupo. Depois a gente pode falar, quando a gente for falar
da formação do grupo. E que eu acredito que se deu a formação da minha
palhaça. Meu nome é Verônica Mello e a minha palhaça se chama Úrsula, e essa
palhaça se fez na prática mesmo, essa palhaça como ela é. E no estudo do teatro,
porque eu acho que o teatro me interfere muito, o tempo todo assim. Eu posso
dizer que eu sou uma atriz/palhaça (diz se entreolhando com Tatá).
Tatá
- Ou uma palhaça atriz? É uma questão (risos)...
Verônica
- Primeiro eu sou uma atriz, pra depois ser palhaça. A ordem dos
tratores influencia no viaduto! (risos) E é isso, eu passo a palavra.
Tatá - Tá. Eu sou Tatá. Eu, antes de trabalhar com teatro e palhaçaria, eu era
designer. Eu nunca tive uma formação acadêmica até então. E eu sempre fiz
cursos técnicos, inclusive em Design (risos)! eu consegui trabalho, trabalhava
em empresa, em agência e tal, mas esse lado artístico sempre foi me provocando
assim, e eu, meu sonho era fazer alguma coisa de teatro, mas eu achava que
quem fazia teatro eram pessoas ricas. (risos) É gente! eu descobri um negócio
chamado Teatro Vocacional, em São Paulo, que é tipo um baita projeto incrível,
assim, e eu entrei. Ele é feito em equipamentos públicos da cidade de São
Paulo, e é um (para Verônica) você pode me ajudar a falar porque a Verônica deu
aula nesse programa... mas é meio amador, que não é amador, assim. Você
entra pra fazer teatro e tal e aí segue, né, tendo uma pesquisa política sobre o seu
espaço nas cidades, sabe? Então é bem legal, assim... (Verônica pede a palavra).
Verônica
- A ideia do Vocacional vem do processo do amador mesmo. O
amador no lugar do amor, porque amador vem do amor, de fazer por amor. E a
ideia do Vocacional, de vir com esse nome, tema ver com a pesquisa de tirar o
preconceito e o peso que vem desse lugar do amador. A palavra amador vem com
um peso negativo absurdo, assim. Mas amador é uma palavra linda, né, que vem
de fazer com amor, por amor. E o Vocacional surge nesse lugar, de trabalhar
com pessoas de diversos desejos. E de pensar que a pessoa pode ter um processo
emancipatório em relação a arte, se apropriado do fazer artístico de acordo
com a sua formação e com seu desejo. Principalmente é uma escolha do
caminho, do percurso, né?!
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Tatá
- Pois bem, esse programa vocacional me picou e aí eu fui imbuíde pelo
teatro, (risos)! eu quis me profissionalizar, eu comecei a trabalhar com grupo que
foi contemplado pelo Fomento ao Teatro de São Paulo, que era uma lei muito
Importante, né, de fomento de política pública na cidade, e eu entendi que eu
queria trabalhar com isso, comecei a trabalhar com isso. E aí no meio do caminho
surge a oportunidade de prestar a escola dos doutores da alegria, que era uma
formação de palhaço para jovens, na época era jovem que era até vinte e
quatro anos, não, era até vinte e três e eu tava, tipo, eu ia fazer vinte e quatro.
eu prestei a prova, entrei e fiz dois anos de formação em palhaçaria. em
seguida, quando terminou, eu entrei na SP Escola de Teatro, em São Paulo
também, que é uma escola pública, e eu comecei a fazer atuação. Então eu tive
uma formação meio de quatro anos, mas uma formação técnica, e
consequentemente no meio dessa formação surgiram o Circo di Sóladies | Nem
SóLadies, em 2013. Eu tava me formando na SP quando me juntei com Lilian
Teles pra criar o Circo di Sóladies que é a próxima pergunta e eu respondo daqui
a pouco. E aí, mesmo criando o Circo di Sóladies a gente ainda trabalhava com
muitas coisas, então a minha trajetória é com produção, técnica de palco,
palhaçaria, artista de cena, tipo tudo, né, que a gente vai se enfiando nessa arte
cênica, que às vezes não conseguimos fazer uma coisa. Mas é esse lado artístico
assim, no caminhar. É isso.
Verônica
- Ah, e você vai falar da sua faculdade?
Tatá
- Ah, é verdade, agora eu fazendo faculdade, olha só! (risos) Eu
fazendo faculdade de Sociologia e Política, mas no segundo semestre, ainda
tem chão! (risos)
Kelly
- Que aliás tem tudo a ver com a palhaçaria, né?!
Tatá
- Sim. Ainda mais neste momento do mundo!
Quais foram as mais importantes fases do grupo pra vocês?
Tatá
- Eu vou começar falando. Por que essa pergunta sou eu sempre que
respondo primeiro! (Risos) Bom, o Circo SóLadies surgiu em 2013. Eu e Lilian Teles
que pensamos, porque na época, né, mas eu acho que isso ainda é uma coisa
recente que a gente vai trazendo nas outras perguntas, assim, mas que havia
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pouco espaço dentro da palhaçaria para mulher palhaça. Então a gente foi
chamades para fazer uma intervenção dentro de um evento que era sobre
mulheres palhaças. E aí, a gente levou uma intervenção que era chamar mulheres
para fazerem parte do circo. E se criou no nome Circo di Sóladies pra essa
intervenção. Aí, o nome funcionou muito para essa. E as pessoas falavam “gente
que nome bom!”, “tá rolando”, daí a gente falou “ah, porque que a gente não monta
um grupo?” Oh, lembrando que memória é uma coisa muito doida, né, que ela se
transforma. Então, pode ser assim que para mim tenha sido um pouco isso,
mas que para Lilian tenha mudado também. Então essa é a memória que eu tenho,
sabe?! Enfim, a gente fez essa intervenção, virou o nome do grupo e ficou. E aí,
desde então, a gente apresentava intervenções nos lugares que chamavam,
sempre com essa ideia de olhar pra esse espaço da mulher palhaça dentro da
palhaçaria. Aí, isso foi em 2013, ou seja, a gente com oito anos de história.
Em 2016, entraram para o grupo Kelly, Verônica e Vanessa Rosa. a gente montou
os primeiros espetáculos juntes, a gente a gente criou o nosso canal do YouTube
em 2017, criou o primeiro espetáculo também em 2017, o
Estupendo Circo de
Sóladies
, porque até então a gente tinha intervenções e ações meio que em
grupo, né, cortejo, essas coisas assim, tipo, mais rapidinhas. E a gente foi
entendendo como era a nossa linguagem enquanto o grupo. O que a gente tava
querendo dizer. A gente sabia que era, tipo, que espaço é esse que não deixam a
gente entrar, e que a gente querendo entrar, né, era isso que a gente sabia.
Então o canal teve muito esse foco, de dar visibilidade à gente e a outras pessoas
também, que não tivessem, né?! a criação do espetáculo infantil, a gente
desconstrói músicas infantis e histórias infantis, então, já repensar também o que
construiu a gente como ser no mundo a partir da infância, questionando este lugar
- que até então a gente não se dizia feminista, mas que tava tudo ali, né, o desejo
de questionar essas estruturas. E aí...
Verônica
- A gente não se dizia feminista enquanto coletivo. A gente sabia
que era feminista individualmente, mas o grupo falava, a gente falava palhaçaria
feminina naquele tempo. Até porque tinham poucas...
Tatá
- Até porque era o que a gente conhecia: palhaçaria feminina. Que era
algo que tava começando a eclodir, tinha encontro de palhaçaria feminina. Aí,
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em 2017 também, a gente foi contemplades no final do ano por um projeto público
pelo Estado de São Paulo, que é o PROAC, pra montar um espetáculo novo, que se
chama
Choque Rosa
...
Verônica -
Com Que Armas Lutamos
.
Tatá
- ... Ou Com Que Armas Lutamos. Em 2018 a gente montou ele. E esse
espetáculo, você falou pra falar das fases, assim eu acho que esse espetáculo
ele traz muito um divisor de águas pra gente como grupo. Que foi um espetáculo
que, a Vanessa saiu no começo desse
Choque Rosa
, até então éramos quatro
no grupo, né, depois que a Van saiu, e éramos ali naquele momento três
mulheres brancas e uma mulher negra. Três mulheres cis brancas, e uma mulher
cis negra ali, nesse conjunto de grupo. E aí, nisso, a gente tinha uma dramaturgista
feminista, que era o nosso desejo, ter alguém que provocasse essa dramaturgia
feminista dentro da palhaçaria, porque a gente também não via isso na palhaçaria,
sabe, no sentido de entrar em meandros, em delicadezas, assim, que não estavam
sendo ditas. Inclusive, eram quatro mulheres cis, mas havia ali a diversidade
daqueles corpos que não são tratados da mesma maneira dentro da sociedade. E
isso foi pra dentro do espetáculo, isso foi muito forte pra gente como grupo, né,
muitos entendimentos, muitos estudos, muitas dores, muitas revisões de quem a
gente era, como a gente se constituía. Então, por isso eu digo que foi um divisor
de águas como um grupo feminista. Como um grupo, é isso! Porque como pessoas
nós já éramos, cada uma no seu grau ali, né. E aí a partir do
Choque Rosa
a gente
começou a entrar numa potência e dizer “tá, é isso que a gente quer dizer pro
mundo, como a gente vai dizer tudo a partir daqui”. Porque eu acho que o
Choque
Rosa
veio pra ensinar muito a gente, porque tipo, “olha, num é tudo igual”, não é
porque é palhaçaria feminina que tá todo mundo no mesmo balaio. Não é porque
é palhaçaria feminista que é tudo igual, sabe, tipo “ah, vamos fazer a cena e
tudo lindo”. Não! Tinham questões e a gente queria colocar essas questões em
cena. Porque a gente poderia escolher não falar. E a gente entende que a gente
enquanto grupo queria falar. E a gente entendeu que em todos os nossos
trabalhos posteriores a isso, isso aconteceu!
Verônica
- E retrospectivamente também, porque até o próprio espetáculo
que a gente já tinha, que é o
Estupendo
, que já era questionador de várias coisas,
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a gente a partir desse olhar também, a gente também começou a rever algumas
questões desse espetáculo, então ele começou a se transformar. Tanto é que esse
é o espetáculo que e gente mais faz e o que mais se transforma na história da
humanidade do grupo (risos).
Tatá
- Eu acho que é isso, assim... Aí depois a gente criou
A Tenda
, que é um
espetáculo que a gente trata sobre a violência doméstica. A gente tem várias
intervenções, como, por exemplo, a gente tem o cortejo do carnaval que a gente
faz a desconstrução de várias marchinhas, que muitas são machistas,
homofóbicas, transfóbicas, sabe, tipo, tudo num repensar tudo o que dado
pra gente, e usar a palhaçaria como uma ferramenta dentro desse... e eu acho que
é um desafio, né?! É um desafio, porque o feminismo vem de um lugar muito
cabeçudo, de um lugar muito teórico. E realmente pra gente estudar o feminismo
é teoricamente. E a gente faz um pouco esse trabalho de fazer esse caldo, e aí, às
vezes, a gente também é cabeçude, a gente percebe e a gente não liga de ser
cabeçude, sabe, tipo “ah não, vamo enfiar ali mesmo um negócio pra fazer isso
dar um caldo de pensamento”. E, às vezes, a gente vai ali no número clássico
mesmo e brinca com o número clássico que já funciona. Um pouco isso, assim.
Verônica
- Mas acho importante falar dessa fase que a gente está agora, que
é de questionamento do próprio nome, do próprio lugar de Circo di SóLadies,
porque hoje nós não somos apenas ladies, né?!
Tatá
- Eu vou falar então (risos). Eu, Tatá, sou uma pessoa não binária e
uma pessoa trans não binária, então eu não me entendo mais como uma pessoa
cis então a gente neste momento. Eu acho que a palhaçaria feminista nos
faz olhar pra esse lugar com uma leveza, né, no sentido de: são os processos que
a gente vivendo e como a gente repensa os nossos espaços dados, que até
então estavam dados e agora não são mais, e eu acho que isso faz parte de
qualquer ser, né?! Eu acho que o feminismo vem positivamente pra gente também
nesse sentido, de olhar pra individualidade de cada pessoa e entender, tipo, agora
a gente nesse processo de mudança de nome, que a gente não sabe ainda
nesse momento que vocês estão vendo. (risos).
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Vocês atuam num contexto predominantemente dominado pelo patriarcado,
a palhaçaria assim como a vida, né?! Quais as maiores dificuldades
encontradas por vocês no dia a dia? Vocês passaram por algum episódio
misógino ou machista? E se sim, como é que foi?
Tatá -
Eu não vou responder essa, eu queria dizer que eu esqueci de contar
uma coisa. A Lilian saiu em 2019 do grupo, e a constituição atual somos nós três.
É isso, eu acho que era importante porque tem a ver com a trajetória, né?!
Verônica
- E a gente tem uma palhaça maravilhosa que participa do
Choque
Rosa
, que é a Loi Lima. A palhaça Ursa Maior, que é maravilhosa, incrível! (Para
Kelly) Ké, responde essa aí! (risos).
Kelly
- Bom, acho que as principais dificuldades dentro desse sistema
hegemônico patriarcal é... são muitas na real, mas acho que assim, vou começar
falando dessa questão dessa equidade mesmo de tratamento que a gente recebe
na participação de eventos de circo e de palhaçaria. Hoje, depois que a gente fez
a... desde o início da pandemia, a gente criou o projeto
SóLadies Interviu
, que
existia antes da pandemia, e a gente passou a fazer lives, etc., e durante a
pandemia foram mais de sessenta entrevistas que a gente fez. A gente trouxe
muita gente. Gente que a gente conheceu nos festivais, que a gente conheceu
através das redes sociais, e a gente percebe que existe uma diversidade gigantesca,
e que, muitas vezes, esses eventos ditos tradicionais do circo ou da palhaçaria não
abarcam, né?! Então, são muitas pessoas! É uma diversidade muito grande e o que
a gente percebe muitas vezes, é que a gente ainda é tratade como cota dentro
desses eventos. Tipo, “Ah então tá, vamos chamar aqui um grupo de mulheres
palhaças, uma palhaça, ou palhace”, entende? Ainda existe essa predominância cis,
masculina, branca, hétero, etc. E dentro desse contexto também a gente percebe
que existe uma diferença de tratamento, por exemplo, na hora da contratação. A
gente teve um episódio que pra gente foi até muito chocante e a gente tem ele um
pouco entalado na garganta até hoje. Quando a gente foi contratade pra um evento
fora de São Paulo, e aí por acaso a gente recebeu a informação errada. Mandaram
um e-mail pra gente e a gente descobriu que um palhaço que estava fazendo um
espetáculo solo estava recendo o dobro do cachê de nós três juntes! E ele tava
recebendo passagem aérea, hospedagem, etc., e a gente tava indo por conta. Então
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Entrevista concedida a Fernanda Dias de Freitas Pimenta
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isso é uma grande diferença, sabe?! Isso faz total diferença dentro de um grupo
que está se posicionando e abrindo espaço para trabalhar profissionalmente.
Então daí vem, a gente ouviu, a lembra tipo “ah, porque a palhaçaria
feminista, ou feminina, ou qualquer palhaçaria que não seja a tradicional masculina
cis, branca, hétero, etc., não tem tanta qualidade?”. Como, quando e de que forma
vamos ter se a gente não é bem remunerade, se os espaços não são abertos pra
gente? De que forma a gente vai conseguir essa qualidade toda, essa dita qualidade
toda, se a gente sempre trabalhando na cota, a gente sempre sendo
considerade como cota. Eu acho que isso daí é uma das coisas que a gente sente
ainda bastante...
Verônica
- um à parte, pra complementar algo que você (Kelly) disse. Além
dessa questão de ter espaço pra poder estar nos lugares, que tipo de palhaçaria é
considerada boa? Qual é a palhaçaria que essa pessoa que me disse isso “ah, eu
sou super a favor dos encontros de mulheres palhaças... mas sabe, tem muita
coisa pra melhorar na qualidade”, qual é a qualidade, né, que essa pessoa
especificamente, ou que essas pessoas que trabalham dentro de uma palhaçaria
cis hétero normativa masculina tá querendo dizer?! Que tipo de qualidade é essa,
pra deixar uma pergunta. Porque além das pessoas, desses corpos que são
subalternizados não terem espaços de fala dento da palhaçaria como um todo,
que palhaçaria que é considerada boa? Porque tem a questão do treino, mas
também, o que é a palhaçaria boa, né? Essa palhaçaria do sistema, que palhaçaria
é essa?
Kelly
- É um medo, né, de perder o seu lugar ao sol...
Verônica
- É, eu quis trazer isso porque eu acho importante pensar. Depois
tem uma outra pergunta que eu não sei se vai ser a próxima, mas que eu pensei
em falar na questão de, porquê uma é palhaçaria feminina, palhaçaria feminista,
palhaçaria negra, palhaçaria não sei que, e a outra é palhaçaria? Quem é essa
palhaçaria?! Quem se diz dono do sistema? Quem diz o que é bom e o que não é
bom? O que é bom afinal? É bom você fazer uma esquete clássica, onde você
vai e faz aquele jogo da pulga, que a pulga é imaginária e ela tem que ir de uma
cabeça pra outra, e você faz uma chacota primeiro com a careca de uma
pessoa, e depois você faz uma chacota do cabelo de uma criança negra, onde
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você se embaralha (faz gesto da mão presa nos cabelos) e faz como se a pulga
tivesse se escondido ali dentro, sabe?! Esse é um número clássico! Que palhaçaria
é essa que é dita boa? Ou quando eu pego uma mulher cis e coloco ela no palco
para olhar o corpo dela e ficar objetificando ela? Ela entra lá só pra isso! Ou, que
palhaçaria é essa que coloca duas crianças uma pessoa criança dita como
menina, e uma pessoa criança dita como menino, porque são conceitos
estabelecidos, e fingem no finalzinho que eles são namoradinhos? Sendo que são
apenas crianças! Esse lugar... que palhaçaria boa é essa? Essa mesma pessoa que
falou dessa palhaçaria boa faz essa palhaçaria também.
Kelly
- Gente tudo isso aconteceu no mesmo dia! Eu aqui lembrando...
(risos) Foi uma overdose! (faz cara de espanto).
Verônica
- Então, é isso, além dos corpos subalternizados não terem espaço
pra ocupar e treinar para chegar num nível técnico que é considerado bom, mas
quê que é esse bom? Será que eu quero chegar nesse “bom”? Não sei se eu quero
chegar nesse bom... Eu quero outro bom! Passo a palavra Kelly, desculpa por esse
“à parte”.
Kelly
- Não... obrigada! E eu acho que isso daí também faz a gente lembrar
bastante desse processo de desconstrução mesmo, né?! Se a gente ali em cima
no palco, a gente tá se expondo, trazendo coisas, de que coisas a gente vai falar?
Vai falar das nossas dores e de nossos prazeres, ou a gente vai continuar pegando
esses corpos, essas pessoas, essas existências que são oprimidas, pra subir e
oprimir um pouquinho mais em busca de um riso, que é um riso fácil, que é um
riso que taí... Gente é muito bom dar risada! É muito bom, é importante rir, mas
do quê que a gente ri? Pra quê que a gente ri, como a gente faz rir? É muito
importante, acho que existe uma responsabilidade muito grande quando a gente
fala de palhaçaria feminista eu acho que vêm essa coisa da responsabilidade junto.
A gente sabe da importância do riso, sabe que o riso é importante, é libertador,
ajuda a gente a se conectar com a terra, com o universo, com as outras pessoas
e tal... e que riso é esse que a gente busca, né? Que riso é esse que a gente traz?
Então, dentro das nossas dificuldades, ter essa classificação de uma palhaçaria
dita tradicional, e a gente vir quebrando, e a gente saber que por conta disso a
gente recebe muitas críticas, muitas vezes destrutivas, que não ajudam a gente a
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crescer e que mostra que está causando insegurança ou uns espaços de
desconforto dentro de um ambiente que é dito tradicional e etc., etc. E aliás, a
gente brinca bastante com isso, de desconstruir esse tradicional, ou de questionar
esse tradicional. Quê que é a tradição e o quê que essa tradição faz com a gente?
Eu acho que é isso, e acho que dentro desse lugar, dessa mesma questão
que a gente tinha até lembrado, tivemos uma cena que foi bastante
marcante pra gente, que foi no dia da mulher, que a gente teve a apresentação do
Estupendo
Circo di SóLadies
, e tinha uma plateia bastante grande, acho que devia
ter umas duzentas pessoas, por aí... muitas crianças, muitas famílias. E num
determinado momento Augustine joga a pergunta pro público! Qual foi a pergunta?
(jogando pra Tatá).
Verônica
- (percebendo) É pra desconstruir nossa briga.
Tatá
- (não entende que era com ela) Ãn, o quê?! Ah... Gente, desculpa, é que
eu sempre esqueço quando a Kelly joga pra mim. Qual é a pergunta que eu faço
na peça?! (muitos risos!) Bem, elas brigam a peça inteira, né?! E no final elas viram
estátua e eu pego o público e pergunto “gente, vamos resolver isso aqui? Quebrar
esse ciclo... Me uma solução pra elas pararem de brigar”. (Para Kelly) Posso
continuar a história, ou você quer contar?
Kelly
- Por favor!
Tatá
- Aí né, na época a gente podia chegar perto das pessoas sem máscara
e tal (risos), isso foi inclusive uma semana antes de parar tudo (referindo-se à
pandemia), foi em 2020, ano passado. E eu vou nas pessoas, as pessoas vão
me falando e eu falo no microfone mais alto pra todo mundo ouvir. Aí eu cheguei
num senhor, né, que queria muito falar! Ele levantou a mão, eu fui até lá, ele virou
e falou assim: “mata elas” (Tatá faz cara de espanto). eu: “Péra aí, o senhor
falando isso mesmo? O senhor tem certeza que eu vou repetir o que o senhor
falando?”. Ele disse: “Sim, tenho certeza”, eu ainda dei a chance dele mudar de
ideia... que isso foi tipo aquele momento de palhaça, sabe, que você fala
“ferrou!”, como resolver isso? Você em cena ali, sabe, um monte de criança... Cara,
era o dia da mulher, entendeu?! Será que o cara sabia o significado disso?
Perde a na humanidade nessa hora!
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Tatá
- Total! eu virei e falei assim “olha gente, ele disse que é pra matar
elas”, tipo, eu assim com muita dor no coração de falar isso alto, mas eu também
achei uma ação necessária, sabe, de expor. Porque ali eu estava bem em
segurança, né, no sentido de era uma peça, mas ao mesmo tempo olha a exposição
que esse cara diz friamente “ah, mata elas!”, é uma piadinha, né, vamos continuar
brincando? (com deboche e ironia).
Verônica
- É o tio do pavê, né?!
Tatá
- É. Tipo, o famoso cara que solta uma piada porque ele precisa ser mais
engraçado do que três palhaças, que na época estavam no palco. Ele precisava
ser mais engraçado. Esse foi o resumo da história. Ele queria fazer uma piada,
que a piada foi um tiro no pé, porque parece que ele não prestou atenção no
espetáculo inteiro e no que a gente tava questionando! E aí meio que a plateia se
virou contra ele! Todo mundo! (risos) Tipo, umas meninas indignadas assim, e eu
segui perguntando pra outras pessoas porque eu preciso achar uma resposta que
caiba, sabe! Então eu falo “não, não, não, a sua resposta não funciona, beijo
querido”, e fui procurando outras pessoas e tal. E no fim, acabou o espetáculo
e a gente ficou meio chocades, mas a gente não tinha muito como conversar ali.
Aí meio que terminou, a gente agradeceu, falou que era dia da mulher, aí a gente
deu meio que um sermãozinho ali naquele final, tipo “gente, dia da mulher, é
importante respeitar...” a gente falou todas as coisas, e tal. E no final de tudo,
a gente recebendo as crianças e tal, ele vem com a esposa dele, tava com a
esposa ao lado – e ele pediu desculpa. Só que aí é assim, né, ele falou no público
e pediu desculpas no privado. Que é um questionamento nosso também como
grupo, sabe?! O quanto a fala dele pode trazer uma violência que pode matar! Pode
não, mata. Esse discurso. E quando ele diz essas desculpas no privado as pessoas
não escutam... É óbvio que a gente gostou que ele veio pedir desculpas, a gente
acha justo. Mas é isso, esse lugar do público e do privado, né?! Onde a piada dele
foi pública e a desculpa foi privada. Então acho que nesse episódio a gente ficou
bem chateades assim, meio que perdemos a na humanidade. Mas depois
a gente também escutou coisas muito boas, vieram mulheres junto falando “cara,
eu não acredito que esse cara falou iss, que bom que vocês estão fazendo esse
trabalho!”. E a gente sentiu que isso era super necessário.
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E mexeu com ele né, porque pra ele ter... pra uma pessoa que fala uma coisa
dessas ter ido pedir desculpas depois, mesmo que no privado, é um
movimento, né? Já sai do estático ali.
Kelly
- Minimamente ele vai pensar duas vezes antes de fazer uma piada,
antes de querer parecer o mais engraçado da situação toda. Eu acho que
minimamente isso. Eu acho que até a piada do tio do pavê no natal ele vai repensar!
(risos).
No número
Não Pode Beijar Aqui
, vocês partem de uma cena clássica do circo
tradicional e por meio da dramaturgia tecida vocês evidenciam a estrutura
opressora e intolerante da nossa sociedade. E vocês costumam se utilizar
desse recurso, né, de revisitar as cenas clássicas, geralmente com discursos
e ideias patriarcais, para apresentar uma perspectiva que amplie a visão
sobre a existência dos direitos de pessoas oprimidas. Vocês revisitam os
contos de fadas também, as histórias infantis. Como surgiu essa ideia de
revisitar essas cenas e essas histórias? E como foi o processo de criação?
Verônica
- O
Estupendo Circo di SóLadies
, né, que a gente faz isso e em
outros espaços também. Bom, vou começar pelo processo da cena
Não Pode
Beijar Aqui
, que é uma outra cena, e depois a gente fala do
Estupendo
, que é onde
a gente desconstrói as músicas e as histórias, contos de fada. Bom, no
Não Pode
Beijar Aqui
, a gente pega um número clássico, né?! Os números clássicos da
dramaturgia tradicional palhacística estão documentados em livros que deveriam
ser tirados de circulação, porque esses números clássicos, apesar de funcionarem,
no sentido do formato de tempo cômico, eles muitas vezes estão reforçando
estereótipos e situações de opressão, né, contra corpos subalternizados, como
corpos negros, corpos gordos, mulheres, mulheres trans, mulheres cis, pessoas
não binárias, pessoas gays, lésbicas, faltou alguma diversidade? Num sei... Ah,
capacitistas! Tem muitas cenas e números clássicos com cenas de assédio, tem
cenas de abuso, de indução ao estupro, porque a pessoa dormindo, né?! O
número da
Sonâmbula
(nome de uma esquete cômica clássica na palhaçaria), é
um número que a palhaça dormindo, a mulher, que não é necessariamente
palhaça, que tá fazendo, às vezes é um homem que faz, mas representando uma
figura mulher cis, está dormindo e esses palhaços vão levá-la pra dentro, porque
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ela está dormindo, se aproveitam do fato dela estar dormindo pra tentar fazer
algo, né?! Então, são números que estão na história, na tradição, e muitas vezes
são reproduzidos sem nenhuma reflexão. E aí, no
Não Pode Beijar Aqui
a gente
desconstrói um número que é
Não Pode Tocar Aqui
, que na sua estrutura eu não
vou lembrar direito como é, porque a gente aprendeu ele desconstruído de
alguma forma, ele não trazia o machismo estrutural. Mas a gente vai pra ele pra...
Tatá
- Mas essa cena traz a coisa hierárquica (“do chefe”, diz Vêronica), da
pessoa que manda naquele espaço, tipo “você não pode estar aqui, você não pode
estar ali”. Bom, “não esteja em nenhum lugar. Morra!” (riso irônico)... Tudo bem,
você não falando exatamente disso, mas é mais ou menos isso, sabe.
“Desapareça!” (risos).
Verônica
- E aí, a gente traz pra falar desse lugar da nossa existência, com
mulheres lésbicas que estão ali existindo. E aí a gente faz o
Não Pode Beijar Aqui
,
então, a gente pega esse número, e tem uma figura que é autoritária, que a Kelly
faz muito bem, assim, essa figura autoritária do mundo atual contemporâneo...
(risos e olhares cúmplices e irônicos). A gente pega falas que a gente ouve
historicamente em jornais e coloca na boca dessa figura pra representar essa
situação opressora, e coloca em um número clássico, com uma dança clássica e
uma música clássica, pra falar sobre o clássico! E entram duas bailarinas (faz
sinal de entre aspas), duas pessoas bailarinas que vão dançar e no fim se
apaixonam e se beijam. E não podem beijar aqui, aí não pode beijar aqui, nem ali,
e a gente vai mudando de lugar. Ao fim, você vai ver a cena, porque não pode
contar o final da cena (risos). Aí a gente beija loucamente, resumindo.
Tatá
- E depois faz uma música ainda, que é a marchinha do carnaval, do,
como chama mesmo? Maria Sapatão!
Verônica
- É uma desconstrução também de uma música clássica do
carnaval que reproduz a repressão sobre as mulheres lésbicas, que é a Maria
Sapatão. A música especificamente é bastante lesbofóbica e coloca esse lugar
objetificado da pessoa lésbica. a gente tem essa desconstrução dessa marchinha
que a gente coloca no final, pra fechar com a desconstrução da figura autoritária,
que é o caso da figura que a Kelly representa. Porque a gente faz essa própria
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pessoa entrar na dança e ela vai se desconstruindo. Porque o nosso sonho ideal
de grupo é entrar nesses ouvidos reacionários e transformar, fazer esse pessoal
tirar um pouco a roupa, sabe (risos), tirar essa carcaça social estruturada.
Tatá
- Acho que tem uma coisa também dessa cena que a gente foi
provocades como grupo, num provocamento de palhaças, na época quando eu
me entendia como palhaça, de “ah, porque vocês estão se beijando?”, “Palhaça
não beija, não tem beijo...” . E aí, assim, a gente viu diversos espetáculos de
casais hétero cis, assim, né, que tem uma relação amorosa e ninguém fala nada,
entendeu? Acontece, eu vi beijo em cena e não tem problema. E quando eu e
Verônica se beijou na época, teve um questionamento, a gente falou “peraí, gente!”
Eu adoro usar isso, sempre trago essa frase, vou trazer de novo, desculpa Kelly e
Verônica, que sempre escutam (risos)... Mas é assim, gente, se ser palhaça sou eu
em outro estado, porque que a minha sexualidade não estará também em mim
como palhaça, sabe? Porque que aqui eu preciso inventar? “Mas não era eu em
outro estado”? Em outro estado hétero, cis, branco... imaginário! “Não invente
moda na palhaçaria! Não quebre as regras, não pode!” E aí a gente falou “putz, não
pode?”. Esse não pode é o que a gente vai fazer!
Verônica
- Isso foi estímulo para a criação desse número inclusive. Esse “não
pode beijar”, esse beijo que era lésbico, que nós tivemos que ouvir, mas éramos
duas pessoas se beijando, né?! E aí que...
Tatá
- Quer falar do
Estupendo
?
Verônica
- É eu ia passar pra Kelly, se Kelly quiser falar, se não, eu posso
falar...
Kelly -
Peguei, peguei! (se referindo a pegar a palavra). Bem, o (espetáculo)
Estupendo
foi o nosso primeiro espetáculo e ele surgiu bem num período que
a gente tava na montagem do espetáculo
Choque Rosa
, foi um desafio pra gente.
E aí, pra construir a dramaturgia do
Estupendo
a gente fez uma chuva de ideias,
né, também conhecido na linguagem marqueteira publicitária como
brainstorm
. A
gente fez aquela chuvinha de ideias e cada uma trouxe uma ideia de cena e a gente
foi montando a dramaturgia a partir dessas cenas, e é um espetáculo que permeia
bastante a questão da rivalidade feminina que é uma construção social também,
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né, de como as mulheres disputam, como as mulheres se odeiam e etc. E aí,
como que isso se constrói dentro dessa sociedade, né? A partir de contos de fada,
de músicas, das próprias cenas clássicas do circo, etc., etc. E aí a gente veio com
a proposta de pensar em como essa dramaturgia poderia se desenvolver. E dentro
dos contos de fadas vieram muitas memórias da infância também. Então de quem
são essas princesas, o que elas almejam? Etc., etc. Depois teve as músicas infantis
também. O que essas músicas dizem e como elas poderiam ser diferentes? Então
a gente foi criando essa dramaturgia a partir desses questionamentos. Que eu
acho que é isso que a falou anteriormente, que é o primeiro espetáculo do
grupo oficialmente assim, e é o espetáculo que está mais vivo, né, porque a gente
vai encontrando essas ranhuras, essas fissuras, que faz com que a gente repense
o quê que a gente comunicando, de que forma a gente comunicando e pra
quem a gente comunicando. E a partir desse riso, né, dessa reflexão... A partir
do riso causar uma reflexão. Então, eu acho que foi mais ou menos assim que a
gente foi pensando, inclusive, as letras das músicas foram transformadas no
decorrer da história do espetáculo, né?! Então a gente tinha assim, “ah então a
gente vai ficar reproduzindo aqui esse padrão hétero normativo?”, ou dentro da
própria história, né, “ah a gente falando isso”... Tem uma cena que é muito
interessante, que eu acho que foi a última que a gente mudou, a mais recente
que a gente alterou, que era assim: “o que é sororidade?”, que a gente falava “ah,
sororidade é quando as mulheres se ajudam mutuamente independente das
diferenças”. E depois a gente repensando o feminismo, trouxe a questão
também, né: é independente das diferenças?, não! É considerando as diferenças!
Porque a gente sabe que dentro do feminismo existe uma diversidade. Dentro
desse universo de estudos a gente tem essa diversidade. Então, o feminismo,
ele é plural, porque nós não somos iguais, né, enquanto feministas, mulheres ou
pessoas trans. A gente tem nossas singularidades, as nossas dificuldades diante
da sociedade, e de como a gente traz isso pra criar uma comunicação mais
horizontal, uma relação mais horizontal. Não uma relação de poder ou de
subserviência, ou de como a gente pega e trata isso de forma mais equânime
mesmo, considerando as diferenças. Acho que é isso.
Vocês acreditam que conseguem conscientizar as pessoas através das
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suas atuações? Quais os valores vocês consideram importantes? não
sei se valores também é a palavra certa... Aqueles que vocês colocam
nos espetáculos, os ideais, talvez. E como é que vocês escolhem esses
ideais, esses valores, pra alcançar esse objetivo em cena?
Kelly Lima (palhaça Greice), Tatá Oliveira (palhace Augustine) e Verônica Mello
(palhaça Úrsula) no espetáculo
Concerto em Cores
, em 2022. Foto: Karime Xavier.
Verônica
- Essa pergunta é interessante porque ela vem de um lugar que,
assim, a gente sonha que a gente consegue, porque a certeza absoluta a gente
nunca vai ter. A gente acredita mesmo, assim, a gente tem
feedbacks
, né, que
fazem a gente entender que sim, chega, mas não chega talvez em todos os lugares
que a gente gostaria. E eu acho que isso é uma questão de tempo, de insistência,
de persistência, de falar de novo, de repetir, de a pessoa ver de novo no canal.
ele vê a peça, depois ela ouve a música, ela vai entendendo, vai caindo a ficha,
né?! É um processo. Eu acho que a transformação da sociedade, a gente acredita
numa palhaçaria que tem um olhar político no seu fazer, né, por isso ela é
feminista. Porque o feminismo é uma ação política na sociedade, no mundo. É
uma forma política de ver o mundo. Política no sentido de reflexões sobre a
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existência na sociedade. De como a sociedade se estrutura. E não falando no
sentido partidário, quando se fala em política, a gente falando de política, que
toda nossa ação é política. A arte é política. Mesmo que ela se diga apolítica, ela
está sendo política ao dizer: “ah, mas eu quero divertir”. Está sendo política.
Está usando a política apenas da diversão, que é importante? É importante. Agora
tem que ver o que é que por trás dessa diversão. A gente quer divertir também,
por isso a palhaçaria, se não a gente escolheria, sei lá, fazer drama, que é
importante também, adoro! E tava até falando sobre isso outro dia, que eu
adoro fazer drama. Porém, a palhaçaria tem um acesso, ela acessa as pessoas de
um lugar que é empático. Então eu acredito que falar sobre essas coisas que a
gente fala, a partir da palhaçaria, já ganha, a gente ganha na relação, dez pontos,
dez casas! Caminha dez casas. Porque as pessoas falam “ah palhaça, que fofa!”,
beleza, “ah, que fofa a palhacinha!” ainda falam “palhacinha”, vontade de... né!
(faz menção de bater). Legal! Oh lá, já chegou perto, gostei, vi minha infância... Me
vi na infância! Principalmente nós adultos falando de adulto aqui. Me vi na
infância, me vi naquele meu sonho, naquele lugar de fantasia. Não
necessariamente me vi na temática, mas me vi ali. Me identifiquei naquelas figuras,
né?! Primeiro ponto. Em termos de, o que eu quero falar, eu tenho que me
identificar com a pessoa pra poder me conectar. Senão, não adianta! E aí, aos
poucos, né?! A peça, eu acredito que na nossa dramaturgia a gente vá criando ela
de um jeito que ela vai estabelecendo essas fricções no tempo da própria
dramaturgia. E aí, muitas vezes, por exemplo, quando a gente fez o Estupendo – é
uma fala que eu não esqueço são feedbacks que a gente escuta, né, além,
obviamente. O nosso público, quando a gente vai ver na internet, é um público
majoritariamente feminino, de mulheres cis, a maioria do nosso público, quando a
gente assim nas estatísticas. Se bem que o Instagram não pergunta se você é
uma pessoa trans, então não tem como a gente ter certeza disso. dando um
exemplo aqui.
Tatá
- E não tem nem espaço pra você dizer se é não binário!
Verônica
- É, jamais terá... “você tem trinta pessoas não binárias que te
seguem”, né, porque eles não fazem essa estatística. E as falas das pessoas
mulheres cis são muito fortes pra gente, elas realmente chegam na gente com
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força, assim. Aí a gente consegue ouvir, em alguns momentos de encontro, como
que você vai desconstruindo isso em outras pessoas que estão menos preparadas
pra essa desconstrução, porque estão num lugar de poder. Pessoas ditas homens
cis, por exemplo. Então, a gente teve a experiência do
Estupendo
, que a gente
ouviu de um cara, que é pai de um homem cis, que veio falar com a gente assim:
“nossa, obrigado por vocês terem falado isso. Eu ponho músicas pra minha filha
ouvir e eu nunca tinha prestado atenção nisso que vocês estavam falando. Agora
eu vou pensar mais o que eu vou por pra essa criança ouvir, porque é importante
o que vocês estão fazendo”. E ele veio todo assim falar com a gente. Ele queria
falar com a gente isso. Falou “obrigado por isso!”. Ou, até mesmo esse cara que
a gente deu o exemplo anteriormente, né, que faz uma piada tão misógina, tão
absurda ali, “ah, mata elas”, mas depois de toda a reação do coletivo público, que
se empodera do que a gente fazendo, ele vem pedir desculpas! Alguma coisa
aconteceu nessa cabeça dessa pessoa, né?! Ele vai rever pra falar em outro lugar...
Tatá
- A gente espera, né! (risos).
Verônica
- É, eu sou sonhadora, assim. Eu acredito que sim! Porque ele veio.
Não é fácil pra um cara, homem cis, piadista. Porque eu não acho que ele pense
isso. Ele quis ser engraçadinho! Alguma coisa no universo dele pensa, mas não
acho que ele pense assim, que ele queria realmente que a gente morresse
no sentido literal. Mas essa pessoa que tem essa abertura pra fazer essa piada, ela
não vai ter a humildade de pedir desculpas se realmente algo não bateu dela, né?!
Eu acho assim. A Kelly deu um outro exemplo também que eu achei legal, sobre
o que gente tava pensando, sobre coisas que a gente escuta, mas eu não lembro
qual é! (risos).
Kelly
- Foi uma apresentação que a gente fez, que uma mulher também
esperou até o final pra vir falar, ela estava extremamente emocionada, assim, era
a música do cravo e a rosa, que a gente desconstrói, e essa é uma música que fala
de violência, muito forte, assim, e ela veio super emocionada, falando: “Olha, eu
era essa Rosa. Eu me vi nessa música aí. E obrigada por vocês terem mostrado
uma possibilidade de reconstrução”. Porque a Rosa sai despedaçada mesmo e
como que ela se reconstrói aí, dentro desse universo que destrói as rosas o tempo
todo e ninguém faz nada, né? Ninguém mete a colher, ninguém liga 180, não sei
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quê... que é mais ou menos essas falas que a gente traz. Eu acho que essa daí foi
muito marcante e uma outra que foi do espetáculo
Choque Rosa
, que veio um
cara também, que tava com uma criança – menina possivelmente, dentro de uma
construção social – e ele veio falar que o espetáculo tinha mexido muito com ele,
e que ele ia começar a pensar a respeito da relação que ele tem com as mulheres.
Com a mãe, com a companheira, com a filha, etc. Porque ele se viu muito sendo
o monstro do patriarcado que a gente traz na história, que é esse cara que
sempre subjugando a mulher e tentando encaixar ela dentro de um padrão.
Ditando regras de como ela deve se comportar dentro do espaço privado ou no
espaço público. Eu acho que tem, assim, tem os feedbacks, os retornos também
das redes sociais, tanto nos comentários dos vídeos que a gente publica no
Y
ouTube
, quanto no próprio Instagram, no
Facebook...
o que as pessoas, como que
isso bate nas pessoas, como elas sentem, e o que elas trazem pra gente ali
naquele ambiente mais virtual, que também é um reflexo. A gente também
consegue entender. Então é isso que Vê falou. Talvez eu não chegue em todas as
pessoas, mas o que chega faz uma diferença, assim. Dá um quentinho no coração
de saber.
Verônica
- uma coisa, assim, eu acredito que a arte toca. Ela de alguma
forma, e acho que é um trabalho de formiguinha, é um trabalho contínuo de
formiguinha, então assim, em termos de temáticas que você pergunta, “quais são
os pontos que a gente toca?”, a gente toca em vários pontos que são importantes.
E todos eles por algum momento passam por nós, né. Passam por nós! O que nos
passa. O Larrosa (2002) fala que a experiência é aquilo que passa por nós, não
aquilo que a gente passa. Passa dentro da gente. Então, muitas vezes as coisas
que a gente vai trazendo são as coisas que nos tocam, nos passam, que fazem
parte da nossa experiência. E por isso que a gente vai se transformando e os
espetáculos vão se transformando também. Então, por exemplo, sei lá, a gente
tem temáticas de violência doméstica, a gente tem a questão da homofobia,
lesbofobia, a gente tem as questões de gênero, que a gente tá questionando. Não
de gênero feminino, que às vezes é considerado... questão de gênero mesmo.
Transgeneridade, a gente começando a pensar sobre isso na palhaçaria. Ainda
começando a engatinhar nesse pensamento da não-binaridade dentro da
A palhaçaria feminista do Circo di Nem SóLadies
Entrevista concedida a Fernanda Dias de Freitas Pimenta
Florianópolis, v.1, n.46, p.1-27, abr. 2023
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palhaçaria também, tem a questão do lugar estabelecido, construído para o ser
que nasce e é instituído como mulher, nesses corpos que são instituídos como
mulher que somos nós, mesmo que não sejamos. Somos instituídes quando
nascemos. E quais são as cargas que a gente tem que se vestir, ou que vestem
a gente desde pequenes? Então, quando a gente ali na barriga, né, tem o
Chá
de Revelação
, uma cena nova que a gente criou online, que ela vai se desenvolver
mais ainda, que a gente apresentou dentro de uma mostra. Quando a gente,
desde pequena, já falam pra gente é menino ou é menina? Ah, quem sabe, gente?
Quem sabe quem vai ser a pessoa? É uma pessoa! Então, isso é um tema que está
nos tocando, a questão da sexualidade, das nossas... e somos nós, né?! Nós
enquanto nossas vivências, assim, e o quanto a gente observa do mundo também.
O que nos provoca? O que nos incomoda? O que nos incomoda a gente acaba
transformando em dramaturgia. Em arte, pra tocar outra pessoa.
Tatá
- Em arte... pra sobreviver! (risos).
Verônica
- Total!
Referências
BONDIA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. In:
Revista Brasileira de Educação
, n.19, 20-28, 2002.
BRUM, Daiani. Mulheres palhaças e a política uterina de expansão: entrevista com
Karla Concá.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v.3,
n.33, p. 455-468, 2018.
Recebido em: 30/01/2023
Aprovado em: 25/03/2023
A palhaçaria feminista do Circo di Nem SóLadies
Entrevista concedida a Fernanda Dias de Freitas Pimenta
Florianópolis, v.1, n.46, p.1-27, abr. 2023
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Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br