1
Do picadeiro às salas de aula, memórias e reflexões sobre
um aprendizado e suas reverberações pedagógicas
Cecília Borges
Para citar este artigo:
BORGES, Cecília. Do picadeiro às salas de aula,
memórias e reflexões sobre um aprendizado e suas
reverberações pedagógicas.
Urdimento
Revista de
Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 47, jul.
2023.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573102472023e0107
Este artigo passou pelo
Plagiarism Detection Software
| iThenticate
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Do picadeiro às salas de aula, memórias e reflexões sobre um aprendizado e suas reverberações pedagógicas
Cecília Borges
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-21, jul. 2023
2
Do picadeiro às salas de aula, memórias e reflexões sobre um
aprendizado e suas reverberações pedagógicas
1
Cecília Borges
2
Resumo
Esse artigo aborda relatos e reflexões sobre a linguagem de palhaços/as
circenses, a partir da experiência da autora como integrante da companhia
brasiliense Circo Udi Grudi, investigando possíveis contribuições para a
pedagogia das artes cênicas.
Palavras-chave
: Circo. Palhaço/a. Pedagogia. Artes cênicas.
From the circus arena to the classrooms, memories and reflections
on circus learning and its pedagogical reverberations
Abstract
This article addresses memories and reflections on the language of circus
clowns, based on the author's experience as a member of the Brazilian
company Circo Udi Grudi, investigating possible contributions to the pedagogy
of performing arts today.
Keywords
: Circus. Clown. Pedagogy. Performing arts.
Del picadero a las aulas: memorias y reflexiones sobre un
aprendizaje circense y sus repercusiones pedagógicas
Resumen
Este artículo aborda relatos y reflexiones sobre el lenguaje de los propios
payasos de circo, a partir de la experiencia del autor como integrante de la
compañía brasileña Circo Udi Grudi, investigando posibles contribuciones a la
pedagogía de las artes escénicas en la actualidad.
Palabras clave
: Circo. Payasos. Pedagogía. Artes escénicas.
1
Revisão ortográfica e gramatical realizada por Natasha Centenaro. Doutora em Letras Teoria da Literatura
(PUCRS). Mestra em Letras Escrita Criativa (PUCRS). Licenciada em Letras - Português e bacharela em
Com. Social Jornalismo (PUCRS).
2
Doutora em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestre em Artes pela Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP). Graduação em Educação Artística pela Universidade de Brasília (UnB).
Professora na Graduação em Artes Cênicas da Universidade de Brasília (UnB). ceciliaalborges@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/9294403891689826 https://orcid.org/0000-0002-9465-187X
Do picadeiro às salas de aula, memórias e reflexões sobre um aprendizado e suas reverberações pedagógicas
Cecília Borges
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-21, jul. 2023
3
Figura 1- Cisquicilia na estrada com o Udi Grudi. Na foto: Cecília Borges (à esquerda),
Fernando Gama (ao centro) e Marcelo Beré (à direita). Foto: Arquivo da autora.
Puxando fios nas memórias, para início de uma história
Memórias de tardes ensolaradas, divertidas e empoeiradas, final dos anos
1980, uma trupe, um circo de lona amarela lindamente remendada com estrelas
azuis. No meio do terreno empoeirado, muita risada e leveza no aprendizado
disfarçado de brincadeira, vivenciado com a companhia brasiliense Circo Udi Grudi,
em meio aos desafios de levantar mastros e sustentar o sonho de viver o/do circo
com muitas gambiarras
3
.
A memória traz consigo o esquecimento de algumas datas e nomes – afinal,
estamos falando de alguém que recebeu o nome de Cisquicilia como palhaça –,
por outro lado, mantém-se intensa, quando se trata de rememorar as experiências
que me atravessaram, durante três anos, como integrante da companhia de circo
brasiliense Udi Grudi, participando de espetáculos diários sob a lona do circo, entre
3
De acordo com o dicionário Online de Português: Gambiarra: s.f.: 1) Solução improvisada para resolver um
problema ou para remediar uma situação de emergência; remendo. 2) Extensão ilegal com o propósito de
roubar energia elétrica. 3) Teatro: rampa de luzes suspensa na parte anterior e superior do palco. Disponível
em: https://www.dicio.com.br/gambiarra/. Acesso em: 07. nov. 2020.
Do picadeiro às salas de aula, memórias e reflexões sobre um aprendizado e suas reverberações pedagógicas
Cecília Borges
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-21, jul. 2023
4
os anos de 1987 até 1989.
Memória empoeirada, memória ensolarada, iluminada como um
tiro de
gargalhada
ou ainda, uma
explosão de gargalhada
, ao contrário do que sugerem as
primeiras palavras dessas expressões frequentes no universo do circo, algo que
constrói um comum: o riso coletivo diante do erro, da vulnerabilidade ou da astúcia
assumidos pelo(a) palhaço(a).
Aliás, Sigmund Freud explica o riso em
Os chistes e suas relações com o
inconsciente
(1905), como descarga de energia excedente, sublimação de pulsões
humanas agressivas e/ou violentas. Seria bom, então, ter mais circos, palhaços(as),
comediantes, pessoas que saibam rir de si mesmas e com o outro, para, talvez
assim, vivermos um mundo humano menos violento.
E por falar em violência, puxando o fio da memória, lembro-me de uma
ocasião em que, durante um espetáculo noturno do Circo Udi Grudi, um homem
do público sacou um revólver e deu um tiro para o alto; felizmente, sem ferir
ninguém. Como geralmente em situações emergenciais tenho reações inusitadas,
fui ao encontro do homem que estava na arquibancada, em pé, ou quase, tanto
quanto a embriaguez lhe permitia, com camisa e calça social amarrotadas e tortas.
Vi ali sinais de muitas lutas, mágoas, injustiças.
Com meus companheiros de cena, todos homens, ao meu lado e atrás de
mim, fomos nos aproximando da fatídica arquibancada enquanto eu conversava
com o homem armado e bêbado: “Calma, o senhor deve estar cansado, não teve
um dia bom, guarda essa arma, vai pra casa descansar e volta pra ver o espetáculo
outro dia. O pessoal vai providenciar um convite para o senhor.” Assim, o
acompanhamos até a saída do circo, e ele se foi em passos cambaleantes, quase
como uma imagem trôpega de Carlitos, o personagem vagabundo, tão divertido
quanto triste, de Charles Chaplin.
Como o tema do circo surgiu guiado pela memória, é interessante observar
que, na lembrança de muitos(as) espectadores(as), a primeira experiência com o
circo e, particularmente, com o palhaço, é descrita como assustadora. No entanto,
os primeiros espetáculos circenses dos quais me lembro de ter assistido
provocaram muita diversão, fascínio e encantamento com aquele mundo mágico.
Do picadeiro às salas de aula, memórias e reflexões sobre um aprendizado e suas reverberações pedagógicas
Cecília Borges
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-21, jul. 2023
5
Uma “lona-nave” de forma circular, com uma luz diferenciada de seu
entorno, coloridamente iluminada à noite e com uma luz amarelada durante o dia,
o cheiro de palha misturado com o de terra, de bichos e pipoca, que leva para
outra dimensão, na qual homens e mulheres voam pelos ares, equilibram-se na
corda bamba e pessoas podem desaparecer ou se transformar, e que, além de
tudo isso, ainda nos permite rir de alguém que cai, cambalhotas e apronta todo
tipo de confusão, inclusive, com o público.
O circo habita a memória de muitas pessoas como esse universo paralelo,
mágico, que encanta e faz rir. O papel do circo na formação cultural brasileira é,
hoje em dia, reconhecido por artistas e pesquisadores(as) diversos. Atualmente,
tem-se acesso a uma extensa bibliografia sobre comicidade, circo, palhaços e
palhaças, além de muitas dissertações e teses.
Udi Grudi e outras histórias circenses, o que o circo pode
ensinar
A professora da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA),
Eliene Benício, autora do livro
Saltimbancos urbanos
(2018), traz uma importante
contribuição para esse campo de pesquisa ao analisar o interesse pelo universo
circense por parte de jovens artistas e grupos de teatro, que aconteceu no Brasil
entre os anos de 1980 até 2000.
Nesse período, surgiram muitos grupos no país, alguns deles abordados por
Benício. Vários deles, atraídos pelas habilidades dos números aéreos como o
Intrépida Trupe, no Rio de Janeiro, outros, pela comicidade do palhaço – como os
Parlapatões, Patifes e Paspalhões, em São Paulo. Essas são apenas algumas das
companhias que se formaram nessa época, encantadas pela linguagem circense,
entre tantas outras que surgiram Brasil afora e adentro.
Esse interesse pelo circo aconteceu em outras épocas, lugares e com outros
artistas da cena, como no caso do ator e diretor teatral russo Vsevolod Meierhold.
Junto com seu amigo, o poeta Vladimir Maiakovski, Meierhold foi um assíduo
frequentador dos circos e do teatro de variedades russos, para além do
divertimento, ambos enxergavam ali uma fonte de renovação da arte. No caso de
Do picadeiro às salas de aula, memórias e reflexões sobre um aprendizado e suas reverberações pedagógicas
Cecília Borges
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-21, jul. 2023
6
Meierhold, eram de seu especial interesse as técnicas acrobáticas, além da
comicidade e as múltiplas habilidades de palhaços que faziam grande sucesso na
época, dentre eles, Vitáli Lazarenko, um também exímio acrobata que participou
da montagem de
Mistério Bufo
(1918), convidado por seu amigo Maiakovski e
dirigida por Meierhold.
Da longínqua e gelada Rússia ao calor do cerrado no Planalto Central do Brasil,
nas asas e eixos de Brasília, ao mesmo tempo em que as bandas de rock que ali
nasciam ficavam conhecidas em todo o país, surgia, em 1982, um grupo de jovens
que experimentava associar música e comicidade a elementos da arte circense
como a acrobacia. Muitos deles músicos, outros mais ligados à dança: a trupe
apresentava-se em muitos dos eventos culturais que aconteciam nessa época.
O grupo passou por várias formações no elenco e várias experiências
aproximando música e artes circenses, até que, em 1986, Marcelo Beré, Luciano
Astiko e Fernando Gama resolveram comprar um circo de três mastros. Desde
então, até 1989, o Circo Udi Grudi realizou itinerâncias por Brasília e arredores, com
espetáculos diários baseados em repertório de circo-teatro aprendido com
herdeiros de uma família circense, conhecida pelo sobrenome Zambrota. Nessa
época, o grupo realizava temporadas que podiam durar de dois a três meses em
cada lugar, sendo que muitos espetáculos tinham lotação de aproximadamente
trezentas pessoas.
Atualmente, o grupo se refere como Circo Udi Grudi e tem um estilo bem
diverso de sua fase inicial. Quando fiz parte da trupe, contudo, o espetáculo era
de circo-teatro, ou seja, sob sua lona aconteciam números circenses como
malabarismo, equilibrismo, trapézio, magia, além de entradas e esquetes cômicas,
finalizando com a apresentação de uma comédia do repertório circense, por
exemplo, “O morto que não morreu” minha predileta pelo tipo de humor
nonsense
.
O fato de Marcelo Libânio ou Marcelo Beré, como é conhecido no meio
artístico ser meu primo e um dos integrantes fundadores do Circo Udi Grudi,
facilitou o contato. Frequentava sua casa, especialmente em ocasiões festivas,
quando escutei com encantamento as histórias sobre a trupe e seus espetáculos
Do picadeiro às salas de aula, memórias e reflexões sobre um aprendizado e suas reverberações pedagógicas
Cecília Borges
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-21, jul. 2023
7
circenses. Uma vez, com a ousadia dos vinte anos, pedi para ir com ele ver de
perto o que acontecia naquele circo. Combinamos de ir juntos e estava eu em
sua casa na manhã seguinte, mas, talvez por não levar a sério meu interesse, ele
já tinha ido para o circo, quando cheguei.
O desejo de conhecer o trabalho de uma trupe circense era maior do que o
obstáculo e, assim, peguei um ônibus, sabendo apenas que o circo estava montado
perto da caixa d’água na Expansão do Setor “O” da cidade Ceilândia cidade
satélite de Brasília. E, como “quem tem boca vai ao circo”, foi perguntando se
tinham visto algum assim nas redondezas, que cheguei aonde queria.
Linda lona amarela e azul que se destacava em meio à poeira do bairro pobre,
onde, além do circo, havia barracos, botecos e igrejas evangélicas; nenhuma
escola, nenhuma praça ou quadra de esportes – uma particularidade do circo que
também me encanta, ele vai aonde o teatro raramente chega.
Naquele dia, assisti ao espetáculo me divertindo como criança e, ao mesmo
tempo, observando tudo atentamente. Voltei no dia seguinte, dessa vez de carona
com Marcelo, e fui logo incumbida da função de bilheteira, mas, felizmente nos
dias seguintes, minha dificuldade com a função, levou-me a um lugar melhor,
que são muitas as ocupações de um(a) artista circense. Perto do picadeiro,
recolhendo os ingressos de quem se sentaria nas cadeiras, eu teria visão
privilegiada.
Sob a lona do Circo Udi Grudi, pude me encantar novamente com o circo,
como quando era criança, e desejar mais fortemente estar naquele picadeiro. O
desejo era tão intenso que, ao chegar em casa após os primeiros espetáculos,
vasculhei no meu armário, encontrando o que precisaria para um possível figurino:
calça de malha listrada de branco e vermelho, camiseta igual a calça, uma saia
verde e uma boina xadrez – assim, começava a nascer minha palhaça Cisquicilia.
Nos dias seguintes, voltei ao circo com um acervo de figurinos na mochila.
Continuei mais alguns espetáculos com as roupas guardadas, até que Marcelo Beré
me deu a primeira oportunidade uma estratégia pedagógica comum no
aprendizado circense: oferecer ao aprendiz funções de apoio ao espetáculo,
enquanto se aprende com o que vê, ao mesmo tempo em que é observado pelos
Do picadeiro às salas de aula, memórias e reflexões sobre um aprendizado e suas reverberações pedagógicas
Cecília Borges
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-21, jul. 2023
8
mais experientes.
Figura 2 - À esquerda: de cabeça para baixo, Luciano Astiko; em pé: Marcelo Beré; à direita:
Luciano Porto. Ao centro, no topo da pirâmide, a Cecília Borges e, embaixo, Fernando Gama.
Arquivo Cecília Borges.
Ainda na mesma praça, tive a tão sonhada oportunidade, por conta de uma
necessidade emergencial, fazendo com que eu vestisse rapidamente o figurino que
trazia guardado na mochila e escutasse as orientações sobre o que deveria fazer
e dizer, imediatamente antes de entrar em cena para uma participação em um
esquete.
Quanto à minha palhaça, ela “nasceu” aos poucos, no picadeiro do Circo Udi
Grudi, à medida que Marcelo e os outros integrantes da trupe sentiam que eu
estava realizando a contento pequenas participações em entradas, esquetes e
comédias, conforme tinham necessidade no espetáculo do dia. Tinha a roupa e já
Do picadeiro às salas de aula, memórias e reflexões sobre um aprendizado e suas reverberações pedagógicas
Cecília Borges
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-21, jul. 2023
9
estava em cena, mas ainda não tinha o nome, quando fiz as primeiras
participações como palhaça. Uma vez, por ter esquecido o momento certo de
entrar em cena, meu colega Luciano Astiko me chamou de Cisquicilia, essa
singularidade serviu de mote para o desenvolvimento e a adaptação das minhas
participações em esquetes, entradas e comédias que vieram depois disso.
Figura 3 A Cecília Borges como palhaça Cisquicilia, Marcelo Beré como Caveirão e
Luciano Astiko como palhaço Xaxará em comédia de repertório circense.
Aspectos da aprendizagem e da linguagem de palhaços/as
circenses, possíveis contribuições para a pedagogia teatral
A partir de uma perspectiva histórica, Bolognesi (2003) verifica um aspecto
marcante na criação de um(a) palhaço(a), que é a sua singularidade, com caráter
e comportamentos criados por seu intérprete, com base em referências dos tipos
cômicos básicos que teriam originado a figura do palhaço circense: o autoritário
clown
Branco e o desajeitado palhaço Augusto a partir dos quais, cada artista
compõe sua personagem com elementos subjetivos que aderem ao tipo genérico,
o que confere a particularidade de cada palhaço (Bolognesi, 2003). Singularidades
Do picadeiro às salas de aula, memórias e reflexões sobre um aprendizado e suas reverberações pedagógicas
Cecília Borges
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-21, jul. 2023
10
e subjetividades que vão definir o caráter e a lógica de ação de cada palhaço dentro
do jogo cômico.
Quanto ao que chamo de jogo cômico, compreendo-o como a relação entre
atuantes e público no contexto da comicidade, estabelecida principalmente por
meio da variação de focos de atenção, incluindo o que é conhecido no contexto
da comicidade como triangulação. A triangulação se configura como uma troca de
olhares entre um(a) ator-atriz e seu parceiro de cena, ou de quem atua para um
objeto de cena e o público. Para que aconteça o jogo cômico é fundamental saber
revezar a “bola” (o foco de atenção) com quem está em cena e com o público.
Esse aprendizado sobre o revezamento do foco de atenção entre jogadores e
público reverbera em minhas propostas pedagógicas, trazidas enquanto ideia e
exercícios com jogos diversos em disciplinas da graduação em artes cênicas da
Universidade de Brasília (UnB).
O circo permite lidar com públicos diversos daqueles que costumam
frequentar as salas de teatro, dando oportunidade a quem está em cena de reagir
com prontidão, pois, para o espetáculo circense, o diálogo com o público é
imprescindível, principalmente no caso do(a) palhaço(a). vemos, além da
necessidade de prontidão para agir e reagir diante do inesperado, além da
aprendizagem do jogo cômico, exercício de escuta na relação entre quem
compartilha a cena e o público. Ação e reação, ou mesmo cena e contracena são
elementos fundamentais das artes cênicas em geral, assimilados em minha
prática pedagógica.
Sempre digo aos estudantes em processo de formação que no jogo cômico,
como em um jogo de futebol, não dá para manter a bola apenas consigo mesmo,
é preciso saber o momento de passar a bola para outro jogador, incluindo o público
como elemento imprescindível desse jogo. No caso do jogo cômico, o gol é a
relação com o público, suas reações e gargalhadas.
Aliás, essa valorização do público pelo artista circense também é algo que
aprendi no picadeiro do Circo Udi Grudi e que trago para a sala de aula, propondo
aos estudantes experiências com públicos diversos, fora do Departamento de
Artes Cênicas levando espetáculos e exercícios cênicos resultantes das disciplinas
Do picadeiro às salas de aula, memórias e reflexões sobre um aprendizado e suas reverberações pedagógicas
Cecília Borges
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-21, jul. 2023
11
para serem apresentados em outros espaços dentro ou fora da universidade.
ouvi de muitos estudantes que a valorização e o contato com um público mais
diversificado transformaram a percepção e a relação deles com as artes cênicas.
Nem tudo era a glória do “tiro de gargalhada”, pois, no Udi Grudi, como em
muitos outros circos, quando o espetáculo não agrada ao público, ou diante de
alguma falha técnica ou humana, havia a manifestação de calorosa vaia. Uma
situação que também ensina muito, que, depois de uma manifestação de
desagrado intensa e explícita, não é fácil retomar o espetáculo, mas é preciso e
não adianta dar bronca e chamar o público de mal-educado, o que seria a morte
do espetáculo circense.
Mais uma vez, necessidade de prontidão para decidir em instantes a
melhor estratégia para retomar o fluxo e seguir com o espetáculo. A comicidade,
especialmente no contexto dos circos pequenos de estrutura precária, ensina a
lidar com o erro de forma diferenciada de outros contextos, sem ignorá-lo,
propondo algum desdobramento diante do inesperado, dando continuidade à cena
e ao espetáculo. Outra reverberação desse aprendizado circense que trago para
a sala de aula é orientar os/as estudantes a não paralisarem diante de algum erro,
mas sempre procurar algum desdobramento possível, algo que pode ser útil a
todo artista cênico.
O território da comicidade é campo fértil para explorar a potencialidade do
erro, seja por meio de equívocos os famosos
quid pro quo ou quiproquós
4
da
comédia latina como também nos desvios de caráter intensificados pelo
personagem-tipo; ou ainda, explorando exageros, hipérboles e excessos com
especial interesse por aqueles intimamente ligados ao corpo, como salienta
Mikhail Bakhtin em
A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais
(2008).
Assumir o erro ou disfarçá-lo? No circo, assim como na comicidade em geral,
especialmente na arte de palhaços, é preciso dar um jeito de continuar o jogo, ao
4
Quiproquó: (Do latim
qui pro quo
, tomar um que por um o que): Equívoco que faz com que se tome uma
personagem ou coisa por outra. [...] O quiproquó é uma fonte inesgotável de situações cômicas e por vezes
trágicas (Édipo-Rei; O mal-entendido, de Albert Camus). O quiproquó é “uma situação que apresenta ao
mesmo tempo dois sentidos diferentes, [...] aquele que lhe é atribuído pelos atores [...] e o que lhe é dado
pelo público” (Pavis,1999, p. 319).
Do picadeiro às salas de aula, memórias e reflexões sobre um aprendizado e suas reverberações pedagógicas
Cecília Borges
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-21, jul. 2023
12
invés de paralisar diante do erro. Aprender a lidar com o erro de forma positiva e
criativa, considerando a perspectiva lúdica do jogo, pode ampliar as possibilidades
de criação cênica e contribuir com a pedagogia teatral.
Jogo de relações estabelecidas entre quem está em cena e o público, no meu
caso, aprendido na prática do picadeiro, mas também com as orientações de meus
colegas, dentre eles, Antônio Alves, o palhaço Saca Rolha de família circense e
ex-integrante do Circo Zambrota, outrora um circo de sucesso, mas naquele
momento falido. Foi Alves quem nos transmitiu o legado do acervo oral de
comédias, entradas, esquetes, além de outros elementos que faziam parte do
espetáculo circense.
A relação com o público é vital para o espetáculo e o artista circense, fonte
de muitas aprendizagens, tão fundamental que ele pode ser considerado como
um personagem do espetáculo, como disse Rodrigo Maciel Camargo, o palhaço
Bochechinha, em entrevista concedida ao professor Mario Bolognesi, registrada no
livro
Circos e palhaços brasileiros
(2009):
Muitos palhaços não brincam com a plateia e a gente aqui de circo
pequeno, o palhaço trabalha mais com o público, ele chama um pra
dançar, brinca com o outro da bancada... Então, o palhaço de circo
pequeno é essa relação, ele faz do público o personagem também, ele
chama, trabalha com o povão da cidade (Bolognesi, 2009, p.30-31).
Não é à toa que o espetáculo circense tem início com a saudação “respeitável
público”. No circo, ele é respeitado mesmo, pois é o “termômetro” que indica se o
que se apresenta funciona ou não, principalmente no caso do palhaço. Isso não
significa ser “escravo” do público, no sentido de fazer o que o agrada, mas de
reconhecer seu papel como elemento imprescindível do jogo, seja no processo de
criação ou durante o espetáculo, aspecto que ressalto em minhas aulas como algo
que não deve ser esquecido pelos futuros artistas.
Principalmente no caso dos(as) palhaços(as), é preciso aprender a se
relacionar com o público, provocar sua reação, ao invés de ignorá-la, ouvi-la e com
ela dialogar, percebendo quando retomar o foco da ação para a cena, pois, caso
não se saiba como estabelecer essa dinâmica de jogo, o público pode revelar sua
desaprovação com uma intensa vaia. Destaco esse vínculo entre artista e público
Do picadeiro às salas de aula, memórias e reflexões sobre um aprendizado e suas reverberações pedagógicas
Cecília Borges
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-21, jul. 2023
13
na comunicação em cena como um dos grandes aprendizados da minha
experiência com o Circo Udi Grudi e um dos aspectos fundamentais assimilados
em minha prática pedagógica que vejo reverberar positivamente nos/nas
estudantes.
Em sua pesquisa sobre palhaços de circos brasileiros, Bolognesi (2009)
registrou inúmeras entrevistas que apontam para a importância desse vínculo com
o público no contexto do espetáculo circense:
A eficácia de uma entrada, por exemplo, é determinada pela estreita
relação que o artista estabelece com o público. Quando essa ligação,
o artista pode perfeitamente propor, durante a representação, a junção
de outras entradas. Bochechinha, baseando-se na improvisação e na
empatia com a plateia, provocou a junção de duas entradas: “O caçador
e o piano” (Bolognesi, 2009, p. 27).
Uma entrada, no jargão circense, quer dizer um esquete curto, no qual a
performance do palhaço costuma ser mais gestual e menos verbal: são roteiros
de ações e situações com os diálogos reduzidos ao mínimo indispensável,
estabelecendo os momentos cruciais do jogo cômico. As entradas valorizam a
capacidade de improvisação do palhaço ou palhaça, de forma semelhante aos
canovacci da
commedia dell’arte
5
.
Outra informação apresentada por Bolognesi, pertinente a esta pesquisa, é a
diversidade de espetáculos e companhias circenses existentes no Brasil na época
em que realizou seu estudo. Nesse contexto, havia os circos grandes, bem
equipados e organizados como uma empresa, com condições de oferecer atrações
diversificadas, com números que exibem algum virtuosismo em termos de
habilidade dos artistas, apresentados com recursos técnicos como iluminação
cênica. Nestes circos, a presença do palhaço não é tão marcante, limitando-se
praticamente a entradas e esquetes curtos, principalmente com a função de fazer
a transição entre um número e outro, enquanto o palco e/ou picadeiro é
reorganizado para a atração seguinte.
No caso dos circos pequenos com estrutura familiar, cresce o papel do
palhaço, que se estruturam fundamentalmente como circos-teatro, sem muitas
Do picadeiro às salas de aula, memórias e reflexões sobre um aprendizado e suas reverberações pedagógicas
Cecília Borges
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-21, jul. 2023
14
atrações ou números de habilidade circense. Como é possível verificar no
depoimento do Palhaço Piquito ao professor Bolognesi (2009, p. 33):
Eu me dediquei mais ao circo-teatro. Existiam três classes de circo: o
circo de primeira classe, a gente falava circo de tiro. Circo de tiro, por
quê? Porque chegava o circo com bicho, com toda aquela coisa,
propaganda e tal, e dava o tiro! Pegava a estreia, no segundo espetáculo
era o mesmo (como até hoje). O povo ia porque pensava que ia assistir
outra coisa. Então, dava aqueles três espetáculos, ou quatro, e se a praça
não é muito boa, ia embora senão... A outra, era o circo de teatro. Ele
tinha também a variedade no picadeiro. Era o circo de segunda parte, que
a gente falava. Por que segunda parte? Segunda parte era o teatro.
Primeira parte era o picadeiro, segunda parte era o teatro. Naquele tempo
não tinha show. E, depois, passou a ser três partes: picadeiro, o show e,
depois, a peça.
Também o Udi Grudi se estruturou nos moldes de um circo-teatro até o final
dos anos 1980, porém, é preciso lembrar que, assim como três dos sócios
fundadores do Udi Grudi, não sou de família circense. Tivemos a honra e a
oportunidade de aprender com alguns membros de uma delas, pois meus colegas
Marcelo Beré, Luciano Porto e Luciano Astiko, logo depois de terem comprado a
lona do circo, conheceram artistas circenses apresentados por aquele que será o
quarto sócio dessa empreitada, o trapezista e equilibrista Fernando Gama
6
.
Fernando era “bedéu”, uma espécie de fiscal de alunos em um colégio de
Brasília, porém tinha fugido com um circo quando tinha quatorze anos e nele
aprendeu a ser malabarista, equilibrista e trapezista. Foi ele quem apresentou à
trupe, Antônio Alves, o palhaço Saca Rolha, com quem tinha trabalhado no Circo
Zambrota. Saca Rolha nos transmitiu oralmente muito do que sabia, entre
esquetes, entradas, comédias e gags que formavam o repertório do circo-teatro
Udi Grudi.
O Udi Grudi, como outros circos-teatro observados por Mario Bolognesi em
sua pesquisa, tinha recursos escassos e mesmo um repertório de comédias e
números restrito ou, como dizíamos no momento de decidir o que “levar” no dia,
6
Em 1981, na fase embrionária da trupe, que mesclava música com acrobacias, antes de comprarem a lona
circense, Luciano Porto conheceu, em uma viagem que fez a Morro de São Paulo (BA), Olney de Abreu, um
dos integrantes e fundadores da Companhia de teatro e circo Abracadabra de São Paulo. Quando Olney
esteve em Brasília, em 1983, os membros da trupe brasiliense promoveram um encontro para aprenderem
a cuspir fogo. Depois disso, Luciano encontrou Olney em São Paulo e com ele comprou seu primeiro
monociclo. Informação obtida em entrevista concedida por Luciano Porto em outubro/2020.
Do picadeiro às salas de aula, memórias e reflexões sobre um aprendizado e suas reverberações pedagógicas
Cecília Borges
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-21, jul. 2023
15
de acordo com nosso “repetitório”, uma variação possível na combinação dos
números de que dispúnhamos, dentre eles: trapézio, malabarismo, magia,
equilibrismo, além de nossas “acrobesteiras” acrobacias pouco virtuosísticas
apresentadas por palhaços – com entradas e esquetes de palhaços, finalizando o
espetáculo com uma comédia do repertório circense, algumas vezes substituída
por shows de música de estilos variados como rock, rap ou sertanejo.
Mesmo com um repertório limitado e pouquíssimo ensaio, o diálogo com
públicos diversos e meu aprendizado seguiram intensos. Quais seriam então, os
elementos dessa experiência, passíveis de serem assimilados como recursos de
atuação? Para me acompanhar nesta investigação recorro, mais uma vez, à valiosa
pesquisa sobre o circo e o palhaço brasileiros realizada por Bolognesi (2009, p. 13-
14):
O repertório de entradas e reprises levado à cena, ao qual se pôde assistir,
fotografar e registrar, não é, de fato, muito variado. No geral, as reprises
resumem-se a roteiros e situações cômicas, quase sempre envolvendo
números e personagens do próprio espetáculo circense. Exemplo: “O
salto mortal” é uma paródia de uma evolução clássica no espetáculo
circense: a maioria dos números envolvendo acrobacia, de um modo ou
de outro, tem em seu repertório o salto mortal. A paródia recai
unicamente sobre o palhaço e sua incapacidade de realizar uma proeza
acrobática. O cômico, nesse caso, não remete ao exterior: ele se volta
sobre si mesmo, ou melhor, tem como centro a performance do palhaço.
De resto, o sucesso de uma entrada ou reprise depende diretamente da
qualidade da interpretação
. ) (grifo nosso).
Se eram escassos os recursos e o repertório desses circos-teatro, como seria
possível obter essa “qualidade de interpretação” de que fala Bolognesi? É ele
mesmo quem vai oferecer pistas para esta investigação:
A movimentação cênica e a expressão corporal vêm a ser as
características básicas desse tipo de entrada. A precisão gestual se faz
necessária e, na apresentação de Chevrolé e Parafuso, não houve
recorrência a uma ação interiorizada, de ordem psicológica. Ao contrário,
a ação física era propositalmente trabalhada em sua forma grandiosa,
dando realce e graça à interpretação. Os gestos eram preparados aos
poucos, em um crescendo, até culminar em um instante de
congelamento, espécie de síntese do enredo (Bolognesi, 2009, p. 14).
A precisão gestual apontada por Bolognesi é um dos elementos fundamentais
na linguagem do palhaço circense para que possa se comunicar com rapidez e
Do picadeiro às salas de aula, memórias e reflexões sobre um aprendizado e suas reverberações pedagógicas
Cecília Borges
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-21, jul. 2023
16
clareza com o público, além disso, o autor fala em “preparação dos gestos aos
poucos, em um crescendo” que culmina na pausa o que denota profundo
conhecimento do ritmo da cena estabelecendo “uma espécie de síntese do
enredo” (Bolognesi, 2009, p. 14). A consciência e precisão do gesto é algo que trago
também da experiência com o circo para orientar a realização de exercícios
cênicos em processos pedagógicos.
Gesto é uma palavra largamente usada em contextos diversos e, mesmo nas
artes cênicas, não um consenso sobre sua definição, aliás, seria mais adequado
falar em diferentes abordagens e concepções por parte de diretores(as),
encenadores(as), pedagogos(as) diversos. Em geral, falamos de gesto sem nos
preocupar em defini-lo, mas como existem acepções diferentes no contexto das
artes cênicas, faz-se necessário delimitar o que se quer chamar de gesto aqui.
Sem seguir esta ou aquela concepção ou método particularmente, mas
abrangendo todas aquelas que possibilitam a consciência das possibilidades de
movimento do corpo no espaço, dentre eles, que se considerar a contribuição
do dançarino e coreógrafo Rudolf Laban ao propor parâmetros para a realização
do movimento no espaço, a fim de que o artista cênico possa experimentar e criar
com sua matéria-prima primordial: o corpo em seus amplos e múltiplos sentidos
e conexões no espaço-tempo vivido.
Considerações finais
Considero o gesto como a configuração corporal, o desenho criado com/no
corpo no espaço, dando forma a personagens e/ou estados psicofísicos diversos.
Daí a necessidade do/da artista cênico ter consciência e precisão naquilo que
produz com o corpo no espaço da cena, qualidades observadas por Bolognesi na
arte de palhaços circenses brasileiros.
A linguagem gestual clara e precisa com sua respectiva capacidade de
sintetizar o que se quer dizer em cena, presente na atuação de artistas circenses,
em especial no caso dos palhaços e palhaças, desperta o interesse de diversos
artistas do teatro em diferentes épocas. É possível citar grandes diretores,
renovadores da cena teatral, principalmente no que se refere à atuação, que
Do picadeiro às salas de aula, memórias e reflexões sobre um aprendizado e suas reverberações pedagógicas
Cecília Borges
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-21, jul. 2023
17
buscaram a referência do circo, de cômicos de teatros de feira e de variedades,
mas principalmente de palhaços.
Assim foi com o diretor Bertolt Brecht e o palhaço Karl Valentim nos cafés-
teatro da Alemanha nos anos 30 e 40 do século XX; também com o ator e diretor
francês Jacques Copeau e os palhaços franceses de origem italiana Fratellini (os
irmãos Paul, François e Albert) entre os anos de 40 e 50 do mesmo século, na
França e nos fervilhantes anos 20 e 30 na Rússia, com Vsevolod Meierhold e o
palhaço circense Vitáli Lazarenko.
Dentre os artistas citados, todos tinham não uma proposta estética, mas
também pedagógica que sofreram influências da linguagem circense, ampliando
os horizontes das artes cênicas, especialmente no que se refere à atuação.
Meierhold aponta a gestualidade precisa, além do jogo de ator, presentes em
formas teatrais populares, como as bases de uma renovação da linguagem teatral
almejada por ele (Thais, 2009).
Para Copeau, ver os mesmos palhaços realizando as mesmas gags e esquetes
não era um problema. No artigo “A improvisação e o jogo com máscara na
formação do ator” (2017), o ator e professor Guy Freixe cita anotações dos
cadernos de Jacques Copeau que demonstram seu interesse pelo circo, em
especial pelos palhaços:
Fui cinco vezes no Circo para ver os mesmos palhaços”. Ele admira seus
lazzi, seu jogo constantemente renovado com o público e “a graça alerta
de seus corpos treinados”, o que lhes permite encontrar uma
transposição de sentimentos por uma escrita poética do gesto. Ao falar
com eles, ele observa que “é o hábito de trabalhar juntos, sendo o
segredo da sua verve”, e ele é impressionado com a correção da definição
de um dos princípios de sua arte: “o movimento, o ritmo e a precisão
(Copeau apud Freixe, 2017, p.187).
O interesse em comum de renovar a arte teatral, mudando o modo de atuar
em cena, levou homens de teatro como Copeau e Meierhold
7
ao circo. Em
7
A relação entre Meierhold e o circo também é apontada por Marcos Francisco Nery Ferreira no artigo “No
vertiginoso picadeiro soviético” (2010). Segundo Ferreira (2010, pp. 22-23): Meyerhold demonstrava seu
interesse e paixão pelo circo no período que antecedia a Revolução. Explicava aos alunos do Estúdio
questões sobre trabalho dos artistas circenses e frequentemente os convidava, após as aulas e ensaios,
para ver os espetáculos de pista. Fazia constante referência à figura dos palhaços e inclusive conservava
uma grande sala dentro do estúdio decorada por um quadro referente ao circo, utilizando-o para demonstrar
Do picadeiro às salas de aula, memórias e reflexões sobre um aprendizado e suas reverberações pedagógicas
Cecília Borges
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-21, jul. 2023
18
diferentes épocas e lugares, Copeau e Meierhold, assim como Bolognesi,
atentaram-se para as habilidades dos palhaços no jogo com o parceiro de cena e
com o público e na precisão gestual, posso dizer que o mesmo aconteceu comigo
enquanto artista, professora e pesquisadora das artes cênicas, pois, o jogo, a
importância do público e da precisão gestual reverberam em todas essas práticas.
O jogo teatral materializado na gestualidade de seus intérpretes e a criação
de um vocabulário de movimentos que ofereça condições para a autonomia do
ator, no sentido de ter consciência sobre os elementos que compõe sua arte, são
questões fundamentais no desenvolvimento da proposta cênica de Meierhold.
Pois, para ele:
Eliminando-se a palavra, o figurino do ator, o palco cênico, o edifício
teatral e os bastidores, deixando-se somente o ator e a sua arte do
movimento, o teatro continuasendo teatro: o ator comunicará o seu
pensamento ao espectador por meio do seu movimento, do seu gesto,
da sua mímica. (Meierhold apud Thais, 2009, p. 143).
Além de concordar com Meierhold, pude comprovar essa ideia na prática da
cena em algumas ocasiões, sendo uma delas, ainda na trupe do Udi Grudi.
Quando trabalhava com o Udi Grudi, além de apresentações regulares de
espetáculos de circo-teatro por Brasília e arredores, o grupo participava de eventos
diversos com espetáculos e oficinas, tanto em locais públicos quanto privados
(incluindo as depreciadas festas de aniversário infantis), principalmente durante o
mês de outubro, período em que acontecem inúmeras atividades destinadas ao
público infantil, em função do dia 12 de outubro, considerado como “dia das
crianças” no Brasil.
Na ocasião a qual me refiro, a lona do Udi Grudi ficou montada durante uma
semana em um evento que celebrava essa data dedicada às crianças, promovido
pela administração da cidade satélite Paranoá, privilegiada pela vista do lago de
mesmo nome, desprivilegiada em todos os outros aspectos, de saneamento
básico às escolas. Com programação extensa de apresentações e oficinas,
oferecidas gratuitamente para crianças e jovens em vários turnos e dias, a trupe
a multiplicidade de linguagens artísticas dos circenses em torno da acrobacia, música e palavra
simultaneamente. O poder de síntese do circo corrobora, então, com o tão ambicionado teatro sintético.
Do picadeiro às salas de aula, memórias e reflexões sobre um aprendizado e suas reverberações pedagógicas
Cecília Borges
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-21, jul. 2023
19
se subdividiu em trios e duplas a fim de conseguir realizar todas as atividades.
Em um desses turnos de atividades, ficamos eu e Fernando Gama, trapezista
e equilibrista talentoso, mas que não tinha o hábito de se apresentar como
palhaço. Antes que pudéssemos vestir o figurino, nos disseram que distribuiriam
doces naquele momento, então, pedi que fizessem isso logo depois da
apresentação. Combinando rapidamente com Fernando, apresentamos um
“clássico” do repertório circense, “Palhaço na Geral” – geral, nesse caso, refere- se
às arquibancadas do circo, para onde se dirige o palhaço dizendo que ali está sua
família, motivo pelo qual não pode trabalhar, pois vai assistir ao espetáculo junto
com ela.
As crianças se concentraram e riram com a palhaça Cisquicilia, mesmo que
eu estivesse sem figurino, nariz ou maquiagem de palhaça, não por causa da
comicidade do texto, mas porque o gesto e o estado da palhaça estavam
incorporados, assim como a percepção do ritmo do jogo cômico, que inclui
perceber o tempo das piadas, a duração da cena e as pausas para aguardar a
reação do público.
Mas, se não é necessariamente o figurino ou o nariz de palhaço que
acesso à sua comicidade e ao jogo, o que poderia nortear essa busca? Antes de
tudo, é preciso lembrar, quando se fala em palhaços, que existe uma imensa
variedade de estilos de humor, figurino ou máscara, variando também em função
de cada época e contexto cultural. Existem os que são mais tolos e ingênuos,
aqueles que misturam uma boa dose de astúcia à sua tolice, assim como aqueles
que se aproximam de um humor grotesco e, mais uma vez, quem aprecie
transitar entre as possibilidades mais diversas, como é o meu caso, seja enquanto
artista ou professora.
O palhaço é um personagem que reúne características marginais, desviantes,
transgressoras em suas mais diversas interpretações circenses, teatrais,
cinematográficas, seja assumindo o erro, expondo o próprio ridículo da condição
humana, de uma sociedade ou de alguém proeminente nela. O aspecto disforme
e ridículo no corpo e na atitude do palhaço são apontados por Bolognesi no artigo
“Palhaço”:
Do picadeiro às salas de aula, memórias e reflexões sobre um aprendizado e suas reverberações pedagógicas
Cecília Borges
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-21, jul. 2023
20
Quando há um aprendizado corporal, com vistas ao desenvolvimento de
habilidades físicas para a realização de cambalhotas e saltos que
aproximariam o palhaço do acrobata, portanto de um corpo sublime
essa sublimidade deve se escamotear no motivo maior do palhaço, que
é a efetivação do riso e do grotesco. Por isso, o corpo do palhaço sempre
aparece como disforme, permeado de trejeitos, enfatizando o ridículo e
o inusual, explorando as deficiências e os limites, muitas vezes com apelo
visível à sexualidade, momento de realce de desejos e anseios que, no
dia a dia, mantêm-se escamoteados. É um corpo sem amarras. A
licenciosidade é inerente ao palhaço e a seu desempenho: ele explora o
disforme em um momento para, em seguida, superá-lo (Bolognesi, 2000,
p. 69).
Erro e desvio, vulnerabilidade e astúcia, são alguns dos princípios da
comicidade que ganham forma no corpo do/da palhaço/a, princípios que podem
ampliar as possibilidades criativas e pedagógicas nas artes cênicas. Minha
experiência com o circo ensinou a lidar com o erro, fosse imprevisto ou falha
própria, de forma diversa do que é habitual de acontecer no teatro, buscando
soluções e desdobramentos possíveis, além de contribuir para o entendimento de
que a máscara do/da palhaça se configura no corpo, na integração entre estado e
gesto
8
.
O erro, a comicidade, assim como a importância da consciência e precisão
gestual têm sido elementos fundamentais para orientar processos de criação e
ensino-aprendizagem ao longo de mais de uma década como professora na
graduação em artes cênicas na Universidade de Brasília (CEN/UnB), concluindo
portanto, que o aprendizado no picadeiro do Circo Udi Grudi ofereceu bases
fundamentais para minha prática pedagógica, assim como pode acontecer com
outros profissionais da educação que buscarem referências e experiências na arte
circense.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. C
ultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto
de François Rabelais
. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da Universidade de
Brasília, 2008.
8
Esse artigo se baseia no Primeiro Ensaio da tese de doutorado
Quatro ensaios sobre uma tese: entre o circo
e o butô, erro e errância em processos de criação e ensino aprendizagem nas artes da cena
, defendida por
Cecília de Almeida Borges no PPGCEN/UFBA em 19 abr. 2022.
Do picadeiro às salas de aula, memórias e reflexões sobre um aprendizado e suas reverberações pedagógicas
Cecília Borges
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-21, jul. 2023
21
BENÍCIO, Eliene.
Saltimbancos urbanos
: o circo e a renovação teatral no Brasil
1980-2000. São Paulo: Perspectiva, 2018.
BOLOGNESI, Mário. Palhaços.
O Percevejo
, Rio de Janeiro, ano 8, n. 8, 2000.
BOLOGNESI, Mário.
Palhaços
. São Paulo: Editora UNESP, 2003.
BOLOGNESI, Mário.
Circos e palhaços brasileiros
. São Paulo: Cultura Acadêmica,
2009.
BORGES, Cecília de Almeida.
Quatro ensaios sobre uma tese: entre o circo e o butô,
erro e errâncias em processos de criação e ensino-aprendizagem nas artes da
cena
. Tese (Doutorado em Artes Cênicas. Universidade Federal da Bahia, 2021.
Disponível em: https://repositorio.ufba.br/handle/ri/34213
FERREIRA, Marco Francisco Nery. No vertiginoso picadeiro soviético.
Repertório de
teatro e dança
, Salvador, ano 13, 15, 2º/2010. Disponível em:
https://portalseer.ufba.br/index.php/revteatro/article/view/5208/3758.
Acesso em: 29 jan. 2023.
FREIXE, Guy. A improvisação e o jogo com máscara na formação do ator.
Cena
,
Porto Alegre, n. 23, p.184-193, set/dez, 2017. Disponível em:
https://seer.ufrgs.br/cena. Acesso em: 29 jan. 2023.
FREUD, Sigmund.
Os chistes e sua relação com o inconsciente
. Rio de Janeiro:
Imago Editora, 1996.
PAVIS, Patrice.
Dicionário de Teatro
. São Paulo: Perspectiva, 1999.
THAIS, Maria.
Na cena do Dr. Dapertutto
: poética e pedagogia em V. E. Meierhold.
São Paulo: Perspectiva/FAPESP, 2009.
Recebido em: 30/01/2023
Aprovado em 31/05/2023
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br