Representação Circense em
Chapadão do Bugre
, de Mário Palmério
Luiz Humberto Martins Arantes
Florianópolis, v.1, n.46, p.1-20, abr. 2023
narrador esquece o desfile e se lembra de onde estaria José de Arimatéia e seu
perseguidor, o Persilva. Onde estariam? Preocupações de que Seu Valico Ribeiro
não se lembrava, enquanto o corso entrava na cidade. Estava mais atento com a
entrada da dupla dos cavalos pretos, ornados de dálias brancas e vermelhas, nas
correias da cabeçada. Seu Giordano Cavaliére, dono do circo, desfilava de
uniforme: cartola e túnica azul-marinho militar, botas até nos joelhos e chicote de
domador nas mãos.
Dessa maneira, o narrador vai oscilando seu olhar entre a agitação do desfile
na rua e a tensão com a presença dos capangas, que circulam pelos arredores da
casa de Seu Valico. No largo, sublinha a entrada dos artistas que vinham no carro
de praça, puxado por éguas alvaçãs, com flores nas focinheiras, trazendo Dona
Nena Cavaliére e as duas filhas, ambas trapezistas. Num outro carro, puxado por
um único cavalo, pertencente a Dr. Otacílio, vinha o ator de pantomima Deolindo
da Conceição, famoso por fazer o Antonio Conselheiro, em
A Guerra de Canudos
,
e o Jesus Cristo, em
Vida Paixão e Morte
. Nesse momento, o narrador traz a
descrição do ator:
[...] preto, representava sempre a poder de muito alvaiade na cara e nas
mãos, fazendo papel apenas de gente branca, que de negro não aceitava
- o Major Virgilinho ia explicando ao Valico Ribeiro e ao mano Gumercindo.
Quando apareceu no Cabriolé, nem o dono do carro, o Dr. Otacílio, para
saber assentar-se assim com mais pose. O artista vinha preto mesmo,
de nascença, de terno cento-e-vinte engomado, a gravata de laço,
amarela, de pompom. Quase rui o largo, de tanta vibração, e viva, e palma!
E tinha razão o povo de Sobradinho, que desta vez o Grande Circo
Cavaliére trazia todo o elenco, sem falta de ninguém (Palmério, 1982, p.
124).
Essa presença de um artista negro na comitiva circense, indicada pelo autor
de
Chapadão
, situa com detalhes a questão racial ainda presente neste Brasil pós-
abolição. O ator Deolindo, personagem de Palmério, na obra, não podia nem
mesmo desempenhar papéis de homens negros, e, para sua presença ser tolerada,
era necessário o uso de ‘alvaiade’
no rosto, dando-lhe o aspecto de homem
branco. Indícios do racismo, que se perpetuaria aos dias atuais, que, mesmo após
Ao estudar a história da caracterização cênica, a pesquisadora Aynara Pczzuol já identifica o uso do alvaiade
no ano 150 a.C., quando era [...] um derivado do chumbo, utilizado, ainda hoje, na pintura de paredes. Quando
misturado esse produto com pastas de vinagre, claras de ovos e outras, as mulheres da época conseguiam
deixar suas peles com aspecto mais claro. (Pczzuol, 2018, p. 17)