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As particularidades do circo de rua:
uma experiência
Lua Barreto
Para citar este artigo:
BARRETO, Lua. As particularidades do circo de rua: uma
experiência.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 1, n. 46, abr. 2023.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101462023e0301
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As particularidades do circo de rua: uma experiência
Lua Barreto
Florianópolis, v.1, n.46, p.1-23, abr. 2023
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As particularidades do circo de rua
1
: uma experiência
2
Lua Barreto
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Resumo
A rua apresenta-se ao artista circense como uma possibilidade de atuação
democrática. Entretanto, ela requer conhecimentos específicos que nem
sempre são oferecidos pelos espaços formativos. Apresento, aqui, um relato
de experiência de pesquisa realizada no
Summer Seminar Writing
(about/on/with/at/the) Contemporary Circus
, na Universidade de Concordia,
em Montreal (Canadá). A experiência consistiu em submeter uma artista de
circo com bom domínio de sua modalidade, mas sem experiência de circo de
rua, a três incursões em um espaço público. Após cada incursão, a artista
teve a colaboração de uma artista de rua experiente para readequar sua
apresentação. Sem a pretensão de oferecer um manual de instruções ou
determinar formas de atuação, busco refletir sobre a articulação da teoria
com a prática, debatendo, ainda, alguns aspectos da práxis do circo de rua.
Palavras-chave
: Circo de rua. Formação. Circo.
The particularities of the street circus: an experience
Abstract
Report of research experience carried out at the Summer Seminar Writing
(about/on/with/at/the) Contemporary Circus, at Concordia University,
Montreal-CA. The experience consisted of submitting a circus performer with
good command of her modality, but without street circus experience, to three
forays into a public space. After each foray, the artist had the collaboration
of an experienced street artist to readjust her presentation. Without intending
to offer an instruction manual or determine ways of acting, we seek to
develop reflections that can articulate theory with practice, bringing some
articulations of the praxis of the street circus.
Keywords
: Street circus. Formation. Circus.
1
Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Dheyne de Souza Santos, doutoranda em
Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Letras e Linguística pela Universidade
Federal de Goiás (UFG).
2
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior - Brasil (CAPES) código de financiamento 001.
3
Pós-graduada em Docência Universitária pela Universidade Católica de Goiás. Doutoranda em Educação
Física pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Mestre em Performances Culturais pela
Universidade Federal de Goiás (UFGO). Graduação em interpretação teatral pela Universidade Estácio de Sá.
barretolua1@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/9310357985990510 https://orcid.org/0000-0003-3314-9138
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Las particularidades del circo callejero: una experiencia
Resumen
Informe de experiencia de investigación realizada en el Summer Seminar
Writing (about/on/with/at/the) Contemporary Circus, en la Universidad de
Concordia, Montreal-CA. La experiencia consistió en someter a una artista
circense con buen dominio de su modalidad, pero sin experiencia en circo
callejero, a tres incursiones en un espacio público. Después de cada incursión,
la artista contó con la colaboración de un experimentado artista callejero para
reajustar su presentación. Sin pretender ofrecer un manual de instrucciones
o determinar formas de actuar, buscamos desarrollar reflexiones que puedan
articular la teoría con la práctica, trayendo algunas articulaciones de la praxis
del circo callejero.
Palabras clave
: Circo callejero. Formación. Circo.
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A rua, em teoria, está sempre aberta e disponível, o que faz dela um ótimo
espaço para o aprendizado através da prática, sendo considerada, muitas vezes,
parte da pedagogia no aprendizado da palhaçaria (Baffi, 2009; Puccetti, 2017). Não
obstante, se o artista não possui nenhum contato com espaços públicos ou algum
conhecimento prévio, pode ser uma experiência desanimadora: “Nas primeiras
vezes o entrar no sinal foi frustrante porque não consegui estabelecer um contato
com o público” (Silva, 2017, p. 36). Compreendemos que o “jogo de atravessamento
espetáculo/cidade também requer conhecimento e prática” (Turle, 2016, p. 105).
Ou seja, para lidar com os desafios que a rua apresenta no momento da
apresentação de uma performance, é necessário o domínio desse conhecimento
específico. E esse domínio requer estudo e experiência.
As entrevistas do trabalho
Saltimbancos Contemporâneos: seu aprendizado,
suas escolhas e expectativas
(Barreto, 2018) estão repletas de relatos a respeito
do estresse causado pela “primeira entrada” no sinal. Artistas que falharam
inexplicavelmente em movimentos que faziam sem pestanejar; outros que
voltaram para casa arrasados devido às reações agressivas de transeuntes; artistas
que, devido à frustração das primeiras experiências, desistiram de atuar na rua
(Barreto, 2018). Ou seja: sim, a rua é um espaço relativamente democrático e está
de portas abertas, mas o acesso a conhecimentos que pudessem preparar esses
artistas, em vez de obrigá-los a essa estreia a fórceps, poderia tornar a experiência
menos traumática e aumentar a possibilidade de sucesso.
A proposta
Como espectadora do Festival Montreal
Completemant Cirque
2018
4
, em
Montreal, no Canadá, pude observar que, nas apresentações feitas na rua, muitos
artistas fazem a transposição de suas performances do espaço fechado para a rua
sem se atentarem a essas diferenças, sem estarem preparados para o contato
com um público flutuante. Ainda que o espaço das apresentações tenha sido
delimitado e sinalizado pela organização do festival, isso não garantiu aos artistas
4
Sobre o festival, rf: https://montrealcompletementcirque.com/en/.
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a atenção do público. Na rua, o público pode ir e vir como quiser e, para o artista
preparado para atuar na rua, manter seu público atento até o momento de passar
o chapéu é a garantia de seu sustento.
Figura 1 Foto de divulgação do festival Montréal
Complètement Cirque
2018
5
Com o objetivo de investigar as relações do artista com o espaço público,
realizamos uma experiência ao longo do
Summer Seminar Writing
(about/on/with/at/the) Contemporary Circus
6
, buscando responder à questão:
5
Fonte: https://montrealcompletementcirque.com/en/press-room/.
6
Nos anos de 2018 e 2019, participei da disciplina de Summer Seminar ministrada pelo Professor Doutor
Patrick Leroux, na Concordia University, Faculty of Arts and Science, que gerou a experimentação citada. A
experiência fez parte do intercâmbio que o Grupo de Pesquisa em Circo (CIRCUS) da FEF-UNICAMP mantém
com o
Centre de recherche, d'innovation et de transfert en arts du cirque
(CRITAC) da Escola Nacional de
Circo de Montreal, respaldado por um convênio oficial entre as entidades, e que viabiliza diferentes formas
de intercâmbio, como o que possibilitou essa pesquisa ora apresentada. Esse relato foi extraído da tese de
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Como artistas de circo lidam com a singularidade do espaço público como lugar
de atuação?
A proposta foi desafiar uma artista de circo com experiência em outros
espaços, mas que nunca houvesse se apresentado na rua, a realizar um processo
em que levasse seu número a um espaço público, sob o olhar de uma experiente
artista de rua, Dawn Dreams
7
. A artista realizaria uma primeira apresentação, com
o mínimo de interferência possível, e posteriormente, com a colaboração da Dawn
Dreams, avaliaríamos o que havia e o que não havia funcionado, na apresentação.
A malabarista Valerie Arthur
8
se disponibilizou, afirmando que ficaria feliz em ser
aquela que falharia, na experiência. Segundo a artista, ela estava interessada em
pesquisar o fracasso, o que fez com que a proposta também lhe fosse útil. A
possibilidade de se arriscar a fazer algo que não dominava aumentava a
probabilidade de “fracassar”. É preciso coragem para correr o risco de fracassar
diante de um público que não está pronto para recebê-lo. Essa é a primeira
barreira que um artista de rua enfrenta. E Valerie se predispôs de uma forma linda
e corajosa.
Após uma conversa inicial, concordamos com a proposta de fazer três
apresentações, intercaladas por pelo menos um dia para que tivéssemos tempo
de trabalhar nas observações de cada apresentação. Também concordamos em
fazer um podcast imediatamente após cada intervenção, para registrar as
primeiras impressões de cada uma de nós e o desenvolvimento do experimento.
Uma das coisas que contribuiu para o sucesso do experimento foi o fato de os
interesses pessoais estarem alinhados com o interesse geral da pesquisa. Para
Dawn Dreams, sempre pareceu um prazer compartilhar sua experiência, falar
sobre as especificidades da atuação na rua, sobre a relação próxima com o público.
Sua calorosa receptividade foi essencial tanto para viabilizar o desenvolvimento
da ideia inicial, tão arraigada em minha mente, quanto para dar suporte e
doutorado da autora, defendida em 2022 na UNICAMP, recebendo diferentes contribuições do grupo CIRCUS
e do orientador, Prof. Dr. Marco A. C. Bortoleto.
7
Dawn Dreams se apresenta como uma artista de circo contemporâneo especializada em malabares de
contato, pernas de pau e palhaçaria. Mais informações em @Dawn_dreams e https://www.Dawn
Dreamsdreams.ca/home/?fbclid=IwAR0NOgi8Wm2BIf7XdF9_ba7iJTL8MKTzWPHN9bg8iKyPE2oNtdPjXvsCda
0.
8
Valerie Arthur é malabarista e acrobata circense. Para conhecer melhor seu trabalho, @valerie.arthur.967.
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segurança a Valerie.
Antes da primeira intervenção, conversamos longamente sobre o fracasso.
Discutimos como o medo do fracasso pode sufocar a criatividade, e como o artista
se prepara para isso, e também como a pressão para acertar sempre pode fazer
um artista se repetir, criar um lugar de conforto e parar de ousar. Para Dawn
Dreams, o fracasso faz parte do desenvolvimento do artista de rua. Ela parte da
afirmação de que, para um artista de rua, as primeiras cem apresentações não
contam. Uma observação interessante trazida por ela foi o alívio que representou
para o seu desenvolvimento a primeira vez que ouviu essa frase. Como as
primeiras cem apresentações não contam, elas podem falhar. Sendo assim,
identificamos como um aprendizado necessário para o artista de rua: aceitar o
risco do fracasso como parte do processo de aprendizado e a autoaceitação
desprovida de pressão como elementos libertadores para a criação.
Escolha do local
Decidimos fazer nossa primeira incursão e nos encontramos para escolher
onde seria feito o experimento. Como critério para a escolha do local, Dawn
Dreams trouxe à tona uma expressão muito interessante que, segundo ela, é usada
por artistas de rua do Canadá para avaliar seu público:
pés rápidos e pés lentos
9
.
Ao escolher seu local de atuação, o artista precisa considerar a disposição dos
transeuntes de se engajar em uma apresentação. A velocidade do caminhar dá ao
artista de rua as primeiras pistas da viabilidade daquele espaço como espaço
cênico. Se for um lugar onde a maioria dos transeuntes está correndo, talvez um
lugar por onde eles passem a caminho do trabalho, provavelmente não seria uma
boa escolha.
Um local repleto de transeuntes não significa, necessariamente, que eles
estejam dispostos a parar para assistir a uma apresentação.
Pés rápidos
serão
mais difíceis de serem convertidos em público. Um espaço onde as pessoas
realizem caminhadas mais tranquilas, provavelmente será um local mais propício.
9
Slow feet, fast feet.
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Pés lentos
provavelmente serão cooptados, pois não estão com tanta pressa. Não
basta, portanto, que um local tenha uma grande concentração de pessoas para
ser propício a uma performance de rua. Em uma avaliação apressada, uma calçada
com grande número de transeuntes pode parecer um bom espaço, mas, ao
prestar mais atenção na diferença entre
pés lentos
e
pés rápidos
, percebe-se se
essas pessoas estariam ou não dispostas a parar para assistir a uma obra artística.
A princípio, sugerimos escolher entre a calçada do 4th Space
10
e o pavilhão do
prédio EV
11
, onde foram feitas apresentações na edição anterior do curso.
Consideramos um bom local, pois é um espaço intermediário entre o público e o
privado. Avaliando os pés lentos e pés rápidos, entretanto, decidimos que não seria
uma boa escolha, por ter grande predominância de
pés rápidos
. Dawn Dreams
sugeriu alguns lugares onde os artistas de rua tradicionalmente se apresentam,
mas eles eram distantes e não teríamos tempo de acessá-los tão rapidamente
quanto precisávamos. Pensamos em procurar um espaço público que não fosse
muito longe, mas Dawn Dreams alertou sobre uma permissão que é necessária
para um artista se apresentar na rua. A rua, que consideramos um espaço público
e democrático, aparentemente não é mais nem tão pública, nem tão democrática.
De acordo com Dawn Dreams, ela teve que pagar caro por sua permissão. Além
disso, a permissão é válida para atuar dentro de um determinado perímetro.
Em um dos nossos podcasts, realizados ao longo do curso, Dawn Dreams
fala sobre a liberdade de atuar na rua. Segundo ela, poder pegar sua bicicleta,
pedalar até um determinado lugar, fazer malabarismos, ganhar algum dinheiro e
voltar para casa, tudo isso a ajudou a melhorar suas habilidades. Quando perguntei
sobre a diferença entre se apresentar no palco e se apresentar na rua, Dawn
Dreams comentou sobre a liberdade de ser quem ela é, de poder oferecer ao
público o que é possível naquele momento, sem pressão, que o público não
criou expectativas anteriores. No palco, ela sente a necessidade de provar que
merece estar ali, o que não acontece quando atua na rua.
10
4th Space é o local onde estava sendo realizado o curso: https://www.concordia.ca/next-gen/4th-space.html.
11
EV é um dos prédios da Concordia University: https://www.concordia.ca/maps/buildings/concordia-
panoramas/ev-lobby.html.
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Figura 2 Gravação de um dos podcasts. Fonte: Acervo pessoal.
Essa liberdade, tão crucial para Dawn Dreams na escolha da rua como seu
local de atuação, não estava disponível para Valerie, a nossa pretendente a artista
de rua. Antes que ela pudesse passar pela aprovação do público, ela teria que
provar que merecia estar lá, não para seu público ou contratante, como Dawn
Dreams se apresentando no palco, mas para a instituição que concederia a sua
permissão. E, nesse caso, o atributo não seria sua qualificação, seu talento, sua
habilidade. O atributo que prova que ela merece estar é o financeiro. Até
pensamos em arriscar, porque provavelmente o momento de sua atuação não
seria suficiente para chamar a atenção da polícia, mas preferimos não nos
atrevermos. Não podemos ignorar o fato de que essa circunstância pesa na
decisão de atuar em um espaço público. Se a pressão para se apresentar em um
teatro é uma barreira, também o é a exigência de uma permissão oficial,
principalmente se o fator determinante é o financeiro.
Após todas essas considerações, escolhemos o hall do prédio EV. Apesar de
ser um edifício privado, o salão apresenta algumas características que o tornariam
um espaço público. Em Montreal, vários espaços têm, ao meu olhar estrangeiro,
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10
essa posição híbrida. Vários prédios são porta de entrada para a cidade
subterrânea e para o metrô, causando um grande movimento de pessoas. Como
porta de entrada para o metrô, o hall do prédio EV tem um bom fluxo de
transeuntes. Por possuir um refeitório, mesas e bancos, também um certo
número de pessoas que ali passam um tempo, seja para fazer uma refeição, seja
para trabalhar no computador ou como um ponto de encontro, o que nos um
potencial público de pés lentos.
Primeira entrada
Em outras circunstâncias, simplesmente iríamos e faríamos a performance.
No entanto, como estávamos realizando a experiência como parte do curso,
preferimos comunicar ao coordenador, Patrick Leroux. A performance que havia
acontecido no mesmo local, no ano anterior, teve que desenvolver alternativas
para dar acesso ao áudio da apresentação
12
, pois o som não era permitido no local.
Fomos, então, informadas de que precisaríamos enviar um e-mail para um
departamento, aguardar avaliação e uma posterior autorização para a atuação.
Diante da burocracia, decidimos arriscar. Se a segurança nos abordasse, veríamos
como resolver. Felizmente ou infelizmente, não tivemos problemas. Digo
infelizmente porque o fato de sequer termos chamado a atenção da segurança
fala muito sobre a performance. Mas esse é um assunto que abordarei mais
adiante. Em relação a essa experiência, ficamos curiosas para saber, caso
tivéssemos escolhido a rua, se teríamos problemas com a polícia. Onde estaríamos
mais livres para agir: na rua, apesar da exigência de licença, ou no prédio EV,
mesmo que não seja um espaço público? Talvez essa seja uma boa questão de
pesquisa para futuras explorações.
Fizemos a primeira apresentação no dia 5 de julho de 2019, por volta das
15h30min. O local estava muito movimentado, com um bom número de pessoas
sentadas e muitos dos transeuntes. Dawn Dreams e eu fizemos filmagens de
pontos diferentes, de uma distância que nos permitiria não sermos notadas.
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Um link para a trilha sonora da apresentação foi fornecido através do sistema de rádio da universidade.
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Avaliando o local, Dawn Dreams sugeriu um espaço onde mais pessoas estivessem
sentadas. Seu olhar havia procurado os
pés lentos
presentes, e esse público
estava pronto, sem pressa, com nada além de seus telefones celulares para
distrair sua atenção. Valerie estava visivelmente apreensiva. Depois que nos
afastamos, ela passou alguns minutos observando o espaço, se preparando para
começar.
Figura 3 Valerie reunindo coragem para entrar em cena. Foto: arquivo pessoal.
A performance foi preparada por Valerie sem nossa interferência. Na hora da
apresentação, não tínhamos ideia do que ela ia fazer. A cena começou com uma
queda aparentemente acidental. Subiu e continuou caindo, agora claramente
proposital. A certa altura, Valerie tirou bolas de malabarismo e começou a jogar,
até rolar para trás e sair.
Ao final da performance, voltamos ao 4th Space e nos sentamos para avaliar
a experiência. A primeira observação de Valerie foi a de que ela, definitivamente,
havia chamado mais atenção quando as pessoas pensaram que sua queda tinha
sido acidental. Uma vez que perceberam que era uma performance, perderam o
interesse. Essa constatação nos leva a um dos princípios da atuação na rua: não
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basta chamar a atenção do público, é preciso fazer algo para manter seu interesse.
O artista de rua não tem, inicialmente, um público. As pessoas não estão para
vê-lo. Em teoria, todos estão envolvidos com suas próprias atividades e
pensamentos. O artista de rua precisa trabalhar para converter esse público
potencial em público de fato. E mais do que isso, precisa mantê-lo. Um ditado
comum entre os artistas de rua é: quanto maior a multidão, maior o chapéu.
Valerie conseguiu chamar a atenção de algumas pessoas, mas não conseguiu
convertê-las em plateia. “Você nem chamou a atenção do segurança. […] Isso
mostra o quanto eles ignoraram você”
13
, disse Dawn Dreams. Na verdade, ela
obteve algumas reações, mas não conseguiu usá-las para estabelecer um
relacionamento com os transeuntes.
Durante nossa conversa, Valerie observou que pôde ter esperado demais para
entrar em cena. Antes de entrar, enquanto se preparava, notou que havia dois
grupos de três pessoas que olhavam ao redor, como se estivessem perdidas, sem
saber o que fazer ou para onde ir, e que possivelmente estariam mais dispostas a
se engajar na performance, mais receptivas. Mas ela ainda não se sentia pronta
para começar, e essas pessoas acabaram seguindo seu caminho. A sensibilidade
para observar as pessoas e encontrar um público para iniciar sua performance,
com pessoas que estão disponíveis e dispostas a assistir a um espetáculo, é um
ponto importante para o artista de rua. Um começo esvaziado torna muito mais
difícil atrair as pessoas para seu público. “Na performance de rua, essa estrutura
de fazer com que algumas pessoas prestem atenção, sabe, cinco pessoas, antes
de começar qualquer coisa […] e o que quer que você faça em seguida, tem que
ser muito bom”
14
, explicou Dawn Dreams.
Dawn Dreams também chamou a atenção para o fato de que tentar fazer
contato visual pode ser uma armadilha: “Essas pessoas são um público cativo e
você estará tornando-as desconfortáveis, porque você acabou de entrar no espaço
delas e fez contato visual”
15
. Ela considera o contato visual importante, mas como
13
“You didn't even get the attention of the security guard. […] That's how awesome they ignored you”. (Tradução
nossa).
14
“In the street performance there’s this structure of getting a couple of people to pay attention, you know,
five people, before you start anything […] and wathever you do next, has to be very good”. (Tradução nossa).
15
“Those people are a captive audience and you're making them uncomfortable because you just walked into
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13
usá-lo é algo que você aprende com o tempo. Antes de fazer contato visual direto,
deve haver um “convite” ao público. O público precisa sentir que está autorizado
a olhar. É preciso lembrar que essas pessoas não estão ali para assistir a alguma
coisa. Para se permitirem assistir, é preciso deixá-las à vontade para isso, para que
não se sintam invadindo o espaço do performer. O contato visual direto, feito antes
desse convite, pode ter o efeito oposto e soar como uma repreensão. A pergunta
“ela quer que eu veja o que ela está fazendo?” não deve cruzar a cabeça do público,
senão os transeuntes se sentirão como invasores.
Esse sentimento foi observado na reação de um menino que estava sentado
bem próximo ao local onde Valerie atuava: ele queria olhar, mas não se sentia à
vontade com isso, estava preso em uma luta interna entre desejo e desconforto.
Ele fingiu olhar para o telefone, mas assistiu à performance com o canto do olho.
Apesar da tentativa da artista de fazer contato visual, ele não foi “convidado” a
olhar. Dawn Dreams sugeriu que usar o nariz vermelho é um código que deixa
claro que o transeunte pode olhar. Apesar de considerar um facilitador, ela deixou
claro que essa escolha deve ser de Valerie, pois não é a única forma de engajar
um público, e cada artista deve encontrar seu próprio caminho.
Durante a conversa, perguntei a Dawn Dreams se o trabalho havia funcionado,
se ela achava que essa performance funcionaria como uma performance de rua.
Ela disse que funcionaria, mas por enquanto Valerie estava “se esforçando
demais”
16
. Valerie havia dito que, em algum momento da apresentação, ela
percebeu que ninguém estava prestando atenção e ficou imediatamente claro que
seria terrível. Foi aí que ela parou de se preocupar, relaxou e pensou: “Está f..dido.
Está tudo bem. Eu vou fazer esse malabarismo, depois vou sair com um rolamento
e está tudo bem”.
17
Para Dawn Dreams, esse clima, quando Valerie aceitou que não
ia dar certo e relaxou, é o clima que ela deveria ter desde o início. “Aconteça o que
acontecer, vai acontecer agora”
18
. As primeiras cem apresentações não contam.
their space and made eye contact”. (Tradução nossa).
16
“trying too hard”. (Tradução nossa).
17
It's fucked. It's fine. I'll do this juggle, then I'll roll away and it's fine”. (Tradução nossa).
18
“Wathever happens it’s going to happen right now”. (Tradução nossa).
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14
Ao final da conversa, sugeri deixar Valerie com algumas tarefas, algo para
trabalhar até a próxima apresentação. Pedimos que ela pensasse se queria ou não
que o público soubesse que é uma representação, pois essa decisão poderia
mudar todo o rumo da performance. Outra questão levantada por Dawn Dreams
era se deveria ou não usar o nariz de palhaço, que seria a escolha dela, mas talvez
não fosse a de Valerie. Também pedi que ela pensasse em manter a atenção de
mais pessoas por mais tempo, e Dawn Dreams observou que o que ela precisava
era pensar “como você consegue que uma pessoa tenha permissão para assistir
você? Você só precisa de um que faça você não ficar mais sozinha”
19
. Por fim, pedi
a ela que escolhesse um presente, algo precioso e incrível para oferecer ao público,
e que escolhesse uma forma de sair de cena, que virar as costas e sair pode
fazer o público se sentir abandonado. Isso não é necessariamente ruim, mas é
uma escolha que precisa ser feita por ela.
Figura 4 Dawn Dreams encoraja Valerie, antes da primeira entrada. Fonte: Acervo pessoal.
19
How do you get one person to have permission to watch you? You only need one that makes you not alone
anymore”. (Tradução nossa).
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15
Segunda entrada
Fizemos a apresentação novamente no dia 8 do mesmo mês (julho de 2019),
por volta das 16h. Valerie fez algumas mudanças na apresentação: trocou o salto
alto por sapatos mais confortáveis, desistiu das quedas e começou sua
apresentação com bolas de malabares. Essas escolhas aparentemente pequenas
fizeram uma grande diferença no resultado final. Usar sapatos mais confortáveis
trouxe um ar menos social. A escolha dos sapatos de salto foi provavelmente para
sublinhar a veracidade da queda inicial. Quando Valerie desistiu desse componente
realista de sua performance, ela não precisava mais dos saltos. Em vez de usar
um nariz de palhaço, ela optou por iniciar sua cena com as bolas de malabares,
que também cumprem o papel de estabelecer o código de que se trata de uma
performance, para que as pessoas se sintam autorizadas a assistir.
Ela estava muito menos nervosa e precisou de menos tempo de preparação
antes de tomar a decisão de intervir, “o que eu acho que foi em parte porque não
era a primeira vez”
20
, disse Valerie. A outra parte ela atribuiu ao fato de que, após
o feedback da apresentação anterior, ela estruturou a apresentação de forma
diferente, tentando pensar em “pedir uma coisa versus dar uma coisa”
21
. Embora
se sentisse menos carente de atenção, ela acreditava que ainda não havia chegado
ao ponto de ter algo expressivo para compartilhar com o público.
Dessa vez, ela nem tentou qualquer tipo de contato visual, o que significa que
ela foi na direção oposta da apresentação anterior. Ela podia perceber que algumas
pessoas andavam mais devagar quando passavam por ela, mas ela não podia
prestar atenção, porque estava equilibrando uma bola de malabares em seu rosto.
A opção de estabelecer uma performance desde o início funcionou. Algumas
pessoas que estavam sentadas nas proximidades pararam de olhar para o celular
e começaram a assistir, mas ela ainda não conseguiu estabelecer uma conexão
que pudesse prender sua atenção. “Todas as coisas técnicas funcionaram bem,
por exemplo o malabarismo não caiu, mas ainda assim [a performance] falhou
22
”,
20
“witch I think was partly because it wasn't the first time”. (Tradução nossa).
21
“ask for a thing versus given a thing”. (Tradução nossa).
22
“All the technical things worked well, like the juggling didn't drop, but it still fails”. (Tradução nossa).
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16
disse Valerie.
O mais interessante dessa segunda experiência é que Valerie trouxe mais
dúvidas do que da primeira vez. É como se, dessa vez, ela tivesse se tornado mais
presente, mais consciente do que estava acontecendo. Como havíamos pedido
para ela pensar em como terminar, ela se perguntou como fazer, que as pessoas
não estavam olhando claramente, mas sim disfarçadamente, como se não
estivessem olhando. Então, o que fazer, agradecer ao público por não assistir,
assistindo? Sua questão sobre como lidar com as pessoas que estavam assistindo
disfarçadamente era: como se relacionar com elas sem fingir que não sabia que
elas estavam assistindo?
Dawn Dreams fez uma pergunta: por que ela escolheu o silêncio? Valerie
respondeu que não saberia o que dizer, sem pedir atenção. Nossa observação
sobre ela parecer carente na primeira apresentação pode ter causado uma
autocrítica que a fez passar do contato visual direto para o fechamento absoluto
em si mesma. Ela disse que ainda não consegue compreender a linha entre esses
dois extremos. Além disso, a barreira do idioma. Valerie se sente insegura ao
falar inglês para o público de Montreal. Isso nos faz refletir sobre o grande número
de artistas de rua que se aventuram em países estrangeiros, sem saber quase
nada da língua, como eu mesma já havia feito. Pedimos a ela que, em sua próxima
apresentação, considerasse o uso da fala. Não que seja essencial, mas como uma
experiência. Dawn Dreams apontou que, entre um discurso ruim e nenhum
discurso, ela certamente escolheria nenhum discurso, mas, considerando sua
teoria de que as primeiras cem apresentações não contam, vale a pena tentar.
Pedi permissão a Valerie para interferir um pouco em sua performance,
pedindo que ela inserisse uma cena em que deixasse a bola cair várias vezes,
usando o fracasso como forma de construir um relacionamento com o público. O
pensamento veio a mim quando ela disse que sentiu a necessidade de um grande
truque para encerrar a apresentação, algo maior para oferecer. Sim, prometer um
grande truque, com certeza, é uma das formas que os artistas de rua usam para
manter o interesse do público, e cumprir a promessa pode ser sensacional, mas o
que eu queria trabalhar com ela era a ideia de que o fracasso também pode ser
interessante. Mesmo uma tarefa relativamente simples, como equilibrar uma bola
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sobre o rosto, pode ser um mote para estabelecer contato com o público.
Infelizmente, o tempo não foi suficiente para desenvolver essa ideia, mas o destino
interferiu e a colocou nos trilhos. Não foi desenvolvido adequadamente, mas
aconteceu, de qualquer forma. Talvez tenhamos uma proposta para uma possível
continuação desta pesquisa.
Terceira entrada
A última apresentação foi feita no dia seguinte à anterior
23
, então Valerie não
teve muito tempo para trabalhar nas observações que fizemos. Além disso, foi um
dia atípico, com todos trabalhando nas apresentações finais do curso. Tínhamos
marcado a apresentação para as 15h. Contudo, devido ao horário de ensaio da
apresentação final, adiamos para as 15h45, o que significava que teríamos que
correr, caso contrário não haveria tempo para registrar as impressões antes da
reunião final. Essas circunstâncias afetaram o humor de Valerie. O fato de ela ter
precisado aquecer duas vezes, somado ao fato de que estávamos atrasadas e tudo
o mais que envolveu aquela apresentação, a fez entrar em cena irritada e
desconcentrada. Isso refletiu claramente em sua atuação: ela esqueceu a fala que
havia preparado, a bola de malabares não parava de cair e ela passou a cena toda
ocupada em pegar sua bola de malabares no chão. “Uma verdadeira experiência
de artista de rua
24
”, disse Dawn Dreams. Para um artista de rua, as circunstâncias
raramente são ideais. A artista de rua tem que lidar com um público que não
espera que sua rotina seja interrompida por uma performance, lidar com os sons
da rua, o clima e muitas vezes com a expectativa de ser interrompido a qualquer
momento pela chegada da polícia. O ambiente da artista de rua não é um ambiente
controlado, como um teatro. O que Valerie estava vivenciando era uma pequena
parte do que uma artista de rua lida em seu cotidiano.
Apesar disso, ela recebeu mais atenção do que antes, o que nos diz algo sobre
o que as pessoas estão interessadas em ver. Dessa vez, Valerie não estava
23
Dia 09 de julho de 2019.
24
“A true street performer experience”. (Tradução nossa).
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tentando representar uma queda, não estava pensando em como chamar a
atenção das pessoas. Ela estava com raiva, frustrada, e o que as pessoas viam era
alguém realmente tentando manter suas emoções sob controle, para realizar um
trabalho. “O público se conecta com o fracasso. A execução perfeita de um truque
talvez não seja tão envolvente quanto mostrar o erro humano”
25
, foi a conclusão a
que Valerie chegou. Dessa vez, ela ainda recebeu alguns aplausos tímidos, que ela
acredita terem sido encorajadores, solidários. O que isso pode nos mostrar é que
o público se identificou e se sentiu mais à vontade para fazer parte da
apresentação. Para Dawn Dreams, o fato de Valerie ter abandonado a expectativa
de atrair o público, simplesmente tentando fazer seus malabarismos, fez com que
as pessoas se sentissem autorizadas a assistir e até a aplaudir.
Valerie havia preparado uma cena em que, equilibrando a bola no rosto,
tentava conversar com as pessoas, experimentando uma desconexão entre o
contato visual e a fala. Devido às circunstâncias, ela não pôde realizar a cena, mas
isso nos levou a algumas considerações sobre a necessidade da fala. Em vários
momentos da performance, quando percebi que havia pessoas na plateia que
aguardavam um retorno da performer, um convite, uma permissão ou qualquer
reação que significasse o assentimento da performer, senti que, se ela recorresse
à fala, teria sido mais fácil estabelecer uma conexão com o público. Ao longo da
performance, ficou claro que a fala não era essencial. Poderia tornar o
relacionamento mais fácil, mas tudo o que ela precisava fazer era olhar para o
público. Algumas pessoas até tentaram fazer contato, mas não tiveram retorno e
acabaram indo embora. Ou seja, a ação da performer conseguiu estabelecer a
primeira conexão, obteve alguma identificação, mas se fechou sobre si mesma e
ignorou completamente a reação do público, o que fez com que as pessoas
perdessem o interesse. Valerie deu o primeiro passo. E ela tem as próximas 97
apresentações para descobrir como manter seu público interessado.
25
“The audience connects with failure. The perfect execution of a trick is maybe not as engaging as showing
the human error”. (Tradução nossa).
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Figura 5 Momento em que um transeunte praticamente pede por uma interação.
Foto: arquivo pessoal.
Considerações sobre a experiência e suas relações com a
bibliografia
Ao final dessa experimentação, vimos que atuar no espaço público tem suas
próprias demandas e que não basta ter um número tecnicamente bom para ter
sucesso como artista de rua. Obviamente, um experimento de duas semanas, com
apenas três incursões a público, tem suas limitações, mas a imersão fez com que
a intensidade da experiência superasse as expectativas.
Pudemos perceber a importância da escolha do local e também como
observar os detalhes do comportamento dos transeuntes pode contribuir para o
sucesso ou o fracasso do espetáculo. Escolher um espaço onde predominem os
pés rápidos
pode tornar o trabalho do performer de captar a atenção do público
uma atividade árdua e cansativa, enquanto escolher um local onde predominem
os
pés lentos
facilita o primeiro contato e a conexão com o público. Ficou latente
também a necessidade de perceber a disponibilidade do público na hora de
escolher o momento de entrar em cena. Os primeiros momentos de uma
apresentação podem ser decisivos. É muito mais difícil recuperar a atenção do
público depois que ele perde o interesse do que usar o impacto da entrada em
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cena para estabelecer um relacionamento. Além disso, uma vez que a artista
chama a atenção de algumas pessoas, fica mais fácil despertar o interesse de
quem está ao seu redor.
A sutileza do contato visual é outra questão premente em relação ao público
da rua. Como as pessoas não estão exatamente para assistir a uma
apresentação, o contato visual direto pode soar como um bloqueio ou uma
intrusão. Por outro lado, a posição oposta, ignorando completamente a presença
do público, pode fazer com que o transeunte perca o interesse pelo que está
acontecendo. O equilíbrio entre esses dois pontos é fundamental para que os
passantes se sintam convidados a se engajar como público.
Lidar com pressão e expectativa é outro ponto que merece atenção.
Pudemos ver como o estresse, tanto externo (nervosismo sobre a reação do
público, expectativa sobre o progresso da performance, reação do público) quanto
interno (emoções do performer, frustrações pessoais, tensões cotidianas) podem
influenciar uma apresentação. Saber relaxar e estar presente de corpo e alma no
momento da apresentação também são fatores determinantes para o fracasso ou
o sucesso da empreitada.
Finalmente, a experiência deixou claro que técnica e virtuosismo não são
suficientes para garantir o sucesso. Apesar de ser uma malabarista talentosa, a
artista não conseguiu sequer reunir um público em torno de si. Mesmo quando
tudo correu bem tecnicamente, Valerie não conseguiu chamar a atenção do
público. Quando tudo deu errado, foi o momento em que ela teve a melhor reação
do público. Claro que o circo envolve virtuosismo, superação de limites,
habilidades que provocam admiração e encantamento. Mas o que trouxe o
engajamento e a identificação do público foi a humanidade, a falha
26
.
A relação com o público é uma das mais prementes questões. O público da
rua, na maioria das vezes, não saiu de casa para assistir a um espetáculo. Mesmo
nos casos de espetáculos anunciados, como os que participam dos festivais, o
26
As reflexões se baseiam no ensaio “Permission to Failure”, de autoria da pesquisadora e realizado como
avaliação parcial do Summer Seminar Writing (about / on / with / at / the) Contemporary Circus: A Seminar
on Research-Creation, Creative practices and Meaning-Making, que teve lugar na Concordia University, em
2019.
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público passante é sempre um desafio. Na rua, os códigos de comportamento e
as convenções sociais que predominam nos espaços fechados (não conversar, não
usar o celular etc.) não são tão rígidos (Carreira, 2007). Na rua, as pessoas
conversam, chegam e saem quando querem. Esse público precisa ser conquistado.
Chacovachi (2018) compara essa relação com o jogo de xadrez, que se situa entre
a ludicidade e a guerra. Em uma apresentação na rua, é preciso provocar a
identificação com o público a todo momento, pois a rua é dispersa, e o público
retira-se sem nenhuma cerimônia, caso perca o interesse. O público que não está
envolvido com o espetáculo, “como a primeira brisa que passa, voa” (Chacovachi,
2018, p. 66). O artista que atua em praças precisa mantê-lo ali até o fim, sob a
pena de perder a colaboração dada no chapéu. nos sinais de trânsito, essa
identificação precisa ser imediata, pois o artista tem apenas alguns segundos para
conquistar sua plateia.
Outro tópico que mostrou ser de importância na experiência citada foi a
capacidade de improvisação. Apresentar-se na rua exige um preparo técnico e
psicológico para lidar com a imprevisibilidade e mutabilidade características do
espaço público. Um artista de rua nunca sabe de antemão quem será seu público:
se será composto por mais crianças, ou mais adultos, se haverá um bêbado na
plateia... (Chacovachi, 2018). Ele precisa ter estratégias para tudo. Para Chacovachi,
a improvisação que serve ao artista de rua é aquela que ele pode repetir, ou seja,
o que ele chama de improvisação são as pequenas
gags
ou piadas das quais o
artista pode dispor em situações as mais diversas. Mas a rua sempre reserva
surpresas, mesmo aos mais preparados.
A estrutura dramatúrgica da apresentação de rua também tem suas
características próprias.
27
Em geral, as apresentações de rua possuem uma
convocatória, um desenvolvimento, um desfecho e a passagem do chapéu. A
convocatória é o momento em que o artista vai convocar seu público, vai chamar
a atenção da sua plateia para si. Quanto mais interessante o artista consegue
27
Para Chacovachi (2018), essa estrutura se divide em sete momentos: pré-convocatória, convocatória, farsa
de começo, número de início, número participativo, passagem do chapéu, despedida e final. No entanto, ele
próprio afirma que essa estrutura se refere a um tipo específico de espetáculo de rua, dentre tantos. Nesse
trabalho, foi feita uma opção por uma estrutura mais simples e genérica, com uma estrutura comum e uma
maior diversidade de espetáculos, ainda que não seja a única utilizada. As apresentações de rua são tão
variadas quanto são os espaços, públicos e artistas.
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tornar sua convocatória, mais público irá atrair. No entanto, a estrutura de uma
apresentação de rua deve levar em consideração o local onde será realizada. Se o
artista vai fazer sua apresentação em um sinal de trânsito, sua convocatória
precisa ser breve e chamativa. Se o artista vai atuar em uma roda, quanto mais
tempo ele conseguir manter o interesse, maior será a roda. O desenvolvimento é
a preparação para o desfecho. É quando o artista vai preparar seu público para o
grand finalle
. “Porque você pode ser um palhaço com umas habilidades incríveis,
mas se as apresenta rapidamente e as gasta em meio minuto, o que fará com o
resto do tempo?” (Chacovachi, 2018, p. 61). Já atuando no sinal, meio minuto, em
média, é todo o tempo que o artista tem para conquistar seu público, impressioná-
lo e ainda passar o chapéu. A escolha do momento de se passar o chapéu difere
de um artista para outro. aqueles que preferem passá-lo antes do desfecho,
para evitar a evasão do público. Assim, se quiser ver o desfecho prometido, terá
que colaborar no chapéu. Outros passam o chapéu após o desfecho, não sem
antes explicar à plateia que é dali que sai o sustento do artista.
Também em relação à espacialidade, a rua traz seus desafios. Apresentações
em praças, geralmente, acontecem no formato de roda, em que o artista precisa
lidar com a presença do público em todas as direções. É comum artistas
escolherem locais em que há estátuas ou outros monumentos, que lhe ajudem a
proteger
as costas (Chacovachi, 2018). outros preferem o formato arena, pois,
quanto maior a roda, maior o chapéu. Nos sinais de trânsito, existe uma maior
frontalidade, posto que, em geral, os carros estão em uma única direção. Porém,
o artista de circo de rua não pode se dar ao luxo de ignorar o público passante.
Nos espetáculos de itinerância, essa relação com o espaço pode ser ainda mais
intensa, porque, além de ter público em todas as direções, este precisa se mover
junto com a apresentação.
A experiência realizada nesse seminário teve o objetivo de levantar alguns
dos desafios que a rua pode apresentar a uma artista circense cujo cabedal prévio
de conhecimentos não incluísse a rua. Pudemos observar que, ainda que a artista
dominasse seu número e conseguisse obter pleno sucesso em uma apresentação
em espaços controlados, a escolha por um espaço público exigiu uma série de
conhecimentos que se apresentaram como totalmente novos para a artista,
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evidenciando que a performance na rua possui um conjunto próprio de saberes
que podem e devem fazer parte dos conhecimentos oferecidos como
possibilidade pelas escolas de circo.
Referências
BAFFI, Diego Elias.
Olha o palhaço no meio da rua: o palhaço itinerante e o espaço
público como território de jogo poético
. 2009. Dissertação (Mestrado em Artes)
Instituto de Artes – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009.
BARRETO, Lua.
Saltimbancos Contemporâneos: seu aprendizado, suas escolhas e
expectativas.
Goiânia: Editora Espaço Acadêmico, 2018.
CARREIRA, André.
Teatro de Rua: (Brasil e Argentina nos anos 1960): uma paixão
no asfalto
. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores Ltda, 2007.
CHACOVACHI, Palhaço.
Manual e Guia do Palhaço de Rua
. La Plata: Contramar,
2018.
PUCCETTI, Ricardo.
A Travessia do Palhaço a busca de uma pedagogia
. Campinas,
SP: [s.n.], 2017.
SILVA, Juliana Oliveira. Ser, estar e fazer: notas sobre circo de rua na Amazônia.
Revista de Antropologia e Arte
, Campinas, v. 2, n. 7, p. 25-46, 2017.
TURLE, Licko.
Teatro(s) de Rua do Brasil: a luta pelo espaço público
. São Paulo:
Perspectiva, 2016.
Recebido em: 28/01/2023
Aprovado em: 17/04/2023
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento Revista de Estudos em Artes Cênicas
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