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Projeto
Geringonça
e suas coisas:
intermedialidades na dramaturgia do circo
Julia Henning
Para citar este artigo:
HENNING, Julia. Projeto
Geringonça
e suas coisas:
intermedialidades na dramaturgia do circo.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2,
n. 47, jul. 2023.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573102472023e0301
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A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Projeto Geringonça e suas coisas: intermedialidades na dramaturgia do circo
Julia Henning
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-25, jul. 2023
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Projeto
Geringonça
e suas coisas
1
: intermedialidades na
dramaturgia do circo
2
Julia Henning
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Resumo
Neste artigo foi apresentado o modo como as mídias estão presentes e se
relacionam no processo artístico Geringonça, proposto pelo coletivo circense
brasiliense Instrumento de Ver a partir da identificação e criação de categorias que
permitiram apontar as intermedialidades propostas. Foi escolhido o conceito de
mídia como modo de expressão e objetos que organizam, transportam, guardam ou
alteram a nossa percepção de mundo e atuam como meios para a produção de
sentido, dentro da perspectiva da intermedialidade. Foi considerada ainda a
importância do estudo de diferentes procedimentos criativos circenses para propor
pistas voltadas à compreensão da escrita e dramaturgia do circo. A partir da
pesquisa pudemos perceber que a escrita do espetáculo de circo coloca as
intermedialidades em evidência, ressaltando o contraste entre diferentes mídias, em
uma equivalência de importâncias.
Palavras-chave
: Circo. Mídia. Intermedialidade. Dramaturgia do circo.
1
Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Marina Farias Rebelo, bacharel, mestra e
doutoranda em Letras/Português pela Universidade de Brasília (UnB). marinafariass@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/4504387417797921
2
Este artigo resulta em 73% de partes da dissertação de mestrado de Julia Henning Campos Piedade. Poéticas
circenses contemporâneas: intermedialidades e o coletivo Instrumento de Ver. 2018. 173 f., il. Dissertação
(Mestrado em Arte) - Universidade de Brasília, Brasília, 2018, disponível em:
https://repositorio.unb.br/handle/10482/34260.
3
Mestre em Artes Cênicas pela Universidade de Brasília (UnB). Especialização em Gestão Cultural pela Serviço
Nacional de Aprendizagem Comercial. Graduação em Psicologia pela UnB.
julia.henning.campos@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/9320033684550985 https://orcid.org/0000-0003-2661-8565
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Project Geringonça and its things: intermedialities in circus
dramaturgy
Abstract
In this article, it was presented how the media are present and related in the
artistic process Geringonça, proposed by the Brazilian circus collective
Instrumento de Ver from the identification and creation of categories that
allowed to point out the proposed intermedialities. The concept of media was
chosen as a mode of expression and objects that organize, transport, store
or change our perception of the world and act as means for the production
of meaning, treated within the perspective of intermediality. It was also
considered the importance of studying different circus creative procedures
to propose clues aimed at understanding circus writing and dramaturgy. From
the research we could see that the writing of the circus show puts the
intermedialities in evidence, emphasizing the contrast between different
media, in an equivalence of importance.
Keywords
: Circus. Media. Intermediality. Circus dramaturgy.
Proyecto
Geringonça
y sus cosas: intermedialidades en la
dramaturgia circense
Resumen
En este artículo, se presentó cómo los medios están presentes y relacionados
en el proceso artístico Geringonça, propuesto por el colectivo circense
brasileño Instrumento de Ver a partir de la identificación y creación de
categorías que permitieron señalar las intermedialidades propuestas. Se eligió
el concepto de medio como un modo de expresión y objetos que organizan,
transportan, almacenan o cambian nuestra percepción del mundo y actúan
como medios para la producción de significado, tratados en la perspectiva de
la intermedialidad. También se consideró la importancia de estudiar
diferentes procedimientos creativos circenses para proponer pistas
encaminadas a la comprensión de la escritura y la dramaturgia circenses. De
la investigación pudimos ver que la escritura del espectáculo circense pone
en evidencia las intermedialidades, enfatizando el contraste entre diferentes
medios, en una equivalencia de importancia.
Palabras-claves
: Circo. Medios. Intermedialidad. Dramaturgia circense.
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A partir de um insistente interesse pelos objetos na pesquisa artística do
coletivo Instrumento de Ver, venho pensando os procedimentos criativos do circo
e sua dramaturgia a partir da materialidade da cena. Esse interesse nasceu com a
pesquisa
Geringonça
, iniciada em 2016, e teve como objetivo estudar objetos e
suas relações com o movimento. Desde então, todas as criações do coletivo
Instrumento de Ver ficaram influenciadas por essa temática. Dada a relevância do
projeto, revisito neste artigo parte do trabalho realizado na pesquisa de mestrado
que teve este projeto do coletivo como tema.
O projeto
Geringonça
4
foi idealizado e realizado durante todo o ano de 2016.
Este período previu um espaço livre para experimentação de procedimentos
criativos, sem compromisso com a criação de um espetáculo. Os resultados foram
apresentados ao longo da pesquisa, em diferentes meios: 1) cena, em três ensaios
abertos; 2) vídeo, que acabou resultando na criação de filme curta-metragem; e 3)
textos publicados em um blog
5
, que ao final compuseram uma revista virtual.
A pesquisa foi organizada em três laboratórios. O “Laboratório 1” teve o
objetivo de explorar materiais e princípios de movimentação em instalações
móveis autônomas, a partir do estudo de princípios físicos (por exemplo: polias
para redução de esforço, peso e contrapeso, molas, elásticos, dentre outros). O
“Laboratório 2” foi voltado para pesquisa e experimentação do movimento e da
relação com objetos cotidianos a partir de procedimentos criativos da dança, da
improvisação, da acrobacia circense e da manipulação de objetos, assim como as
possibilidades subjetivas das relações entre os artistas e os objetos. O “Laboratório
3” teve como foco a pesquisa e experimentação de criação de cenas e textos em
diálogo com o meio audiovisual, aprofundando ainda mais as possibilidades
subjetivas das relações entre os artistas e os objetos.
Os três ensaios abertos ao público finalizaram cada laboratório e
aconteceram em diferentes locais de Brasília: “Ensaio nº.1” no Espaço Cultural
4
Geringonça
(2016). Ficha técnica: Direção Artística: Daniel Lacourt; Pesquisa de movimento: Daniel Lacourt,
Julia Henning, Maíra Moraes e Vinícius Martins; Pesquisa Sonora: Luiz Oliviéri; Pesquisa de vídeo: Cícero Fraga;
Pesquisa de dança: Édi Oliveira de Carvalho; Produção Executiva: Maíra Moraes e Joana Macedo; Produção
Geral: Julia Henning e Gabriela Onanga; Realização: coletivo Instrumento de Ver.
5
Blog Geringonça
, em: www.instrumentodever.com/geringonca. Acesso em: 19 mar. 2023.
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Direito, na Vila Telebrasília; “Ensaio da Concordança” ao ar livre, no Parque Olhos
D’água; e “Ensaio Coisa com Coisa”, ao ar livre, no gramado da via conhecida como
Eixão, na altura da Asa Norte.
Chamados de pesquisadores, os artistas envolvidos no projeto foram Daniel
Lacourt, Julia Henning, Maira Moraes e Vinícius Martins, em processo colaborativo
dirigido por Lacourt. A motivação principal foi explorar as particularidades do
processo de criação no circo para que pudéssemos identificar métodos e
procedimentos criativos específicos do coletivo Instrumento de Ver. O diretor,
pesquisador e coreógrafo de dança contemporânea Édi Oliveira de Carvalho,
convidado a contribuir na definição de metodologias de pesquisa, foi crucial para
o direcionamento temático. Como ele próprio descreve em entrevista concedida
a esta autora,
Minha colaboração no projeto abriu, para mim e para o grupo, a
compreensão de que o objeto como tema gera possibilidades
tentaculares, que apontam para vários caminhos de pesquisa, que podem
se entrecruzar e dialogar entre si. O objeto pode ser suporte para a
criação de movimento, mas pode ser, também, centro de uma
exploração/construção dramatúrgica, independente ou com o artista. A
partir do contato com o objeto é possível gerar poéticas, textos,
coreografias, etc. Ele não precisa resignar-se à função de instrumento
que, longe de ser uma função menor, não é a única possível para as
“coisas” (Carvalho, 2018).
Além de Édi Oliveira de Carvalho, o diretor de vídeo Cícero Fraga participou
de alguns ensaios, ajudando a direcionar nosso interesse para o tema das relações
com os objetos. Além de assistir a alguns ensaios, com o objetivo de uma criação
audiovisual, dialogou conosco na plataforma de troca de referências que criamos
em rede social e assistiu aos ensaios abertos. A pesquisa o inspirou para a criação
de um filme em formato de curta-metragem chamado
O Homem Banco
(2018)
6
,
também desdobramento do projeto. Desde então, a pesquisa Geringonça
influenciou todas as produções do grupo até hoje. Firmamos a identidade artística
do coletivo Instrumento de Ver explorando, de muitas formas, o tema da relação
6
O filme estreou em 2018 e desde então já foi selecionado pelo Áustria National Film Festival em Viena, e
para o Cinalfama Lisbon International Film Awards, em Lisboa, Portugal, além de ter vencido os festivais
Short to the Point, na Romênia, o Five Continents International Film Festival na Venezuela. Foi escolhido
também como melhor curta experimental no festival online Largo Film Awards e selecionado para a Mostra
Brasília do 51º Festival Internacional de Brasília do Cinema Brasileiro. Trailer
O Homem Banco
:
https://vimeo.com/207783252.
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com os objetos e utilizando os procedimentos de criação como linha de pesquisa
dos novos trabalhos do grupo, tanto na prática quanto nas reflexões teóricas.
Para analisar o processo criativo
Geringonça
, tomei emprestado o conceito
de mídia. Este termo foi popularizado em sua acepção como mídias de massa
(derivada do termo em inglês
mass media
). Ampliando o alcance desse sentido
corrente, porém, utilizei o conceito proposto por teóricos da comunicação,
passando por pesquisadores das artes cênicas, que o articulam como ferramenta
possível para o estudo de processos criativos de espetáculos.
O aspecto que mais me cativou nesta proposta foi a materialidade que o
conceito traz. Abordar os processos criativos do coletivo a partir de um olhar claro
sobre a materialidade do que está ali, em cena, me pareceu ser uma perspectiva
coerente com as próprias defesas estéticas do coletivo Instrumento de Ver,
conforme percebi ao longo da pesquisa. Vale mencionar que, de forma usual, o
coletivo demonstrava afinidade com o termo, utilizando-o de forma corrente
em seus processos criativos para se referir a diferentes suportes de criação, como
texto, vídeo, cena, música, dentre outros. Aprofundei-me então no conceito, que
se mostrou útil para o diálogo com os procedimentos criativos que propomos no
grupo.
Em interlocução com diversos pesquisadores, emprego aqui o conceito de
mídia como meio, algo material que faz a ponte da comunicação. Comunicação
não no sentido hermenêutico que aborda os signos como mensagens codificadas
que devem ser interpretadas, mas sim no sentido de trânsito, ligação, partilha. O
conceito de mídia, portanto, abrange tudo o que seja ponte entre o que se expressa
e o que é recebido. Nessa abordagem, podemos também considerar o corpo como
mídia, além dos objetos e da música em cena, dos vídeos projetados e de tudo
que compõe o espetáculo.
Outra acepção oportuna é entender a mídia como o suporte em que algo é
apresentado: um texto escrito em papel, uma projeção de um filme, ou uma
coreografia em que a criação se mostra. Para tanto, apresento a definição proposta
por Marta Isaacsson (2018, p. 27), pesquisadora em artes cênicas da Universidade
do Rio Grande do Sul, de que, as mídias são “as matérias pelas quais a partilha do
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sensível se concretiza”. Entendo, aqui, as mídias como modos de expressão e
objetos que organizam, transportam, guardam ou alteram a nossa percepção de
mundo, participando como meios para a produção de sentido.
Faz parte da minha escolha, portanto, olhar para as maneiras como as mídias
estão presentes e se relacionam nos processos criativos do coletivo Instrumento
de Ver. A partir da materialidade, proponho um olhar para o espaço criado nessa
relação, dentro da perspectiva da intermedialidade, isto é, do estudo da relação
entre diferentes mídias. Adalberto Müller (2012, p. 169) propõe a intermedialidade
como o “campo do conhecimento que estuda as interrelações de diferentes mídias
em um universo midiático bem amplo”. De acordo com o pesquisador,
a intermedialidade se define, grosso modo, como a relação que se
estabelece entre diversas mídias e produtos midiáticos, e que estes
estabelecem entre si, através de processos de adaptação, citação,
hibridação, etc., ressaltando a medialidade de sua constituição e do seu
sentido (Müller, 2012, p.170).
A intermedialidade mostrou-se, portanto, uma boa ferramenta para lidar com
a multiplicidade de relações que estão presentes no circo. Além disso, o conceito
foi fiel ao meu espanto em olhar para o objeto da pesquisa e percebê-lo muito
diverso. Considerando que intermedialidade é o que está entre as mídias, todo
espetáculo, portanto, é intermedial, já que está o tempo todo colocando as mídias
em relação. O conceito de intermedialidade pode ser operativo no estudo dos
espetáculos ao orientar o olhar para os processos e indicar a reflexão teórica que
o próprio coletivo Instrumento de Ver propõe no desenvolvimento de criação e
em cena.
A infinidade de relações intermediais possíveis na cena, me levou a
identificar, na análise do processo criativo, os diferentes recursos e efeitos
intermediais apresentados. Tomando como referência a criação de categorias
operativas para análise dos espetáculos, propostas pelas autoras Gabriela
Monteiro e Marta Isaacsson, elaborei categorias de análise adequadas para cada
momento da pesquisa Geringonça: o processo e a cena. Os objetivos são investigar
quais procedimentos e metodologias podem ser empregados na criação circense
e entender as intermedialidades propostas.
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Intermedialidades no processo de criação
O projeto
Geringonça
foi idealizado como uma pesquisa que previa como
resultados não só as cenas circenses, mas também textos e vídeos, ou seja, uma
mesma pesquisa se desdobrando em diferentes mídias. Desde partida, esse
direcionamento caracterizou o projeto Geringonça como uma proposta de formato
e metodologia intermedial. A ideia foi colocar todos os artistas criadores
compartilhando os mesmos processos criativos desde o início do projeto. Além
disso, os artistas circenses tinham a liberdade de utilizar qualquer mídia, mesmo
que não tivessem domínio de suas técnicas específicas. Dentro do processo, além
das cenas circenses, fizemos vídeos, poesias, pequenas esculturas e instalações.
No processo criativo as cenas não eram encerradas em si mesmas,
independentes da estrutura do espetáculo, como em uma apresentação ao
público. Em todos os ensaios abertos, a movimentação, as coreografias e os textos
(apresentados como falas ou escritos), foram recursos para a dramaturgia. A
relação com os objetos guiou o processo de forma primordial. A criação da
movimentação acrobática, inclusive, surgiu a partir da relação com os objetos
(circenses ou não) e foi direcionada por essa relação.
Um dos objetivos mais importantes do projeto
Geringonça
foi o de identificar
métodos e procedimentos criativos específicos do grupo. Durante todo o processo,
foram utilizados métodos criativos intermediais. Além de propor a criação em
diferentes mídias, cada concepção também tentava colocar em evidência suas
próprias medialidades, ou seja, a reflexão sobre a mídia utilizada era ressaltada
dentro do próprio material criado e seus limites eram apontados. Durante a
realização da pesquisa, pude identificar quatro procedimentos criativos
intermediais muito úteis para a geração de material: 1) as composições; 2) a
produção de textos e imagens que dialogavam com a sala de ensaio; 3) os
improvisos; 4) a pesquisa e experimentação das medialidades dos objetos.
As composições são exercícios livres com enunciados limitadores, pequenas
tarefas preparadas fora do espaço de ensaio ou em um momento específico do
ensaio reservado para isso, que podem ser trabalhadas individual ou
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coletivamente, e apresentadas aos outros participantes. Geralmente os
limitadores enunciados são relacionados a algum tema, têm uma duração entre
cinco e dez minutos e a liberdade para usar qualquer mídia: texto, coreografia,
desenho, instalação, bricolagem; e qualquer suporte: cena, vídeo, escritos, objeto.
As composições trazem ideias que são desenvolvidas em cenas, imagens ou se
desdobram em novas ideias.
A composição é uma ótima ferramenta de criação colaborativa, pois, mesmo
que não seja aproveitada, reverbera no processo, mesmo que só como referência
criativa para outras composições, do mesmo artista ou de outros. É também uma
forma de diálogo artístico, pois cada um pode se expressar e trazer possibilidades
para o processo a partir da linguagem que estamos trabalhando: a criação artística
intermedial ancorada nas artes circenses, mas aberta e porosa aos procedimentos
criativos de outras artes.
A flexibilidade para utilizar diversas mídias e suportes permite explorar uma
ampla variedade de intermedialidades e é reforçada no enunciado das
composições. Durante o processo criativo do projeto
Geringonça
, por exemplo,
desenvolvi uma performance/instalação usando uma televisão de tubo como tela
para projetar a imagem de uma boca de cabeça para baixo, recitando uma poesia.
Para projetar a imagem, criei um mecanismo caseiro utilizando uma caixa de
sapatos, uma lupa e meu celular. Posicionei-me de cabeça para baixo atrás da
televisão, escondendo a cabeça. Neste exemplo, posso dizer que a
intermedialidade é evidenciada quando destaco uma parte do corpo - neste caso,
a boca projetada na tela - como uma lupa. A sobreposição do objeto e do corpo,
que resulta em uma imagem do corpo deformado, também é um efeito da
intermedialidade. Além disso, a intermedialidade questiona os limites da televisão
enquanto mídia, que efeito da lupa e o projetor visível inverteram a função do
aparelho, transformando-o de um decodificador de imagem em um receptor,
resultando em uma nova percepção da mídia.
O segundo processo criativo do projeto Geringonça envolveu a produção de
textos, que se mostrou inteiramente intermedial. O
blog
serviu como plataforma
para exposição do que ia sendo escrito durante o processo, que mais tarde foi
selecionado para a revista virtual. Além disso, mantivemos uma plataforma de
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diálogo na rede social
Facebook
para compartilhar referências e produzir
conteúdos, incluindo textos, vídeos e fotografias. A produção de textos seguiu dois
caminhos: alguns foram criados em exercícios em sala de ensaio e posteriormente
publicados no blog; outros foram publicados em resposta a alguma provocação,
utilizados na cena ou não. A colaboração de Édi Oliveira de Carvalho intensificou a
produção de textos, já que a intermedialidade entre dança e escrita é tema de sua
pesquisa. Em entrevista a esta autora, afirmou:
Também foi muito interessante trabalhar, junto com os pesquisadores,
produção textual poética motivada pela descrição dos objetos, em várias
camadas (físicas, funcionais, afetivas, memorialistas, etc.), por meio de
exercícios de improviso com a palavra, o que gerou textos poéticos
potentes e tocantes, dos quais alguns foram usados nos ensaios abertos
seguintes (Carvalho, 2018).
Neste contexto foram criados o
Manifesto Coisista
7
e diferentes textos que
compuseram os ensaios abertos e conduziram a criação do roteiro e a narração
do filme curta-metragem
O Homem Banco
(2018), dando diferentes sentidos para
as imagens.
Outro procedimento criativo utilizado em sala de ensaio foi a prática de
improvisação, que consiste em exercícios com duração determinada ou livre, cujo
objetivo é explorar as relações e soluções em tempo real, que surgem a partir de
uma ou mais regras. Foram propostos vários improvisos corporais, individuais ou
em grupo, nos quais as mídias de cada objeto eram testadas, recontextualizadas
e questionadas continuamente. Esses improvisos eram relacionais, permitindo que
os participantes interagissem com um ou mais objetos, reinterpretando sua função
original e explorando suas possibilidades de movimento, imitação, adaptação e
encaixe. Por exemplo, em cada laboratório, quando um novo objeto era
introduzido, um exercício de improviso era realizado para apresentá-lo, podendo
ser apresentado no tempo verbal que o participante preferisse e com liberdade
para que qualquer pessoa pudesse tomar seu lugar, possibilitando o trânsito entre
ficção e realidade. Édi Oliveira de Carvalho propôs diversos exercícios de
investigação e pesquisa da intermedialidade dos objetos, estabelecendo uma
7
Manifesto Coisista
. Disponível em:
http://www.instrumentodever.com/geringonca/ysprp3ahzvtvk61dtrxlfjpsxc0yfk. Acesso em: 28 jan.2023.
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metodologia abrangente e sistemática para esse processo criativo. Segundo ele:
Direcionamos a pesquisa nesse curto mas intenso período para
aprofundar as relações possíveis entre os corpos dos artistas
investigadores e dos objetos, isolando e pesquisando suas características
físicas tais como o peso, a velocidade, o trajeto do deslocamento
(circular, sinuoso, retilíneo, fragmentado, etc.), o tempo de duração da
ação do objeto, como ele respondia à gravidade em queda, e como se
movia, em liberdade, após o estímulo inicial do contato humano. Depois,
deslocamos essas propriedades para os corpos dos artistas, para
observar e identificar as possibilidades de exploração de movimento e
quais possibilidades expressivas poderiam surgir desse deslocamento
(Carvalho, 2018).
Essa contribuição de Édi Oliveira de Carvalho trouxe, para o campo da
reflexão metodológica do projeto, diferentes maneiras de colocar em evidência as
intermedialidades entre corpo e objeto, muito provocadas pelo diálogo com
procedimentos investigativos da dança contemporânea, assim descritos por ele:
A dança também tinha, na dramaturgia dos ensaios, a função de isolar os
corpos ou de uni-los (corpos dos artistas e corpos dos objetos), de definir
os momentos dos focos de atenção, ou os espaços de ação. Muitas vezes,
nos ensaios abertos, o foco migrava dos corpos inanimados dos objetos,
para os corpos dos objetos em ação, ou em dança, ou em composição
espacial em movimento, outras vezes o foco deslocava-se dos objetos
inertes para os corpos objetificados dos artistas em dança, como quando
os quatro artistas executavam uma movimentação em que seus corpos
se encaixavam e se impulsionavam, como se formassem uma grande
engrenagem, ou uma grande
Goldberg Machine
8
feita de corpos humanos.
A dança, por vezes, tinha a função, nos ensaios, de alinhavar as relações
entre artistas e objetos e entre artistas e artistas, e, por mais que a
pesquisa tenha aproximado essas realidades físicas tão distintas, a dança
as distinguia, visto que objetos e artistas, por serem fisicalidades tão
diferentes entre si, dançavam, cada qual, como suas existências
permitiam (Carvalho, 2018).
A presente relação do coletivo Instrumento de Ver com procedimentos
criativos diversos, como a dança, a escrita de textos, a criação audiovisual e em
outras mídias é radicalizada no processo criativo Geringonça, provocando
inúmeras intermedialidades. Nesta pesquisa, retomo os ensaios abertos,
8
Uma máquina de
Rube Goldberg
é uma máquina que executa uma tarefa simples de uma maneira
extremamente complicada, geralmente utilizando uma reação em cadeia, em efeito dominó. Essa expressão
foi criada em referência aos mecanismos desenhados entre 1907 e 1915 pelo cartunista americano,
engenheiro e jornalista Rube Goldberg, autor de charges que ilustravam diversos dispositivos com essa base
de funcionamento.
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apresentações abertas ao público nas quais reunimos o material criativo e, assim,
colocamos em cena as intermedialidades propostas.
Os ensaios abertos
Para possibilitar a compreensão da análise das intermedialidades, recorri ao
recurso de descrição das cenas realizadas nos ensaios abertos. A descrição
mostrou-se um exercício interessante para a pesquisa, pois, na tentativa de
rememorar as cenas e deixá-las vivas para quem lê, muitos detalhes mostraram-
se importantes para a identificação das intermedialidades presentes. Convido a
leitora ou o leitor a mergulhar na cena a partir das descrições que apresento nas
seções que se seguem.
Ensaio nº1 : pra que simplificar se podemos complicar?
Em um pequeno teatro nos fundos de uma marcenaria, em Brasília, fica o
Espaço Cultural Direito. aconteceu o Ensaio nº1, que começava com a
entrada do público em um espaço circundado por uma grande máquina de
Rube
Goldberg,
apelidada de geringonça, preenchendo o espaço cênico com objetos. Os
objetos eram pedaços de madeira de diferentes tamanhos e formatos, cestos de
plástico, grandes galões de plásticos, correntes de ferro, entre outros.
A cena começava quando tocava o celular do artista Vinícius Martins. Este
celular tinha um papel fundamental na ativação da reação em cadeia pois, quando
vibrava, a sequência de mecanismos e objetos era iniciada. Nessa reação em
cadeia, havia um grande estilingue que liberava uma corrente que deslizava
empurrando um skate até ele encostar em pedaços de madeira que se batiam em
um efeito dominó, empurrando bolinhas que corriam em trilhos, enquanto uma
vela queimava uma corda, acionando o distorcimento de um elástico, no qual
pendia um pedaço de pau com uma televisão na ponta. Ao terminar de distorcer,
o pedaço de pau tocava um carrinho que então se movia por uma pequena rampa
até empurrar claves de malabarismo em uma trajetória semicircular. O
mecanismo dessa geringonça culminava em acender uma luminária alta, ao lado
da qual a artista pesquisadora Maíra Moraes esperava a luz para ler um texto em
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um pedaço de papel. Os textos lidos foram os mesmos que dialogaram conosco
no decorrer do processo, que falavam sobre “coisa”: de definições da
wikipedia
a
poesias de Manoel de Barros, além do
Manifesto Coisis
ta, texto escrito
coletivamente pelo elenco e que acabou por se tornar um direcionador conceitual
da pesquisa.
Após a leitura do primeiro texto, iniciava-se um momento de improvisação
estruturada, em que os intérpretes criavam uma nova geringonça em cena.
Durante essa fase, eles podiam alternar entre ações como ler textos, falar sobre
suas relações com os objetos encontrados durante o processo, executar uma
coreografia, (sozinhos ou em sincronia com os outros) ou conduzir uma dança pré-
estruturada em contato com o outro. As diferentes peças que compunham a
geringonça eram numeradas e a ordem estava definida, mas a precisão e
manipulação dos objetos causava uma tensão elevada e um grau de risco para o
funcionamento da máquina. Ao final, assim que a geringonça estava finalizada, era
acionada.
No primeiro ensaio aberto, o coletivo escolheu trabalhar com objetos que
seriam descartados, os quais foram coletados durante o processo, nos meses
anteriores. Durante a montagem das geringonças, os objetos eram dispostos no
palco e, quando não estavam sendo utilizados, eram guardados em caixas ou
engradados ao fundo do palco. A coreografia era realizada em meio a uma grande
variedade de objetos, e a manipulação desses elementos era considerada uma
parte importante do processo criativo, que os objetos eram vistos como
parceiros de cena. Além disso, a criação também explorou a ideia do risco
envolvido em construir algo em cena, bem como a ressignificação dos objetos por
meio dos textos e das formas como eram apresentados.
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Ensaio nº1 (2012). Foto: João Saenger
Ensaio da Concordança
Em um fim de tarde, em uma área verde no centro do Parque Olhos D’Água,
em Brasília, o público encontrou, entre duas grandes árvores, algumas cordas
juntas penduradas em um só ponto, rodeadas por bancos de madeira lado a lado.
Sentados nos bancos, os intérpretes Julia Henning, Maíra Moraes, Daniel Lacourt
e Vinícius Martins e, ao lado, uma vitrola à pilha tocando um disco para criar um
ambiente bucólico e intimista. Alguns tecidos esticados no chão convidaram o
público a sentar-se ao redor da cena.
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De forma gradual, os quatro artistas iniciaram a exploração do espaço sobre
os bancos, movendo-os, mudando de posição e definindo o espaço cênico a partir
de uma movimentação a partir do centro, com o intuito de formar um círculo.
Durante essa fase, foi necessário criar uma estratégia colaborativa de
movimentação dos bancos, já que a regra era não colocar os pés no chão. Com o
círculo de bancos estabelecido, os acrobatas pegaram uma ou duas cordas e se
afastaram do centro, formando um círculo de cordas esticadas. A partir daí, a
movimentação se baseou nas possibilidades de contrapeso, balanço e pêndulo
proporcionados pelas cordas presas em um ponto. Os quatro exploraram essas
possibilidades até começarem a entrelaçar as cordas enquanto caminhavam pela
trajetória circular da área cênica. As cordas foram se entrelaçando cada vez mais,
até que Daniel ficou enrolado entre elas.
Foi que, um a um, os artistas subiram nas cordas com o objetivo de se
movimentar a partir de alguns princípios: a necessidade de desenrolar as cordas
e a possibilidade de se prender em alguns nós formados pelo entrelaçamento
delas. A pesquisa acrobática realizada nas cordas não se limitou ao lugar comum
de repertório das acrobacias aéreas, mas investigou as possibilidades de relação
corporal com esse aparelho formado pelas cordas juntas.
Ao final dessa parte, o primeiro dos artistas a finalizar a sua movimentação
começou a fazer uma célula da dançaengrenagem e os outros entraram na
engrenagem pouco a pouco. Dançaengrenagem foi uma das possibilidades
coreográficas provocadas por Édi Oliveira de Carvalho, na qual a célula
coreográfica de um se encaixava na célula coreográfica de outro, até os quatro
estarem dançando completamente integrados, como se cada um fosse a peça de
uma máquina em funcionamento. Saindo um por um, a dançaengrenagem se
desfez.
Julia, Maíra e Vinícius ficaram do lado de fora do círculo formado pelos
bancos, enquanto Daniel usava uma corda de sisal para amarrá-los entre si.
Enquanto isso, os três artistas conversavam com Daniel ou com os bancos, criando
uma atmosfera de incerteza sobre para quem as palavras eram dirigidas. No final,
Daniel puxou todos os bancos com a corda, criando um amontoado desordenado
que escondia seus corpos. Todos os quatro artistas se encaixaram nesse
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amontoado. Este ensaio aberto, em comparação com os outros, foi o que mais
mostrou a força coreográfica da manipulação dos objetos. Durante o ensaio, os
artistas exploraram diferentes camadas de relação com os objetos, tanto físicas
quanto subjetivas e sentimentais, movendo-se como os objetos e com os objetos.
Ensaio da
Concordança
(2012). Foto: João Saenger
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Ensaio Coisa com Coisa
O público foi disposto sentado em tecidos espalhados sobre o gramado do
canteiro central do Eixão Norte, uma rodovia que atravessa Brasília no sentido
norte-sul e é fechada para lazer aos domingos. Os artistas apareceram vindos de
longe, empurrando uma carreta pela via asfaltada, cheia de objetos diversos e
aparentemente inúteis. Um dos objetos na carreta era uma caixa de som tocando
uma música balcânica, fazendo referência a uma atmosfera cigana, mambembe,
itinerante. Ao chegar ao local da apresentação, os artistas pararam a carreta e
começaram a organizar os objetos, explicando para o público a lógica por trás de
cada arranjo. Daniel Lacourt preferiu retirar tudo da carreta e espalhar pelo espaço,
enquanto Julia Henning sugeriu organizá-los por cor, e todos seguiram a ideia.
Maíra Moraes organizou os objetos pelo material com que foram feitos, enquanto
Vinícius Martins criou uma figura geométrica simétrica com os objetos no chão.
Após a organização inicial dos objetos, Maíra se enroscou nas cordas ao
mesmo tempo em que Vinícius e Daniel as amarravam entre as árvores. Com a
corda segura, Maíra desceu e o grupo continuou a organizar os objetos, cada um
seguindo sua própria lógica. Em um momento de jogo, Maíra lançou um desafio
aos colegas: organizar duas fileiras de objetos em cinco segundos. O corredor vazio
foi transformado em uma passarela de desfile e eles observaram uns aos outros
com calma, enquanto rolavam os objetos pelo chão.
Durante o ensaio, a qualquer momento era possível escolher um objeto e
criar uma história fictícia para ele. Por exemplo, o serrote foi apresentado como
sendo um presente do avô de Vinícius, em um momento, e como o violino da
orquestra que afundou junto com o Titanic, em outro. Um quadro de paisagem foi
apresentado como sendo o icônico mictório de Marcel Duchamp,
The Fountain
(1917).
Enquanto Julia montava um totem com vários objetos equilibrados, Daniel
subiu nas cordas, tentando levar objetos consigo. Maíra e Vinícius improvisaram
uma lógica de organização para os objetos ou trabalharam em uma geringonça
que seria acionada posteriormente. Essa geringonça criada tinha como mecanismo
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uma reação em cadeia, que terminava lançando uma clave
9
. Daniel apresentou a
geringonça anunciando-a, assim como um mestre de cerimônias apresentaria um
clássico número do circo, o “homem-bala.”
10
O mestre de cerimônias costuma
descrever as atrações enfatizando a ação que será realizada em seguida, e o perigo
que está envolvido nessa ação, e assim o fez Daniel. Quando a clave foi lançada,
arrancou risos da plateia pelo embuste anunciado.
Depois da geringonça ativada, Maíra e Vinícius organizaram, pouco a pouco,
os objetos na carreta, como se estivessem enfeitando-a. Daniel permaneceu
imóvel em um canto. A “Carta de despedida”
11
, um dos textos produzidos no
processo e publicados no
blog
, foi lida por Julia ao microfone. Enquanto lia, entrou
em um galão gigante, um dos objetos, e desapareceu.
Maíra e Vinícius organizaram os objetos na carreta, como se estivessem
arrumando um altar. Julia juntou-se a eles. Daniel, imóvel há algum tempo, pediu:
“Me guarda? Ei, me coloca no lugar?” insistentemente, mesmo que ignorado por
um bom tempo, até que Julia e Vinícius carregaram Daniel como se ele fosse mais
um objeto, e todos se organizaram em uma pose para uma foto de família. Pausa
de aproximadamente trinta segundos. Ainda na pose, Julia recitou outro texto,
agora sem microfone, sobre a intimidade com as coisas
12
.
Ao final da leitura, todos os objetos estavam na carreta. Julia foi colocada
na carreta como se fosse um objeto, enrolada na corda que ali estava. Depois
subiu e desceu da corda que, com o funcionamento do mecanismo de polias
manipulado por Daniel e Vinícius, pareceu ter ficado flutuando no mesmo lugar.
Ao fim da movimentação, Julia permaneceu um tempo misturada aos objetos até
descer para empurrar a carreta junto a Daniel, Vinícius e Maíra. Todos
9
Clave é um objeto comprido que tem uma ponta mais larga e pesada que a outra, o que facilita seu giro no
ar, utilizada para malabarismo.
10
Homem-bala refere-se a um número circense tradicional, no qual um acrobata ou uma acrobata é lançado
de dentro de um canhão como um projétil.
11
Julia Henning. 2016. http://www.instrumentodever.com/geringonca/g9gm3m9kb997ngfs2er7fmnycakj7b .
Acesso em: 12 mar. 2023.
12
Julia Henning. 2016. Intimidade.
http://www.instrumentodever.com/geringonca/ap7c8dhwg635zxgybxbzczt5zrjhdj.
Acesso em: 15 mar. 2023.
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desapareceram no horizonte.
Ensaio
Coisa com Coisa
(2012). Fotos: João Saenger
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Intermedialidades na cena
Para uma reflexão sobre as intermedialidades presentes nos ensaios abertos
do projeto Geringonça, é fundamental destacar a própria intermedialidade que
permeia a temática da investigação: a relação entre o corpo e o objeto, com o
objetivo de estabelecer uma perspectiva não hierarquizada do objeto no contexto
cênico. Como descreve Édi Oliveira de Carvalho:
No
Geringonça
, os objetos são, ainda, o centro da investigação. Essa
relação que é uma tradição dos saberes e dos fazeres circenses é
redimensionada na pesquisa. Nela, o objeto é, também, ferramenta para
desenvolvimento de habilidades, mas ganha status poético e expressivo
independentes. Não se trata apenas dos elementos tradicionais ou
apropriados pelo fazer circense, mas trata-se das coisas, das
quinquilharias, dos trecos, das existências inanimadas, das bugigangas,
dos bibelôs, das pequenas engenhocas, etc. Esses objetos, essas
coisinhas, não estão, na pesquisa, em função do artista, nem a ele
subalternos. Ou seja, relação objeto/artista não hierarquizada, uma
relação sempre modulada a ponto de deslocar o objeto do lugar de apoio,
para o lugar de presença expressiva autônoma, que apenas precisa de
um empurrãozinho ou um apertãozinho no botão. Nesse sentido, quando
o objeto ganha em autonomia, parece natural que os pesquisadores se
tenham dirigido, também, para a investigação das possibilidades
expressivas do circo e do movimento longe do objeto, ou independente
dele, ainda que, em Geringonça, mesmo quando não em contato com os
corpos, os objetos eram os motivadores das possibilidades expressivas
dos corpos dos pesquisadores, porque toda investigação partia deles
(Carvalho, 2018).
Considerando o projeto
Geringonça
, que tem como objetivo a criação para
diferentes mídias, é fundamental destacar a intermedialidade presente na
temática da pesquisa, que aborda a relação entre corpo e objeto. Nesse sentido, é
possível compreender, tanto o corpo quanto o objeto em cena, como mídias,
alinhando essa concepção às proposições teóricas que situam as mídias como
modos de expressão e objetos que organizam a produção de sentido. Além disso,
é importante observar as diferentes relações que surgem no contato entre artistas
e objetos nos ensaios abertos, considerando esse contato como uma relação
produtora de intermedialidades.
Com base nisso, proponho uma análise que se baseia em categorias
organizadas em quatro grupos, relacionados à presença do objeto em cena e ao
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seu encontro com o corpo: corpo convivendo com objeto (fala, coreografia,
condução, relação, descanso); objeto como objeto (manipulação, organização,
suporte/apoio); objeto como corpo (afeto, corpomorfismo, subjetividade do objeto,
geringonça); e corpo como objeto (coisomorfismo, mimetismo, desafetação). Tais
categorias podem ser utilizadas para observação tanto das cenas, quanto das
produções textuais e audiovisuais.
Corpo convivendo com objeto
Para diferenciação do primeiro grupo, podemos falar das formas como o
corpo apareceu sem estar totalmente imbricado na relação com outra mídia,
nesse caso o objeto, mas convivendo com ele: na fala, na coreografia, na condução,
na relação ou no descanso. A fala apareceu voltada para o objeto ou para o público,
sobre o objeto, reforçando as intermedialidades propostas pelo signo da
linguagem, com as criações poéticas. A condução de movimentação entre duplas
e as coreografias, ou seja, sequências de movimentos determinados, no Ensaio nº1.
Nos exemplos mencionados, a movimentação do corpo era influenciada pelos
objetos, ou seja, os objetos eram limitantes físicos que organizavam o espaço da
movimentação.
Além disso, também houveram momentos em que os artistas se
relacionaram diretamente com o espaço, com o objetivo de apresentar uma
relação entre subjetividades. Podemos observar essa relação no Ensaio Coisa com
Coisa, como quando os artistas puxam uma carroça, pausam para uma fotografia
ou na cena do homem-bala. Esse tipo de relação também é observado no Ensaio
nº1, nos momentos imediatamente anteriores ao acionamento das geringonças.
Também, o corpo em pausa, sem uma ação específica, presente em todos os
ensaios, destaca o corpo a partir do contraste que surge no contato exaustivo com
outras mídias. Assim como, em vários momentos, os objetos foram apresentados
como objetos, destacando sua característica de objeto, pois sua medialidade foi
destacada no contato com o corpo.
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Objeto como objeto
O segundo grupo é aquele em que o objeto é visto como objeto, quando a
sua relação de passividade em relação ao corpo é colocada em evidência, como
por exemplo na manipulação, na organização ou quando ele é suporte/apoio. A
manipulação ocorreu no Ensaio n.1, como quando Daniel Lacourt dançou com o
barril gigante, por exemplo, ou quando um objeto foi passado de Julia Henning a
Daniel Lacourt, usando o pé. As cordas trançadas ou a movimentação dos bancos
no Ensaio da Concordança também são exemplos. A organização de objetos pôde
ser vista quando objetos foram colocados ou retirados de uma carreta ou quando
foram organizados de diversas maneiras, ou na criação de tótens, no Ensaio Coisa
com Coisa. A organização também fica evidente no Ensaio da Concordança,
quando os objetos são utilizados como suportes e apoios, como acontece quando
artistas estão pendurados nas cordas ou simplesmente sentados nos bancos.
Objeto como corpo
O objeto se apresentou como corpo em alguns momentos, quando
conseguimos trazer características humanas para ele, como afeto, subjetividade e
“corpomorfismo”. Isso aconteceu tanto através da valorização do afeto entre o
artista e o objeto, como na descrição cuidadosa de alguns objetos no Ensaio nº1
ou mesmo na transformação da carreta em um altar de memórias familiares, no
Ensaio Coisa com Coisa. Sugiro a utilização do termo "corpomorfismo" para
descrever a intermedialidade que surge quando a relação entre artista e objeto é
invertida, como quando Julia se coloca como pilar para a construção de uma mesa
no Ensaio Coisa com Coisa.
A subjetividade do objeto também foi trabalhada nos textos da revista
Geringonça, nas charadas e na narração do filme O Homem Banco, que lida com
a confusão entre humano e objeto. As geringonças, por sua vez, assim como as
máquinas de Rube Goldberg, possibilitam que os objetos se comportam como
corpos, já que podem se mover autonomamente.
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Corpo como objeto
No último e quarto grupo, podemos falar sobre as maneiras como o corpo foi
utilizado como objeto: coisomorfismo, mimetismo e desafetação. Coisomorfismo
é um termo que foi criado durante o processo criativo para se referir à
identificação do corpo humano com o objeto. Durante o processo, apareceu como
um efeito intermedial de curta duração, como quando o artista esconde alguma
parte do corpo com o objeto, mostrando apenas uma parte do corpo e,
consequentemente, transformando a imagem do corpo humano a partir da
relação corporal com o objeto. Isso aconteceu no Ensaio nº1, quando Julia se
escondeu atrás da televisão de cabeça para baixo, parecendo um ser com troncos
e membros humanos e cabeça de televisão. Ou nos ensaios da Concordança e
Coisa com Coisa, quando um dos artistas se escondeu na corda, deixando aparecer
somente as pernas ou braços. O coisomorfismo também foi um recurso muito
utilizado nas cenas, como no ensaio aberto Coisa com Coisa, quando Maíra
colocou um cone de sinalização na cabeça, criando a imagem de um tronco
humano com cabeça de objeto.
No mesmo grupo, podemos chamar de mimetismo a intermedialidade
resultante da reprodução, pelo artista, de qualquer propriedade física do objeto,
como peso, forma, textura, funcionamento, função ou seu comportamento em
situações como queda, movimento, permanência, entre outras. Um exemplo disso
é a engrenagem humana, presente tanto no
Ensaio da Concordança
como no filme
O Homem Banco
. No
Ensaio Coisa com Coisa
, houve vários momentos em que os
corpos se mimetizaram com os objetos, como quando Daniel foi carregado e
guardado pelos outros artistas, quando Maíra ficou enrolada nas cordas ou no
momento da pausa para a foto. Ou na cena final do Ensaio da Concordança,
quando os artistas se colocaram um a um no meio dos bancos, como se fossem
mais um deles.
E, por fim, usando a palavra desafetação para falar de um negativo do afeto,
podemos citar alguns momentos em que essa foi um dos efeitos de
intermedialidade gerados a partir da relação entre corpos e objetos. Esse foi o
tema da Carta de Despedida, na qual o ser humano deixou um bilhete despedindo-
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se e explicando as razões pelas quais preferiu se tornar um objeto. Ou na cena do
Ensaio da Concordança, quando Daniel pareceu não se importar com a fala dos
outros, pois já estava mais identificado com um banco. A desafetação foi também
a linha dramatúrgica do curta-metragem
O Homem Banco
. No filme, lidamos de
várias formas com o fato de que Daniel se identificava mais com um banco do
que com os seres humanos que estão à sua volta.
Considerações finais
As relações intermediais acima apresentadas, presentes no processo criativo
Geringonça
, oferecem diversas possibilidades de compreensão. As categorias
utilizadas não buscam englobar toda a multiplicidade de elementos presentes no
processo do coletivo Instrumento de Ver, muito menos da cena contemporânea.
No entanto, a análise das intermedialidades é uma tentativa de compreender a
dinâmica dessas relações, considerando o movimento proposto pelas artes ao
vivo. A nomeação desses movimentos foi uma estratégia para identificar os
procedimentos criativos adotados pelo coletivo e os resultados artísticos obtidos.
Desse modo, é possível começar a entender a criação de novas poéticas circenses
contemporâneas.
De fato, o circo sempre colocou em relação mídias completamente diversas
e esteve aberto para explorar diferentes intermedialidades, lidando com as mídias
disponíveis em cada momento histórico, como nos lembra Silva (2007), em um
compromisso com o novo, o inusitado, o nunca antes visto, promovendo
intercâmbio e “marcando relações plurais com as realidades culturais e sociais de
cada país ou região” (p.52). A intermedialidade, então, não é privilégio do
contemporâneo, é o que caracteriza o espetáculo, circense ou não. O que
podemos suspeitar é de uma particularidade na forma com que a intermedialidade
é ressaltada na dramaturgia circense, por meio de recursos de escrita do
espetáculo. Uma suspeita surgida na pesquisa é que, no espetáculo de circo,
especificamente, a intermedialidade é deliberadamente colocada em evidência. Ao
ressaltar a relação entre corpo e aparelho, ao propor relações inusitadas entre
objetos, ao sobrepor mídias que não costumam conviver, ao ressaltar o contraste
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entre as elas, a dramaturgia do circo mostra ao público que duas coisas muito
diferentes estão em contato de forma inesperada, colocando assim a
intermedialidade como protagonista, para além de uma hierarquia de
importâncias.
Referências
CARVALHO, Edilson Oliveira de. [Entrevista cedida a] HENNING, Julia. Em:. Poéticas
circenses contemporâneas - intermedialidade e o coletivo Instrumento de Ver.
Dissertação de mestrado. Universidade de Brasília, 2018.
ISAACSON, Marta. Entre Dois, Cena e Imagem em Captação ao Vivo. Em:
Revista
Cena
, Porto Alegre, n. 25, p. 2535 mai-ago. 2018. Disponível em:
https://seer.ufrgs.br/index.php/cena/issue/view/3476 . Acesso em: 12 jan. 2023.
MÜLLER, Adalberto.
Linhas imaginárias: poesia, mídia, cinema
. Porto Alegre, RS:
Sulina, 2012.
HENNING, Julia.
As coisas do circo: uma reflexão sobre intermedialidade,
dramaturgia e o contemporâneo
. Em. Grafias Circenses, 2021. SESC. Disponível em:
https://circos.sescsp.org.br/2021/08/30/grafias-circenses-publicacao-reune-
artigos-sobre-a-linguagem-do-circo/
HENNING, Julia.
Poéticas circenses contemporâneas - intermedialidade e o
coletivo Instrumento de Ver
. Dissertação (Mestrado) - Universidade de Brasília,
2018. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/34260.
SILVA, Ermínia.
Circo-Teatro
: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no
Brasil. São Paulo: Altana, 2007.
Recebido em: 28/01/2023
Aprovado em: 30/05/2023
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br