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O Pe®dido
Maria Emília Tortorella
Fernando Vasques
Para citar este artigo:
TORTORELLA, Maria Emília; VASQUES, Fernando.
O
Pe®dido
.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 1, n. 46, abr. 2023.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101462023e0601
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O Pe®dido
Maria Emília Tortorella
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Fernando Vasques
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Resumo
O presente texto consiste na dramaturgia de
O Pe®dido
, peça da Cia Beira
Serra de Circo e Teatro, de autoria de Fernando Vasques e Mimi Tortorella.
também um texto introdutório que objetiva apresentar, resumidamente,
o grupo, a peça e seu processo de criação.
O Pe®dido
é fruto de um rico
processo colaborativo, em que dramaturgia e encenação foram criadas
concomitantemente, a partir de uma investigação teórico-prática sobre o
circo-teatro brasileiro.
Palavras-chave
: Circo-teatro. Dramaturgia brasileira. Cia Beira Serra de Circo
e Teatro.
O Pe®dido
Abstract
The present text consists of the dramaturgy of
O Pe®dido
, a play by Beira
Serra Circus and Theater Company, written by Fernando Vasques and Mimi
Tortorella. There is also an introductory text that aims to briefly present the
group, the piece and its creation process.
O Pe®dido
is the result of a rich
collaborative process, where dramaturgy and staging were created
concomitantly, from a theoretical-practical investigation on the Brazilian
circus-theater.
Keywords
: Circus-theater. Brazilian dramaturgy. Beira Serra Circus and
Theater Company.
1
Doutorado em Artes da Cenas pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), quando desenvolveu
estágio de pesquisa junto ao
Institut de Recherche en Études Théâtrales
da
Université Sorbonne Nouvelle -
Paris 3
(bolsa BEPE/FAPESP). Mestre em Artes da Cena pela UNICAMP. Bacharel em Artes Cênicas pela
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora colaboradora do curso de Licenciatura em Teatro
da Faculdade de Artes do Paraná FAP/UNESPAR (2021-2023). Atriz, acrobata circense, pesquisadora e arte-
educadora. emilia.tortorella@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/7166342694631301 https://orcid.org/0000-0001-6519-764X
2
Formado pela SP Escola de Teatro Centro de Formação das Artes do Palco. Ator, circense, músico, produtor
cultural e arte-educador. contato@ciabeiraserra.com https://orcid.org/0000-0001-8555-5985
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O Pe®dido
Resumen
El presente texto consiste en la dramaturgia de
O Pe®dido
, obra de la
Compañía Beira Serra de Teatro y Circo, escrita por Fernando Vasques y Mimi
Tortorella. También hay un texto introductorio que pretende presentar
brevemente el grupo, la pieza y su proceso de creación.
O Pe®dido
es el
resultado de un rico proceso colaborativo, donde dramaturgia y puesta en
escena fueron creadas concomitantemente, a partir de una investigación
teórico-práctica sobre el circo-teatro brasileño.
Palabras clave
: Circo-teatro. Dramaturgia brasileña. Compañía Beira Serra de
Teatro y Circo.
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Respeitável leitor, respeitável leitora
A seguir você encontrará a dramaturgia de
O Pe®dido
, peça da Cia Beira Serra
de Circo e Teatro, de autoria de Fernando Vasques e Mimi Tortorella. Fruto de um
rico processo colaborativo, o espetáculo estreou em setembro de 2021, com
direção de Fernando Neves. A sinopse da peça é a seguinte:
No pacato vilarejo de Nossa Senhora das Dores de Cima da Serra, às
vésperas da festa da padroeira, Januário quer pedir a mão de Marica
em casamento, mas lhe falta a coragem. Seu amigo Zé Tobó o aconselha
a usar uma infalível poção do amor preparada por Dona Ermelinda,
benzedeira e curandeira do lugar, que por sua vez tem um passado mal
resolvido com Seu Tonico, pai de Sá Marica. Mesmo alertados de que, no
amor, intervir com poção nunca foi solução que prestasse, os dois
investem nesse caminho e armam uma grande confusão (Programa do
Espetáculo, 2021).
O Pe®dido
é a quinta obra do repertório da Beira Serra
3
e nasceu de uma
grande vontade do grupo: mergulhar no universo do circo-teatro brasileiro. Desde
seu primeiro trabalho, de abril de 2014, a Cia tem como característica mais
marcante a articulação entre o circo, o teatro, a música e a cultura caipira. Não
obstante, o grupo não havia empreendido ainda um estudo direto e específico das
técnicas e saberes da linguagem do circo-teatro.
O maior desejo da Beira Serra sempre foi (e sempre será!) fazer do encontro
com o público um momento de comunhão e encantamento, e por isso o grupo
sabia que tinha muito a aprender com o circo-teatro, afinal, agradar aos
3
A Cia Beira Serra de Circo e Teatro foi fundada em 2014, na cidade de Botucatu, interior de São Paulo, por
Fernando Vasques e Mimi Tortorella. Fernando é ator formado pelo curso de Humor da SP Escola de Teatro.
Mimi é atriz com bacharelado, mestrado e doutorado em Artes Cênicas/Artes da Cena pela UNICAMP.
Atualmente, a Beira Serra conta com seis espetáculos em repertório e um em criação:
Café com Arco
;
Acorda, Januário
;
Grão Circo da Terra
(ProAC 12/2017);
Circo da Cuesta
(Edital Sesi Viagem Teatral 2019);
O
Pe®dido
(ProAC 01/2020);
Circo Girassol
(Lei Aldir Blanc/ Botucatu SP) e
Arraial
(em criação, ProAC
07/2020).
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espectadores, fazendo com que eles retornem, é um de seus fundamentos
principais. Aqui é interessante notar que se essa premissa nasceu da necessidade
de sobrevivência, que os circos sempre se mantiveram da bilheteria de seus
espetáculos, acabou por se tornar constituinte de sua linguagem artística. Ou, nas
palavras de Daniele Pimenta e Daniel Marques (2017, p.87):
Agradar é, portanto, condição necessária e conformadora de uma arte
que se reinventa, que se reorganiza, para, então, permanecer. Por estar
sempre em constante movimento cíclico, por não temer partidas e
chegadas e o itinerário entre elas , o circo se abre ao seu público e...
agrada!
Assim, Fernando Vasques e Mimi Tortorella conceberam um projeto de
criação com o seguinte disparador: a partir de um estudo sobre comédias clássicas
de circo-teatro, criar um espetáculo que agradasse ao público, sem medo de ser
menos importante artisticamente ao assumir essa premissa. A peça seria escrita
por Fernando e Mimi
4
, a partir de um mote clássico: o quiproquó da poção do amor
que cai em mãos erradas. Ainda nesta etapa de elaboração do projeto, Fernando
Neves foi convidado para assumir a direção do espetáculo
5
. Neves é herdeiro direto
desta rica tradição que é o circo-teatro e, ao longo de sua trajetória artística, soube
unir com êxito os acervos técnicos e artísticos desta teatralidade popular com as
estéticas e experimentações de linguagem do teatro moderno. A Beira Serra sabia
que sua contribuição seria fundamental para extrair do elenco de
O Pe®dido
a
excelência de suas interpretações de acordo com seus
temperamentos artísticos
de galã, ingênua, dama-galã, sobrete, baixo-cômico etc.
6
4
Esta é outra característica fundante da Cia Beira Serra: todos seus espetáculos são autorais, com
dramaturgias assinadas por Fernando Vasques e/ou Mimi Tortorella.
5
Sempre que possível, a Beira Serra convida para dirigir seus espetáculos artistas consagrados na área do
circo e do teatro. Além de engradecer os trabalhos, é de suma importância para um grupo sediado no interior
do Estado manter uma interlocução constante com seus pares da capital e/ou outras cidades.
6
Temperamento artístico
: expressão que Fernando Neves usa para nomear a correlação entre o/a atuante e
determinado papel/tipo-fixo: “Ao considerar as características convencionais dos papeis como indicadores
de qualidades que habilitam a operação da
dinâmica cênica
nesta leitura da cena circense, Neves as
transforma em referências para identificar diversas formas de expressão do ator. Dessa maneira, as
categorias de papel suspendem-se da linguagem ou da poética do teatro convencional, e são tomadas como
meio de manifestação de um
temperamento artístico
, conforme definição de Neves” (Daher, 2017, p. 97).
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6
O projeto intitulado
Circo-teatro Beira Serra
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foi submetido para
um concurso do Programa de Ação Cultural (ProAC), da Secretaria de Cultura e
Economia Criativa do Estado de São Paulo, especificamente o Edital ProAC 01/2020
produção e temporada de espetáculos inéditos de teatro
7
. Fernando e Mimi
estavam confiantes de terem elaborado um projeto consistente, porém não
alimentavam expectativas de serem contemplados em um dos concursos mais
concorridos do ProAC, sobretudo pleiteando um projeto de circo-teatro dentro da
linha de financiamento para teatro (e não para circo). Qual não foi a surpresa
quando, no resultado final, o projeto da Beira Serra constava como um dos 19
selecionados, dentre 838 inscritos!
Assim, iniciou-se o processo criativo. O primeiro procedimento de trabalho
foi a leitura e estudo das comédias de circo-teatro que fazem parte da coletânea
36 peças de circo-teatro (dramas e comédias)
, fruto de um importante trabalho
de pesquisa da artista Sula Mavrudis
8
. Os títulos lidos foram:
A Flor de Manacá
,
A
Vingança de Ringo
,
Cabocla Bonita
,
Jurity
,
O Planeta das Macacas
,
O Xerife do Texas
e
Passageiro do Espaço
. A intenção foi compreender os mecanismos,
procedimentos e soluções dramatúrgicas das obras, para servirem de inspiração
para
O Pe®dido
.
O segundo procedimento foi o exercício da escrita criativa dentro do mote.
Cada atriz e ator escreveu um depoimento particular de sua personagem, narrando
livremente todos os acontecimentos decorrentes do uso indevido da poção do
amor no vilarejo de Nossa Senhora das Dores de Cima da Serra. A partir desse
material, o texto foi sendo concebido em uma intensa e produtiva interlocução
entre as proposições pré-concebidas pelos dramaturgos e as improvisações dos
atores em sala de ensaio.
Além do material criado diretamente na sala de ensaio, Mimi e Fernando
costumam inserir em seus textos elementos do seu cotidiano, tais como piadas
7
https://proac.sp.gov.br/editais_resultados/edital-proac-no-012020-producao-e-temporada-de-
espetaculos-ineditos-de-teatro/ Acesso em: 22 jan. 2023.
8
Pesquisa e publicação financiadas pelo Edital Cena Minas Prêmio Estado de Minas Gerais de Artes Cênicas.
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clássicas; ditos e sabedorias populares; jargões de algum familiar, amigo ou
conhecido; frases lidas em traseiras de caminhão, trechos de outras obras teatrais,
filmes, canções ou poemas, dentre outras fontes. Fernando Neves declarou ao
grupo que este procedimento sempre existiu nos circos-teatro e recebe o nome
de
arranjos
. Provavelmente não exista uma definição academicamente
estabelecida para esse procedimento, contudo talvez seja possível associá-lo às
dinâmicas próprias da linguagem circense de assimilação e incorporação de
diferentes culturas e expressões artísticas. Tal como observou o dramaturgo e
encenador Carlos Alberto Soffredini
9
quando, ao longo dos anos 1970, se dedicou
ao estudo e à compressão do circo-teatro brasileiro:
Para estar sempre ao gosto do seu público, o Circo-Teatro, no decorrer
da moda, incorporou os hula-hula de Dorothy Lamour, os sapateados de
Doris Day, o programa de auditório, as chacretes, novelas, a discoteca... E
essa onda do momento é ali colocada na mesma panela com
ingredientes tradicionais, resultando em uma linguagem antes de tudo
popular e, por paradoxal que pareça, brasileira (Soffredini, 1980, p.3).
Evidentemente, pelo fato de a Cia Beira Serra não sobreviver diretamente da
bilheteria de seus espetáculos, seus
arranjos
menos tem a ver com a necessidade
de agradar ao público (embora essa seja sim uma preocupação), mas surgem da
vontade dos artistas de articularem poeticamente em suas obras inspirações com
as quais se deparam no dia a dia. Em
O Pe®dido
, o arranjo mais expressivo foi a
incorporação de uma frase muito peculiar que Mimi e Fernando ouviram de Dona
Maria Ana, uma senhora pernambucana radicada em Botucatu-SP, muito
simpática e tagarela. Um dia, contando alguma de suas mazelas, sem perder o
bom humor, ela disse: “
eu tava tão aperreada que se ocê dissesse pra mim ‘vâmo
montá nessa porca e viajá sem vorta’, eu ia!
”. Essa frase foi arranjada nas falas das
personagens Januário e Tobó, estruturando um jogo entre eles: a frase vai
sendo repetida com algumas variações ao longo de toda a peça. Além disso,
9
Carlos Alberto Soffredini (1939 -2001), dramaturgo e encenador brasileiro, natural de Santos-SP. Foi um
incansável estudioso das teatralidades populares brasileiras, sobretudo o circo-teatro.
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entraram como
arranjos
trechos de uma canção de Pereira da Viola
10
e um poema
de Ricardo Silvestrin
11
, que estão devidamente mencionados no texto.
Vale destacar ainda que ao longo do processo criativo, todos os elementos
da encenação também foram fundamentais na concepção da dramaturgia. Por
exemplo, os típicos telões pintados
12
passaram a ser projeções criadas a partir de
fotos reais, enquanto que objetos e figurinos ganharam o tratamento de pintura.
Segundo Laura Françozo, a cenógrafa e figurinista de
O Pe®dido
, a ideia foi brincar
com essa forma de representação do tridimensional em bidimensional. Inspirados
nesta dicotomia proposta por Laura (3D versus 2D), bem como na dicotomia
estética da peça (realidade versus fantasia) e na dicotomia do momento histórico
de isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19 (presencial versus
online), os dramaturgos propuseram que uma das cenas da peça fosse uma
produção audiovisual
13
exibida no telão. Trata-se de um momento em que as
personagens Januário e Tobó têm um devaneio conjunto. Na cena projetada,
eles aparecem com roupas cotidianas e sem as perucas, destoando
completamente do “cotidiano fantástico” que está posto em cena desde o início.
Logo ao fim da exibição, que tem duração de cerca de 5 minutos, a peça no palco
é retomada.
Com relação ao visagismo geral das personagens, foram criadas perucas que
dessem ênfase à atmosfera extra-cotidiana da peça, além de estabelecerem as
três duplas amorosas da trama a partir dos diferentes materiais tule, barbante
e feltro. Na trilha sonora, para além das canções e dos temas de cada personagem,
criou-se uma espécie de dramaturgia de sons incidentais que colaboram com a
condução e regência rítmica da encenação.
10
Pereira da Viola (1962 -), cantador, violeiro e compositor brasileiro nascido em Teófilo Otoni - MG.
11
Ricardo Silvestrin (1963 -) é um escritor e músico brasileiro, natural de Porto Alegre (RS). Mestre em Letras
pela UFRGS.
12
O telão nada mais é do que uma cortina de pano pintada, utilizada para criar os diferentes ambientes das
peças. Trata-se de um elemento muito característico e tradicional da cenografia dos circos-teatro, herança
do teatro de sala do século XIX (Tortorella, 2020, p. 51).
13
Opta-se pelo termo “produção audiovisual” pois não se tratou simplesmente de gravação de uma cena
teatral. Foi produzida uma cena audiovisual de fato com roteiro, locação específica, captação e edição
de imagem e som etc.
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Da esquerda para direita: Sá Marica (Mimi Tortorella), Seu Tonico (Osvaldo Gazotti) e
Bina (Carolina Tieghi). Foto: Ricardo Romero (2021). Fonte: Acervo Cia Beira Serra
Da esquerda para direita: Sá Marica (Mimi Tortorella), Zé Tobó (Murilo de Andrade),
Januário (Fernando Vasques) e Sá Bina (Carolina Tieghi). Foto: Ricardo Romero
(2021). Fonte: Acervo Cia Beira Serra
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10
Dona Ermelinda (Regina Blanco). Foto: Ricardo Romero (2021).
Fonte: Acervo Cia Beira Serra
Mississpi (Dael Vasques). Foto: Ricardo Romero (2021).
Fonte: Acervo Cia Beira Serra
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O Pe®dido
foi escrito no espaço e tempo a muitas mãos, corpos e, sobretudo,
corações. O mote era singelo, mas nem por isso simples: falar de amor. Sobre este
tema, o diretor Fernando Neves escreveu:
O Pe®dido
é um sensível, engraçado, delicado e poético texto
teatral que fala da gente simples, da simpática cidadezinha de
Nossa Senhora das Dores de Cima da Serra. [...] É bom salientar
que tanto Fernando como Mimi e os integrantes do grupo são do
interior de São Paulo. Naturalmente conhecem bem o universo
retratado pela peça. Dele extraem minúcias, humor e poesia com
tanta verdade que nos faz a todos cidadãos e cidadãs da pacata
cidadezinha. Se não por identificação, com certeza, pela vontade
diante desse quadro desesperador que estamos vivendo, de
pertencer a essa realidade de problemas leves e tão efêmeros.
Nesta narrativa da busca incessante pela felicidade amorosa, as
heroínas e heróis, são pessoas miúdas e desimportantes, que
dignificam o cotidiano com alegria, magia e criatividade (Programa
do Espetáculo, 2021).
Como adianta este trecho de Neves, a peça tem por ambiente e
personagens um pequeno vilarejo e seus habitantes. É importante avisar que o
dramaturgo e a dramaturga prezaram por preservar no texto a prosódia caipira, o
que implicou em ignorar certas regras gramaticais e ortográficas, sem, contudo,
comprometer a fruição das/dos leitoras/leitores. Para terminar esta breve
introdução ao texto da peça, vale deixar aqui o depoimento da Cia Beira Serra
sobre o trabalho: “Diante de tanto ódio, falar do amor que ainda nos move é o
nosso humilde e sincero ato de resistência” (Programa do Espetáculo, 2021).
Referências
DAHER, Kátia.
Sob o olhar da Sobrete
: a linguagem do circo-teatro brasileiro na
Cia. Os Fofos Encenam. 2016. Dissertação (Mestrado em Artes) –Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2016.
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O PE®DIDO. [Programa do espetáculo]. [Botucatu]: ProAC, 2021. Acervo Cia Beira
Serra. Não paginado.
PIMENTA, Daniele. SILVA, Daniel Marques da. Nossa, essa peça ainda agrada, hein?
O Circo-Teatro Guaraciaba e o melodrama ... E o céu uniu dois corações.
Rebento
,
São Paulo, n.7, p.64-89, dezembro 2017.
SOFFREDINI, Carlos Alberto. De um trabalhador sobre seu trabalho.
Revista Teatro
,
São Paulo, ano I, n. 0, p. 3-8, jun./jul. 1980.
TORTORELLA, Maria Emília. Carlos Alberto Soffredini e a legitimação do circo-
teatro como importante tradição dramática brasileira.
Repertório
, Salvador, ano 23,
n. 34, p. 39-62, 2020.1.
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O Pe®dido
Onde
: O simpático vilarejo de Nossa Senhora das Dores de Cima da Serra
Quando
: Às vésperas da festa da padroeira da cidade
Quem:
Januário
- Caipira poeta-cantador, é apaixonado por Marica mas não confia em
seu bico doce e tem medo de pedir a mão da moça.
José Teobaldo
, vulgo
Tobó
- Proseador contador de histórias, amigo inseparável
de Januário
Marica
- Caipira graciosa-desengonçada, vive esperando uma declaração de
amor do Januário
Sá Bina
- Prima de Sá Marica, mora na cidade grande, é descolada e moderna
Seu Tonico
- Viúvo melancólico, zeloso pai de Sá Marica
Dona Ermelinda
- Benzedeira e curandeira, tem um passado mal resolvido com
Seu Tonico
Mississipi
, um violeiro.
Prólogo
Telão I Imagem da praça da Matriz, à noite
Mississipi entra, senta-se em um banco ao canto do palco e inicia uma canção.
Nossa Senhora
Na festa da padroeira
Agita a vila inteira
O povo não vê a hora
De pôr as alegria pra fora
É tempo de comilança
De garrá seu par na dança
Do amor que tá escondido
Se traduzir num pedido
Repleto de esperança
De um sonho contido
É como um rio
O leito e seus afluente
São águas em forma de gente
Debaixo d’um céu de anil
Rio, gente e céu - um bom trio
Entrelaçando seus caminho
Entre a flor e o espinho
No tempo onde tudo acontece
De joeio se faz uma prece
Um pássaro voa do ninho
E o fruto amadurece
E o pretendente
Na farta de suas corage
Embarca nessa viage
O Pe®dido
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Confuso cos itinerário
Faz tudo do avesso e aos contrário
Fala de fora pá dentro
Confunde salsa e coentro
Enxerga longe da vista
Um trem sem maquinista
Distante da borda e do centro
Perdido no meio da pista
Nossa Senhora, na festa da padroeira (2x)
Seu Tonico entra, afobado, dando as últimas indicações dos preparativos da festa da
padroeira. Dona Ermelinda o segue, sem que ele perceba, até que se cruzam no centro
da praça
Dona Ermelinda
- (
fingindo surpresa
) Seu Tonico!
Seu Tonico
- Dona Ermelinda… tudo bão?
Dona Ermelinda
- Bão. E como vai a vida?
Seu Tonico
- Vâmo tocando.
Dona Ermelinda
- Tá ficando bonito os preparativo pra festa, né?
Seu Tonico
- Ah! A Festa da Padroeira é a mais esperada do ano...
Dona Ermelinda
- (
avistando ao longe
) Óia lá o Geraldino trepado nos poste, como
crescido, nem parece que era uma tripinha de gente… casô cô’a Eunice e
tivêro até uma filhinha.
Seu Tonico
- Essa garotada é assim mesmo, elas cresce e já vão dando rumo na
vida.
Dona Ermelinda
- Ah! Todo mundo tem que dá um rumo na vida, né?
Seu Tonico
- Pois é! Todo mundo tem que um rumo na vida. (
encabulado, tenta
se despedir
) Com licença, Dona Ermelinda. (
mas ela para na frente dele
).
Dona Ermelinda
- É… e… de resto, tá tudo bem?
Seu Tonico
- Tá tudo ótimo, Dona Ermelinda! Tô muito bem.
Dona Ermelinda
- E a Sá Marica? Tá bem?
Seu Tonico
- Tá ótima. Crescida também.
Dona Ermelinda
- Vai casá?
Seu Tonico
- Não! Ela c’outros propósito. Vai pra cidade qui nem a prima, estudá.
Até mais ver. (
tentando se despedir e novamente barrado por Dona Ermelinda
).
Dona Ermelinda
- Sei como é. Mas o senhor… tá bem?
Seu Tonico
- (
suspirando
) Dona Ermelinda, deixa o passado sê passado, vâmo vivê
o presente e o presente se torná futuro. Como um rio, e o rio segue...
Dona Ermelinda
- É... Só que o rio começa na nascente...
Seu Tonico
- Mas a nascente tá secando.
Dona Ermelinda
- Pode até secar, mas a glória e a leveza do rio, continua pela
cercania
14
Seu Tonico
- Ô, Lili. Quer dizer, Dona Ermelinda. Por favor… deixa eu seguir meu
caminho…
Dona Ermelinda
- Siga o seu caminho… (
abre espaço, mas quando ele vai passar,
toma a frende dele de novo
) Mai pra que tanta pressa?
Seu Tonico
- É que hoje eu tô escalado pra entrega da sopa na comunidade.
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Trecho da canção
Lamento do Rio
, de Pereira da Viola. Uso autorizado pelo autor.
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Dona Ermelinda sai da frente. Seu Tunico passa.
Dona Ermelinda
- Seu Tonico?
Ele para.
Dona Ermelinda
- O senhor ainda gosta de uma cachaça?
Seu Tonico
- Eu gosto sim...
Dona Ermelinda
- Pois é. Eu tenho uma cachaça tão boa em casa… passa
qualquer hora.
Seu Tonico
- Eu passo...
Dona Ermelinda
- Passa mesmo?
Seu Tonico
- Eu passo...
Dona Ermelinda
- Então… até mais ver.
Seu Tonico
- Até mais ver, Dona Ermelinda.
Seu Tonico sai. Dona Ermelinda tira do peito um colar com uma garrafinha e suspira. Sai.
Ouve-se Zé Tobó terminando de contar uma piada.
Zé Tobó
- (
fora de cena
) foi peidá, exprodiu!
Januário
- (
entrando
) Ah, Zé, tenha a santa paciência, rapaiz... suas piada são muito
sem graça.
Tobó
- Que sem graça o quê, Januário, se as moça tudo me conhecem como
Zé da graça e morrem de rir com qualquer “a” que eu falo.
Januário
- José Teobaldo, o único motivo que ocê é chamado de da Graça é
que sua mui respeitosa mãe se chama Dolores da Graça...
Tobó
- Isso é outra história, Januário. Mai responde essa aqui pra mim: uma
pedra cumprimentou uma tora de madeira, que hora são?
Januário
- Óia, que beleza. O reino mineral conversando com o reino vegetal... eu
não sei não.
Tobó
- Ô, Januário, pensa bem: Uma pedra cumprimentou uma tora de
madeira, que hora são?
Entra Sá Marica olhando para o relógio da Matriz.
Sá Marica
- (
surpresa)
Oit’hora!!!
Zé Tobó
- Acertô, Sá Marica. Ô muié inteligente.
Tobó bate no ombro de Marica, que rodopia e cai nos braços de Januário. Sem
saber o que fazer, ele a derruba no chão.
Januário
- (
bravo
) Ara, Tobó, mai delicadeza com a moça, rapaiz. (
em outro
tom
) Oi, Sá Marica.
Marica
- (
se levantando
) Oi, Januário. (
brava, sem entender
): Acertei o quê, ô,
Tobó? Eu aqui preocupada que deu oit’hora e minha prima ainda não
chegou...
Zé Tobó
- (
interessado
) A Sá Bina?
Sá Marica
- É, Zé, a Bina!
Zé Tobó
- Ela tá vindo passar uns dias aqui em Nossa Senhora, é?
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Marica
- Tá, sim, Zé… vem pra festa da padroeira... faz tanto tempo que ela não
vem!! Quando a gente era pequeno ela passava todas as férias aqui, ocê bem sabe...
Zé Tobó
- Ô, se sei... Tempo bão...
Januário
- A Bina deve mudada... mai deve de um atraso do ônibus,
Marica, por isso ela não chegô ainda…
Empurrado por Tobó, Januário cai numa cambalhota e levanta bem pertinho da
Marica. Envergonhado, sai dançando catira.
J
anuário
- (
disfarçando
) Ô, Zé! O cê não tinha que ir levar a escada pro vigário?
Zé Tobó
- Eu não, Januário! Nóis dois tem que levar, inclusive ele tá lá esperando.
Vâmo?
Os dois dançam juntos uma catira.
Januário
- (
incisivo
) Leva!
Zé Tobó
- Ô, Marica, eu vou indo, porque tenho que levar a escada pro vigário.
Quando a Bina chegar ocê manda minhas lembrança pra ela. (
Pegando a escada e
quase acertando Januário
). E o cê, Januário, me deve uma.
Januário e Sá Marica se olham envergonhados.
Januário
- Ô, Sá Marica!
Sá Marica
- Ô, Januário.
Januário
- Eu tenho uma coisa pra te dizer.
Sá Marica
- Diga!
Januário
- (
falando de modo incompreensível
) Eu te amo!
Sá Marica
- Quê?
Januário
- (
falando de modo incompreensível
) Eu te amo!
Sá Marica
- Quê, Januário?
Januário
- Eu tinh’ame! Eu tinha inhame pra te trazê, mai esqueci em casa, aliás,
eu nem sabia que ia te encontrá, né?
Sá Marica
- Ah! Que coisa, Januário! Eu adoro inhame.
Januário
- Tchau, Sá Marica. (
sai desconcertado
)
Sá Bina aparece na praça da Matriz carregando sua mala.
Sá Bina
- (
acenando
) Prima. Ói, eu aqui!
Sá Marica - Bina!!!
Gritos e salamaleques festivos entre as duas.
Sá Bina
- Aaaaa, finalmente, prima!!!! Cheguei!!!
Sá Marica
- Mai qual a razão de tanta demora?
Sá Bina
– Ah, Sá Marica, foi o engarrafamento na saída pra estrada.
Sá Marica
- Aqui também acontece isso!
Sá Bina
- Jura? Tem congestionamento em Nossa Senhora?
Marica
- Nem adianta querer pegar a saída principar da cidade no horário que
a boiada da Dona Celeste tá passando.
O Pe®dido
Maria Emília Tortorella | Fernando Vasques
Florianópolis, v.1, n.46, p.1-37, abr. 2023
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Sá Bina
- (
rindo
) Ah, prima, esse tipo de trânsito acho que eu até ia gostar.
Sá Marica
- Mai que bom que você veio, Bina!!!
Sá Bina
- Sim, prima, eu tava morrendo de saudade.
A barriga de Sá Bina faz um barulhão. As duas reagem.
Sá Marica
- Bina, isso não é barulho de saudade não, isso é fome.
Bina
- Ai, é mesmo, prima, desculpe chegar assim que nem cachorro magro,
mas eu tô morrendo de fome mesmo.
Sá Marica
- Ah, mai não se faça de rogada, prima! No caminho a gente pode passá
pegá uma pizza pra nóis...
Sá Bina faz cara de desapontada.
Bina
- (
um pouco sem graça
) Pizza, é? Ah, Marica, é que eu cheguei tão
desejada de sentir o gostinho de uma comida caseira...
Marica
- Mai não seja por isso, prima, eu posso prepará algo procê. sei....
posso fazer aquela canja iguarzinho qui nem a vó fazia.
Bina
- (
ainda mais sem graça
) Marica, sabe que é? Eu não como mais carne...
Marica - Com o preço que quase ninguém mais comendo carne mêmo…
Mai não se preocupa que a canja é c’os frango do sítio mêmo.
Sá Bina
- (
rindo
) Não, Sá Marica... é que eu virei ovolactovegetariana.
Sá Marica
- Nossa, prima, que qué isso?
Sá Bina
- É que agora eu só como ovos, leite e vegetais.
Sá Marica
- Ahhh, porque ocê não disse antes? Ovos, leite e vegetais é o que não
farta no sítio! Vâmo logo pra casa prepará alguma coisa procê...
As duas saem alegres. Mississipi canta.
Tanto a noite e o dia
Na cidade ou na roça
É salgado ou adoça
A nossa cantoria
O amor alumia
Os caminho aberto
O errado e o certo
Vão fazendo folia
Amanheceu
já raiou a luz do dia
Primeiro Ato
Cena I Pescaria
Telão II Paisagem com lago
No outro dia de manhã.
Januário
- Ô, Zé! Tá morto, rapai? Vamo pescá!
Zé Tobó
- São seis hora da manhã, Januário!
Januário
- Mai se o galo canta as quatro e nóis toma café às cinco, às seis já tamo
O Pe®dido
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sorto no mundo vivendo.
Zé Tobó
- Mai os peixe deve tá tudo dormindo.
Januário
- Dormindo o quê, Zé. Peixe nem tem párpebra pra fecha o zóio.
Tobó
- Mai tem que dormi, como é que ganha energia pra balançá as nadadeira
pelo meio desse rio todo?
Januário
- Ahhh....só se eles ficam parado num canto do rio, co zóio esbugaiado,
reporsando as escama.
Zé Tobó
- Mai era tudo que eu queria, tá quietinho, reporsando minhas escama.
Januário
- Ô, Zé! Será que peixe pensa?
Zé Tobó
- Será que peixe sonha?
Januário
- Será que peixe se apaixona?
Zé Tobó
- Eita que essa eu já vi.
Januário
- É mêmo?
Zé Tobó
- É, nunca te contei?
Januário
- Não.
Zé Tobó
- Então deixa eu contá. Teve uma vez que eu me apaixonei pr’uma moça
que morava lá do outro lado do rio. E quando eu cheguei lá pra encontrá-la, sabe
o que é que aconteceu, Januário?
Januário
- O quê?
Zé Tobó
- Ela já tinha pretendente!
Januário
- Ô, tristeza, perdeu a viagem...
Tobó
- Eu perdi foi as estribeira. Eu vortei chorando, margeando o rio. E quando
eu parei um poquinho pra descansá minhas mágua, cê não acredita no que eu vi.
Januário
- O quê?
Tobó
- Um pirarucu e pacu, apaixonados, em plena piracema. E era o dia do
casamento dos dois e logo me chamaram pra ser padrinho deles. Eu entrei nas
profundezas das águas... (
para subitamente
) Mai qué sabe, Januário. Essa história
eu vô deixa pra outra peça...
Januário
- Inacreditável, Zé! Como diz aquele “velho deitado”: como pode um peixe
“frito viver fora dessa mágoa aflita”... Mai vâmo pescá, Zé! Cê trouxe a isca?
Zé Tobó
- Trouxe! O cê qué pescá que tipo de peixe?
Januário - Dos bitelo
Zé Tobó
- Então você vai precisa desse aqui, ó!
Januário
- Que maravilha. O que é isso?
Zé Tobó
- Bolinho de mandioca com bacon.
Januário
- Que beleza.
Januário vai colocar o bolinho no anzol.
Zé Tobó
- Ô, Januário! Que cê tá fazendo?
Januário
- Mai não é a isca?
Zé Tobó
- Claro que não. Esse é pra nóis comê pra ganha sustância pra conseguir
pescá.
Januário
- (
comendo o bolinho
) Muito bom, hein. Quem fez?
Zé Tobó
- Eu mêmo.
Januário
- Brigado, Zé. Mai e a isca?
Zé Tobó
- Aqui, ó! Minhocuçu.
Preparam as varas e lançam. Permanecem um tempo contemplativos.
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Januário
- Pescá é bão dimais, né Zé? Nóis desenvorve a paciência.
Tobó
- Ah! É como dizia meu falecido vô. Pescaria é igual amor, tem que
paciência.
Januário
- Óia, mai que sabedoria do seu Sábato. Saudade desse véinho...
Zé Tobó
- Saudade mêmo.
Januário
- Mai te dizê que comigo as coisa não é assim não viu... Ou acontece
ligeiro ou deixa de não acontecê... (
fisga um peixe
) Opa! Fisgô.
Zé Tobó
- Zigue zagueia e puxa, Januário! Zigue zagueia e puxa!
Januário
- Zé do céu! Sô eu que fisgô o peixe ou o rio que tá me fisgâno?
Zé Tobó
- (
agarrando Januário, e puxando para trás
) Amarra nessa árvore aqui ó.
Januário e Zé Tobó
- Ufa!
A árvore começa a tombar e é levada para o rio.
Januário
- Zé, o peixe levou a árvore, os gáio, as fôia, os fruto, tudo!
Zé Tobó
- E se contá ninguém acredita.
Januário
- Ah! Eu mêmo desacredito. Mai vão-se os anéis e ficam-se os medo.
(
a vara do Zé fisga
) Óia! Fisgô, Zé.
Tobó
- (
agarra a vara e pega um peixinho pequeno
) Viu só, Januário! Na
pescaria, é igual no amor, tem que ter paciência.
Januário
- Nóis sonha com os pexão e acaba fisgando o pexinho, mai que amor
diminuto.
Tobó
- Dos miúdo ou dos graúdo, tem de rio e tem do mar, o importante...
(
enfia o peixe inteiro na boca e engola
) ...é amar.
Januário chora copiosamente.
Zé Tobó
- Que que foi, Januário?
Januário
- Ah Zé, era disso mêmo que eu queria falá, a pescaria era um pretexto
pra eu desabafá.
Zé Tobó
- Mai bem que eu tava desconfiando dessa pescaria tão cedo
Januário
- Ô, Zé, cê sabe que eu sô apaixonado pela Sá Marica.
Zé Tobó
- Mai isso todo mundo sabe, acho que até ela.
Januário
- Nóis até iniciâmo um namorico. Agora eu queria um comprometimento
mai sério, quero pedi ela em casamento. Mai me farta as coragê, me farta
segurança, o medo dela não aceitá e pai dela também não gostá.
Zé Tobó
- Mai, Januário, logo o cê, violêro dos bão, prosadô de tudo, tá com medo
de declará o seu amor?
Januário
- Pois é, Zé! Na viola sô destemido, mai na vida sô todo retraído.
Tobó
- Não precisa falá mai nada, entendi. O cê quer que eu peça a mão dela
pro cê?
Januário
- Claro que não, Zé! Tá doido?
Zé Tobó
- Então o quê é que cê qué?
Januário
- Quero ter mais segurança, mai corâge e quero que o cê me ajude com
isso.
Tobó
- Ahhh...eu me alembrando duma história. O qué uma coisa mais
potente que uma canção de amor bem cantada no pé do ouvido? Mai infalível que
um par de verso bem dito na hora certa? Mai poderoso que um zóio no zóio
O Pe®dido
Maria Emília Tortorella | Fernando Vasques
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faiscante? Dona Domingas, minha vó, cê lembra??
Januário
- Claro que lembro! Fazia aquele bolo de cenôra delicioso pá nóis.
Tobó
- Ela mêmo! Teve uma vez no nosso sítio que os porco não tava mai
querendo procriá c’as porca, sabe quem minha avó procurou pra resorvê essa
probremática?
Januário
- O veterinário?
Zé Tobó
- Não, Januário! Dona Ermelinda!
Januário
- Dona Ermelinda! Benzedeira e curandeira aqui da vila, curou minhas
catapora quando eu era criancinha.
Zé Tobó
- Ela mêmo. Pois logo ela junto umas erva daqui, ôtras erva dali, misturô
numa fervedura e fez uma porção do amor, Januário.
Januário
- (
interessado
) Uma porção do amor?
Zé Tobó
- É! E logo nóis aplicâmo na ração e na água dos porco e cê precisava vê,
era porco com porco, porca com porca, porco com porca, um por todos e todos
por um.
Januário
- Mai que porcaria de paquera, rapai!
Tobó
- É, deu certo! Agora resta sabê se essa poção que certo c’os porco,
dá certo c’os seres humanos!
Januário
- Mai é pra já, Zé! Se o fala pra mim vâmo muntá nessa porca e viajá
sem vorta, eu vô.
Zé Tob
ó - Vâmo muntá nessa porca e viajá sem vorta?
Januário
- Vâmo!
Os dois saem.
Cena II Café da manhã
Telão III Cozinha da casa de Sá Marica
Mississipi canta.
Se ocê vem com a fé
Eu também 'credito
Aí nóis segue bem
Com São Benedito
Se o café tá bão
'Quenta o coração
Aí nóis vai festá
É c'o São João
Se o café tá amargo
De fazer careta
É de arrepiar
Os pêlos da Antonieta
Se o café tá forte
de espantá urubu
Fartando a xícara
Nóis toma no copo
O Pe®dido
Maria Emília Tortorella | Fernando Vasques
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Entra Sá Bina.
Bina
- (
se espreguiçando
) Ah, que dia mais lindo!!! Que delícia acordar com os
passarinhos cantando. A gente acorda com uma disposição! Era 5h40 eu tava
de pé pra fazer yoga com o sol nascendo!
Sá Marica
- (
gritando de fora da cena
) Sá Bina, ocê já acordô??
Sá Bina
- Ô, já tô até de banho tomado.
Sá Marica
- (
de fora
): Tô chegando com o café, então.
Sá Bina
- Ai que delícia!!!
Marica
- (
entrando
): Óia esses ovo maravilhoso que a Judith preparou pra
nóis.
Sá Bina
- Judith? Não sabia que vocês tinham empregada aqui na casa...
Sá Marica
- Que empregada o quê, prima. Judith é a nossa galinha.
Sá Bina
- Ai, prima, vocês dão nome até nome pras galinhas?
Sá Marica
- Ah, é que a Judith é praticamente da família.
Bina
- Ai, que delícia esse cheirinho de ovo caipira…. faz tempo que não
como...onde eu moro é tão caro!
Sá Marica
- Caro?? Mai só a Judith põe uns 3 desses por dia de graça pá nóis.
Bina
- (
mudando de assunto
) Marica, onde seu pai? Que desde ontem
ainda não vi meu tio!
Sá Marica
- Ah, é que toda sexta-feira meu pai fica até tarde na rua.
Sá Bina
- (
assustada
) No bar, prima?
Sá Marica
- Ara, como assim? Parece que não conhece o Seu Tunico?
Sá Bina
- Eu sei que ele gosta d’uma cachaça….
Sá Marica
- Gosta d’uma cachaça sim, Bina, mas ele nunca foi de frequentá esses
lugar risca faca né.
Sá Bina
- Mas então porque o tio fica até tarde fora?
Sá Marica
- É por uma boa causa!
De repente, ouve-se Seu Tonico gritando de fora da cena.
Seu Tonico
- (
fora de cena)
Meu coração por ti gela.
Sá Bina
- (
entrando no jogo
) Meus olhos por ti são.
Seu Tonico
- (
fora de cena)
Já que não posso amar ela.
Sá Bina
- (
arrematando
) Já nela não penso não.
Seu Tonico
- (
entrando em cena
) Ahhh, só pra saber se é minha sobrinha mesmo.
Sá Bina
- Meu tio!!
Tio e sobrinha se cumprimentam calorosamente.
Marica
- Minha querida sobrinha vai me desculpar por não tê-la recebido ontem,
é que às sextas-feiras eu me junto ao pessoal que prepara e distribui sopa pros
mais necessitados.
Sá Marica
- Eu disse que era por uma boa causa!
Sá Bina
- Esse é meu bom e velho tio. Que coisa mais bonita!
Seu Tonico
- Se é bonito ou não, eu não sei, querida. sei que é o mínimo que
nóis podêmo fazê.
O Pe®dido
Maria Emília Tortorella | Fernando Vasques
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Marica
- É, verdade, meu pai! Mai ói, nói tamo aqui de prosa e o café
esfriando….
Os três se apressam e pegam suas xícaras, começam a beber.
Sá Bina
- Ai, que delícia esse café!!!!
Seu Tonico
- (
puxando assunto
) Marica, ocê pode aproveitá sua prima e tirá
umas dúvida sobre as possibilidade de estudos lá da cidade, né?
Sá Bina
- Jura, prima, cê tá querendo mudar daqui é?
Marica
- Ah, prima, isso é mais coisa do meu pai do que minha, viu? Eu às
veiz quero, ôtras veiz não quero…. fico indecisa.
Seu Tonico
- Não precisa sofrer com a indecisão, menina. Ocê pode í e depois
vortá. Ocêis jovens parece que não entendem que o tempo corre ligeiro. Cê vai vê,
se ocê for, quando menos espera, terminô os estudos… (
se apressando
) Bão,
mai falando nisso, é bom eu finalizá ligeiro meu café, que tem muitos preparativos
ainda pra festa da Padroeira.
Sá Marica
- Uai, pai, mai não ficou tudo pronto ontem?
Seu Tonico
- (
disfarçando
) É, é, faltam alguns detalhes.
Seu Tonico vai saindo.
Bina
- Ai, ai, a festa da padroeira! Faz tanto tempo que eu não venho pra essa
festa! Sabe que hoje de manhãzinha eu tava olhando pela janela e acho que vi
no estradão dois coroinhas indo cedinho pra paróquia?
Marica
- (
rindo
) Coroinhas do santo do pau oco, só se for... Do meu quarto eu
também vi duas pessoas no estradão, mas era bem a dupla do Januário e do
Tobó.
Seu Tonico ouve o nome dos meninos e para pra ouvir a conversa.
Bina
- Aaa, que saudade desses dois, Marica...mas não reconheci não...o mais
baixo era quem?
Marica
- (
um pouco enciumada
) O mai baixo é o Januário…. porque, hein, prima?
Bina
- (
sem perceber o ciúme
) Quer dizer aquele mais alto, mais forte, mais
garboso, era o Zé Teobaldo?
Marica
- Alto, forte, garboso? Uai, prima, agora fiquei até em dúvida. Será que
não era o Zé Tobó co Januário?
Sá Bina
- (
sem parecer ouvir
) Faz tanto tempo que não vejo o Zé Teobaldo….vai
que ele nem lembra de mim… (levando umas picadas) Ai, ai, ai, tem uns
borrachudo me picando...ai, ai.
Marica
- Ihh, prima, vai se acostumando c’a roça…. Vamo fora panhá umas
citronela pro cê passar…
Sá Bina
- Acho que vai resolver...
Sá Marica
- Vai ajudá, prima, vai ajudá...
As duas saem batendo as mãos tentando matar os pernilongos.
O Pe®dido
Maria Emília Tortorella | Fernando Vasques
Florianópolis, v.1, n.46, p.1-37, abr. 2023
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Cena III A cachaça
Telão IV – Quarto de Dona Ermelinda
Entra Dona Ermelinda, experimentando um vestido.
Seu Tonico
- (
chamando, fora da cena
) Dona Ermelinda...
(
de novo)
Dona Ermelinda... (
ameaçando
) Dona Ermelinda eu vou embora, em?
Dona Ermelinda
- Quem é?
Seu Tonico
- (
fora da cena
) É o Tonico.
Dona Ermelinda
- Quem?
Seu Tonico
- (
fora da cena
) O Seu Tonico.
Dona Ermelinda
- Meu Tonico?
Seu Tonico
- (
fora da cena)
Dona Ermelinda!
Dona Ermelinda se dirige para a porta de entrada.
Telão V Sala de Dona Ermelinda
Dona Ermelinda
- Entra, Seu Tonico.
Seu Tonico
- Espero que esta cachaça seja bem ligeira, viu?
Dona Ermelinda
- Eita, ômi! Sempre com pressa? Hoje é sábado, nem é dia de
entregá sopa e os preparativos da festa estão tudo pronto. Aliás, ficou tudo
muito bonito!
Seu Tonico
- Obrigado, mas muitos colaboraram para isso.
Dona Ermelinda
- Mas antes da cachaça quero te mostrar uma coisa. É um vestido
que eu escolhi pra ir na festa da Padroeira, você vai ver como fica bonito em mim
(
começa a levantar a saia
)
Seu Tonico
- (
repreendendo
) Dona Ermelinda! A cachaça!
Dona Ermelinda
- bem... a cachaça... Óia, se o aprecia uma boa cachaça,
então o vai gostar muito dessa daqui. (
serve dois copos de cachaça, tira o frasco
do peito, ameaça colocar o líquido no copo do Seu Tonico, mas desiste
). Aqui ó.
(entrega um copo para Seu Tonico) Saúde.
Seu Tonico
- Ao tempo em que o tempo era moço.
Dona Ermelinda
- Ah... (
avança para beijá-lo
) mêmo véio o tempo ainda é vivo.
Seu Tonico
- (
desconcertado
) Pode me servir mais uma?
Dona Ermelinda - Claro, gostou?
Seu Tonico
- Hum, hum!
Dona Ermelinda serve mais uma dose para os dois e tomam num gole só
Seu Tonico
- É que... é que eu...é que eu não imaginava que...
Dona Ermelinda
- Coragem, homem.
Seu Tonico
- É que eu não imaginava que guardava na memória os poemas que
eu recitava...
Dona Ermelinda
- Guardo muito mais do que imagina...
Seu Tonico
- É que aquele de ontem a tarde é tão especial...
Dona Ermelinda
- (
recitando
) O rio ainda corria por conta de velha história,
honra, fama e glória que correram a cercania. Assim maltrapilho quase morto. Não
O Pe®dido
Maria Emília Tortorella | Fernando Vasques
Florianópolis, v.1, n.46, p.1-37, abr. 2023
24
era o rio que andava...
15
Seu Tonico
-...era sua alma que vagava correndo em busca do mar, ou melhor,
qualquer lugar, um refúgio onde pudesse descansar ou se enterrar.
Dona Ermelinda e Seu Tonico
- Se o rio vive é de água, por ela é que ele corre igual
mar no balanço de sua rede.
Seu Tonico
- Não tem água então não corre. Desidrata, se consome, morre
encharcado de sede ...
Dona Ermelinda e Seu Tonico
- ...e empazinado de fome.
Dona Ermelinda
- Mesmo assim o rio ainda corre.
Seu Tonico
- Ô, Lili!
Dona Ermelinda
- Ó, Tuquinho! Porquê?
Seu Tonico
- Ela estava grávida da Sá Marica, não podia deixá-la desamparada. Eu
também a amava.
Dona Ermelinda
- Todos desconfiaram mêmo daquele casamento às pressas, mai
ainda quando a Sá Marica nasceu de sete meses cheia de saúde.
Seu Tonico
- Ara, cê me entende.
Dona Ermelinda - Quando cêis tavam no altar e o vigário no fim da celebração,
todo mundo emocionado, ninguém desconfiava das divergência dos meu
sentimento. Aí veio a famosa frase “Se arguém aqui tem arguma coisa contra esse
casamento, que fale agora ou cale-se para sempre”... Fartô pôco, ah, fartô muito
pôco prá eu falá (
faz um quebra cômica, e canta
): “Por favor, pare agora!”.
Seu Tonico - Que bom que você não fez isso. O que seria de mim, Antônio Pereira
dos Santos, o traidor dos bons costumes e da família?
Dona Ermelinda
- Não fiz por que tinha um respeito enorme pela Izilda. E nóis nem
era amiga.
Seu Tonico
- Eu preciso ir.
Dona Ermelinda
- A gente se vê na festa?
Seu Tonico vai saindo sem responder.
Dona Ermelinda
- (
incisiva
) Tonico, a gente se vê na festa?
Seu Tonico
- A gente se vê na festa...
(sai
)
Dona Ermelinda tira do peito o frasco, mira-o com um olhar triste. Guarda o frasco e sai.
Cena IV As Frô de São João
Telão VI Paisagem de estrada de terra
Entram Januário e Zé Tobó andando tranquilamente, até que Zé para de repente.
Zé Tobó
- (
assustado
) Ô, Januário!
Januário
- Que foi?
Zé Tobó
- O seu Tonico tá vindo ali.
Januário
- Ai, meu Deus, se esconde!
Zé Tobó
- Mai escondê onde? Já sei, vou fingir de pedra.
Januário
- E eu de árvore.
15
Neste diálogo, todas as frases em itálico são trechos da canção Lamento do rio, de Pereira da Viola. Uso
autorizado pelo autor.
O Pe®dido
Maria Emília Tortorella | Fernando Vasques
Florianópolis, v.1, n.46, p.1-37, abr. 2023
25
Seu Tonico entra.
Seu Tonico
- Pior do que uma pedra no caminho é encontrar com Januário e
Tobó. Com certeza eles estão aprontando e eu vou descobrir. (
chamando
)
Januário! Zé Tobó!
Januário
- Ih, Zé, não deu certo.
Zé Tobó
- Ô, seu Tonico!
Januário
- Bão dia, bão c’o senhor?
Seu Tonico
- Bão... O que ceis tão fazendo por essas bandas?
Januário
- (
sem saber o que responder)
Nóis?
Tobó
- Ah... nóis tamo coiendo frô de São João, pra festa de hoje à noite, Seu
Tonico!
Seu Tonico
- Mai cêis tão de mão abanando, cadê as frô?
Januário
- Pois é, andâmo por esse sertão todo procurando e ainda não
encontrâmo. O senhor, por acaso, vem de onde? não viu nenhuma frô pelo
caminho?
Seu Tonico
- Sim... hãn hãn. Não! Eu tava peregrinando... andando pro meio das
matas, pagando uma promessa que fiz pra Nossa Senhora das Dores de Cima da
Serra.
Januário
- E prometeu o quê, Seu Tonico?
Seu Tonico
- Não é da tua conta, Januário!
Zé Tobó
- Ô, seu Furico. Quer dizer, seu Tonico. O senhor descurpe, viu, mai nói já
vai seguí nosso rumo pra procura as frô. Januário, vâmo indo? Inté mais, Seu
Tonico.
Seu Tonico
- (
saindo)
Inté. Juízo o cêis dois.
Zé Tobó
- Cê sentiu o bafo de cachaça que o Seu Tunico, tá?
Januário
- Se acendê um fórfo explode, rapái...
Cena V – Em busca da po®ção
Telão VII – Fachada da casa de Dona Ermelinda
Zé Tobó
- Chegâmo, Januário!
Januário
- Chegâmo?
Zé Tobó
- A casa da Dona Ermelinda.
Januário
- Que bela e singela residência.
Zé Tobó
- Vô chamá! (
bate palmas
) Ô, Dona Ermelinda…
Januário
- Xi, não deve tá aí não...
Tobó -
Carma, chamei uma veiz só! (bate palmas de novo) Ô, Dona Ermelinda…
é, num deve tá memo...
Januário
- É, vâmo embora.
Zé Tobó
- Quê í embora, hômi! Vai desistí do amor tão fácil assim?
Januário
- Claro que não....
Zé Tobó
- Então vâmo entrá e ficá esperando...
Januário
- Mai eu vô entrá na casa dos ôtro sem permissão?
Tobó
- Dona Ermelinda é gente boa de tudo, muito hospitaleira… e deixô a porta
só encostada, vem! (
abre a porta
)
Zé começa a abrir a porta, mas um miado de gato assusta Januário, que tenta fugir.
O Pe®dido
Maria Emília Tortorella | Fernando Vasques
Florianópolis, v.1, n.46, p.1-37, abr. 2023
26
Zé Tobó
- Vorta aqui, ô cagão.
Eles abrem a porta e entram.
Telão VIII Cozinha de Dona Ermelinda
Januário
- Óia, Zé! Nunca vi tanto vidrinho… com semente, com pózinho, semente,
raíz, frô… e tudo organizadinho...
Zé Tobó
- E o chêro de essência?
Januário
- É o calderão fumegando.
Zé Tobó
- Deve de sê porção das braba.
Januário
- Nossa mai deu uma sede andá até aqui.
Zé Tobó
- Deu mêmo… mai também, andâmo quantas légua de lá pra cá?
Januário
- Antes tivesse vindo de égua, viêmo no próprio lombo… óia duas garrafa
d’água ali…
Zé Tobó
- Que divina providência! (pegando as garrafas) Uma pra mim e outra pro
cê.
Januário
- Saúde.
Zé Tobó
- Saúde.
Eles bebem.
Zé Tobó
- (
com voz fina
) Ai, Que delícia de água!
Januário
- (
com voz grossa
) Qué isso, Zé?
Zé Tobó
- O quê?
Januário
- Tá c’a voz fininha.
Zé Tobó
- E o cê tá c’a voz grossa!
Januário
- É memo! (
lendo o rótulo da garrafa
) Elixir dos rouxinóis graves.
Zé Tobó
- (
lendo seu rótulo
) Elixir dos rouxinóis agudo.
Dona Ermelinda
- (
chegando)
Ê, Zé Bocó… sempre mexendo no que não deve, né?
Zé Tobó
- É Zé Tobó, Dona Ermelinda. José Teobaldo.
Januário
- Descurpa, Dona Ermelinda.
Dona Ermelinda
- Tem nada não, fio! acostumada c’as trapaiada do Bocó…
quer dizer, Tobó. Faz o seguinte… é só invertê.
Zé e Januário trocam de lugar.
Dona Ermelinda
- Não! É pra invertê as garrafa.
Os dois ameaçam virar as garrafas, Dona Ermelinda grita. A cena entra em câmera lenta,
ela pega a garrafa de cada um e troca.
Dona Ermelinda
- Pronto, agora é só cada um dar um gole.
Zé Tobó
- Alô... alô… aê, vortô.
Januário
- Ê, vortô. Bregado, dona Ermelinda.
Dona Ermelinda - (pegando as garrafas para guardar) Essa aqui é pra timbre de
voz. Sabe pra quem eu fiz esse preparado? Nada mais, nada menos que
Chitãozinho e Xororó. O Arnaldo Antunes também tomô uns gole. Mai a sorte é
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que cêis tomaram dessa… porque se fosse dessa aqui ó (aponta outra garrafa) Xiii...
Zé Tobó
- (
indo pegar
) E o que essa faz, Dona Ermelinda?
Dona Ermelinda
- Para de mexê nas coisa que não deve... Qué mexé algo, mexe
aqui o caldeirão.
Januário
- Ô, Dona Ermelinda! Essa deve sê porção das braba, né?
Dona Ermelinda
- Isso não é poção não. É um vestido desbotado que eu
tingindo prá í na festa da padroeira.
Januário e Zé Tobó
- (
sem graça
) Ah...
Dona Ermelinda
- Mai me diga uma coisa, que cêis vieram procurá aqui?
Tobó
- Ah, Dona Ermelinda, nói viémo aqui porque o meu amigo cum um
pobreminha de coração;
Dona Ermelinda
- (
surpresa
) Ai, tão novo assim? Melhor procurar o doutor...
Januário
- Não, não é essa coisa de infarto do coração, não. É o que farta no
coração.
Dona Ermelinda
- E como eu posso ajudá?
Januário
- É que o me contô de um ocorrido c’a dele, dona Domingas.
Ocasião que fartô amor no chiqueiro e a senhora apricô uma porção do amor
que fez com que os porquinho vingasse novamente. Nóis queria sabê se essa
mêma porção serve numa probremática de amor humano?
Dona Ermelinda
- Deu certo aquela porcaria, né Zé?
Zé Tobó
- Deu bão dimais!
Januário
- Pois então, Dona Ermelinda! Eu sô apaixonado pela Sá Marica…
Dona Ermelinda
- A filha do Tuquinho?
Januário e Zé
- (
estranhando
) Tuquinho?
Dona Ermelinda
- Quer dizer, o seu Tonico.
Januário
- Exatamente! Desde piquitico que esse amor cresce e agora quero
um comprometimento mai sério. Quero pedí ela em casamento, mai me farta as
corâge, me farta as segurança. Aí nói imaginâmo que essa porção pode facilitá as
abertura dos caminho.
Dona Ermelinda
- Escuita aqui, Januário! Eu vivida dos amor e das dor nesse
mundo. De tudo que passei e que vi os outro passarem, essa história de poção
nunca prestô. Mai vale um trago da verdade do que cem dose desses encanto.
Januário
- Mai e se a verdade dela não for a mêma verdade que a minha?
Zé Tobó -
Eu cansei de dizê pra ele, Dona Ermelinda, que muito provavelmente as
verdade são compatível. Mai ele num me acredita.
Dona Ermelinda
- Ô fio, eu tô vendo que o seu amor é verdadeiro de verdade. E o
dela também deve sê, segundo o Zé Bocó aqui. Então eu vou ajudar.
Zé e Januário comemoram.
Dona Ermelinda
- (
tirando a garrafinha que carrega no peito
) aqui, ó! É o que
sobrou do preparo que fiz pra Dona Domingas. Tá há tanto tempo guardado, deve
tá muito mai potente. Ocê tem que tomá muito cuidado, Januário. Ocê vai dá um
jeito da Marica tomá um gole e imediatamente olhar bem no fundo dos seus
zóio… porque se ela olhar no fundo dos olhos de ôtro (
suspense
) é pelo ôtro que
ela vai se apaixoná.
Januário
- Pelo amor de Deus, dona Ermelinda, dêxa comigo.
Zé Tobó
- (
impressionado
) Ô, Dona Ermelinda! A senhora podia dá aquela benzida
boa que a senhora dá, que é pra limpá as energia negativa do corpo?
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Dona Ermelinda
- Vâmo lá. (
vira de costas
) Bocó, fio da graça, com a força
do mio e do sabugo, sua mágoa e sua dor eu enxugo, de modo que a alegria espaça,
todo o mau oiado se amordaça e suas força vorta a correr como um rio, tanto no
dia quente como frio. Deus encante quem te encantou, se dentro deste corpo esse
mal entrou, assim como o sol nasce na terra e se põe no mar, ou vice e versa, que
esse mal prum lado o pro outro também vá se retirá.
Zé Tobó
- Obrigado, Dona Ermelinda! Já me sinto bem melhor.
Dona Ermelinda
- De nada, fio! O cêis dois vão com Deus. E juízo!
Januário
- Pode deixar, o juízo é o chão onde eu piso... quarqué coisa eu aviso.
Os dois saem.
Dona Ermelinda
- Ai, esses hômi! Cheios de vontade, o que farta mêmo é corâge.
Dona Ermelinda sai. Escurece. Mississipi canta.
Mai vale um trago da verdade
Mai quem é que sabe
Traduzir o coração
Na festa da padroeira
Dois bocó tão de bobeira
Prá causá uma confusão
Um caipira apaixonado
Um jeca acovardado
Que só quer se declará
Outro loroteiro
Que se deixa
O dia inteiro tem história pra conta
Segundo Ato
Cena I Po®ção no quentão
Telão IX Fachada da casa de Sá Marica
Entram Januário e Zé Tobó.
Januário
- Chegâmo, Zé!
Zé Tobó
- Chegâmo?
Januário
- Chegâmo! Óia a casa da Sá Marica!
Zé Tobó
- Que bela e singela residência... Ai, mai eu tô com sede...
Januário
- Deu sede de novo mêmo. E se nóis chamasse a Sá Marica, pedisse pra
ela um refresco pra matá nossa sede, eu dava um jeito dela tomá a porção e
olhá diretamente nos meu zóio.
Tobó
- Januário, que ideia genial! Vamo matá “dois coêio com uma ca’xa d’água
só”! Nóis vai matá nossa sede e o cê, a sua farta de corâge.
Januário
- Então vâmo!
Zé Tobó
- (
surpreso
) Vâmo?
Januário
- Vâmo!
Zé Tobó
- Então, vâmo!
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Januário
- (
chamando baixinho
): Ô, Sá Marica!!!
Zé Tobó
- Corâge, hómi!
Januário
- (
chamando de verdade
): Ô, Sá Marica!!!
Sá Marica
- (
fora de cena
) Bina, tão me chamano fora, cê pode ver quem é pra
mim?
Sá Bina
- (
fora de cena
) É claro, prima. (En
tra e dá de cara com Zé
) Zé Tobó!
Zé Tobó
- Sá Bina!
Os dois ficam meio abobalhados.
Sá Bina
- Há quanto tempo não nos vemos, Zé... Como você tá mudado...
Tobó
- Você também, Bina... quem diria que ocê viraria uma moça tão linda
assim....
Bina fica um pouco sem graça.
Zé Tobó
- Quer dizer... ocê sempre foi linda...
Sá Bina
- Ai, brigada! São seus olhos...
Januário
- Ô, Bina, pelo jeito a Marica não em casa, ôtra hora eu passo
pra conversá.
Sá Bina
- Tá sim, Januário. Vou lá chamar.
Sá Bina sai.
Januário
- Ô, Zé! Cê não veio aqui pra me ajuda c’a Sá Marica?
Tobó
- Eu vim, Januário! Mai eu tive uma ideia. Lembra que no comecinho
da peça cê ficô me deveno um favorzinho?
Januário
- Lembro sim!
Zé Tobó
- Pois eu quero que cê pague agora. Eu quero que cê me dê um golinho
daquela da porção do amor, que é pra eu dá pra Sá Bina!
Januário
- Cê não escuitô a Dona Ermelinda? O seu amor é verdadêro?
Zé Tobó
- Claro que é verdadêro, Januário. É verdadêro, mai tamém é passagêro.
Qui nem chuva passagêra, passa ligeiro e nem por isso dêxa de sê verdadêra.
Januário
- Ahhh, Zé! Isso não vai prestá...
Entram Sá Bina e Sá Marica.
Sá Marica
- Januário, a Bina disse que cê mandô me chamá?
Januário
- Eu chamei... sabe como é, tâmo trabaiando aqui pra festa...
Zé Tobó
- Trabaiando duro, duro mêmo.
Januário
- Aí deu sede...
Zé Tobó
- Uma sede de secar a guela.
Januário
- E a gente pensou que ocê, nossa tão estimada amiga, não serviria um
refresco pra mata a sede de dois caboco acalorado e cansado?
Sá Marica
- Nossa, precisa de toda essa solenidade pra pedí um refresco?
Sá Bina
- Prima, e se a gente oferecer o quentão que a gente preparou?
Sá Marica
- Boa ideia, Bina! Vâmo buscá.
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As duas saem.
Zé Tobó
- Januário! Poção no quentão! Vai dá bão, em?
Januário
- Vâmo refrescá nas efervecência do coração.
Elas voltam com uma caneca cada. Vão oferecer cada uma “ao seu par”.
Sá Bina
- Espero que vocês gostem.
Januário e Zé
- Saúde!
Eles bebem.
Sá Marica
- E aí, o que acharam?
Zé Tobó
- Tá meio fraco, né?
Januário
- (
tentando consertar
): Ele qué dizê que pra sentir o gengibre e não
tanto o arco.
Sá Bina e Sá Marica
- Ahhhhh
Sá Bina
- Conta pra eles, prima, que esse aí é o crentão.
Sá Marica
- A gente esqueceu de avisá que esse é o quentão sem pinga, porque a
Bina não toma mais derivados de cana.
Sá Bina
- (
enfática
) Sou contra a monocultura.
Januário
- (
tendo uma ideia
) Óia que coincidência (
pegando o frasco da poção
)
trago aqui comigo uma iguaria, um maravilhoso destilado de arroz de agricultura
celestial.
Zé Tobó
- Coisa rara, coisa fina, coisa boa. Inclusive, cêis tem qu’exprimentá!
Januário
- (
despejando a poção nos copos
) Deixa eu dá uma calibrada aqui.
Sá Bina e Sá Marica pegam as canecas.
Sá Marica
- Bina, tem que brindá!
Januário
- Não precisa!
Sá Marica
- Dá azar!
Zé Tobó
- Pra quê tanta solenidade?
Sá Bina
- Se não brindar, são sete anos sem beijar!
Elas bebem.
Tobó
- (
espirrando
) ATCHIM! (
Marica olha para e se apaixona
imediatamente
).
Januário
- NÃO! (
Bina olha para Januário e se apaixona imediatamente)
Zé, é
só inverter!
Eles mudam de lugar, mas elas os seguem.
Sá Marica
- Zé Tobó, eu nunca tinha reparado como ocê é garboso.
Sá Bina
- Januário, como ocê é charmoso.
Marica
- Seus olhos são como jaboticaba madura, daquelas bem gostosa de
chupá.
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Sá Bina
- Seus olhos são como a água do mar, dá vontade de mergulhar.
Januário
- Acho que a gente precisa ir, né Zé?
As Duas
- Vai não, meu chuchu...
Zé Tobó
- A gente precisa tomá banho, se prepará pra festa...
As Duas
- Ocê já tá tão cherôso, meu docinho...
Januário
- Mai nóis vai ficá mai choroso.
Os dois fogem. Seu Tonico entra e, sem ser percebido, ouve o fim do diálogo das meninas.
As Duas
- Prima, cê não vai acreditá! Ele é o amor da minha vida.
Sá Bina
- Por ele, eu mudo de mala e cuia aqui pra roça.
Marica
- Nóis se conhece desde pequenininho, mai hoje fui percebê que
fômo feito um pro ôtro.
Sá Bina
- Vamos nos preparar pra festa!
Sá Marica
- Vâmo arrumá o cartaiz que hoje a noite promete!
Seu Tonico sai, as duas também.
CENA II O tempo dos acontecimentos
Telão X Praça com coreto
Entram Januário e Zé Tobó.
Januário
- Ai de mim..
Zé Tobó
- Aiii! O que foi isso que aconteceu?
Januário
- Como o que foi que aconteceu, Zé? O cê espirrô, parece que é alérgico
ao amor…
Zé Tobó
- Ai, deve ser Januário…
Januário
- O cupido envesgô os zóio, errou tudo as mira... ô desgraça... como diz
aquele ditado “O que o zóio vê o coração sente” mas o problema é que foi no zóio
errado, né?
Tobó
- Mai nem no meu pior pesadelo eu conseguiria imaginar uma coisa dessa!
Se bem que eu tive um pesadelo uma vez com cabra, era um rebanho de cabra
que virou um emaranhado de cobra, depois tornô a virá um bando de cabra e
depois, sabe o que aconteceu?
Januário
- Ah, Zé! Não quero mai sabe das suas história. Eu nem quero imaginá se
o Seu Tonico fica sabendo disso tudo. (
entra Seu Tonico
) O ômi é apoplético.
Zé Tobó
- (
tentando disfarçar
) Magina, o Seu Tonico é um ômi atlético.
Januário
- Ah, Zé! Ele vai fica furioso.
Zé Tobó
- Qué isso, Januário! Seu Tonico é um ômi muito bondoso.
Januário
- Ah! Mai se ele descobri é capaz dele me estrangulá!
Zé Tobó
- Isso eu não sei... é meió ele memo falá!
Seu Tonico
- Januário... e Zé Tobó! Descobrir o quê? Se eu já sei de tudo?
Januário e Zé Tobó
- Tudo?
Seu Tonico
- Tudo! O cêis tão vindo de onde?
Januário
- Nóis tava coiendo as frô de São João...
Seu Tonico
- Sei bem as frô que cêis tavam coiendo. Cêis tão vindo é da minha
casa que eu sei muito bem.
Tobó
- É memo, Seu Tonico! Nói demo uma passadinha por lá… mai foi tão
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passadinha que não dá nem pá contá como passada…
Seu Tonico
- Passadinha, é? O passa fora daqui, Zé! Que eu preciso um à
parte com o Januário.
Zé Tobó
- De jeito nenhum, Seu Tonico! Não sei se o cê tá sabendo, mai eu e meu
amigo Januário aqui, não se separa nessa peça.
Seu Tonico
- Ah, mai separa sim e não vai tê quem impeça.
Tobó
- Ô ômi grosso. bão!! Pedindo com carinho assim, não vejo problema
nenhum. (
À parte com Januário
) Tô aqui atrás da moita.
Seu Tonico
- Escuta aqui, Januário! Que o assunto é muito sério... (
Januário se
assusta
) Eu tenho muita consideração por você...
Januário
- Uia! É mêmo?
Seu Tonico
- Estimo de coração o carinho que o cê tem pela minha fia.
Januário
- (
emocionado
) É mêmo, Seu Tonico?
Seu Tonico
- E se um dia minha fia quisé subi no altar... é c’o que eu vejo isso
acontecendo.
Januário
- (
em frangalhos
) Não me diga uma coisa dessa, Seu Tonico.
(abraçando
Seu Tonico
) Porque o senhor não disse antes?
Seu Tonico
- Se acarme rapaz! As coisas tem o tempo de acontecê no tempo,
tecendo as coisas, coisas com coisas.
Januário
- Mai que coisa esse tempo...
Seu Tonico
- E por falar em tempo... eu tenho uma coisa pra te dar (
tirando o
relógio do bolso
).
Januário
- Uma coisa pra mim, Seu Tonico?
Seu Tonico
- Esse relógio era da Izilda, mãe de Marica... ela ganhou da mãe dela.
Antes dela partir ela me entregou dizendo que era pra eu cuidar do tempo dos
acontecimento na vida de nossa fia... E eu quero te esse relógio agora, Januário!
Januário
- Mai isso é muito precioso, Seu Tonico! Eu não posso aceitar!
Seu Tonico
- Pode sim, Januário! E eu te peço o mêmo. Que o cê cuide do tempo
dos acontecimento na vida da Sá Marica. (
entregando o relógio
)
Januário
- Mai, Seu Tonico! O senhor não sabe o quão imensamente honrado eu
fico, mas o senhor precisa saber do acontecimento desastroso que ocorreu agora
a pouco... (
toca o sino da Igreja dando 18h
).
Zé Tobó
- (
saindo da moita
) Deu 18h, Januário! Hora da Ave Maria... temo que nos
aprontá pá festa…
Seu Tonico
- É memo! Também tenho que me aprontá. Mai que ocorrido foi esse,
Januário?
Januário
- É o seguinte…
Tobó
- (
interrompendo
) Foi nada não, Seu Tonico! Januário que é muito
dramático...
Seu Tonico
- Sei! Óia lá o cêis dois, hein? E, Januário! Não esqueça... Cuidado com
o tempo dos acontecimento...
Januário
- Deixa comigo, Seu Tonico…
Seu Tonico sai.
Januário
- Óia o que eu ganhei do Seu Tonico, Zé?
Zé Tobó
- Um relógio véio?
Januário
- Não, Zé! Esse é o tempo dos acontecimento na vida da Sá Marica…
Zé Tobó
- Nossa! Jamais desconfiaria… parece um relógio véio...
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Januário
- Ah… porque não deixou eu conta pra ele, Zé? tudo revirado
mêmo…
Zé Tobó
- Mai o cê é besta! Pelo que entendi nas escuta ali por trás das moita, ele
não sabe do desastre do zóio cruzado... ainda dá jeito de resorve.
Januário
- Mai que jeito?
Tobó
- Nessa vida tem jeito pra tudo, Januário! Sabe que uma vez deu mal jeito
no meu joêio, que eu cheguei a pensá que não tinha mai joêio, qué dizê... jeito?
Januário
- Ih, lá vem!
Tobó
- Quando eu andava de frente, não doía, mai quando ia de esgueia... mai
doía dum jeito… Sabe quem eu procurei pra dar jeito no meu joêio?
Januário
- O veterinário?
Zé Tobó
- Dona Ermelinda! Ela apricô um unguento... e aí deu jeito, acredita?
Januário
- Mai eu num guento mai suas história, o que tem o joêio a ver cos amor
cruzado, Zé?
Tobó
- Quer dizer que pra todo mal existe um bem, pra todo bem existe um
mal, pra todo veneno, existe um antídoto. Com certeza a Dona Ermelinda deve de
ter uma solução pra essa porção.
Januário
- É mêmo, e de certo nóis encontra ela na festa…
Zé Tobó
- É claro!
Januário
- Se o fala pra mim “Vamo muntá nessa vorta e viajá sem porca, eu
vô”.
Zé Tobó
- Vâmo muntá nessa vorta e viajá sem porca, Januário!
Januário
- Vâmo!
Os dois saem.
Terceiro Ato
Cena I Festa da padroeira
Telão XI praça da Matriz, agora enfeitada
Música. Entra Dona Ermelinda toda arrumada para a festa, com seu vestido novo,
atravessa o palco dançando. Em seguida entram Tobó e Januário também
atravessando o palco, procurando Dona Ermelinda enquanto disfarçam que estão
dançando. Entram Marica, Bina e Seu Tonico dançando, em seguida retornam
Tobó e Januário dando de cara com Sá Bina e Sá Marica. Entra Dona Ermelinda de frente
com Seu Tonico. Todos congelam e apenas Dona Ermelinda se movimenta e fala.
Dona Ermelinda
-
(declamando
)
Tomamos a decisão acertada
Posso dizer hoje olhando para trás
Como se pudéssemos ter decidido diferente
Como se a decisão não fosse cada um de nós
A nuvem não decide chover
O sol sola
Nada sei de uma árvore
Mas suspeito que duas árvores
Não podem crescer juntas
De mãos dadas
Como eu e você
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Maria Emília Tortorella | Fernando Vasques
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Uma acompanha cada fase da outra
Enquanto se ocupa de si
Tarefa já complexa o suficiente
E ainda olhar surpresa
Para tudo que não é ela mesma
Seria talvez como o rio que vai em frente convicto de estar no caminho certo
Mas um rio não segue de mãos dadas com outro rio
Como eu e você
Chego a chorar pela solidão do rio, pela solidão da árvore
16
Todos descongelam.
Sá Marica
- (
apaixonada)
Zé Tobó!
Sá Bina
- (
apaixonada
) Januário!
AS DUAS
- Meu amor!
Januário e Zé Tobó fogem cada um pra um lado. As duas os seguem.
Seu Tonico
- (
intrigado
) A Sá Marica apaixonada pelo Zé Tobó?
Dona Ermelinda
- Ai que desgraça!
Seu Tonico
- O quê?
Dona Ermelinda
- A poção!
Seu Tonico
- Do que você tá falando?
Dona Ermelinda
- É só invertê. Vamo atrás deles!
Seu Tonico
- Mai que poção é essa?
Dona Ermelinda
- Depois eu explico.
Seu Tonico
- Tem dedo seu nisso?
Dona Ermelinda
- Depois eu te explico.
Os dois saem, cada um por um lado. Em seguida, inicia-se uma coreografia de
perseguição/fuga entre as personagens. Ao final, Januário e Tobó se trombam e
desmaiam.
Cena II Aparição de Izilda
Telão XII - Filme na Capela de São Cristovão, no topo da Cuesta
Januário
- Mai que bela e singela capela. Onde será que eu tô?
Zé Tobó
- (
aparecendo do lado de Januário
): Chegâmo, Januário!
Januário
- (
assustado
) Zé! Que cê tá fazendo aqui? Chegâmo onde?
Zé Tobó
- Não sei, mai chegamo junto! Falei que nóis não se separa nessa peça?
Quer dizer… nesse filme… aliás… nesse sonho… aliás nesse filme, dentro do
sonho, dentro da peça.
Januário - Ah, Zé! Vâmo entrá na capela. (
se aproximam da capela
) Tá fechada!
(
Zé Tobó espirra e o dia vira noite
).
Januário
- Escureceu… que luz é aquela lá dentro, Zé?
Zé Tobó
- Januário! Acho que é o portal entre a vida e a morte. Melhor nóis vortá
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Trechos de um poema de Ricardo Silvestrin, do livro Carta aberta ao Demônio, editora Libretos, 2021. Uso autorizado pelo
autor.
O Pe®dido
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pra trás que eu prefiro perdê a vida do que morrê nesse momento...
Januário
- Fica aqui, ô cagão! Não é a morte não! É a Nossa Senhora das Dores de
Cima da Serra. (
entram na capela
) Ô minha Nossa Senhora, ocê que zela e protege
por esta terra e também pelos fio dela, se pode intercedê por mim. Eu queria
pedir a mão da moça que eu amo e acabei confundido as cabeça e os coração de
todo mundo. Me ajuda, minha santinha.
Izilda
- Oi, Januário! Eu sou a Izilda.
Januário
- (
à parte, surpreso
) A mãe da Marica? (
gaguejando
) Do... do... dona
Izilda, é ocê a Santa?
Izilda
- (
rompendo a atmosfera celestial
): Deixe de ser besta, Januário. acha
que a padroeira, ocupada do jeito que é, e bem no dia dela, ia poder aparecer
assim, por qualquer trapalhada desses fio desajuizados?
Januário
- Ô, dona Izilda, não caçoa da minha desgraça, não.
Izilda
- Não tô caçoando, menino. Tô te educando.
Januário
- Mai qué dizê que a senhora tá sabendo de tudo?
Izilda
- Eu acompanho tudo que acontece com minha menina, Januário.
Januário
- (
chorando
) Eu não tive culpa, Dona Izilda. Meu amor pela Marica é
verdadêro...
Izilda
- (
cortando
) Não carece ficar se explicando, meu fio. Do seu amor eu não
duvido. Você e o Zé Tobó fizeram bastante trapalhada, mai a gente sabe que ceis
tem bom coração.
Januário
- Mai de qui adianta? Por causa da mardita porção, é capaz da Sá Marica
não querer ouvir nem mais um tum desse meu pobre coração.
Izilda
- Fica calmo, Januário. Eu posso te ajudar.
Januário
- A senhora me desculpe, Dona Izilda, mai eu sempre ouvir falar que
santo de casa não faz milagres.
Izilda
- Pobre daqueles que não acreditam em seus próprios santos.
Januário
- Não é farta de fé não, é só a força dos ditos populares,.
Izilda
- Não carece ficar se explicando, meu filho. O que ocê precisa fazer agora é
escutar seu coração… Lembra? Não tem nada mai potente que uma canção bem
cantada no pé do ouvido…
Zé Tobó
- Peraí… (
espantado
) eu disse isso...
Izilda
- Mai infalível que um par de verso bem dito na hora certa...
Zé Tobó
- Eu falei...
Izilda
- Mai poderoso que um zóio no zóio faiscante...
Zé Tobó
- Eita! Viu só, Januário! Entendeu?
Januário
- Mai foi o cê que falou da porção.
Izilda
- Mai vale um trago da verdade que cem dose desses encanto…
Januário
- É memo… isso a Dona Ermelinda me disse.
Izilda
- Dona Ermelinda, grande mulher. Tenho muito respeito por ela. Manda um
recado pra ela e pro Tonico, diz que todo rio deságua no mar...
Januário
- Mando sim, Dona Izilda, deixa comigo...
Izilda
- Bão! Eu não posso ficar aqui a eternidade toda. (
a imagem dela vai sumindo
)
Lembre-se, Januário! Você precisa confiar na verdade do seu coração.
Januário
- Zé! Mai como nói vamo embora daqui?
Zé Tobó
- Ah, Januário!
Januário e Zé Tobó
- Vamos muntá nessa porca e viajá de vorta.
O Pe®dido
Maria Emília Tortorella | Fernando Vasques
Florianópolis, v.1, n.46, p.1-37, abr. 2023
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Cena III Um trago da verdade
Retorna telão XI (
praça da Matriz enfeitada
)
Januário e Zé Tobó acordam atordoados.
Tobó
- Januário, eu tive um pesadelo. Sonhei com um rebanho de cobra, que
virou um emaranhado de cabra... e no final cê precisa ver o que aconteceu…
Januário
- E eu que não sei se eu era um véio ancião sonhando que era uma
borboleta ou se era uma borboleta sonhando que era um véio ancião...
Zé Tobó
-...e depois apareceu uma Santa...
Januário
- (
eufórico
) É isso, Zé! Lembrei! Eu preciso acreditar na verdade do meu
coração…
Zé Tobó
- Do que cê tá falando, Januário?
Januário
- O cê sabe, Zé! Foi o cê que disse… não tem nada mai potente que...
Januário e Zé Tobó
- uma canção bem cantada no pé do ouvido…
Entram Sá Marica e Sá Bina, avançando em direção a eles.
Sá Marica e Sá Bina
- Achô!!!
Entram Dona Ermelinda e Seu Tonico dançando.
Januário
- Chega! (
para Mississipi
) Ô cantadô, empresta a viola, por favor?
Januário toca e canta:
Depois de feito o estrago
Trago a verdade no zóio
As frô que tão seca eu móio
Pra mó de nóis dois brotá
Capinando e adubando o tempo
Dos seus acontecimento
Se um dia cê for embora
Sei que noutro vai vortá
A raiz dos meus desejo
a razão do meu cultivo
tudo que me mantém vivo
a te guardá e esperá
ganha força o pensamento
bem aqui nesse momento
pra quebrá esse encanto torto
e nóis dois se empareá
Januário
- Sá Marica, eu te amo!
Sá Marica
- Januário! Casa comigo?
Januário
- Ahans!
Sá Bina quer correr até Januário mas Zé Tobó a puxa para si.
O Pe®dido
Maria Emília Tortorella | Fernando Vasques
Florianópolis, v.1, n.46, p.1-37, abr. 2023
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Zé Tobó
- Já sei! Ô Januário, sorta o ponteado. (
Januário toca e Zé recita
) Sá Bina,
linda menina, quando te vejo meu zóio bria que nem lamparina. Meu amor por ti é
sorrateiro de tão verdadeiro. Pode durá uma semana ou até sete dia inteiro
Bina
- Tobó, meu bem. Até semana que vem, é o que me convém. Sete é
meu número da sorte. Nosso amor é passagêro, mas é forte
Dona Ermelinda
- Ah, essa juventude, basta um empurrãozinho pra tomá atitude.
Seu Tonico
- Isso tudo tem a ver com a sua poção?
Dona Ermelinda
- Não, isso tudo tem a ver com as verdade do coração…tantas
vezes caí em tentação, pensando em te uma poção do amor… mai, de quê
adiantaria? Dois rios não andam de mãos dadas…
Seu Tonico
- Ô, Lili….
Dona Ermelinda
- Como é, seu Tonico?
Seu Tonico
- Ô, Lili….a verdade é que todo rio deságua no mar.
Dona Ermelinda
- Ai, Tuquinho...
Seu Tonico e Dona Ermelinda entrelaçam as mãos. Mississipi toca uma música animada
e os casais dançam.
FIM
Recebido em: 29/01/2023
Aprovado em: 27/03/2023
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br