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Processos de pesquisa e aprendizagem na
palhaçaria de rua
Rafael Santos de Barros
Eduardo Tessari Coutinho
Para citar este artigo:
BARROS, Rafael Santos de; COUTINHO, Eduardo
Tessari. Processos de pesquisa e aprendizagem na
palhaçaria de rua.
Urdimento
Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 47, jul. 2023.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573102472023e0111
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Rafael Santos de Barros | Eduardo Tessari Coutinho
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-19, jul. 2023
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Processos de pesquisa e aprendizagem na palhaçaria de rua
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Rafael Santos de Barros
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Eduardo Tessari Coutinho
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Resumo
O presente artigo busca refletir como a Pesquisa Acadêmica nas Artes tem dialogado
com artistas que estão desenvolvendo um trabalho prático. Mais que isso, como um
artista que atua em espaços como a rua, tendo assim que garantir uma manutenção
dos seus saberes populares, também dialoga com a Academia e seus
desdobramentos teóricos. Dessa forma, o artigo, busca suscitar reflexões, relações
e questionamentos possíveis acerca do intercâmbio entre pesquisa acadêmica e o
desenvolvimento prático, e como essas reflexões podem expandir para outras
linguagens e estudos nas Artes Cênicas.
Palavras chave
: Palhaço de rua. Saberes populares. Pesquisa acadêmica.
Research and learning processes in street clown working
Abstract
This article seeks to reflect on how Academic Research in the Arts has been
dialoguing with artists who are developing practical work. More than that, as an artist
who works in spaces like the street, thus having to maintain his popular knowledge,
he also dialogues with the academy and its theoretical developments. Thus, the
article seeks to raise reflections, relationships and possible questions about the
exchange between academic research and practical development, and how these
reflections can expand to other languages and studies in the Performing Arts.
Keywords
: Street clown. Popular knowledge. Academic research.
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Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Daniela Caielli Mestre pela Faculdade
de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP - 2014).
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Doutorando em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP). Mestrado em Artes Cênicas (USP).
Especialização em Curso Profissional de Clown pela Escola de Palhaços de Barcelona. Graduação em Artes
Cênicas pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Integra o Grupo de Pesquisa CEPECA - Centro de
Pesquisa em Experimentação Cênica do Ator da ECA/USP, desde 2017. Fundador do Grupo Exército Contra
Nada (2011). rafael.debarros@usp.br
http://lattes.cnpq.br/6697085727580747 https://orcid.org/0000-0002-3182-7516
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Doutorado em Artes pela USP. Pós-doutorado na Escola Superior de Teatro e Cinema IPL/ Lisboa. Mestrado
em Artes pela Universidade de São Paulo (USP). ] Prof. Dr. Departamento de Artes Cênicas Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP). edumimo@usp.br
http://lattes.cnpq.br/2685928492077487 https://orcid.org/0000-0002-6254-9475
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Procesos de investigación y aprendizaje em el trabajo del payaso
callejero
Resumen
Este artículo busca reflexionar sobre cómo la Investigación Académica en las Artes
ha venido dialogando con artistas que están desarrollando un trabajo práctico. Más
que eso, como uno artista que trabaja en espacios como la calle, debiendo así
mantener su saber popular, también dialoga con la academia y sus desarrollos
teóricos. Así, el artículo busca plantear reflexiones, relaciones y posibles
interrogantes sobre el intercambio entre la investigación académica y el desarrollo
práctico, y cómo estas reflexiones pueden expandirse a otros lenguajes y estudios
en las Artes Escénicas.
Palabras Clave
: Payaso Callejero. Conocimiento Popular. Investigación Académica.
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Este artigo busca refletir acerca das possibilidades de um desenvolvimento
da pesquisa acadêmica em diálogo com a prática, acreditando no saber de quem
faz, refletindo sobre este fazer no contexto brasileiro, talvez latino-americano. Traz
assim questionamentos que alimentam a reflexão teórica e o desenvolvimento de
pesquisas acadêmicas. Usaremos como exemplo o Palhaço de Rua, em função da
pesquisa e também da prática do pesquisador Rafael de Barros, artista que
terminou seu mestrado pouco (2021), trazendo exemplos que nos interessam
utilizar nesse diálogo.
Nós dois, os autores, temos em comum a característica de termos iniciado a
carreira artística na rua, além de possuirmos o ideal de trazer este conhecimento
para a Academia. É difícil dizer que estamos desenvolvendo experimentos que
trarão o mesmo resultado nas diversas apresentações artísticas mas, mais que
isso, construímos pistas e formas de pensarmos os nossos próprios experimentos
práticos, com o intuito de partilhar na Academia os processos e não,
necessariamente, os resultados. Por exemplo: percebemos que a prática cênica
que está em execução na rua tende a ser também influenciada pela resposta do
público. Portanto, cada apresentação é única, com um resultado cênico particular
àquele grupo presente. Tal como observa Chacovachi
4
(2019, p.20):
Fazer uma apresentação de palhaço é como jogar xadrez. Todos nós
sabemos como se joga. Joga-se “com” e “contra” o público: move você,
move o público; conforme mova o público, move você. Por isso, com o
mesmo material, nunca sairão duas apresentações iguais.
Podemos constatar que nenhuma apresentação teatral será igual a outra,
que sempre estamos em cena, e isso jamais se repetirá, porém no caso das
apresentações que absorvem as respostas e reações do público, isso altera de
maneira mais contundente a própria cena e o desenvolvimento do espetáculo
como um todo.
Então notamos uma necessidade de partilharmos justamente essa maneira
de apresentação, a partir desse recorte da rua, e podermos criar maneiras e
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Chacovachi, é um Palhaço de Rua argentino, escritor da obra
Manual e Guia do Palhaço de Rua
. Tanto o
palhaço como o livro foram amplamente analisados pesquisa de mestrado citada.
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métodos de pesquisa para que isso se desenvolva academicamente. Essa
necessidade de busca por metodologias de pesquisa é o que nos faz olhar para os
nossos próprios processos de montagem e desenvolvimento de espetáculos
teatrais e circenses, feitos na rua, nos quais temos métodos próprios de
organização da pesquisa, a partir das montagens, apresentações, remanejamentos,
ensaios, materiais que colocamos em cena, etc. Outra busca é a consciência das
metodologias que usamos no fazer artístico, para que elas possam contribuir para
a pesquisa. Isto porque temos maneiras potentes para compreender e propor
ações no fazer artístico.
Naturalizamos assim esses processos “práticos” de tal maneira que, quando
nos deparamos com a necessidade de desenvolver um texto acadêmico,
percebemos que parecem existir limitações para a nossa argumentação. Por
exemplo, ao se relacionar com alguém numa apresentação na rua, sentimos a
necessidade de alterar o que estava previsto ou criar algo novo. Como explicar isso
num artigo acadêmico, para além do conceito de improvisação? Mas ainda assim,
é muito importante construirmos também maneiras de articular conhecimentos
práticos por este meio de diálogo. E, vale ressaltar, que ao falarmos que lidaremos
com os processos, não queremos dizer que o resultado não seja importante, que
ter uma apresentação para se colocar em um circuito cultural não seja potente.
Porém, vale dizer que existe uma potência em cada etapa do processo criativo, e
para construirmos um espetáculo, é necessário passarmos por essas etapas, e
valorizarmos seus estágios. Por fim, podemos compartilhar esses processos,
porque todas essas etapas são fundamentais para o desenvolvimento do trabalho
artístico.
Meu objetivo final, por outro lado, é derrubar o próprio modelo, e
substituí-lo por uma ontologia que primazia aos processos de
formação ao invés do produto final, e aos fluxos e transformações dos
materiais ao invés dos estados da matéria. Relembrando Klee, forma é
morte; dar forma é vida. Em poucas palavras, meu objetivo é restaurar a
vida num mundo que tem sido efetivamente morto nas palavras de
teóricos para quem nos termos de um de seus porta-vozes mais
proeminentes o caminho para a compreensão e para a empatia está
“naquilo que as pessoas fazem com os objetos” (Miller, 1998 apud Ingold,
2012, p.26)
No caso das nossas pesquisas, mesmo sem saber ao certo o que vamos
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encontrar no processo de pesquisa, entendemos que o próprio processo de
pesquisa e experimentação irá definir caminhos e decisões. É necessário iniciar o
caminho. Assim, ao pesquisar testamos novas pistas, por percebermos que o que
temos ainda pode ser mais aprofundado, para então falarmos sobre nossos
processos artísticos. Portanto, após experimentarmos e percebermos que é
potente, então organizamos aquele processo de maneira acadêmica. Ainda que se
possa questionar o nosso saber, que é compartilhado para tentar contribuir como
pistas de caminhos para algumas pessoas e alguns de seus processos criativos.
Vitória Pérez Royo (2015, p.537) reflete:
Isso absolutamente não implica uma visão indulgente dos objetos e da
atividade da pesquisa em si, mas sim uma economia de trabalho
diferente: ao invés de o resultado ser considerado como um parâmetro
para definição de valores, o julgamento do processo em si é muito mais
estrito, pois é determinado pelo vel de dedicação da pesquisadora; pelo
quanto de atenção total e sincera dedica a ele; por sua habilidade em
gerar uma relação com o objeto; e pela qualidade do diálogo estabelecido.
Esses parâmetros são completamente subjetivos, e muitas vezes a
pessoa mais qualificada para julgar a validade real da pesquisa é a pessoa
que a desenvolveu pois conhece perfeitamente o processo, além de
toda a transformação a que tanto objeto como sujeito foram submetidos
nesse processo.
Notamos, com isso, que existe uma potência particular, e por vezes, uma
maneira de lidar com as situações na prática, que os artistas desenvolvem notando
as respostas do público e como isso é efetivo em suas apresentações. Ou seja,
assim como a pesquisa tem seu espaço para as novas coordenadas durante os
seus caminhos, uma apresentação como estamos trazendo nessas reflexões,
também possibilita essa abertura. Sabemos, por experiência, que determinadas
escolhas na cena têm grandes chances de “funcionar”. No caso da palhaçaria,
conseguimos vislumbrar os momentos em que o público deve rir. Obviamente,
mesmo com tudo que sabemos por experiência, podemos ter um público que não
ri. Porém essa escuta e capacidade de readequação as respostas do público,
tendem a potencializar esses momentos de risos, que as particularidades de
cada plateia e de cada dia são levadas em conta para as decisões tomadas.
E, quando esse artista se depara com a necessidade de escrever um trabalho
acadêmico, precisa encaixar-se em argumentos ou desenvolvimentos de
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raciocínios consagrados dentro da bibliografia das Artes Cênicas, que, não
necessariamente atingem esse patamar desejado da argumentação. Como eu
poderia citar que foi durante uma conversa com um amigo, antes da cena, que
tivemos uma boa ideia para colocar em prática e ela funcionou? Como refletir
sobre o acúmulo que cada pessoa carrega consigo de experiência em
perceber/sentir uma outra pessoa no momento da relação cênica? Ou ainda como
explicar a potência para a cena resultante de uma conversa de bar? E por mais
que se busque ter a consciência de todas as influências que nos formaram, isso é
impossível! Em uma apresentação na rua, por vezes, usamos experiências pessoais
antigas e profundas para responder à necessidade daquele momento, que não foi
aprendido na aula de improvisação e/ou de palhaçaria.
Como então podemos colocar os Saberes Populares, que encontramos pelas
ruas, em conversas, em paridade na relação com autores consagrados pela
pesquisa teatral acadêmica?
Essas reflexões também nos colocam frente à perspectiva de como os
diários de campo, os cadernos de artistas, as anotações dos processos e
intuições que lhes atravessam, assim como as imagens fora de foco, os
vídeos com ruídos, as conversas fora de hora são, algumas vezes, mais
interessantes do que os relatórios produzidos. E isso marca uma posição
contrária à crença de que os discursos sensíveis e impressões afetivas
levam à perda da objetividade ou seriedade da pesquisa. Há, na
atualidade, inúmeros discursos e práticas investigativas que nos
permitem compreender que quando despertamos para o fato de que é
possível nos basearmos naquilo que vivemos como cerne da nossa
organização e produção, nós podemos perceber que sabemos algo. E
que não chegamos assim tão cruas em relação a nossa capacidade de
construir pesquisa (Velardi, 2018, p.51).
Longe de querermos desvalorizar os saberes construídos na Academia, pelo
contrário, queremos valorizar os saberes que nos são ofertados em outros
diálogos, por vezes, por Mestres e Mestras, que não tiveram a oportunidade de
estudar em instituições formais de ensino, mas desenvolveram saberes na prática.
Buscando assim, valorizar conhecimentos que vêm de diversas fontes e lugares.
Queremos validar os diálogos que nos atravessam e influenciam a nossa
pesquisa.
Apesar de não ser inovador em várias áreas da sociedade, em particular nas
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artes, mas pouco usada nos grupos de pesquisa na academia, essa é uma reflexão
que tentamos cultivar durante os encontros do grupo de pesquisa
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: que as visões
artísticas e acadêmicas possam coexistir. Isto é: a fala de uma pessoa do grupo é
considerada pelo(a) pesquisador(a) na sua reflexão, seja dita por quem está na
academia (mestrado, doutorado), seja por quem não está e nem pretende estar
na academia. Até por isso, estamos na academia desenvolvendo pesquisa.
Sabemos da importância e da potência da Universidade. Queremos, justamente,
que esses conhecimentos coexistam e se potencializem. Que nos auxiliem das
mais diversas formas possíveis sobre nossas reflexões.
Nas pesquisas qualitativas contemporâneas os problemas da
investigação são traçados por aquilo que o pesquisador identifica no
campo de investigação: o que é preciso ser investigado, o que clama por
investigação. Deste modo, o pesquisador não formula os problemas a
priori, a frente do seu computador, mas após o mergulho na realidade
que se propõe investigar. Desse aprofundamento emergem questões
relacionadas à subjetividade quer seja nas relações, nos contextos ou
individualmente, que os problemas das pesquisas qualitativas estão
voltados para inquietações sobre aquilo que configura os modos de vida
em sua subjetividade. E é neste ponto que o pesquisador tem como
tarefa identificar quais epistemes darão suporte à compreensão dos
problemas de pesquisa que lhe saltam aos olhos (Velardi; Costa; Florindo;
Andrade, 2015, p. 211).
Entendemos assim, que a necessidade de investigar as particularidades das
nossas apresentações, que acontecem na rua do Brasil, mesmo que dialoguemos
durante nossa formação, e também ao escrevermos, sobre nossas pesquisas com
os saberes eurocêntricos. Notamos que ao utilizarmos esses conhecimentos em
nosso país, com artistas que tiveram sua formação cultural nesse país geramos
adaptações e uma maneira de fazer particular, própria desse chão que pisam o
publico e pisa o artista.
Os saberes do nosso corpo de artista/pesquisador, que mistura
conhecimentos europeus, como curso de palhaço, e brasileiros/latino americano,
na experiência de assistir muitos artistas populares, além de mestres e mestras
que “traduziram” seus conhecimentos para o corpo brasileiro. E ainda, quando
5
O grupo de pesquisa CEPECA Centro de Pesquisa em Experimentação Cênica do Ator, da Escola de
Comunicação e Artes da USP. Que tem encontros semanais de partilha sobre as pesquisas acadêmicas que
estão sendo desenvolvidas.
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colocamos nossas cenas na rua, estamos colocando no território brasileiro, na
relação com as pessoas que estão vivendo neste país, hoje. Isso perpassa pelas
questões políticas que estamos lidando naquele momento, pelo momento social
que o país passa, pelos costumes que temos em determinada época. Então,
mesmo que tenhamos influências europeias pelo aprendizado que recebemos,
quando nos colocamos na rua, estamos no mesmo “chão” da atualidade brasileira.
Como então é possível que consigamos ofertar o mesmo peso para
aprendizados que nos são ofertados pela experiência nas ruas, com os textos
acadêmicos? Aliás, como colocamos esses saberes em diálogo com os saberes da
tradição, isto é, os saberes que estão nos livros, para o desenvolvimento de uma
pesquisa acadêmica em Artes Cênicas?
Era difícil andar. Pedro e Antonio estavam transportando numa
camioneta cestos cheios de cacau para o sítio onde deveriam secar. Em
certa altura, perceberam que a camioneta não atravessaria o atoleiro que
tinham pela frente. Pararam. Desceram da camioneta. Olharam o atoleiro,
que era um problema para eles. Atravessaram os dois metros de lama,
defendidos por suas botas de cano longo. Sentiram a espessura do
lamaçal. Pensaram. Discutiram como resolver o problema. Depois, com a
ajuda de algumas pedras e de galhos secos de árvores, deram ao terreno
a consistência mínima para que as rodas da camioneta passassem sem
se atolar. Pedro e Antonio estudaram. Procuraram compreender o
problema que tinham para resolver, e em seguida, encontraram uma
resposta precisa. Não se estuda apenas na escola. Pedro e Antonio
estudaram enquanto trabalhavam. Estudar é assumir uma atitude séria e
curiosa diante de um problema (Freire, 1987, p.66-67).
O artista cênico de rua tem como ponto de partida na construção da cena a
relação com o público. Aqueles que se apresentam na rua com um espetáculo
que chamamos de “fechado”, isto é, a cena transcorre independentemente do
local onde estão se apresentando, dizemos que estão se apresentando NA rua,
mas não são DE rua. Não estamos falando de qualidade artística, isto é, não
estamos valorando mais um espetáculo DE rua. Porém existe uma diferença na
maneira com que o todo se coloca em cena. Não é apenas uma questão de alterar
a cena, mas de entender a rua como um local que irá exercer efeito sobre a cena
que se coloca ali. Irá altera-la de alguma maneira, e quando dizemos que algo está
NA rua, seria como se estivesse ali, assim como poderia estar em qualquer outro
lugar.
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Para aprofundarmos um pouco mais a questão, podemos pensar em
manifestações que alteram a rua para estarem ali. Desconfiguram o espaço
público, isolando com tapumes e restringindo a entrada somente a pessoas
autorizadas. Essas apresentações estão NA rua, mas não são DE rua.
Ocasiões que o espectador de rua é cerceado de sua liberdade de
mobilização e manifestação, como se dá em alguns eventos musicais ou
de blocos carnavalescos. Quem já não presenciou, em shows de música
na rua, o palco, o camarim improvisado e todo o território em redor do
cantor estar cercado de seguranças e estes barrarem qualquer tipo de
reação da plateia? Ou ainda, não viram blocos carnavalescos que
atravessavam ruas protegidos por cordas, as quais sinalizavam limites
espaciais para diferentes tipos de público? Esta concepção de realização
cultural “popular”, que evita, ou melhor, que se prepara estrategicamente
para não deixar ocorrer imprevistos pode ser questionada, uma vez que
o local, costumeiramente livre, torna-se, por algum tempo, privado e
restrito (Dutra, 2016, p.128).
Uma quantidade de improvisação faz parte de qualquer cena, mas na rua
estamos atentos aos acontecimentos do local, o espaço cênico que nos é
ofertado, as pessoas do público, para incluir o que vem delas e também utilizar,
tanto do espaço quanto das pessoas, aquilo que contribui para a dramaturgia
proposta, mesmo não alterando o propósito da cena. O Palhaço de Rua se coloca
no mesmo plano, isto é, não tem um palco que o coloca acima da plateia, podendo
assim desenvolver parcerias com seu público, estando no mesmo “chão”, um
simples passo à frente é o que faz a plateia estar no espaço cênico, delimitado
por uma corda no chão, ou por uma simples, porém elaborada, convenção social.
Assim sendo, o Palhaço de Rua pode jogar com características que percebe ter
em comum com seu público.
Os atores devem entender que as suas ações acontecem no tempo
presente urgente, pois, não nenhuma garantia que as ações iniciadas
por eles serão terminadas como foram premeditadas. E, isso se deve,
como já foi dito, à grande possibilidade das encenações do teatro de rua
sofrerem intervenções de diversas ordens. Nessa modalidade teatral, os
atores são habitualmente submetidos ao jogo proposto pelo acaso,
precisando assim, treinar suas habilidades corporais, seu potencial
criativo e sua capacidade de articulação entre risos e riscos (Conceição,
2016, p. 116).
Como na citação do Paulo Freire da página anterior, quando estamos em cena
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na rua, estamos sempre estudando o momento de uma maneira séria e curiosa,
num “Estado de Risco”.
Uma pessoa que está bêbada e grita fora da roda, atrapalhando a
apresentação, pode gerar o que vou chamar aqui de
Risco Artístico
, que
pode atrapalhar a apresentação que o Palhaço de Rua se propôs a fazer.
[...] Como citado acima, o Risco abre justamente uma fenda, um espaço,
para que as coisas aconteçam. E dessa forma, é possível que aconteçam
coisas que potencializam ou que atrapalhem o espetáculo. Qual é a
chance das coisas boas acontecerem? Qual a chance das coisas ruins
acontecerem? Não sei. É possível que algo que iria arruinar o espetáculo,
torne-se um momento potente? Com certeza! Mas a tendência é que as
boas cresçam e predominem (Barros, 2022, p. 124,125).
O conceito “Estado de Risco”, foi desenvolvido durante a pesquisa de
Mestrado em Artes Cênicas no PPGAC da ECA-USP, do pesquisador Rafael de
Barros, que foi finalizada em 2021. Na Dissertação são elencadas e desenvolvidas
algumas possibilidades de Risco que um artista, que se coloca em uma
apresentação na rua, está sujeito a viver. Esse “Estado de Risco”, também
pressupõe uma abertura da cena e do próprio trabalho para que esse “Risco”
aconteça. “Esse contexto de rua pode propiciar o encontro com o essencial do
teatro” (Coutinho, 2000, p.16). Sendo assim, existe uma predileção por esse Estado,
e por entendermos que essa posição gera uma qualidade cênica que julgamos
proveitosa para o teatro, em particular para o trabalho da rua - tanto pelo frescor
dos acontecimentos, como pela potência gerada no encontro com o público, que
vivencia uma apresentação inusitada e inovadora, no sentido de estar
respondendo à potência daquele encontro. Como diz Chacovachi (2019, p.26):
Todo palhaço ou
clown
tem que ter sua experiência de rua, encher de
barro seus sapatos, estourar a garganta, sentir-se sem limites, trocar
medo por adrenalina e transformar risos em orgulho e moedas. Depois a
rua irá se transformar em muitos lugares e isso te permitirá transitar
entre eles com a segurança de quem dormiu feliz em uma cama de
pedras).
Não faz muitos anos que a Academia, na área de artes, aceita pesquisa que
tenha como base o fazer artístico da própria pessoa que faz a pesquisa. Pesquisar
o seu próprio fazer. Por isso, não estamos ainda nem engatinhando, estamos
parindo esta forma de pesquisa, para que ela tenha rigor e consistência acadêmica.
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Um grupo de professores(as) orientadores(as)
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e grupos de pesquisa brasileiros
estão empenhados nesta tarefa. Dentre eles o CEPECA Centro de Pesquisa em
Experimentação Cênica do Ator, que internamente alteramos o nome para “em
Atuação”. No CEPECA, criado pelo Prof. Dr. Armando Sérgio da Silva, existe sempre
uma prática envolvida na metodologia de pesquisa, sempre artística e também
sempre pedagógica. Se quem está pesquisando for artista, uma ênfase no
artístico, mas precisa ser pedagógico, isto é, as pessoas aprenderem com a
pesquisa. Se for docente, a ênfase é no ensino, mas também tem de ser uma
pesquisa artística.
Entendemos que essa é uma maneira de criarmos pesquisas que estão mais
próximas da realidade das pessoas que estudam Artes Cênicas no Brasil. E esse
diálogo entre a prática, a possibilidade pedagógica e a pesquisa artística, dar-se-á
também pela possibilidade dessa construção servir de alguma maneira para as
pessoas que estão construindo seus saberes e fazeres.
Com esse ideário, buscamos no CEPECA a formação de futuros(as)
professores(as) universitários(as), que futuramente, ao ensinar nos diversos cursos
de Artes Cênicas, tragam o estímulo ao corpo discente a apropriação de
conhecimentos europeus, por exemplo, e transformem e seus corpos brasileiros.
Quando falamos de uma pesquisa que vai desenvolver uma reflexão a partir
desses saberes, também nos deparamos com outro problema: que o riso é pouco
visto como um local de desenvolvimento de uma reflexão aprofundada. Nos
confundimos na questão em que no riso não pode haver algo de sabedoria, já que
não é algo “sério”. Confundindo assim seriedade com embasamento, compromisso
ou desenvolvimento. Um drama, algo que seja sério, não garante que exista uma
profundidade ou um desenvolvimento daquela reflexão. Então, termos o riso em
um local de reflexão acadêmica, também nos faz procurarmos outros
posicionamentos, outros remanejamentos, para conseguirmos saber da
importância de um ambiente que traga um relaxamento para o aprendizado, um
local que permita o erro, mas que não seja menos exigente, ou menos rigoroso
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No doutorado UMA CENA PRECISA Procedimentos para uma cena quase pronta, de 2000, de Eduardo
Tessari Coutinho, orientação do Prof. Dr. Clóvis Garcia, o Capítulo IV são cenas de um espetáculo, não é um
texto sobre as cenas. Ainda é uma raridade isto acontecer nas Artes Cênicas.
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com seus trabalhos, que consigamos cultivar os processos pedagógicos através
do riso, da brincadeira, do arriscar-se artisticamente.
A alegria e a esperança fazem parte da natureza humana exatamente por
ser o homem um ser inacabado em constante construção como indivíduo
e como história com os outros e com o mundo, história como
possibilidade. O mundo estará sendo na medida em que lutamos por
alegria e esperança. A alegria de que fala Paulo Freire não é uma euforia
ingênua; é uma dimensão que deve ser garantida pela luta: “é na luta que
se faz também de indignação, de inconformismo, de raiva e de
radicalidade que se constrói uma perspectiva de futuro capaz de manter
viva a esperança indispensável à alegria de ser e de viver”. O que deve
mudar é o nosso jeito de lutar: lutar pela “alegria geral” (Streck, Redin,
Zitoski, 2010, p. 52).
Mesmo nos processos de aprendizagem da Palhaçaria, nos deparamos com
processos que incentivam caminhos de competitividade, de constrangimentos que
pouco tem consonância com as reflexões e práticas que desenvolvemos nessa
linguagem. Então quando colocamos que estamos repensando as maneiras com
que pesquisamos a experiência prática na Academia, também passamos pela
possibilidade de repensarmos os processos pedagógicos desses ensinamentos,
para os momentos que iremos ministrar aulas e cursos.
É por isso que o ambiente deve ser descontraído, relaxado e, ao mesmo
tempo, com concentração. Como escreveu Meyerhold: "Fora da
atmosfera da alegria criadora, do júbilo artístico, o ator não se descobre
nunca em toda sua plenitude" Portanto, o meu papel de diretor deve ser
firme, para dar confiança, respeitoso, por tocar a intimidade das pessoas
(Coutinho, 2000, p.38).
Logo, quando desenvolvemos uma pesquisa na Academia e estamos nos
testando na prática, também tentamos nos libertar da cobrança de que não
podemos mais errar. E tampouco queremos um lugar que está para julgar outras
atividades artísticas. Principalmente as que estão se desenvolvendo. que
sabemos da importância de cada etapa do processo, é natural que um grupo que
esteja começando, que tenha poucos recursos, esteja em uma etapa diferente de
quem está desenvolvendo um trabalho mais tempo, porém todas as etapas
são importantes, e precisam ser incentivadas. O fato de se ter mais tempo de
“estrada” na arte, não garante qualidade artística. As pessoas mais experientes que
refletem seus saberes podem se sentir mais seguras, mas eventualmente um
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jovem no fazer pode se arriscar mais e encontrar algo. Com isso queremos dizer
que o estar inteiro no momento da apresentação é que é fundamental. Ter
experiência e buscar o risco são importantes, mas cada dia é um dia, podendo
resultar em algo potente ou algo frágil, não sabemos. E isto é um valor! Saber que
podemos não acertar.
Entendemos que a própria linguagem da palhaçaria, como base para a
reflexão da pesquisa acadêmica como estamos sugerindo, pode nos auxiliar a
romper algumas fronteiras, como é característico dessa linguagem. Ousamos até
dizer que a experiência do Palhaço de Rua auxilia na possibilidade de transitar
nesses dois universos e entender que ao invés de estarem em contraposição,
podem sim, dialogar.
O palhaço é artífice de seu próprio processo, de forma que em seu
trabalho também estão presentes as qualidades de fazer e mostrar
fazendo. O palhaço faz e exibe ao público aquilo que ele mesmo criou.
Mais do que a trama dramática, este tipo de performance ressalta seu
intérprete e o que se destaca é o modo particular como cada um se
comporta e executa as ações dadas à vista, o que ele é e como ele faz.
O corpo e os recursos expressivos são o que mais importa neste tipo de
performance. O interesse dos participantes não está vinculado apenas ao
desenvolvimento linear da história, mas sim à ação, pois o público quer
experimentar o modo pelo qual o atuante vivencia o que quer que esteja
ocorrendo. A obra acabada - quando existe - e apenas o vestígio de um
processo muito maior: a criação do palhaço, que se de forma
continuada (Castro, 2019, p.102).
O processo criativo da palhaçaria nos convida a olhar para nós mesmos, e
trabalharmos comicidades a partir das nossas potencias e limitações. Podemos
arriscar um paralelo com essa reflexão acerca da palhaçaria, em relação a
pesquisa acadêmica. O que nos colocaria mais próximos da sugestão citada acima.
Dessa forma, temos a possibilidade de dissertar nos trabalhos acadêmicos, sobre
os nossos próprios processos artísticos. E a figura do Palhaço nos ajuda a refletir
numa possível dúvida que poderia pairar diante dessa possibilidade, que é a
questão de quanto é possível dialogar com as outras pessoas que leem essa
pesquisa a partir da própria experiência.
Para experimentarmos o uso das Investigações Baseadas nas Artes é
preciso estarmos abertas e abertos à compreensão de que, ao invés de
vermos a investigação como um procedimento linear onde o caminho a
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ser percorrido foi previamente traçado, o processo é modificado pela
interação direta da investigadora e do investigador, pelos seus
julgamentos, impressões, estados de ânimo. Mudanças de direções e
sentidos. Sullivan destacou, em 2006, que o pesquisador pode e deve
usar atos de investigação interativo e reflexivo pelo qual a visão
imaginativa é construída a partir de uma prática criativa e crítica do
ambiente em que ele está. De forma geral as artes podem ser um
importante instrumento para os pesquisadores e as pesquisadoras. Uma
foto, música, expressão corporal ou qualquer outra forma de arte diz
mais a respeito de si do que muitas vezes em uma entrevista, por
exemplo (Velardi, Fernandez, Matsuo, 2017, p.159).
A referência artística que precisamos desenvolver se baseia justamente
nesse lugar. O Palhaço que trabalha a partir das suas potencialidades pessoais, a
partir de suas fragilidades/características, suas contradições expostas em cena,
para fazer rir, e pretende desenvolver esse diálogo. O palhaço pode também
perceber qual será a maneira de diálogo possível, dentro das reflexões e
desenvolvimentos acadêmicos, que suas experiências artísticas pessoais poderão
auxiliar e/ou instigar outras pessoas.
Romper e ir além das barreiras que poderiam impedir que alguns assuntos
que sabemos ser importantes, mas são pouco tratados nas pesquisas acadêmicas,
pode ser uma boa função para uma figura que tem como um dos seus
fundamentos, romper barreiras:
São os senhores do intermédio. Um trickster
7
não vive no círculo familiar;
não mora nos salões de justiça, nas tendas dos soldados, nas cabanas
dos xamãs, nos monastérios. Passa por todos esses lugares quando
um momento de silêncio e alegra cada um deles com travessuras, mas
não é seu espírito guia. Ele é o espírito das passagens que dão para fora
e das encruzilhadas nos limites da cidade (aquelas onde um pequeno
mercado floresce). É o espírito da estrada ao anoitecer, que corre de uma
cidade a outra e não pertence a nenhuma delas (Hyde, 2017, p.15).
Últimas considerações
O que queremos neste texto é afirmar o valor da experiência prática artística
de quem pesquisa, no diálogo com os saberes estabelecidos pela academia.
Este texto, assim como algumas pessoas que pesquisam, além de grupos
estabelecidos nas universidades, podem existir, porque este movimento
7
Nesse caso, entendemos o Trickster como o Palhaço que estamos desenvolvendo as reflexões no decorrer
do texto.
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acontece anos. Mas este pensamento ainda precisa se impor para áreas
tradicionais da academia, que desqualificam as Pesquisas nas Artes feitas a partir
da experiência pessoal.
Este lugar de descobrir os caminhos possíveis de pesquisa a partir da prática,
que contribuam para o desenvolvimento da arte aumenta a nossa
responsabilidade, parecido com o iniciar de uma apresentação na rua, no qual nos
preparamos com o que temos de melhor, refletindo e escolhendo as primeiras
ações da cena, mas sabendo que será na relação com o público que a cena se
definirá.
Estou especialmente interessada no momento em que a pesquisadora e
o objeto de sua pesquisa entram em contato, seguindo-se à observação
anterior de determinada distância. Esse contato indica
inquestionavelmente um desejo de penetrar no objeto de estudo;
pesquisar seus mecanismos, seu funcionamento e estabelecer uma
relação íntima com eles que leve à transformação de ambos (Royo, 2015,
p. 542).
As pesquisas das pessoas que vêm da palhaçaria, mímica, circo, das
apresentações na rua etc. acontecem na relação entre a pessoa que pesquisa e a
pesquisa em si. Isso é o que consiste na base dessas linguagens artísticas, isto é,
a relação entre quem propõe a cena (artista) e quem participa na construção da
cena final realizada (plateia). Ambas as partes movidas por uma conexão humana,
não possível de explicar pela sua complexidade. Talvez a relação de amor que
propõe Vitória Pérez Royo (2015, p. 535) resuma bem:
Se examinarmos a relação singular que se desenvolve entre a
pesquisadora e o objeto de sua pesquisa a partir do ponto de vista do
amor, vem à luz uma série de momentos, dificuldades e estágios em um
processo comum ao quais vale a pena prestar atenção se realmente
quisermos que as artes tenham essa posição inovadora a partir da qual
podem reformar e reinventar a pesquisa. A partir daí, pode ser possível
desenhar currículos que não estejam baseados em critérios como
produtividade, competitividade, inovação que, na maior parte das vezes,
são o vilão para pessoas como nós, que trabalhamos nesse âmbito.
Naturalmente, não estou sugerindo que sejamos descuidados com a
organização dos currículos, mas sim que busquemos parâmetros de
qualidade baseados em uma escala de valores diferente, com uma ética
e uma política educacional que não adotem exigências externas, trazidas
de outras disciplinas e pelo clima econômico prevalente; sugiro que
busquemos, sim, em outros lugares, começando com o mais próximo e
o mais privado, a saber, a relação do pesquisador com o objeto de seu
estudo.
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Percebemos, nos trabalhos artísticos que desenvolvemos, como na
Palhaçaria, Mímica e na arte de Rua, essa aproximação com reflexões para além
de referências acadêmicas, e que são essas reflexões que nos auxiliam no
desenvolvimento das pesquisas, e da geração de conhecimento. Mais que isso,
percebemos que quando estamos desenvolvendo nossos trabalhos artísticos e
nos propomos a dissertar sobre eles, estamos cultivando um terreno fértil para
uma pesquisa acadêmica.
Buscamos assim que os nossos processos artísticos, nossas vivências
artísticas, e fontes que nos apontam caminhos proveitosos nas artes, tenham a
qualidade para serem citadas por outros trabalhos desenvolvidos na Academia.
Assim como trouxemos citações nesse artigo que nos fazem refletir a partir de
outras fontes, que não precisam ser, necessariamente, da linha de pesquisa que
estamos desenvolvendo o trabalho em si. Que possamos também encontrar
maneiras de relatarmos nossos fazeres, assim como foi citado durante o artigo,
com um capítulo que contenha o registro fotográfico da encenação, por exemplo.
Ou mesmo com registros que não estão nas melhores condições estéticas, mas
relatam momentos importantes da criação e do processo criativo.
Por vezes, os compromissos artísticos podem ser vistos como algo que
distancia a pessoa do desenvolvimento de sua pesquisa. Ao contrário, podemos
colocar esse desenvolvimento artístico prático como potência de um
desenvolvimento de reflexão acadêmica, e não como algo negativo para a
pesquisa. Obviamente, a pessoa que se propõe a desenvolver um trabalho na
Academia, precisa lidar com os compromissos que esse fazer gera. Temos aqui a
proposta de gerar um conhecimento que contribua para o desenvolvimento de
outras pesquisas. Portanto, trazer a relação que temos no artístico com o público
para a relação com o leitor. Enfim, potencializar nossa vivência acadêmica com
nossos fazeres artísticos.
Notando assim, a pessoa que pesquisa, que se coloca no palco, também
percebe que muitas reflexões têm via dupla: a reflexão acadêmica ajuda no fazer
artístico e o fazer artístico é a base da reflexão acadêmica.
Por vezes, algumas ideias que se tinha como realização da cena, na hora da
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apresentação, não saem do jeito que se imaginava. Por vezes ensaiamos para
chegarmos o mais perto possível do que queremos, mas sabendo do risco de não
conseguirmos. Então o pesquisador que se coloca no palco, também tende a
perceber que o nervosismo, a adrenalina e o encontro com o público transformam
sua cena, e isso não é algo negativo, faz parte do processo. Também na pesquisa
o encontro com outras pessoas que pesquisam, seja no grupo de pesquisa, seja
em encontros acadêmicos, transformam sua pesquisa e isso também faz parte
do processo. Dessa forma, procuramos desenvolver um olhar de pesquisa que
sabe de algumas questões que, ao compartilhar com o público, serão
transformadas, tornando mais potente o resultado. E, tanto no artístico quanto na
pesquisa, precisamos seguir cultivando nosso oficio, seguir nos apresentando e
lidando com esses acontecimentos, que já não precisam ser divididos entre bons
e ruins, mas como parte essencial do trabalho artístico e do trabalho de pesquisa.
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da atividade física na estratégia de saúde da família [ livro eletrônico] 2015.
Recebido em: 30/01/2023
Aprovado em: 10/07/2023
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br