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Perspectivas pedagógicas no espaço acadêmico a
partir do melodrama e do circo-teatro brasileiro
Maria De Maria Andrade Quialheiro
Para citar este artigo:
QUIALHEIRO, Maria De Maria Andrade. Perspectivas
pedagógicas no espaço acadêmico a partir do
melodrama e do circo-teatro brasileiro.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 1, n. 46, abr. 2023.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101462023e0105
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Perspectivas pedagógicas
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no espaço acadêmico a partir do
melodrama e do circo-teatro brasileiro
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Maria De Maria Andrade Quialheiro
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Resumo
Este artigo apresenta parte de uma pesquisa doutoral cujo foco de
investigação é o processo de criação do espetáculo
Por Ti Não Importa Matar
ou Morrer
, uma livre adaptação de
Vem Buscar-me Que Ainda Sou Teu
, de
Carlos Alberto Soffredini, a partir dos códigos de atuação do melodrama
francês e de elementos das artes circenses, realizado no Curso de Teatro da
Universidade Federal de Uberlândia em 2015. Para a análise desse processo,
foram utilizadas as referências de atuação do circo-teatro brasileiro, tomando
como recorte a trajetória do Circo-Teatro Guaraciaba. Esse artigo
contextualiza os caminhos pelos quais o teatro passou a fazer parte dos
circos no Brasil a fim de dar suporte à compreensão das experiências
artísticas e pedagógicas e de traçar um diálogo entre a história do melodrama
francês do século XIX e os circos-teatros brasileiros do século XX, evidenciado
por meio de reflexões acerca dos modos de aprendizado de circenses da
velha guarda e de jovens atrizes e atores nas universidades.
Palavras-chaves
: Circo-teatro. Melodrama. Pedagogia do teatro. Processos
criativos.
1
Este artigo possui em sua escrita 79% material oriundo da tese de doutorado desta autora, defendida em
2020, e apresentada ao Programa de P
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o em Artes, do Instituto de Artes, da Universidade
Estadual Paulista “J
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s do circo-teatro
brasileiro”.
2
Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada pela Profa. Dra. Fernanda Ferreira Spoladore,
com formação em Letras e Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
3
Pós-doutorado, pela Universidade de Aveiro - Portugal, em Estudos Culturais no Departamento de
Línguas e Culturas. Doutorado pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP).
Mestre em Artes pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Graduação em Artes Cênicas pela UFU.
mariademariaatriz@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/8227899534630507 https://orcid.org/0000-0003-4779-9676
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Pedagogical prospects in academic spaces based on melodrama
and Brazilian circus-theater
Abstract
This paper presents part of a doctoral research whose investigation focus is
the creation process of the theatre play "Por Ti Não Importa Matar ou Morrer",
a free adaptation of the work "Vem Buscar-me Que Ainda Sou Teu", by the
author Carlos Alberto Soffredini, from the performance codes of French
melodrama and the elements of circus arts, performed in the Theater Course
at the Federal University of Uberlândia in 2015. For the analysis of this process,
acting references of Brazilian circus-theater were used, considering the
trajectory of Circo-Teatro Guaraciaba. This article contextualizes the ways in
which the theater became part of circuses in Brazil in order to support the
understanding of artistic and pedagogical experiences and to establish a
dialogue between the history of 19th century French melodrama and the 20th
century Brazilian circus-theater, evidenced through reflections about the
learning ways of the old guard circus performers and young actresses and
actors from universities.
Keywords
: Circus-theater. Melodrama. Theater pedagogy. Creative processes.
Perspectivas pedagógicas en el espacio académico a partir del
melodrama y el circo-teatro brasileño
Resumen
Este artículo presenta parte de la investigación doctoral que tuvo como foco
de investigación el proceso de creación de la obra “Por Ti Não Importa Matar
ou Morrer”, una adaptación libre de “Vem Buscar-me Que Ainda Sou Teu”, de
Carlos Alberto Soffredini, a partir de los códigos escénicos del melodrama
francés y elementos de las artes circenses, realizada en el Curso de Teatro
de la Universidad Federal de Uberlândia en 2015. Para el análisis de este
proceso se utilizaron las referencias del espectáculo circense-teatral
brasileño, tomando como recorte la trayectoria del Circo-Teatro Guaraciaba.
El artículo contextualiza las formas en que el teatro pasó a formar parte de
los circos en Brasil para apoyar la comprensión de las experiencias artísticas
y pedagógicas, y trazar un diálogo entre la historia del melodrama francés del
siglo XIX y los circo-teatros brasileños del siglo XX, evidenciado a través de
reflexiones sobre las formas de aprendizaje de los artistas circenses de la
vieja guardia y de las jóvenes actrices y actores en las universidades.
Palabras clave
: Circo-teatro. Melodrama. Pedagogía teatral. Procesos
creativos.
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Introdução
A pesquisa que aqui se apresenta trata da experiência no processo de criação
de um espetáculo, a partir dos códigos de atuação do melodrama francês e de
referências do modo de atuação do circo-teatro brasileiro, por um grupo de atrizes
e atores, estudantes de licenciatura.
Trata-se da encenação de
Por Ti Não Importa Matar ou Morrer
, uma livre
adaptação da obra
Vem Buscar-me Que Ainda Sou Teu
, texto teatral de Carlos
Alberto Soffredini, realizada no âmbito do Curso de Teatro da Universidade Federal
de Uberlândia (UFU), como parte do cumprimento dos componentes curriculares
Estágio de Atuação/Interpretação em Espaços Escolares e Prática de Ensino I
nos períodos de 2014.2 e 2015.1 –, dos quais pude fazer a condução pedagógica e
artística.
Desde o mestrado, tinha interesse em verificar alguns códigos do
melodrama tradicional, aplicados às temáticas contemporâneas comuns à obra
de Almodóvar, num espaço de jogo e de improvisação. A partir desse processo,
ainda em caráter experimental, foi gerado um rico material registrado em minha
dissertação
4
(2011), que revela aspectos do melodrama como recursos importantes
para o processo de criação atorial.
Estavam evidenciadas a importância e a manutenção destes saberes, em
consonância com outras/os pesquisadoras/es que investigaram como o
melodrama encontrou lugar nas artes circenses. Assim, para a pesquisa de
doutorado, minha intenção foi trilhar caminhos possíveis para o aprendizado do
melodrama e do circo-teatro em espaços de formação. O resultado foi a criação
de um repertório de procedimentos de investigação atorial, (a) fundamentada em
referências de fontes diretas (pessoas), como as conversas e as entrevistas com
artistas circenses do Circo-Teatro Guaraciaba, (b) amparada na observação do
4
No mestrado, desenvolvi a pesquisa “A Contemporaneidade da Interpretação Melodramática: Um Olhar à
Luz de Almodóvar”, pelo programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
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processo de criação e das apresentações do espetáculo
A Paixão no Circo
, dirigido
por Fernando Neves em parceria com o Circo-Teatro Guaraciaba e o Coletivo Cê,
na cidade de Sorocaba (SP), (c) a partir de fontes documentais, como as fotografias
do acervo pessoal de Dona Rosina, membro da família circense do Circo
Transguará, também conhecido como Tangará, na época residente na cidade de
Uberlândia, e (d) com base nos cadernos de anotações (diários de bordo) das/os
estudantes/artistas
5
de licenciatura da UFU que participaram do processo da
montagem de
Por Ti Não Importa Matar ou Morrer
.
Em resumo, essa pesquisa é fruto de estudos realizados a partir de práticas
artísticas e docentes. Nela estão compartilhados alguns fragmentos de memórias,
os caminhos tomados e os atalhos perdidos, as escolhas metodológicas para os
procedimentos de trabalho, os desafios, assim como as reflexões e os
aprendizados próprios de um mergulho na pesquisa no campo da arte. Em outros
termos, está em foco a potente dimensão pedagógica entranhada nessas práticas,
evidenciada pelo trabalho da atriz e do ator no que se refere à exploração dos
elementos da linguagem cênica do melodrama e de referências dos circos-teatros
brasileiros.
Para a melhor compreensão da pesquisa em questão, é importante descrever
alguns elementos de sua estrutura e contextualizar seu percurso histórico.
Como o melodrama e o circo se encontram no Brasil
Como uma linguagem complexa, o melodrama gênero teatral de
procedência francesa do final do século XVIII e que teve seu apogeu no século XIX
– pode ser olhado através de muitas perspectivas, principalmente pedagógicas. A
escolha de pesquisar esse modo de fazer teatro me permitiu aprofundar nesse
campo de ensino e confrontar abordagens de referências distintas, na tentativa de
experimentar procedimentos pedagógicos para atrizes e atores em formação.
Amplamente encenado em Paris, mais especificamente nos teatros de
5
As/os estudantes/artistas a que me refiro formaram um grupo artístico em decorrência de outra montagem,
resultante de um componente curricular anterior, e se denominavam Grupo Mito 8 de Teatro. Esse coletivo
seguiu fazendo temporadas e circulando por Uberlândia e região com o espetáculo
Por Ti Não Importa Matar
ou Morrer
.
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boulevards
, o melodrama passou por transformações diversas, o que facilitou sua
disseminação por outros países à medida que ia se acomodando a cada cultura.
Nas palavras do pesquisador francês Jean-Marie Thomasseau (2005, p. 135), “a
criação do gênero melodramático foi um fenômeno estritamente francês, que se
espalhou rapidamente pela Europa (Inglaterra, Itália, Alemanha, Portugal, Holanda
e Rússia) e pelo Novo Mundo, onde foram traduzidos e adaptados os sucessos do
Bulevar do Crime”.
Ainda no século XIX, o melodrama se disseminou pela Europa, cruzou os
mares e chegou às Américas. Suas técnicas e seus códigos também fizeram
história pelo Brasil deixando marcas nos modos de atuação das gerações
seguintes. Nesse tempo, destacaram-se algumas revisões feitas ao gênero, suas
misturas e suas depurações ao longo do século XX, evidenciando a permanência
do melodrama em outros meios em que a arte se manifesta. Assim como outras
linguagens influenciaram o gênero desde a sua origem, o melodrama soube se
adaptar à pluralidade cultural brasileira e encontrou acomodações nos circos-
teatros com grande inserção na história da cultura do Brasil (Quialheiro, 2020).
A história do circo no Brasil teve início quando as/os primeiras/os artistas,
que para migraram nas primeiras expedições, trouxeram em sua bagagem
apenas um ou outro instrumento artístico e o conhecimento
encarnado
das
estruturas estabelecidas e desenvolvidas a respeito das artes do circo em seu país
de origem. Aqui chegaram malabaristas, acrobatas, funâmbulos, pirofagistas,
domadoras/es de animais, prestidigitadoras/es, palhaças/os, entre outras/os, que,
de forma independente, apresentavam-se como artistas de rua, saltimbancos,
mambembes, ciganas/os, cantoras/es mágicas/os, etc. (Pimenta, 2009).
Consoante Daniele Pimenta (2009), as primeiras estruturações coletivas
datam a partir do século XIX, de modo que, ao final dele, os circos estavam bem
inseridos na vida artística e cultural do país. Carvalho da Silva (2014) confirma que
por aqui circulavam companhias estrangeiras da Europa e das Américas, de circo
e de teatro, e que a interação entre elas era uma realidade. Havia uma grande
movimentação cultural entre as/os artistas que vinham de fora e as/os que aqui
viviam, o que configurava um intercâmbio de repertórios e de técnicas.
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Esse trânsito, mantido tanto no sentido de entrada como de saída do
país, fomentava a renovação das atividades e elencos circenses. As
inovações técnicas de números e aparelhos, tendências de estilo na
criação de figurinos e adereços, formas musicais e danças regionais, além
de roteiros dramáticos, eram intercambiados pelos circenses durante a
permanência de tais companhias em nosso país. Dessa maneira, os
elencos se reconfiguravam e os repertórios se fundiam e se difundiam
(Pimenta, 2009, p. 35).
Segundo Daniele Pimenta, vir para o Brasil significava desbravar o novo
mundo e conquistar um novo mercado de trabalho. Era a oportunidade de
realizarem o sonho de serem donas/os de seus próprios circos, responsáveis pelo
administrativo e pelas suas próprias famílias. Infelizmente, como acontece quando
se criam grandes expectativas, não foi o que encontraram. As condições brasileiras
ainda eram muito incipientes, sendo necessárias, portanto, a adaptação desse
sonho e a descoberta de outra forma de organização, diferente da que
conheciam. Ainda conforme a autora, as/os artistas praticamente tiveram que
começar do zero em termos estruturais, pois, como foi mencionado, traziam na
bagagem suas habilidades corporais, alguns instrumentos musicais e os
equipamentos possíveis utilizados para números circenses (Quialheiro, 2020).
Para compreender essa estruturação, é importante dizer que, no modo de
organização circense, não se pode fazer generalizações, pois a formação das
companhias deu-se de modo singular e específico. Entretanto, se conhecidas mais
profundamente, encontram-se semelhanças.
Conforme as investigações das/os pesquisadoras/es sobre os circos no Brasil
Mario Bolognesi (2003, 2006, 2018), Ermínia Silva (2003), Daniel Silva (2004), Paulo
Merisio (1999, 2005), Daniele Pimenta (2003, 2009), Ângela Reis (2015), Reginaldo
Carvalho da Silva (2014), Fernanda Jannuzzelli Duarte (2015), Kátia Daher (2016),
entre outras/os –, é possível presumir que as experiências dos
boulevards
tiveram
forte influência e foram incorporadas às práticas artísticas que se organizaram no
Brasil. Essa forma de organização, comum às famílias de artistas que chegaram,
acabou também por se tornar uma característica estética dos espetáculos que
aqui se criaram, misturando elementos do passado e do presente, fazendo surgir
um jeito próprio de ser e de estar do circo brasileiro. Com algumas variáveis
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relativas às manifestações culturais de cada região, por exemplo, que influenciava
na criação das novas apresentações, o modelo que se tornou particular ao circo-
teatro brasileiro foi marcado pela multiplicidade, flexibilidade e, sobretudo, pelo
seu aspecto popular, fatores esses que, até hoje, atribuem-lhe identidade
(Quialheiro, 2020).
Na história do circo, desde a Europa, os espaços onde aconteciam os
espetáculos e as próprias apresentações circenses se misturavam com diversas
manifestações artísticas outras, utilizando-se, inclusive, de muitos elementos de
teatralidade e do recorrente uso da fala. A esse respeito, Ermínia Silva (2007) e
Carvalho da Silva (2014) mostram que, desde as primeiras apresentações
artísticas
6
, o circo sempre esteve presente com esse formato, sendo o teatro um
de seus elementos componentes, assim como a música, a dança e as demais
habilidades que o constituem. Seria, portanto, redundante o uso do termo circo-
teatro para essas apresentações (Carvalho da Silva, 2014), que, desde aquela
época, trabalhava com a divisão dos espetáculos em duas partes: a primeira
destinada às exibições acrobáticas e de destreza física; a segunda reservada às
exposições de pequenas cenas de humor, pantomimas e mimodramas europeus.
Como uma acomodação desse formato, essa tendência se manteve para as
organizações que surgiram posteriormente e caracterizou também os circos-
teatros brasileiros.
O circo-teatro brasileiro e os modos de transmissão e
aprendizado
De acordo com Pimenta (2003; 2009), foi a supremacia do texto o que
validou o termo
circo-teatro
no país, configurando-o como uma estrutura
teatral. Em outros termos, as/os artistas de circo passaram a dizer que
faziam teatro pautadas/os em sua encenação de um texto escrito. Isso,
contudo, não se deu de forma tão imediata. No Brasil, o circo começou a
ampliar os diálogos no final do século XIX, recorrendo a pequenas
dramatizações de musicais, folhetins e romances e, em seguida, à
tradução de textos teatrais e bíblicos e à releitura de filmes exibidos na
capital, onde havia o cinematógrafo. Essas adaptações aconteciam de
acordo com a realidade e o contexto das companhias circenses e eram
realizadas, autodidaticamente, pelas pessoas que ali viviam. Geralmente,
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Com Astley e Hughes na Inglaterra, e na França com os Franconi.
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o mais influente dentro da hierarquia do circo, muito provavelmente a/o
dona/o, assumia o papel de dramaturga/o quando não se optava por
adaptações de originais portugueses e franceses e também de
ensaiadora/r. Considerada uma pessoa de visão dentro do circo, era
responsável pela construção da cena (Quialheiro, 2020, p. 66).
Pode-se dizer que um dos êxitos do circo é acompanhar o seu tempo. Por
aqui, o que se designou chamar de circo-teatro encontrou terreno fértil para
desenvolver-se e criar suas próprias convenções, aproveitando-se da grande
ligação entre o circo tradicional e o imaginário popular, desde as suas origens no
Brasil. A esse respeito, Carlos Alberto Soffredini, autor da peça tomada como fonte
de inspiração para os processos de criação desta pesquisa, aponta que o encontro
com o popular e a necessidade de atender à demanda do público fizeram com
que esse modo de fazer teatro continuasse em constante desenvolvimento.
[...] aquela antiga linguagem teatral não permaneceu cristalizada no Circo-
Teatro. Pelo contrário. Como qualquer arte popular de origem ou de
adoção, o Teatro no Circo foi se amoldando ao gosto popular, foi se
aclimatando, foi sofrendo uma transformação regida pelo popular e não
pelo erudito, transformação ditada, vamos dizer, pelas exigências do
mercado (Soffredini, 1980, p. 6).
Em linhas gerais, a denominação de circo-teatro não está relacionada apenas
às condições físicas e espaciais de picadeiro, para as demonstrações de
habilidades acrobáticas e virtuosas, e de palco, para as apresentações de peças
dramáticas. Também está diretamente ligada ao modo de organização familiar
das/os que vivem em circos de lona, itinerantes, de pequeno e médio portes, em
que as/os integrantes desempenham determinadas funções e papéis fixos,
distribuídos de acordo com suas idiossincrasias e habilidades interpretativas para
um repertório vasto de textos dramáticos (comédias, dramas, dramalhões, autos
sacros, etc.), e ainda à uma necessidade de resposta ao público, garantidor da sua
subsistência (Quialheiro, 2020).
Até 1908, não havia um lugar de formação teatral formal, tampouco uma
metodologia sistematizada para tal
7
. Logo, aspirantes à arte da atuação aprendiam
nos moldes do circo-família, por meio da prática: olhando e fazendo. Consoante a
7
A Escola Dramática Municipal, atual Escola Martins Pena, localizada no Rio de Janeiro (RJ), foi a primeira
escola de teatro fundada no Brasil, em 1908 (Reis, 2015, p. 1).
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pesquisadora Ângela Reis (2015), a formação pelo aprendizado familiar, nos séculos
XIX e XX, fez parte não apenas do modo de construção do circo no país como
também do nosso teatro. Essa realidade é ainda hoje a de circenses que estão na
ativa, como veremos adiante.
A prática de compartilhar o exercício de seu ofício sempre foi comum às/aos
trabalhadoras/es do palco, seja testemunhando ou contracenando com as/os
colegas. Nesse tocante, Ângela Reis aponta
8
semelhanças entre os processos de
ensino do teatro antigo e do modelo familiar do circo-teatro em diversos aspectos.
Para isso, utilizou como exemplo a trajetória de duas grandes atrizes que se
tornaram referência na história do teatro brasileiro e que deixaram um legado para
as gerações posteriores atuantes.
Não obstante as mudanças ocorridas pela modernização do teatro
brasileiro, que trouxe em seu bojo a sistematização dos processos de
ensino teatral, ecos da formação atorial familiar ainda podem ser
encontrados no teatro contemporâneo, graças à presença e ao trabalho
de atrizes como Bibi Ferreira e Marília Pera, herdeiras e guardiãs de uma
memória secular - tal como ocorre em vários circos no Brasil (Reis, 2015,
p. 8).
A fim de propor um cruzamento entre as formas de ensino e de aprendizado
do teatro, Ângela Reis destaca, dentre algumas possibilidades de abordagem, a
ideia da experiência teatral como sendo pedagógica em si e traz o pensamento do
professor e pesquisador Flavio Desgranges, que me parece interessante ressaltar
para o que aqui também se discute:
No teatro, por sua vez, uma narrativa é apresentada valendo-se
conjuntamente de vários elementos de significação; a palavra, os gestos,
as sonoridades, os figurinos, os objetos cênicos, etc. A experiência teatral
desafia o espectador a, deparando-se com a linguagem própria a esta
arte, elaborar os diversos signos presentes em uma encenação. Esse
mergulho no jogo da linguagem teatral provoca no espectador a perceber,
decodificar e interpretar de maneira pessoal os variados signos que
compõem o discurso cênico (Desgranges, 2006, p. 23).
8
O artigo intitulado “Aprendizado atorial em âmbito familiar: paralelos entre o ‘teatro antigo’ e o circo
tradicional no Brasil”, de Reis (2015), é parte de suas investigações sobre os mecanismos de transmissão e
de aprendizado da ética e do ofício no palco.
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O conceito apresentado por Desgranges nos leva a pensar que, para além do
trânsito entre as/os artistas de circo e as/os de teatro, nos palcos e nos picadeiros,
estas/es artistas eram, antes de qualquer coisa, espectadoras/es e tinham como
referência o modelo estrangeiro em diversas instâncias. Nesse sentido, o contato
com tais modos de atuação, e com os temas de uma dramaturgia que evocava
questões pertinentes ao outro lado do oceano, ocasionou a assimilação de
culturas e de costumes que, de algum modo, foram sendo absorvidos e
incorporados por esse público também artista. Olhar por essa perspectiva ajuda-
nos a mapear o trajeto da formação cênica de artistas brasileiras/os (Quialheiro,
2020).
Esse
modus operandi
desenhou o movimento teatral que se abrigou nos
circos e deu origem ao circo-teatro. Outro exemplo que cito era a prática das/os
circenses, que, em conjunto, iam a sessões de companhias de teatro estrangeiras
em turnê, ou a sessões de cinema em cartaz que se apresentavam na capital, com
o intuito de transcrever as falas e de atentar-se para os detalhes de figurinos, de
trilha sonora e de aspectos da cenografia, a fim de, com as devidas readequações
e nas possíveis proporções, aplicar aos circos que circulariam pelos interiores do
país. Acerca dessa prática, a pesquisadora Daniele Pimenta afirma:
Iam todos juntos ao cinema, assistiam a várias sessões, por dias seguidos,
cada um deles responsabilizando-se pela observação de detalhes que
deveriam ser reproduzidos. Assim, procuravam levar ao público que não
tinha acesso às salas de cinema, um espetáculo que atendesse às
expectativas geradas pelas fotografias, ilustrações, críticas e comentários
espalhados pelo país pelos jornais, revistas e depoimentos de viajantes.
Roupas, penteados, cenários, trilha musical, efeitos sonoros, roteiro e
diálogos. O que fosse possível seria transportado, ou melhor, transladado
para o teatro circense e levado para todo o país (Pimenta, 2009 p. 74).
Desde os primórdios da história do espetáculo no Brasil, vimos companhias
distintas que passaram a ser fonte de inspiração e de referência para
atrizes/atores brasileiras/os, como, por exemplo, o ator João Caetano (1808-1863)
e, mais tarde, Alda Garrido (1896-1970), Dulcina de Moraes (1908-1996), Gilda de
Abreu (1904-1979), Vicente Celestino (1894-1968), Procópio Ferreira (1898-1979),
entre outras/os, muito provavelmente influenciadas/os por ele.
Essa metodologia de ensino-aprendizado, advinda da transmissão oral, da
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observação e da repetição no campo da atuação, desde o teatro que se fazia no
Brasil no século XIX, aconteceu de modo gradual, baseada na experiência e na
recombinação de inúmeras variáveis. Uma delas, que corrobora para o
amadurecimento desse fazer, foi a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), dado que
o cenário de conflito dificultou que companhias estrangeiras viajassem para se
apresentar em terras brasileiras e fez com que uma cena mais autônoma se
despontasse no país. Ademais, autoras/res nacionais aventuraram-se no ramo
dramatúrgico, e o ofício teatral passou a requerer aspectos mais especializados
em termos de produção e de reconhecimento da profissão. Esse período coincide
com o momento em que os circos iniciam sua trajetória pelo circo-teatro. O teatro
que se fazia e seus demais aspectos se acomodaram às características e aos
contextos locais, assim como aconteceu com outras áreas, não apenas no ramo
da arte, mas em aspectos socioeconômicos e culturais em modelos civilizatórios
(Quialheiro, 2020).
É nesse contexto, do início do século XX, que os circos no Brasil, constante
catalisador de novas linguagens e de novidades para captar o interesse de seu
público, viram a possibilidade de levar para dentro de sua estrutura
representações de textos teatrais como um negócio sustentável, ligado à
sobrevivência das/os que ali viviam. Para as/os circenses, ser de circo era,
sobretudo, o seu ofício, uma forma de manter-se, que demandava um modo se
relacionar e que determinava um modo de vida. E assim, seguras/os de suas
habilidades, apostaram no novo formato. Se, por um lado, às atrizes e aos atores
de teatro estavam atrelados os conceitos de dom e de genialidade advindos da
cultura erudita, por outro, para as/os artistas ligados às camadas mais populares,
seu fazer não tão romantizado era questão de sobrevivência (Quialheiro, 2020).
A escolha das peças levadas à cena determinava como seriam interpretados
os textos, isso é, o fato de ser uma comédia, um drama
9
(melodrama), ou um
dramalhão
10
, determinava tudo o que compunha o espetáculo, igualmente seu
modo de atuação. A partir daí, um campo de conhecimento próprio em torno do
ofício da/o artista de circo foi sendo construído no dia a dia das companhias, como
9
As/Os circenses atribuíam o nome
drama
aos textos que tinham características estruturais do melodrama.
10
Os dramalhões, segundo Pimenta (2009, p. 105), referem-se a “dramas longos, em cinco atos”.
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uma espécie de conformação dos modelos vigentes, e uma série de “macetes”
foram sendo intercambiados, incorporados e transmitidos de geração para
geração e entre as próprias famílias de circenses. Nos termos de Ermínia Silva:
O convívio e o intercâmbio entre artistas, palcos e gêneros no final do
século XIX [...] resultaram em permanências e transformações dos
espetáculos, nos quais homens e mulheres circenses copiaram,
incorporaram, adaptaram, criaram e se apropriaram das experiências
vividas, transformando-se em produtores e divulgadores dos diversos
processos culturais presentes ou que emergiram neste período,
contribuindo para a constituição da linguagem dos diversos meios de
produção cultural do decorrer do século XX (Silva, 2007, p. 82-83).
Não se pode deixar de pensar, porém, que essas resultantes, diretamente
vinculadas ao fator sobrevivência das/os artistas circenses, com a entrada no novo
século, ao mesmo tempo em que influenciaram novos meios de comunicação,
tiveram que concorrer com eles.
Salvas as devidas proporções de cada contexto, é possível identificar
similitudes, como mencionado anteriormente, entre o modelo de teatro feito nos
boulevards
franceses, no início do século XIX; o modelo herdado da colonização e
realizado no Brasil, em meados do mesmo século; e o modelo adotado pelos
circos brasileiros, no início do século XX. Essas semelhanças nos processos de
formação e de permanência apresentam-se evidenciadas na presente pesquisa,
principalmente no que tange aos seus modos de atuação, relatadas no processo
da montagem dentro do Estágio de Atuação/Interpretação em Espaços Escolares
e Prática de Ensino I, nos períodos de 2014.2 e 2015.1.
Relatos de experiências do processo criativo: no rastro de uma
pedagogia
Na tentativa de compreender o melodrama para além de aspectos históricos,
dramatúrgicos e estruturais, meu exercício, durante a montagem de
Por Ti Não
Importa Matar ou Morrer
, livre adaptação inspirada na obra original
Vem Buscar-
me Que Ainda Sou Teu
, de Carlos Alberto Soffredini, foi o de tentar encontrar
nas entrelinhas dos estudos e das descrições feitas por Thomasseau
11
; nos trechos
11
Jean Marie-Thomasseau é autor das obras “O Melodrama” (2005) e
Mélodramatiques
(2009).
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14
dedicados ao melodrama francês na visão de Jacques Lecoq
12
e Philippe Gaulier
13
;
nas pesquisas e nas experiências pedagógicas e artísticas vivenciadas com
Fernando Neves e Paulo Merisio; assim como nas referências bibliográficas de
Ivette Huppes, Mario Bolognesi e Regina Horta Duarte – pistas que me auxiliassem
na organização de um conjunto de procedimentos práticos e de experimentos
capazes de oferecer às/aos estudantes/artistas a compreensão da poética do
melodrama
14
e do circo-teatro para o domínio de recursos técnicos em seus
processos de formação atorial.
No processo de montagem, pudemos explorar os diversos elementos que
compõem o melodrama francês descritos por Thomasseau (2005). Ao longo desse
percurso, as/os estudantes/artistas envolvidas/os adquiriram uma série de
recursos não apenas corporais e vocais, mas também relacionais, presentes no
jogo com a/o outra/o. Esse material teve como intuito servir-nos de base tanto
para a montagem quanto como repertório atorial em criações futuras.
Durante toda a montagem de
Por Ti Não Importa Matar ou Morrer
, o exercício
de tentar delimitar o que tenha sido o melodrama na Paris do século XIX, ou
mesmo os circos-teatros brasileiros do início do século XX, mostrou-se
extremamente complexo, seja em aspectos artísticos, políticos, sociais e visuais,
seja em relação a sua estrutura, aos seus conceitos e modos de atuação e de
negociação.
Ainda que Thomasseau nos tenha apresentado a estrutura do melodrama,
suas técnicas e suas convenções, bem como povoado nosso imaginário por meio
da citação de peças encenadas, nos idos de 1800 no
boulevard
, isso não foi
suficiente para que as/os estudantes/artistas compreendessem o jogo de atuação
proposto, visto que esse modelo ainda se colocava distante delas/es.
12
Jacques Lecoq é autor da obra “O Corpo Poético: Uma Pedagogia Da Criação Teatral” (2010).
13
Philippe Gaulier é autor da obra
La Torturadora y Tres Obras De Teatro
(2009).
14
Thomasseau (2005, p. 28) aponta para uma verdadeira poética do melodrama que estava para além da
“meticulosa organização técnica do melodrama clássico que se apoiava, até 1815, em concepções dramáticas
precisas, expressas geralmente nas notas que precediam as peças impressas e, mais claramente, nos
escritos teóricos de Pixerécourt: Paris:
Ou
,
Le Livre Des Cent-Et
-Um (1832) (Paris, Ou
o Livro Dos Cento e
Um
),
Guerre Au Mélodrame
(1818) (Guerra Ao Melodrama) e
Théâtre Choisi
(1841-1843) (Seleta De Textos
Teatrais)”, visto que, na prática, havia diferenças em relação ao discurso teórico.
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Maria De Maria Andrade Quialheiro
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15
Além de Thomasseau, as fontes que destaco, a seguir, são as que lançam um
olhar histórico e textual sobre o melodrama, com adjetivações e analogias em que
é possível apenas supor o modo de atuação investigado. Segundo Regina Horta
Duarte (1995), o melodrama não tem compromisso com a verossimilhança, ou seja,
apresenta-se como artifício o tempo todo e como um conjunto de atuações
codificadas. Ao mesmo tempo, para Peter Brooks (1995), essa suposição é
composta por uma imaginação melodramática que nos envolve, seja ela presente
nas didascálias da dramaturgia, seja em filmes como
Boulevard Du Crime
e em
iconografias: pinturas, desenhos, imagens de reproduções, releituras e gravações
de áudio. Todas essas informações sugerem importantes fontes para uma
perspectiva a nível pedagógico.
O trabalho com as fontes: lançando mão de referências do
modelo de formação e atuação do Circo-Teatro
Ao longo do processo de criação de
Por Ti Não Importa Matar ou Morrer
,
quisemos ainda acessar o modo de atuação feito nos circos-teatros brasileiros em
sua época de ouro. No entanto, não tínhamos contato com nenhuma companhia
circense, nem havia, em nossa região, registros de companhias da velha guarda ou
quem ainda trabalhasse com circo-teatro. Sabia-se da existência do palhaço
Futrika em Uberlândia, de nome Humberto Ribeiro, mas não foi possível acessá-
lo. Assim, o jeito foi recorrer às publicações e aos materiais e registros audiovisuais
disponíveis na internet
15
.
As/os estudantes/artistas organizaram-se em dupla e cada uma ficou
responsável pela leitura de um texto da coletânea organizada, adaptada e
publicada por Sula Mavrudis
16
(2012), tendo como parâmetro o que mais se
aproximasse do melodrama descrito por Thomasseau (2005). Interessava-nos,
então, um texto em que contivessem os principais papéis de um roteiro
melodramático a/o mocinha/o e a/o vilã/o –, o que possibilitaria a sua
15
Vide nas referências bibliográficas deste artigo o
site
Circonteúdo. Além disso, encontre o Centro de Memória
do Circo nas páginas
Facebook
e
Instagram
.
16
Refere-se à coleção “36 textos de dramaturgia circo-teatro: drama e comédia”, organizada por Sula Kyriacos
em 2012.
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investigação e a decupação do processo de criação atorial para cada papel. Nesse
contexto, os textos selecionados foram
A Louca do Jardim
,
A Família Maldita
,
E o
Céu Uniu Dois Corações
,
Coração Materno
,
Índia e Flor de Manacá
. Antes mesmo
da definição do texto final, optamos por
Coração Materno
. A música de Vicente
Celestino e o filme
Coração Materno
, com a atuação de atrizes/atores
brasileiras/os, foram também ricas fontes para embalar e alimentar ainda mais o
imaginário melodramático, já que a referência à poética escolhida era rara.
Além disso, tivemos acesso a uma gravação em áudio
17
com trechos das
apresentações de
E o Céu Uniu Dois Corações
e
Três Almas para Deus
, pelo Circo
Carlitos, em 1976. Ela se mostrou uma fonte importante, uma virada de chave para
o reconhecimento do estilo de atuação de atrizes/atores em seus respectivos
papéis.
Nesse entremeio, uma das estudantes/artistas encontrou Dona Rosina, tia de
Humberto Ribeiro, o palhaço Futrika, e conseguimos fotografias e um áudio dela
contando um pouco da história de sua família. Em sequência, veio o contato com
Maria Deli, irmã de Humberto, que partilhou conosco retratos da atriz circense
Alice Maria
18
, sua mãe, falecida em 1997. Suas fotografias foram inspiradoras,
principalmente para a composição da personagem
Dolores Prazeres
19
, no papel de
dama galã da companhia.
A iconografia foi uma rica fonte utilizada como recurso metodológico, na
medida em que lançamos mão dela para auxiliar na construção desse imaginário,
em um esforço de reconstituição do que foi esse modo de atuação. A respeito da
iconografia teatral, no entanto, Chiaradia (2007) chama a atenção para o fato de
que, ao criar uma imagem, sua/seu autora/r imprime nela uma primeira
interpretação, o que deve ser levado em consideração. Em suas palavras, “já
podemos ter como princípio de análise que o que as fotografias representam
jamais será o fato real acontecido, e sim um ponto de vista desse fato, muitas
17
A gravação em áudio com trechos das apresentações de
E o Céu Uniu Dois Corações
e
Três Almas para
Deus
foi previamente utilizada nos Laboratórios Experimentais da pesquisa de doutoramento do professor
Dr. Paulo Merisio. Essa gravação faz parte da pesquisa “Criação do espetáculo teatral em São Paulo: centro
e periferia”, coordenada por Maria Thereza Vargas (1976).
18
Alice Maria nasceu no dia 23 de julho de 1931.
19
Aleluia Simões, na versão original
Vem Buscar-Me Que Ainda Sou Teu
, de Carlos Alberto Soffredini.
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17
vezes até com distorções intencionais ou não, de acordo com as limitações
técnicas e de equipamentos utilizados” (2007, p.133). Nossa investigação, nesse
sentido, não pretendia ser uma reprodução desse modo de atuação, dado que sua
forma sempre esteve associada a fatores histórico-sociais e políticos de um
determinado contexto.
O encontro com outras expressões artísticas
20
O tempo designado para a montagem dentro dos componentes curriculares
Estágio de Atuação/Interpretação em Espaços Escolares e Prática de Ensino I,
ainda que razoável, mostrou-se curto para o trabalho relacionado à corporalidade
desejada para se atuar no registro do que tínhamos de referência do melodrama.
Era preciso um corpo com certo nível de tônus, disponível, que estivesse habituado
às movimentações exageradas e aos gestos grandiloquentes. Mais importante, era
preciso que o modo de atuação não banalizasse o estilo, pois, em algumas
ocasiões, a falta de crença naquilo a que se propõe o aproxima da paródia, o que
não era o nosso foco.
A solução foi que outras expressões artísticas se somassem às investigações
do melodrama. Para isso, convidei algumas/ns colegas de curso, especialistas em
diferentes linguagens, que puderam contribuir para o nosso trabalho. Essa
contribuição se deu no formato de módulos intensivos ou concomitantemente aos
nossos encontros. Foram as seguintes as oficinas compartilhadas: técnicas
acrobáticas, com Jarbas Siqueira
21
, mimese corpórea, com Ana Wuo
22
, e partituras
corporais a partir da estrela labaniana, com Nina Tannús
23
.
Nossos primeiros encontros foram marcados pela iniciação em técnicas
20
A tese completa com detalhamento dos processos está disponível para consulta no repositório da
Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" UNESP. Acesse o
link
:
http://hdl.handle.net/11449/193693.
21
Jarbas Siqueira é professor efetivo do Curso de Dança da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). É
pesquisador das matrizes do popular e tem habilidade em técnicas circenses.
22
Ana Wuo é professora efetiva do Curso de Teatro da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Atuante no
Bacharelado, pesquisa a mimese corpórea e a arte do palhaço.
23
Nina Tannús é coreógrafa do Curso de Teatro da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e responsável
pelos trabalhos de acompanhamento corporal junto às disciplinas oferecidas. Integra a equipe de servidores
técnicos desse curso.
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18
acrobáticas
24
. O professor Jarbas Siqueira foi convidado para auxiliar no
aperfeiçoamento das técnicas com as quais estávamos trabalhando.
As acrobacias eram basicamente de solo: rolamentos para frente e para
trás (cambalhotas); giros de 180° e 360° (piruetas); paradas de mão (com
o auxílio de apoios); peixinho (parada de mão com descida de peito);
gatinho (cambalhota sobre as costas de outra/o na posição de gato); salto
leão (salto e cambalhota com pequena altura); salto para subida de
ombro; e viradas (adeus querida, virada pelas costas, virada de cotovelo).
Além disso, aquecimento com sequência de abdominais, flexão, prancha,
pula-corda e lançamento de bastão em grupo e, mais adiante, circuitos
elaborados com algumas das acrobacias já aprendidas (Quialheiro, 2020,
p. 85).
Sua oficina, composta por três encontros, acionou elementos do circo,
da capoeira e da yoga, que se mostraram técnicas complementares à
montagem. Esses encontros tinham como foco proporcionar maior
entendimento dos mecanismos de apoio, de alinhamento e de postura,
bem como a correção de posições para a execução do trabalho
acrobático. Jarbas trabalhou com quatro perspectivas que se inter-
relacionam: pedagógica, que traz consciência e reeducação corporal;
física, que possibilita maior envergadura às capacidades do corpo;
estética, como uma poética da cena; e de repetição ligada ao
treinamento, com o objetivo de possibilitar o condicionamento das/os
estudantes/artistas, para que o trabalho corporal fosse realizado com
menos esforço e mais habilidade. Assim, na montagem de
Por Ti Não
Importa Matar ou Morrer
, algumas das acrobacias foram ressignificadas
a partir do contexto da cena e passaram a fazer parte de sua composição,
não como um artifício de virtuose, mas como apropriação lúdica do ato
acrobático (Quialheiro, 2020, p. 86).
No momento em que estive como docente na Graduação do Curso de Teatro
da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), percebi que boa parte da formação
oferecida às/aos estudantes/artistas daquele período estava alinhada às
tendências contemporâneas, em consonância com as discussões a respeito do
teatro pós-dramático, do teatro performativo e da performance artística. Assim, a
proposta de realizar uma montagem ancorada às convenções do século XIX, tendo
como base o teatro codificado, trouxe certa preocupação em termos corporais,
24
Em minha Graduação, cursei a disciplina “Técnicas Paralelas”, ministrada por Paulo Merisio, por meio da
qual obtive uma básica formação em técnicas circenses. Durante os anos seguintes, pude treiná-las e
aperfeiçoá-las, em circulação profissional, durante minha atuação em espetáculos de forte caráter físico, a
seguir:
Simbá
, o
Marujo
(2008-2017) e
Ali Babá e Os 40 Ladrões
(2005-2017). Destinados ao público infanto-
juvenil, tinham como linguagem a ressignificação do corpo e de objetos, fazendo uso de princípios de
acrobacias de solo e de dança-teatro, respectivamente, ambos sob a direção de Paulo Merisio no grupo
Trupe de Truões.
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19
visto que, para o bom desenvolvimento dela, era necessário um corpo apto
25
para
se atuar em um registro de exagero e gestual bem marcados.
Por essa razão, optamos pela oficina de mimese corpórea, ministrada em
dois dias pela professora Ana Wuo, que, em sua trajetória como integrante do
grupo Lume Teatro
26
, desenvolveu ampla pesquisa a esse respeito. O foco principal
do contato das/os estudantes/artistas com essa e outras técnicas foi oferecer-
lhes uma larga perspectiva de recursos corporais distintos, uma vez que, a meu
ver, precisavam expandir em pouco tempo a qualidade de movimentos de seu
repertório.
Diferentemente das oficinas de técnicas acrobáticas e mimese corpórea, o
trabalho corporal conduzido pela coreógrafa Nina Tannús perpassou quase todo o
processo de levantamento do espetáculo. Para além dos exercícios de acrobacias
circenses, yoga e pilates, Nina conduziu o treinamento a partir da estrela
labaniana
27
, por meio do qual pontuou alguns elementos (corpo, ações, espaço,
dinâmica e relacionamento) que auxiliaram na criação da movimentação das
personagens. Cada estudante/artista escolheu, pelo menos, três desses elementos
para compor a sua movimentação. Essa metodologia se mostrou uma rica
possibilidade ao grupo, de modo que, ao longo do processo, pôde definir as
características associadas aos papéis que interpretariam.
As anotações nos diários de bordos das/os estudantes/artistas revelaram a
importância das oficinas supramencionadas para o processo de criação da peça e
para a construção de suas personagens.
Em paralelo às formações complementares, e evidenciando a atuação
melodramática e a exploração da qualidade de ações para vilãs/ões e
mocinhas/os, cujas características bipolares (opostas) são mais definidas,
25
Em minha pesquisa de mestrado, havia lançado alguns olhares sobre o corpo. Por exemplo, investiguei a
diferença de tônus entre uma/m vilã/ão e uma/m mocinha/o destacando aptidões para o modo de atuação.
26
O grupo Lume Teatro, fundado em 1985 e sediado em Campinas (SP), tornou-se referência na pesquisa da
arte da/o atriz/ator.
27
A estrela labaniana é o que organiza o pensamento de Rudolf Laban, cujo legado é a classificação minuciosa
dos elementos que compõem o movimento humano. Em cada uma das pontas da estrela está um dos
componentes estruturais do movimento: um
corpo
em coordenação; uma variedade de
ações
; uma forma
espacial
; uma frase
dinâmica
; um r
elacionamento
determinado.
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20
apresentei os princípios dos
viewpoints
28
, procedimentos de improvisação coletiva,
sistematizados por Anne Bogart e Tina Landau (2017), com os quais havia
trabalhado mais intensamente em minha prática artística. A proposta de
exploração de tempo e de espaço, acionados por alguns desses pontos de atenção
andamento, topografia, relação espacial, duração, repetição, gestos e formas –,
pôde auxiliar-nos, enquanto grupo, no processo de investigação das ações
associadas ao melodrama.
Os exercícios e os jogos teatrais são, em muitos processos, utilizados como
forma de aquecimento corporal e de integração entre as/os participantes. Para sua
melhor compreensão, organizei-os em dois grupos: um relativo à corporalidade;
outro pertinente ao modo de atuação, na perspectiva da atuação em jogo.
No que se refere à corporalidade melodramática, elenco os procedimentos
que levam em consideração a necessidade de um corpo disponível e articulado
para sua dimensão ampliada de movimentações gestos, formas e
deslocamentos –, assim como a presença de um tônus elevado e a criação de
repertórios corporais para serem acionados organicamente no momento da
atuação, sem que haja a interrupção entre o pensar e o agir
29
. Desse grupo, os
jogos e exercícios teatrais trabalhados foram: contração e expansão, acionando as
emoções de vilã/o e de mocinha/o; jogo do exagero aumentando um gesto; pique-
pega: vilã/o e mocinha/o; criação de tableaux; povo de Paris: triangulação; raia
melodramática: vilã/o e mocinha/o; encontros e reencontros; e aquecimento dos
papéis com estímulos musicais e narrativos.
Segundo Gaulier (2009, p. 116), “grandes gestos apelam a grandes
sentimentos. Os grandes sentimentos exigem uma técnica com a qual o actor se
divirta. A técnica funciona como um parapeito para ambos. Melodrama é a lição
de teatro.” Em outros termos, por intermédio do melodrama, a/o atriz/ator
compreende os mecanismos inerentes ao jogo cênico, uma vez que funciona
como a chave para a sua compreensão do fazer teatral. Na montagem de
Por Ti
28
Para melhor entendimento, vide “O Livro dos Viewpoints: Um Guia Prático Para Viewpoints e Composição”,
de Anne Bogart e Tina Landau (2017).
29
No que se refere à corporalidade, observo que o treinamento corporal circense é potencializador para o
trabalho da cena.
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21
Não Importa Matar ou Morrer
, lidar com momentos de grandes emoções, a partir
de exercícios de improvisação, auxiliou as/os estudantes/artistas no entendimento
de seus limites de atuação e de quais elementos poderiam acionar em cenas mais
fortes.
No que tange ao modo de atuação em melodrama, porém, considero os
procedimentos em que a improvisação se faz um importante mecanismo de
criação para a exploração dos códigos anteriormente trabalhados. Por intermédio
de exercícios cênicos e de jogos teatrais, as/os estudantes/artistas podem se
aventurar por situações melodramáticas, a fim de experimentar, por meio do
desempenho de papéis fixos dentro de um enredo específico, a compreensão
desse modo de atuação. Desse grupo, os jogos e exercícios teatrais trabalhados
foram: narração melodramática em duplas; cantora/r de Paris; abandono da/o
bebê; Gaulier ou Madame mandou – assassino e detetive (Quialheiro, 2020).
O encontro com o Circo-Teatro Guaraciaba
Uma das mais importantes companhias circenses, se tomarmos como
referência a sua trajetória no século XX e a sua retomada no século XXI, é o Circo-
Teatro Guaraciaba. Ainda na ativa, mas com projetos que não incluem a
circulação de peças pelo Brasil, tem 76 anos de história. Surgiu em julho de 1946
em virtude da união de duas famílias circenses, os Fernandez e os Malhone.
Na ocasião desta pesquisa, tive acesso ao Circo-Teatro Guaraciaba, em 2017,
quando ele estava em circulação com três espetáculos. Dois deles tornaram-se
fonte principal para minhas reflexões a partir dos relatos e das histórias de
Guaraciaba Malhone, Edimea Rocha, Hudi Rocha, Alexandre Malhone e outras/os
artistas – registrados em entrevistas, vídeos e conversas gravadas –, assim como
de algumas publicações referentes à aproximação do circo com o teatro, em
especial do Circo-Teatro Guaraciaba.
O aprendizado das/dos artistas do Guaraciaba e de tantas/os outras/os
circenses dessa mesma geração deu-se por meio da observação diária dos mais
jovens assistindo aos mais velhos em seu cotidiano da vida no circo, dentro e fora
das coxias. Sua aprendizagem sobre atuação está diretamente ligada à experiência
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22
e à memória.
Não havia formação teatral, no sentido epistemológico do conhecimento
sistematizado, no entanto, ao estudar mais a fundo e conhecer mais de perto esse
universo, entendemos que ali se processaram outros modos de saber, produzir e
circular o conhecimento. Havia técnica enquanto faziam experimentos, erravam e
acertavam, enquanto que o processo de criação se dava pela verificação e pela
repetição.
A transmissão oral de mãe para filha, de uma família para outra, de um circo
para outro, engloba também os comportamentos e as culturas do cotidiano. Essa
prática, de algum modo, mantém-se até os dias de hoje, de modo que, se se quiser
entender e aprender sobre o circo-teatro, a melhor maneira ainda é observá-lo de
perto, como fez em sua época Carlos Alberto Soffredini. A leitura e os estudos
disponíveis não dão conta do que é estar na presença viva de quem fez e ainda
faz parte dessa história, oportunidade que se torna cada vez mais rara à medida
que os anos passam e estes artistas envelhecem. Esse talvez ainda seja um dos
métodos mais antigos e eficientes de se aproximar do que foi o circo-teatro no
Brasil e foi isso o que muitas/os artistas e pesquisadoras/es eu, inclusive, em
alguma medida fizeram, na expectativa de que esses modos de vida e de criação
fossem ao menos registrados em seus detalhes.
Nessa pesquisa, especificamente, para tecer as reflexões acerca das
perspectivas pedagógicas, foi importante acompanhar o processo da montagem e
da estreia de
A Paixão no Cir
co, um dos últimos trabalhos do Circo-teatro
Guaraciaba com o Coletivo e a direção de Fernando Neves, artista de família
circense que, em sua prática, conjuga elementos da tradição do circo brasileiro e
de sua formação em teatro na cena paulista. O texto criado para essa montagem
foi atravessado por questões comuns ao texto
Vem Buscar-me que Ainda Sou Teu
,
de Soffredini, como o conflito de gerações e a quebra de paradigmas tradicionais
do circo. A partir disso, foi possível tecer reflexões a respeito de como nossos
encontros e diálogos lançaram luzes à compreensão da atuação melodramática
nos circos-teatros brasileiros (Quialheiro, 2020).
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23
Considerações da pesquisa
É, na maioria das vezes, em espaços não formais de ensino do teatro cursos
livres, residências de montagens ou mesmo grupos de teatro e de pesquisas não
vinculados à academia –, onde vemos, aqui e acolá, entre erros e acertos, algumas
empreitadas artísticas ou releituras inspiradas no universo circense. Nos dias de
hoje, os profissionais que ocupam os espaços formais de ensino têm se atentado
para isso e tomado para si a responsabilidade por proporcionar o repasse de parte
desses saberes. Nestes espaços instituídos como espaços de saberes, é preciso
cuidar para que não se incorra no risco de uma compreensão limitada sobre o
assunto, principalmente quando não a presença de um/a circense ou de
pessoas próximas a esse universo. Nesse sentido, essa investigação reforçou a
importância da realização de pesquisa de campo por aquelas/es que desejam se
aventurar pelo circo-teatro, a fim de acessar as vozes das/os que viveram/vivem
desse ofício para que o conhecimento se dê de forma mais honesta e respeitosa.
O processo de adaptação / montagem de
Vem Buscar-me Que Ainda Sou
Teu
/
Por Ti Não Importa Matar ou Morrer
, objeto de análise desta pesquisa, foi
anterior ao meu encontro com o Circo-Teatro Guaraciaba. Esse encontro, todavia,
contribuiu para a análise que pude fazer dessa montagem na tese de doutorado,
assim como em relação à relevância da aproximação de estudantes/artistas com
os saberes circense-teatrais (Quialheiro, 2020). Em conversa com as/os artistas da
velha guarda do circo, elas/es não têm a dimensão do movimento teatral que
desencadearam no país, além disso, por vezes, não entendem muito bem a
tamanha curiosidade que nós, pesquisadoras/es, temos em seu modo de vida e
suas histórias pessoais. Em outros termos, “não se dão conta daquela produção e
nem mesmo das transformações que as gerações anteriores a eles produziram”
(Silva, 2009b, p. 27).
No tocante à montagem de
A Paixão no Circo
, é possível perceber a
diferença de atuação entre as/os atrizes/atores veteranas/os do circo e
as/os mais jovens de formação, independentemente do plano instaurado.
Quando estão em cena Guaraciaba, Edimea e Hudi, o texto é melhor
articulado. Há uma pontuação mais precisa e uma tranquilidade no estar
em cena, o que atribuo a um estado de presença e de inteireza em seu
fazer.
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24
A formação das/os artistas circenses advém do modelo francês, filtrado
por influências portuguesas. Esse conhecimento não se deu de modo
estruturado pelos procedimentos metodológicos de escolas de
formação, mas foi assimilado de maneira não consciente, não organizada,
e absorvido empiricamente. Por outro lado, engendrou outros modos de
fazer e se elevou a um nível técnico que conduz a resultados preciosos,
por vezes tão eficientes para a cena quanto os de formação
epistemológica. residem os esforços desta e de outras pesquisas em
legitimar o conhecimento empírico, reconhecendo que nele técnica,
procedimentos metodológicos, assim como, ainda que de forma não
linear, não estruturada e fragmentada, ciência (Quialheiro, 2020, p. 156).
O contato com o trabalho do Circo-Teatro Guaraciaba foi, para mim, uma
descoberta em muitos sentidos. Por mais que tivesse estudado e
participado de laboratórios experimentais e de oficinas acerca desse
modo de fazer teatro, a materialidade que a experiência é capaz de nos
dar é ímpar. -lo em cena, mesmo tendo a dimensão de que a forma
como se organiza hoje é muito distante de como era nos circos de
tempos atrás, trouxe-me outro olhar em relação à minha trajetória, às
minhas pesquisas e aos meus processos (Quialheiro, 2020, p. 161).
Depois de me aprofundar um pouco mais em suas histórias e nesse campo
de conhecimento circense-teatral, havia estreado a montagem de
Por Ti Não
importa Matar ou Morrer
. Estávamos, eu e as/os estudantes/artistas, em uma
rotina intensa de ensaios e de apresentações, executando dois projetos de
pequeno porte, mas muito intensos para o grupo que seguiu com o trabalho, o
Mito 8 de Teatro
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. Fui, então, dando-me conta dos erros e dos acertos nas
soluções de cenas e dos possíveis ajustes para aproximar-nos do que seria um
novo modelo. Aos poucos, percebi que essa era uma tomada de consciência muito
íntima, que apenas me foi permitida por meio da experiência sensível de ver,
observar, falar e estar com as/os artistas do Circo-Teatro Guaraciaba. Era preciso
depurar essa experiência para que ela se convertesse em procedimentos
pedagógicos.
A emoção com que contam de novo e de novo e mais uma vez é a
possibilidade de difundir seu conhecimento para as/os que virão, para as/os que
estudarão o assunto e que sobre ele lançarão outros olhares. Uma dessas
percepções é a de que não seja mais possível “ensinar” circo-teatro, dado que não
se trata de uma técnica, de uma linguagem, de um estilo teatral. Era um jeito de
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Sobre o grupo Mito 8 de Teatro, vide a nota de rodapé apresentada na página 05.
Perspectivas pedagógicas no espaço acadêmico a partir do melodrama e do circo-teatro brasileiro
Maria De Maria Andrade Quialheiro
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fazer teatro dentro do contexto em que se organizavam as famílias circenses e
mambembes que circulavam pelo país, cada qual com sua estrutura, suas
especificidades e suas singularidades no século XX. Não obstante, nesses
elementos da memória, podemos encontrar zonas de conservação para alimentar
novos processos criativos e formativos, fomentados, nessa perspectiva, pelas
memórias dos circos-teatros.
O ensino-aprendizado assistemático, doméstico e empírico que acontecia no
circo passava pela metodologia da observação e da prática (o aprender vendo fazer
e o aprender fazendo) e pela especialização de um tipo específico de papel, o que
me leva a crer que a quantidade de apresentações e a diversidade do repertório
com que as/os atrizes/atores circenses lidavam em seu cotidiano podem tê-las/os
levado a um aperfeiçoamento técnico, raro de se adquirir hoje em dia. Assim, a
observação, a repetição, a diversidade de gêneros, associadas a outras linguagens
e habilidades que não apenas o teatro por exemplo, os rigorosos fazeres
corpóreos e vocais, que lançam mão de força, destreza, equilíbrio, inteligência e
domínio de habilidades manuais, seja para a montagem da lona e a costura de
figurinos, seja para a pintura, a confecção de telões e de objetos de cena e para
tantas outras etapas da vida/processo –, foram peça fundamental para que
continuassem a existir e a manter a engrenagem funcionando.
Os fatores supracitados fizeram e ainda fazem com que essas/es artistas, ao
subirem ao palco, tenham um tipo de presença e de verdade cênica difíceis de
serem reproduzidas no cenário atual, em que partilhamos a vida com diversos
dispositivos tecnológicos e somos arrebatadas/os por uma avalanche de
informações. de se reconhecer a riqueza contida nesses processos anteriores
e a importância dessa estrutura organizacional de saberes, em outros termos, é
preciso reverenciar esse trecho da história, fundamental para se compreender os
modos de atuar nos dias de hoje.
Ao contar parte dessa experiência, optei por falar em abordagens a partir
desse modo de atuação, uma vez que pretendi estabelecer o compartilhamento e
a socialização de diferentes experiências e reflexões. Logo, desvelar os caminhos
que levaram as/os estudantes/artistas a percorrerem esse percurso é abordar
ainda o ofício da arte, com seus percalços e suas conquistas.
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Recebido em: 30/01/2023
Aprovado em: 25/04/2023
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br