1
Um espelho sem reflexo:
A mancha roxa
na crítica
teatral brasileira
Clóvis Domingos dos Santos
Paulo Marcos Cardoso Maciel
Para citar este artigo:
SANTOS, Clóvis Domingos dos; MACIEL, Paulo Marcos
Cardoso. Um espelho sem reflexo:
A mancha roxa
na
crítica teatral brasileira.
Urdimento
Revista de Estudos
em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 47, jul. 2023.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573102472023e0201
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Um espelho sem reflexo:
A mancha roxa
na crítica teatral brasileira
Clóvis Domingos dos Santos | Paulo Marcos Cardoso Maciel
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-26, jul. 2023
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Um espelho sem reflexo:
A mancha roxa
na crítica teatral brasileira
1
Clóvis Domingos dos Santos
2
Paulo Marcos Cardoso Maciel
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Resumo
Neste artigo discutimos as diferentes metáforas empregadas pela recepção crítica
da obra
A mancha roxa
, de Plínio Marcos. Ao procurar seu sentido no Brasil do final
do século XX, abordando as principais chaves de leitura do texto e do espetáculo na
visão de alguns dos principais críticos teatrais brasileiros atuantes quando de sua
encenação. Na obra, o autor retoma o tema da vida atrás das grades a partir dos
conflitos de um grupo de presidiárias, optando também, dessa vez, pela abordagem
da aids. Para tanto, partimos da discussão de Susan Sontag, a fim de compreender
o alcance mais geral do problema levantado por sua reflexão, pela crítica da peça e
do espetáculo.
Palavras-chave:
A
mancha roxa
. Teatro brasileiro moderno. Crítica teatral.
Aids
. Plínio
Marcos.
A mirror without reflection:
The Purple Spot
in Brazilian theater criticism
Abstract
In this article, we discuss the different metaphors used by the critical reception of
the work
The purple spot
, by Plínio Marcos, when looking for its meaning in Brazil at
the end of the 20th century, approaching the main keys of reading the text and the
spectacle in the view of some of the main critics Brazilian theatricals active at the
time of their staging. In the work, the author resumes the theme of life behind bars
from the conflicts of a group of prisoners, also opting, this time, for the approach to
AIDS. For that, we start from the discussion of Susan Sontag, in order to understand
the more general scope of the problem raised by her reflection, by the criticism of
the play and the show.
Keywords
:
The purple spot
. Modern Brazilian Theater. Theatrical criticism. Aids. Plínio
Marcos.
1
Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Maria Fernanda Moreira, mestre em Teoria
da Literatura (UFMG) e graduada em Letras com habilitação dupla em licenciatura e bacharelado em edição
e revisão de textos (PUC-MG).
2
Doutorado em Artes pela UFMG (2018). Estágio pós-doutoral na UFOP (2018-2022), com Bolsa CAPES e
pesquisa sobre “Crítica e Cena Contemporânea”. Mestrado em Artes pela UFMG (2010). Graduação em
Bacharelado em Artes Cênicas pela UFOP (2007). clovpalco@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/5673142092231605 https://orcid.org/0000-0002-1721-0413
3
Pós-doutorado como bolsista FAPERJ/UNIRIO (2009-2011); CNPQ/UNIRIO (2013). Doutorado em Artes Cênicas
pela UNIRIO (2009). Mestrado em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2003
- UNIRIO). Graduação em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1999 - UFRJ). Professor
Adjunto do Departamento de Artes Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
paulinhomaciel@uol.com.br
http://lattes.cnpq.br/9374193161036263 https://orcid.org/0000-0003-4770-1587
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Un espejo sin reflejo:
La Mancha Violeta
en la crítica teatral brasileña
Resumen
En este artículo discutimos las diferentes metáforas utilizadas por la recepción
crítica de la obra
A Mancha Roxa
de Plinio Marcos, para buscar su sentido en el Brasil
de fines del siglo XX, acercándonos a las principales claves de lectura del texto y del
espectáculo en la mirada de algunos de los principales críticos teatrales brasileños
em el momento de su puesta em escena. En la obra, el autor retoma el tema de la
vida em prisión a partir de los conflictos de un grupo de mujeres, optando también,
esta vez, por el enfoque del sida. Para ello, partimos de la discusión de Susan Sontag,
para comprender el alcance más general del problema planteado por su reflexión,
por la crítica de la obra y del espectáculo.
Palabras claves
:
La Mancha Violeta
. Teatro brasileño moderno. Crítica teatral. SIDA.
Plinio Marcos.
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Introdução
Neste trabalho discutimos as metáforas empregadas pela crítica teatral
brasileira, atuante no final do século XX, relativamente à peça e encenação de
A
mancha roxa
, de Plínio Marcos (2016). Trata-se de identificar e analisar de que
modo a crítica moderna encarou a obra no contexto brasileiro da chamada
abertura democrática, se valendo da aids como metáfora, considerando seu
potencial de comunicação entre público e espetáculo. Vale observar que a
metáfora, enquanto figura de linguagem, está associada, na reflexão de Paul de
Man, ao processo de significação ou de conceptualização nas artes, sendo
“concebida como uma troca de propriedades com base na semelhança entre, de
um lado, a linguagem figurativa, conotativa e metafórica e, de outro, a
denominativa, referencial e literal (1996, p.170). A relação entre elas é complexa e
admite diferentes abordagens. Aqui vamos partir da noção de metáfora enquanto
figura de linguagem que visa estabelecer uma relação de proximidade, de
semelhança e/ou de diferença entre diferentes realidades:
A metáfora ignora o elemento ficcional e textual que existe na natureza
da entidade que conota. Ela supõe um mundo no qual eventos, intra e
extratextuais, formas literais e figurativas da linguagem, podem ser
distinguidos, um mundo no qual o literal e o figurado são propriedades
que podem ser isoladas e, consequentemente, permutadas e
substituídas umas pelas outras. Isso é um erro, embora se possa dizer
que nenhuma linguagem seria possível sem esse erro (De Man, 1996, p.
176).
Retomando a temática do encarceramento trinta anos após o lançamento de
Barrela
, em
A mancha roxa
(1988), Plínio retrata o conflito vivido por seis
presidiárias diante do diagnóstico de aids. Vale lembrar que nos anos 1990, quando
pouco se conhecia a seu respeito e não havia possibilidade eficaz de tratamento
médico,
4
o pânico era generalizado em caso de contaminação, reforçando o
estigma social imputado aos doentes e cidadãos considerados de risco, como
homossexuais, profissionais do sexo, usuários de drogas injetáveis e hemofílicos.
4
É preciso elucidar que hoje a realidade é completamente outra: avanços recentes permitiram que pela
utilização de novos medicamentos, conhecidos como retrovirais, uma pessoa com HIV tenha vida
praticamente normal e não desenvolva a aids. Somada à implementação e atuação de efetivas políticas
públicas de saúde, a criação de grupos ativistas pela sociedade civil também contribuiu para uma mais
ampla veiculação de informação sobre o vírus e o combate ao preconceito social.
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A doença se tornava, assim, um marcador social direcionado aos grupos de risco
que, além da própria enfermidade, precisavam lidar com os estigmas.
De acordo com Susan Sontag (2007, p. 90), em seu clássico ensaio
Aids e
suas metáforas
, foi essa resposta social culposa que “proporcionou uma excelente
oportunidade para a metaforização da moléstia”. A utilização da metáfora militar
e higienista, como invasão ou poluição, fez com que um agente infeccioso se
tornasse uma peste, sob a forma de um inimigo a ser combatido para se proteger
um ideal de saúde inabalável, alimentando, assim, uma espécie de paranoia
política alicerçada principalmente na linguagem. Eram comuns na época
expressões como “câncer
gay
”, “peste dos invertidos”, “castigo divino” etc.
Convertia-se a doença, como hoje, aliás, num terreno de disputas sociais, políticas
e morais, que, muitas vezes, transformavam seus portadores em agentes da
“praga”, sujeitando-os à narrativa bíblica, carregada de valor punitivo.
Em face a incertezas e angústias, o empreendimento intelectual de Sontag
de despir a aids de suas metáforas, por um lado, nos possibilita a constituição de
um espaço de debate sobre a doença renovado e destituído de valores
estabelecidos pelo discurso militar e higienista; por outro, revela seus próprios
limites cognitivos quando acredita devolver ao indivíduo sua própria enfermidade
livre dos demais constrangimentos, incluídos os de seu próprio discurso. Dessa
maneira, a dimensão social da aids oriunda em parte dos sinais de alta
visibilidade, comprometendo a privacidade dos sujeitos infectados ressaltaria a
tensão de seu impulso ao estabelecimento de uma solidariedade pressuposta por
sexualidade e cultura em comum, ao mesmo tempo que serviu de contraponto à
resposta moralista baseada em seu dito caráter promíscuo.
Nesse sentido, a partilha de vozes entre as detentas de
A mancha roxa
forma
uma espécie de coralidade (Sarrazac, 2013) que compreende universos sociais
distintos e apresenta perfis muito singulares, embora circunscrita à cela e à
condição de marginalidade imposta pela vida no cárcere. A perspectiva coralizada
desloca o centro individualizado das relações intersubjetivas e, segundo Lucas
Serafim (2019, p.28), poderia ser considerada estratégia do autor para não reforçar
a identificação da doença e do crime com um determinado grupo ou classe social,
sobretudo com os sujeitos economicamente menos favorecidos. Por meio da
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ocupação de uma cela especial por mulheres provenientes de diferentes estratos
sociais e que se deparam com a tragédia da aids, o dramaturgo apontaria para a
realidade corrupta do sistema prisional brasileiro.
A cena marginal como modalidade de teatro político
Identificado com sua dramaturgia “marginal”, Plínio Marcos consagrou-se
como “autor maldito” por se debruçar sobre a vida dos combalidos e expropriados,
e assim “incorporar o tema da marginalidade em linguagem de desconhecida
violência” (Magaldi, 2003, p.95).
Barrela
,
A navalha na carne
,
Dois perdidos numa
noite suja
, entre outros textos, segundo Sábato Magaldi (1997, p.39), transferiram
para a cena moderna um universo estranho ao da classe média, “o reduto do
lampesinato”, restituindo “ao público habitual a imagem feroz do homem”.
A aliança entre o palco e o público consistia numa identificação problemática;
afinal, os marginais apresentados em cena não eram iguais àqueles sentados na
plateia. No espelhamento então almejado pelos artistas que reivindicavam para si
a figura da marginalidade
5
existia uma diferença básica. De um lado, os artistas em
cena e o público basicamente formados por integrantes da classe média
(estudantes, intelectuais e os próprios artistas); de outro lado, o universo dos
presidiários, da malandragem e das prostitutas explorado pela dramaturgia de
Plínio Marcos. A “marginalidade” social era metaforizada “teatralmente” para
abranger outros comportamentos e atitudes, tornando-se, assim, uma forma de
mediação e solidariedade entre o universo do palco e o do público de A mancha
roxa. Essa mediação ficou a cargo, sobretudo, dos principais nomes da crítica
teatral moderna brasileira, como Décio de Almeida Prado, Sábato Magaldi, Yan
Michalski, Bárbara Heliodora, Anatol Rosenfeld, João Apolinário, Alberto D’Aversa,
entre outros, que elaboraram importantes interpretações das obras de Plínio,
acompanhando sistematicamente sua trajetória.
Em linhas gerais, os críticos aproximaram a obra pliniana da linguagem do
5
Vale salientar aqui que, do ponto de vista estético-cultural, desde os anos 1970 no Brasil, as artes
consideradas marginais são aquelas que se mostram contrárias às formas comerciais de produção e
circulação, que se posicionam à margem da cultura vigente, recusando as formas sérias e eruditas de
conhecimento, numa aposta anti-intelectualista e crítica aos sistemas estabelecidos. Ver mais detalhes em
Heloisa Buarque de Hollanda (2004).
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realismo/naturalismo, salientando, entretanto, sua forte coloração nacional a partir
dos seguintes vetores estéticos: a vivacidade e força dos diálogos cortantes, o
poder de síntese na dramaticidade, a observação minuciosa dos conflitos mais
íntimos vivenciados pelas personagens marginalizadas, a exposição de
mecanismos de opressão e exclusão social e a construção de teatralidade capaz
de produzir um efeito de choque na sensibilidade dos espectadores, não lhes
permitindo manter-se indiferentes.
No caso de Plínio Marcos, a irrupção de sua dramaturgia nos palcos brasileiros
não reforçava a valorização do autor nacional como sinalizava novas vias de
criação e abria caminhos para outras modalidades de teatro político (além daquele
praticado por grupos partidários e universitários de esquerda), optando pelo jargão
dos desempregados e párias sociais (a fala crua, áspera e eivada de palavrões) e
por suas formas de vida e protesto próprias de segmentos que se julgavam
oprimidos, como as mulheres, os homossexuais e os pobres. Veremos como a
expressão “mancha roxa” se tornou potente metáfora associada a sujeitos
“marginais”, entendidos como desclassificados sociais e sujeitados à violência das
instituições do Estado no contexto mais geral da “abertura democrática”. Como
nos lembra Paranhos (2013, p.79), nas obras de Plínio com o tema da reclusão
carcerária (
Barrela
e
A mancha roxa
), “a banalidade do mal do ser humano acuado
aglutina-se à banalidade do bem do sistema carcerário oficial”. Mas a banalidade
do mal aqui tem chão histórico e de gênero, pois aparece circunscrita às mulheres
diante do sistema carcerário da época.
O texto de
A mancha roxa
combina, em diferentes doses afetividade,
religiosidade, homossexualidade feminina, drogas, violência e autoritarismo que
caracterizam, de distintas maneiras, as relações intersubjetivas das presas daquela
trama. O drama moderno brasileiro acaba violentamente na cela de uma prisão
feminina acompanhado de seu velho traço patriarcal-cristão que, mesmo
parodiado pelas mulheres, sobrevive, impossibilitando a emergência de canais de
fuga das relações intersubjetivas limitadas pela reprodução de sua crueldade.
Num primeiro momento, vamos procurar circunscrever as principais
abordagens da fortuna crítica da peça e do espetáculo, destacando, no percurso
analítico, as metáforas empregadas pelos autores, a fim de elucidar, num segundo
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momento, os fios em suspenso do passado de
A mancha roxa
. Assim, acreditamos
poder contribuir com a reflexão acerca da modernização do gesto crítico no Brasil.
Diante do espelho sem reflexo o tempo frio escoa
PROFESSORA (
cantando
):
Muitas mulheres
roxas
sem olhos
sem dentes
sem bocas
descaradas
as sem-cara
ficam pasmadas
diante do espelho
sem reflexo
onde o tempo
frio
escoa
no relógio sem ponteiro.
Muitas mulheres roxas
seus amores
seus pecados
seus desenganos
o resultado
a mancha roxa.
Essa é a história
sina
condenação
de muitas mulheres
roxas.
(Plínio Marcos,
A mancha roxa
)
A história é uma sina, condenação, dizem as mulheres, sem reflexo, diante
do espelho, onde o tempo frio escoa. Para deter o tempo e recuperar o reflexo, é
preciso contar histórias para avançar “no relógio sem ponteiro” quando a mancha
roxa toma o seu lugar. A encenação de
A mancha roxa
seguiu-se ao espetáculo
Balada para um palhaço
, obra que a crítica especializada denominou um trabalho
de metalinguagem lírica e mítica, espécie de pequeno desvio na trajetória de Plínio
Marcos, pois, segundo os críticos, escaparia a “seu estilo mais autêntico” (Magaldi,
1998, p.223), marcado por viés ácido, cruel e com temáticas urgentes e sempre
impactantes.
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A mancha roxa
surgiu de uma campanha publicitária
6
feita por Plínio para os
presídios de São Paulo. Com a preocupante proliferação de casos de aids em meio
à população carcerária, o autor foi convidado para participar de uma campanha
educativa que pudesse sensibilizar os prisioneiros e lhes prestar esclarecimentos
sobre a doença. Seu nome fora escolhido justamente por figurar como aquele que
melhor sabia conversar com eles
7
. Com o convite aceito, Plínio exigiu apenas que
pudesse escrever o texto a ser gravado, mas uma condição lhe foi imposta pela
Secretaria de Justiça: no teor da mensagem, não poderia haver críticas ao Estado.
A exigência, porém, não foi cumprida pelo artista, que se viu confrontado com as
instituições judiciárias, conforme comentário de Sábato Magaldi (1998, p.23-24)
sobre o espetáculo:
Não queriam que Plínio implicasse a responsabilidade do Estado pela
disseminação da Aids nas celas. Acreditando, certamente com razão, que
o Estado tem que zelar pela integridade do indivíduo, a partir do
momento em que ele é afastado, por efeito de sentença, do convívio
social, o autor não aceitava censura ao texto publicitário. Prevaleceu o
seu ponto de vista e o êxito coroou o empreendimento o teipe recebeu
até um prêmio internacional. Mas o mergulho forçoso na situação mexeu
com a sensibilidade do artista. A angústia tomou conta dele, durante as
duas semanas do impasse criado pelo teor que deveria ter a mensagem.
Sabe-se que prisioneiros mataram colegas, ao suspeitar que eram
portadores da moléstia. Um, na promiscuidade do ambiente, chegou a
infectar dezenove.
Fato é que Plínio não se podia furtar a tratar da falência da política
penitenciária brasileira, mas, ao se voltar para o “submundo”, segundo Jefferson
Del Rios (1989), o autor aproveitou para expor sua visão de mundo valendo-se do
universo “concentracionário de mulheres criminosas”, a maioria homossexual e
viciada em droga injetável, e da paisagem sombria e violentíssima. O comentário
de Jefferson ilumina uma questão importante, que diz respeito ao alcance do
estilo e da linguagem teatral do autor com relação ao universo representado em
seus textos, uma vez que são concebidos como entrelaçados, ao mesmo tempo
que o crítico salientou a concentração como procedimento para o autor chegar
6
É possível assistir à campanha no
Youtube
. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cxIPEq3no7o.
7
Vale observar que Plínio Marcos não apenas sabia conversar com eles, mas estava diretamente interessado
nas lutas de seu tempo, como nos revela seu envolvimento com a encenação em 1984 de Dois perdidos na
noite suja pelo Grupo de Teatro Forja, ligado às lutas operárias do ABC (Paranhos, 2013, p. 77).
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nessa paisagem sombria, afinal de contas, ela é exigida pelo drama que gira em
torno das “mulheres criminosas” que, sem resolução possível em função do
destino prescrito pela mancha roxa, se veem numa luta contra o tempo.
A direção do espetáculo ficou a cargo de seu filho, Leo Lama. No dia 16 de
janeiro de 1989, a peça estreava no Teatro Bexiga (numa temporada alternativa de
segunda a quarta), tendo no elenco Camila Bolaffi, Cláudia Campos, Dione Leal,
Beth Daniel, Leila Pantel, Graça de Andrade e Elaine Gonçalves. A equipe de
montagem encontrou dificuldades para compor o elenco, uma vez que a maioria
das atrizes convidadas, após a leitura do texto, declinava do convite.
Uma reportagem de Lauro Lisboa Garcia no jornal
O Estado de São Paulo
informa que mais de 70 atrizes passaram por testes e ensaios; a maior parte,
porém, não suportou o peso dos papéis. Havia também o fato de que naquele
período a aids vitimava muita gente do meio teatral, o que intensificava o gesto de
recuo e a desistência de muitas artistas para lidar com uma temática tão
espinhosa. Para Plínio, contudo, a importância de se tratar desse assunto por meio
da peça se dava “como uma forma de subversão para falar das coisas que estão
matando a nós, marginais” (Garcia, 1989). O autor então vincula a condição do
artista à figura do marginal. A conversão do “outro” num reflexo do “eu” aproximava
e sugeria a identificação almejada entre autor, intérpretes, personagens, palco e
público, salientando, assim, a doença, o sofrimento e o confinamento das
mulheres como chave de entendimento da suposta condição marginal vivenciada
na sociedade mais ampla.
Não podemos esquecer que a estreia do espetáculo em 1989 foi
contemporânea do lento processo de abertura e/ou de redemocratização do país;
logo, sua “paisagem” cruel e monstruosa contrastava com as expectativas mais
otimistas, justamente pelas situações-limite tratadas e, aparentemente, vividas à
margem do processo histórico mais amplo. O tempo frio, sem ponteiros, que escoa
na cela corrói, pouco a pouco, a capacidade de resistência das mulheres diante do
vazio no espelho por meio dos testemunhos que se repetem sobre seus
infortúnios. No interior do drama prisional, os monólogos das mulheres funcionam
como os ponteiros ausentes do relógio.
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Por outro lado, o espetáculo e sua fortuna crítica se situam historicamente
no contexto de transição entre a crítica teatral moderna e a contemporânea no
Brasil do final do século XX. A perda ou redução de espaço para o exercício crítico
nas páginas dos mais destacados jornais colocava os críticos no lugar de
comentadores que não podiam fornecer mais do que breves opiniões sobre os
espetáculos assistidos, obrigados a abrir mão de análises de maior extensão e
profundidade em seu papel de formadores e mediadores do gosto do público. No
entanto, exatamente nesse contexto, foram publicadas nos jornais de grande
circulação da cidade de São Paulo algumas das principais avaliações de
A mancha
roxa
. Guardadas as devidas diferenças, elas convergiram para alguns pontos em
comum: destacava-se o fato de que o nome da doença (aids) em nenhum
momento da peça era mencionado, e a expressão “a roxa”, repetida diversas vezes
pelas personagens, acabava por ampliar as possibilidades de leitura sobre o que
poderia ser a peste que as atormentava no cárcere, transformando-se numa
espécie de jargão com que se confundiam também outras angústias.
Logo, o processo de conceituação da “roxa” a transformava, por assim dizer,
em metáfora de situações distintas daquelas retratadas, entendida aqui como
substituição de um enunciado por outro “com base em uma semelhança que
oculta diferenças” (De Man, 1996, p. 169). A “semelhança que oculta diferenças”
pode ser uma forma de ver a problemática generalização da roxa na relação ou no
pacto entre palco e plateia. Nesse sentido, a prisão e a doença se convertiam em
sinais do descaso político-social com a vida humana instalado no Brasil, conforme
salientou Alberto Guzik (1989) na revista
Veja
:
A aids não é nunca mencionada; fala-se da “roxa”. Esses procedimentos
permitiram a Plínio Marcos uma reflexão mais abrangente, menos
localizada, sobre o contexto em que se encaixem tanto a epidemia
quanto as presidiárias. A doença fatal obtém no texto sinistra
ressonância. A difusão do mal ganha o estatuto de emblema de um país
onde a vida humana e a saúde pública são tratadas com criminoso
descaso. A Mancha Roxa denuncia esse estado de coisas com raiva e
indignação, ao melhor estilo de Plínio Marcos (Guzik, 1989).
A omissão do nome “aids” libertava a mancha roxa de seu referente mais
imediato, por assim dizer. A intepretação de Guzik a respeito da “roxa”, como
“emblema de um país onde a vida humana e a saúde pública” são tratadas com
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descaso, encontra ressonância ainda hoje; entretanto, se sua polissemia amplia o
raio de alcance da situação vivida pelas personagens, ao mesmo tempo, acaba
tornando inespecíficos o sofrimento e a dor das mulheres presas.
O crítico Jefferson Del Rios (1989) também sinalizou o eufemismo contido na
escolha: “a repetição da palavra-disfarce é intencional na busca de um efeito
terrorífico e metafórico. A mancha roxa está em tudo que se define como
organização social; nem mesmo as religiões organizadas escapam”. Percebe-se
assim que os críticos tomavam a “macha roxa” como uma metáfora da
organização social, do descaso do Estado com a vida humana e a saúde pública
no país, identificando-a com tudo aquilo tido como problemático e/ou negativo,
englobando, em seu núcleo semântico, a desumanidade do todo.
A aids se convertia em metáfora do terrífico da vida humana e do descaso
das instituições do Estado, dos poderes sinistros da organização social. Sendo
assim, a mancha não afetava apenas um determinado grupo, o “lupeproletariado”
de Magaldi, nem compreendia apenas uma dada enfermidade ou dizia respeito
apenas às histórias de vida das presas, pois a polissemia do termo não deixava de
avançar na direção de uma visão mais geral que, desse modo, contribuía para a
construção social da doença e de seu espectro político. Susan Sontag (2007),
provavelmente, diria que sim, haja vista sua discussão no estudo sobre a aids e
suas metáforas.
Se havia relativo consenso na crítica sobre a contundência do tema ou do
universo da obra e do espetáculo, do ponto de vista técnico, havia divergência
sobre os aspectos formais considerados problemáticos, como o excesso
verborrágico no texto, que prejudicaria o desenvolvimento da ação dramática, além
do uso abundante de monólogos:
O que não se percebe desta vez, na obra do dramaturgo, é nitidez no
comentário ao quadro exposto. As culpas são generalizadas por meio de
um recurso que enfraquece a estrutura da peça: a utilização de
monólogos discursivos, em que determinadas personagens contam suas
desventuras e, com inflexão melodramática, culpam de forma difusa o
governo-sociedade e a própria natureza humana (egoísmo, depravação
pela luxúria, ganância...). Em textos anteriores, Plínio Marcos deixa que a
mecânica do conflito, a própria ação desenfreada, explique naturalmente
as razões do horror exposto (Del Rios, 1989).
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As “razões do horror exposto” surgem agora da paralisia da ação exigida pelo
drama, o que incomoda os críticos. Em matéria publicada na revista Visão, Luiz
Carlos Cardoso (1989) retoma esse ponto, observando que a montagem revelava
uma peça dura, brutal e exasperante, cujas breves distensões dificultavam a
continuidade da tensão no texto. Apesar desses comentários, ele ressalta que os
problemas técnicos não afetaram o impacto provocado nos espectadores pelo
encarniçado combate travado em cena, revelador complementa do mais
agressivo momento de teatro que já teriam visto, e assim arremata seu raciocínio:
“só um autor com completo domínio da ‘maldição’ pode ir tão longe”. Sua crítica
se pauta na discussão das dificuldades técnicas visando à economia dramática da
peça, em contraponto ao impacto do tema, estilo ou da linguagem. Logo, o eixo da
leitura crítica do espetáculo se desliga até certo ponto do texto e das relações
intersubjetivas nele tecidas, voltando-se para o “combate travado” em cena e seu
impacto no espectador.
As distensões que comprometem a engrenagem da ação dramática, tal como
informado pela crítica referida, são também consideradas problemáticas por
Alberto Guzik (1989): “o texto, em certas passagens, é desequilibrado por discursos
redundantes, que repisam conceitos explicitados anteriormente na ação. A
exclusão dessas passagens dará mais ênfase à tensão e à violência do original”. A
violência deveria se manter no limite da representação teatral da tensão
dramática. Nesse mesmo sentido, em longo ensaio publicado no
Jornal de Artes
,
8
Magaldi (1998, p.227) sugere alguns reparos:
O espetáculo dispensa o canto da Professora, previsto em quatro
ocasiões, o que é sem dúvida acertado, porque os versos não são da
melhor qualidade (quebrar, por esse recurso, o realismo do diálogo, não
parece convincente, e prejudica a fluência dos episódios). Às vezes,
introduzem-se repetições, inúteis porque uma réplica deixou tudo
muito claro (parece forçada, por exemplo, a volta frequente das três
maneiras pelas quais se contrai a Aids). Plínio ganharia, também, em
elaborar mais o pretexto para Linda narrar sua história. Fica visível a
muleta, quando ela diz: "Já te contei meu caso. Mas conto de novo". Por
último, o monólogo da Professora sobre o seu crime vem quase no final,
8
Esse ensaio viria alguns anos mais tarde a ser republicado no livro
Moderna dramaturgia brasileira
, da Editora
Perspectiva, no qual Magaldi dedica um capítulo a Plínio Marcos e apresenta suas análises a partir da reunião
de obras como
Navalha na carne
,
Abajur lilás
e
Dois perdidos numa noite suja
.
Um espelho sem reflexo:
A mancha roxa
na crítica teatral brasileira
Clóvis Domingos dos Santos | Paulo Marcos Cardoso Maciel
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-26, jul. 2023
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quando as informações a respeito das personagens deveriam ter sido
transmitidas, para que a ação alcançasse a essa altura pleno dinamismo.
Não se trata da pausa, que valoriza o golpe derradeiro: o longo monólogo
interrompe o desfecho que se impunha, e suas revelações poderiam
perfeitamente estar distribuídas ao longo da peça.
Malgrado os versos, recuperamos o canto da Professora para salientar os
encontros e desencontros entre
A mancha roxa
e a crítica. Sua supressão no
espetáculo pode revelar, aliás, a importância da crítica na decisão tomada pela
direção. Os problemas técnicos identificados por ela, como a repetição das cenas,
a reiteração das situações, o monólogo fora de lugar, introduzem ruídos e
interrupções que comprometem o andamento da ação e a progressão da tensão
ainda esperada do drama moderno de Plínio, além de localizarem a situação vivida.
Mesmo na análise feita muitos anos mais tarde pelo pesquisador Alcir Pécora
(2016), no volume
Atrás desses Muros
(parte da organização e publicação das obras
de Plínio pela Funarte), a partir de
A mancha roxa
, ele a compara com a
dramaturgia de Barrela, cuja ação considera econômica, explosiva e brutalista, ao
passo que
A mancha
é lida como prolixa e exacerbada (2016, p.42), uma espécie
de jogral. Em seu estudo, Pécora afirma que em
A mancha roxa
Plínio é mais
explícito, beirando o “pornográfico”, ao mostrar as mulheres nuas no transe final
do texto, enquanto a cena de curra (momento mais forte em
Barrela
) acontece
com a luz apagada. Essas leituras de um Plinio mais “excessivo”, tanto nos diálogos
quanto nas rubricas do texto, de alguma forma se encontram e reforçam um
desequilíbrio de forças que prejudicaria um melhor desenvolvimento do enredo.
As questões assinaladas não foram pensadas também em função da
diferença de gênero acerca do universo marginal retratado em ambas as peças,
pois a violência, no caso das presas, remonta da cela ao cotidiano distintos daquele
de
Barrela
. Tais dificuldades técnicas, ressaltadas pela crítica teatral do ponto de
vista do drama moderno conhecido até então, podem ser pensadas para além da
falta de acabamento ou domínio técnico por parte do autor, uma vez que
assinalam a tensão entre o drama moderno e suas exterioridades locais. A
repetição é vista mais como recurso retórico desprovido de função formal; e as
interrupções da ação dramática como falta de perícia ou despreocupação do autor
para com sua obra. A reiteração que caracteriza a situação vivida pelas
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personagens vai na contramão do progresso dramático, uma espécie de discurso
no contrafluxo da abertura democrática em que o transcurso normal da ação
lugar ao tempo frio que escoa sem reflexo no espelho.
Relativamente ao canto, Sábato Magaldi (1998, p.225) identificou que as
mulheres confinadas têm seus perfis individuais bem delineados em “pinceladas
sintéticas” e que, dadas suas origens sociais e profissões distintas, a ação
aconteceria não numa cela comum, mas especial. A síntese oferecida pelo
universo da peça não apaga as tensões envolvendo as distintas origens sociais e
profissionais, porém, não podemos deixar de observar, diferentemente do crítico,
a operação de deslocamento do centro de interesse do perfil individual para o
grupo de mulheres, que retomam, repetidamente, suas histórias, marginais ao
drama moderno.
Ainda que seus pertencimentos sejam díspares, uma situação comum de
confinamento as une em torno do amor, do crime, da dor e do sofrimento. Em seu
estudo sobre as personagens encarcerados de Plínio (seja em
Barrela
ou em
A
mancha roxa
), Wagner Abreu (2001, p.20) afirma que essa diversidade procede das
diferentes posições da sociedade civil e do choque de classes assinalado, segundo
complementou, pela diferença de valores adotados pelos personagens. Podemos
perceber como a operação metafórica obedece ao horizonte da sociedade civil e
da luta de classes e, sendo assim, a dor e o sofrimento das mulheres encarceradas
se tornam representantes de um “nós” fundado nos parâmetros cognitivos
adotados
9
.
Não podemos deixar de comentar que as dificuldades técnicas identificadas
em razão do drama dizem respeito, por sua vez, aos impasses e às contradições
resultantes dessa operação metafórica. Nesse ponto, a poética dos gêneros se
aproxima do emprego das metáforas pela crítica teatral; afinal, a situação vivida
se torna, por meio de uma concepção particular do drama moderno concebida
pela crítica teatral, uma forma de representação da sua suposta universalidade
em detrimento das contingências e/ou particularidades do “drama da vida”
10
das
9
Estamos chamando de parâmetros cognitivos tudo aquilo que fundamenta os juízos da crítica sobre um
determinado evento, objeto, espetáculo ou texto, e que precede, por assim dizer, sua formulação específica.
10
A noção de “drama da vida” foi teorizada por Jean-Pierre Sazarrac (2017) em
Poética do drama moderno e
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mulheres presas, como também da tensão na convivência da ética patriarcal-
cristã com as relações homossexuais.
Especificidades de um discurso cruel que se materializava nas distintas
camadas de violência, tensão e desespero, constitutivas das relações
intersubjetivas dos que vivem na exterioridade do sistema em vários sentidos. Tais
componentes da linguagem dramática da peça foram identificados e tomados, por
parte de alguns críticos, como decorrentes do realismo da peça (Del Rios, 1989 e
Guzik, 1989). Nesse sentido, contrapõe-se a visão crítica de Luiz Carlos Cardoso
(1989), que, em sua análise, salientou ser o hibridismo da proposta alcançado em
virtude de seu “realismo rude”, por meio de uma linguagem cujas bruscas
mutações apontariam para o teatralismo.
Entre o realismo e o teatralismo, a crítica parece chegar num impasse
tipicamente moderno, pois se orienta pelo contraponto entre os dois veios abertos
e eixos concorrentes da linguagem teatral moderna que, acredita Cardoso, podem
iluminar os procedimentos empregados pelo autor em sua peça ao dar conta de
sua matéria. Divergências à parte, o que precisamos observar dos juízos elencados
é a ambiguidade quanto à “origem” da brutalidade e da crueldade no teatro de
Plínio Marcos; se elas derivam da situação recortada ou da linguagem poética
empregada. Em ambos os casos, entretanto, a crítica permanece confinada aos
termos do conflito.
Ao descortinar as falhas dramáticas da peça, a crítica elencada não as pensou
em consonância com a violência transformada em rotina e forma de vida no
âmbito das relações intersubjetivas. Por outro lado, vale lembrar que alguns
críticos identificaram determinados temas como emergentes da dramaturgia
brasileira no final do século XX caracterizada pela combinação, mais ou menos
explosiva, de moralidade, marginalidade, sexualidade, drogas, aids e religiosidade,
cujo alcance analítico para se pensar a marginalidade social, no contexto mais
amplo da redemocratização do país, esbarrava nos parâmetros críticos ou no
vocabulário apreciativo desenvolvidos ao longo da história do teatro moderno
contemporâneo
. Em linhas gerais, ele se diferencia do “drama na vida” porque busca compreender em sua
ação o decurso de uma vida inteira, e não de apenas uma parte.
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brasileiro e adotados em alguns dos juízos sobre
A mancha roxa
.
Dos críticos mencionados, quem mais se dedicou a analisar a precisão da
linguagem pliniana na construção dramatúrgica da peça foi Magaldi que, vale
ressaltar, fez parte da primeira geração da crítica moderna, cujos parâmetros
analíticos balizavam suas interpretações do espetáculo partindo da relação direta
com o texto. Não é de estranhar, então, que o crítico tenha reconhecido na peça
características e temáticas presentes na obra do autor. Obra que Magaldi procura
apreender se valendo do vocabulário das artes plásticas, utilizando, em sua
apreciação, termos específicos dessa área, como “quadro”, “pintura”, “pincelada”
11
etc., observando que o autor se utilizaria de tintas fortes para provocar um efeito
perturbador sobre a plateia, na tentativa de ferir seus ouvidos delicados e
embrulhar seus estômagos. Isso porque
A impiedade objetiva do dramaturgo, não desejando suavizar nada para o
espetáculo, produz, em determinadas cenas, incontornável mal-estar.
Esse, provavelmente, o maior mérito do texto, ligado, além do fato de ter
como cenário um presídio, à contundência de
Barrela
, primeira obra
dramatúrgica de Plínio Marcos (Magaldi, 1998, p.227).
Não podemos esquecer que a estética do quadro visa interromper
justamente o fluxo contínuo da ação, possibilitando mostrar uma situação que se
repete. Nesse sentido, o mal-estar provocado seria o maior mérito do texto,
descontadas as falhas técnicas informadas, segundo a visão de Sábato; ao
contrário dele, porém, pensamos que as “falhas” podem ser consideradas
vantagem, posto que deram a mulheres encarceradas espaço para contar a
impiedade da vida. Por outro lado, chama nossa atenção a ausência de
comentários críticos de Magaldi sobre a encenação de
A mancha roxa
, havendo
apenas a seguinte alusão: “se o texto se presta a polêmicas, elas acompanham o
espetáculo” (Magaldi, 1998, p.227). Ele não chega, entretanto, a mencionar como
tais polêmicas interferiram na montagem e/ou na recepção do espetáculo pelo
público.
Alberto Guzik (1989) aprova a encenação e classifica o trabalho do diretor Leo
11
Ver mais detalhes sobre o emprego desses termos para descrição do drama moderno e contemporâneo em
Sarrazac (2013).
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Lama como “cuidadoso, atento e feliz” ao captar as atmosferas do texto. Enfatiza
também a função primordial da iluminação, que consegue garantir a dinâmica da
narrativa auxiliando na produção do efeito dramático do espetáculo. É preciso
lembrar que, na proposta do texto, a luz roxa, ao invadir todo o palco e adentrar o
espaço da plateia, ratificaria a mensagem de que a “peste” invadiria
indistintamente todos os lugares.
Outro ponto destacado por Guzik (1989) é o desempenho do elenco, “que
apresenta rendimento homogêneo e coeso. As personagens são desenhadas pelas
atrizes com grande força e ousadia. Nenhuma delas deixa cair a tensão, que
perdura por todo o espetáculo”. Tensão é, por assim dizer, a palavra chave para
qualificar o espetáculo, o desempenho das atrizes e demais procedimentos ou
recursos, como no caso da luz mencionado. A dimensão apontada pelo crítico de
uma tensão permanente que é mantida em cena, a nosso ver, contradiz alguns
comentários anteriores que assinalam justamente os motivos de retardamento da
ação e/ou quebra de sua continuidade, mas se justificaria pela longa tradição de
se ler e legitimar nas peças de Plínio esta espécie de exigência: o público precisa
ficar com os nervos à flor da pele, se manter aterrorizado, não havendo espaço
para pausas e descontrações, e mais, como se tais recursos comprometessem, a
ponto de enfraquecer, a envergadura e a natureza das peças usualmente
referenciadas pela chave da perturbação.
Elogios ao desempenho das intérpretes também constituem a tônica
presente na avaliação do crítico Jefferson Del Rios (1989): “são belas e comoventes
jovens atrizes bem dirigidas nessa peça cruel, que parece marcar o fim da poesia
na escritura do maior poeta vivo do teatro brasileiro”. Chama nossa atenção a
expressão “fim da poesia”, pressupondo que talvez para o crítico, no que se refere
ao texto, dada sua aspereza e desespero, haveria impossibilidade de simbolização
ou algum refúgio metafórico frente ao real focalizado. Ainda sobre a atuação, Luiz
Carlos Cardoso (1989) reconhece que: “o diretor Leo Lama (filho de Plínio Marcos
e de Walderez de Barros) estreia conseguindo bom trabalho de quase todo o
elenco inexperiente”.
Podemos perceber pelo inventário feito até aqui que à crítica interessa
assinalar a contundência dos temas em contraposição à frágil qualidade técnica e
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artística do texto, bem como, diante dessa questão, destacar os desafios
colocados ao elenco e ao espetáculo. A irregularidade (dramática) do texto seria
compensada em cena pela sinceridade feroz das atrizes, conforme destacou
Jefferson Del Rios (1989). As obras de Plínio Marcos vêm sendo consideradas
pioneiras pela comunicação direto com o público e por apresentarem aos atores
a possibilidade de encarnarem personagens em situações-limite, mediante
diálogos cortantes e contundentes, em “batalhas cerebrais” que colocam em
relevo e centralidade sua
performance
.
Pelos comentários sobre as interpretações, vemos que é a sinceridade feroz
o destaque conferido aos desempenhos avaliados. Parece-nos importante,
portanto, compreender de que maneira o trabalho das atrizes caminhou ou não
no sentido da identificação do interprete com o “marginal”, pressuposta naquele
contexto. Partindo da reflexão desenvolvida até o momento em torno da recepção
crítica da peça e do espetáculo
A mancha roxa
, podemos perceber como os juízos,
apesar de algumas diferenças, assinalam problemas, temas e questões comuns,
elementos de fundamental relevância para se compreender a construção da
inteligibilidade do passado da cena teatral segundo os termos informados pela
crítica atuante no Brasil do final do século XX; a crueldade, por exemplo, brilha
mais por seu efeito ou como parte do estilo do autor do que por sua presença
como meio principal a partir do qual se tecem as relações intersubjetivas.
Para dar continuidade à reflexão, veremos adiante como os críticos se
valeram da aids como metáfora para o contexto mais amplo do país naquele
momento.
A marginalidade nas metáforas de
A mancha roxa
Desde os anos 1960, a crítica teatral descreve Plínio Marcos como o
construtor de obra revolucionária que, na maioria das vezes, conseguiu conjugar
elementos psicológicos e sociológicos. Numa escritura cênica vigorosa e “sem
papas na língua” (Prado, 1987, p.233), o autor inscreveu os marginais na galeria das
personagens do teatro moderno brasileiro, desnudando os complexos
mecanismos de exclusão. Na poética pliniana, o existencial, o confessional, o
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agressivo e o grotesco se entrecruzam a partir de uma dimensão social que
captura os conflitos reais e a revolta daqueles que habitam um mundo sem
horizonte ou à margem da vida.
Habituados a ler as peças modernas brasileiras pelas lentes do drama
moderno europeu e norte-americano, cujas chaves interpretativas carregam
consigo, por exemplo, a psicanálise e o marxismo, os críticos deram atenção à
exposição dos conflitos intersubjetivos por meio da ação e desenho das
personagens. Acreditamos, entretanto, que foi a decisão do autor de incorporar
em sua dramaturgia personagens, termos e temas estranhos a esse universo que
levou aos impasses observados. Na peça temos a presença de inúmeros
monólogos (em contraposição ao diálogo e à coralidade), a opção pelo quadro em
detrimento da ação e um enunciado sobre o destino de caráter grupal ou coletivo.
A minuciosa e extensa crítica de Magaldi (diferente dos demais especialistas,
que publicaram seus ensaios em revistas com diminuto espaço para debates
culturais e artísticos) se concentra numa vertente mais psicológica do drama
moderno ao buscar compreender as motivações que levaram cada presidiária para
o mundo do crime: desilusões amorosas, uso de álcool, problemas econômicos,
abusos sexuais, perda de ideais diante de uma realidade adversa e brutal. Nessa
perspectiva, o destino de cada uma delas permanece circunscrito ao problema de
caráter, conforme os parâmetros intersubjetivos da causalidade no drama, e,
sendo assim, no conjunto, essa concepção diz respeito ao universo da culpa
burguesa em função das “escolhas erradas”.
Na visão de Del Rios (1989), o foco da peça é a exposição do cotidiano na
prisão por meio de uma “narração cruel e detalhista [...], numa violenta denúncia
do sistema carcerário”. Logo, o cárcere ou o sistema violento, e não as escolhas
erradas das personagens, são o centro de interesse de sua leitura do drama
moderno de Plínio Marcos, possibilitando assim identificar a peste com a
desumanidade das instituições ou engrenagens prisionais.
Guardadas as devidas diferenças entre os autores, aparece como perspectiva
unânime entre os quatro críticos certa perplexidade e desconforto com o final da
peça, quando as presas decidem que vão contaminar o mundo inteiro (“Pra cada
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uma, mil” elas bradam). O trecho foi destacado por Guzik (1989): “depois de se
digladiarem entre si, as presas descobrem seu abandono total. A sociedade está
surda e cega para elas. Superando as diferenças pessoais, as mulheres se veem
na posse de uma terrível arma: o vírus”. É o vírus que, ao final, as une contra “seu
abandono total”.
Ainda que em seus discursos esses autores reconheçam que “o poder abusou
de tal forma dos oprimidos, nas últimas décadas, e que não surpreenderá ninguém
se as multidões se rebelarem” (Magaldi, 1998, p.227), julgam assustador o plano
perpetrado pelas detentas e verbalizado diante do público, uma espécie de “desejo
de vingança” (Guzik, 1989), um perigoso “irracionalismo” (Magaldi, 1998, p.227), “um
rancor retórico evidente demais” (Cardoso, 1989) e “algo semelhante às pestes
medievais com laivos de maldição bíblica” (Del Rios, 1989). No conjunto, os críticos
estranham a posição tomada pelo autor diante do tema.
Não seria, contudo, a única forma pela qual Plínio apostou que vidas
maculadas
12
pudessem forçar alguma mudança na sociedade? Que outra resposta
poderia ser oferecida? Mostaço (2002, p.13) nos lembra que “a dramaticidade de
Plínio não admite soluções de compromisso ou acomodação de situações, mas
apenas o rompimento dos vínculos, a morte ou a supressão de uma das partes
geradoras da tensão”. No caso da peça, quem são os oponentes? O vírus, o Estado,
a sociedade, o sistema?
Se, com relação a outros textos de Plínio, parte da crítica vaticinou que seus
personagens em cena demonstravam legítimo ressentimento que, embora fruto
de crises econômicas, “não se voltavam contra os poderosos, por eles mal
entrevistos, mas contra seus próprios companheiros de infortúnio” (Prado, 2009,
p.103), em
A mancha roxa
, essa situação se inverte, e da revolta surge uma
“solidariedade” (Magaldi, 1998, p.224), não de classe e escolaridade, mas talvez de
gênero e de situação marginalizada, no caso, em função do contexto prisional. A
prisão sem a metáfora, especialmente a existencialista. Na reportagem do jornal
O Estado de São Paulo
, aqui já mencionada, há um trecho no qual Plínio confirma
que a escolha de ambientar a peça numa cela feminina se dera pelo fato de as
12
Mácula, aqui, como marca de sujeira, de impureza ou de cor diferente sobre um corpo. Uma espécie de
nódoa ou mancha.
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mulheres, em face da aids, serem mais solidárias entre si, pois, “se fossem
homens, os outros os teriam matado, por medo do contágio” (Garcia, 1989).
É possível observar, entretanto, que essa solidariedade não exclui os vários
conflitos, ameaças e disputas de poder. A inflexão analítica aqui incide também
nos valores que sujeitam as mulheres ao infortúnio comum e, assim, moldam as
figuras e as suas relações intersubjetivas. Tanto que as “damas do Apocalipse”,
segundo comentou Alberto Guzik (1989), prenunciam o terror e colocam em dúvida
quem a partir dali poderia ser considerado dominado e dominador a inversão de
papeis caracteriza as relações intersubjetivas na peça: ora algumas delas se
tornam agentes, ora se tornam objetos do drama moderno de Plínio, conforme
salientou o crítico diante da oscilação na tomada da posição do grupo
marginalizado. Luiz Carlos Cardoso (1989) nos lembra que nas peças de Plínio é
constante “o achincalhe que algum personagem sempre faz sobre outro”. O outro
achincalhado agora, no entanto, não seria, em vez de uma personagem, o
espectador?
A identificação entre a peça, a crítica e o público se torna crítica quando as
mulheres ameaçam romper a linha que divide a sala. Importante salientar que a
ideia do artista como marginal e do marginal como herói, reivindicada por nosso
autor, era parte do contexto intelectual e artístico de seu tempo e, segundo
pensamos, se mostrou estratégia acertada se considerarmos, na breve reflexão
feita aqui, o momento no qual se tornou operante, pois o sentido da arte como
uma forma ou força de resistência perdia seu antigo mordente com a “Nova
República”.
Não por acaso, as presas precisam repetir suas histórias na tentativa de
recuperarem o reflexo no espelho. Reflexo que emerge da operação de
identificação entre os “dramas da vida” das mulheres e as mazelas do país; sendo
assim, o reflexo devolvido as marginalizava uma outra vez, agora na metáfora. Vale
também ressaltar que os críticos da época não questionaram a opção do autor
por abordar a aids no sistema prisional, o que poderia levar a uma maior
marginalização das mesmas, podendo inclusive pôr em perigo as intenções do
autor, uma vez que,
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Em
A mancha roxa
, as mulheres são mais vetores do que vítimas,
suspeitas que participam em suas próprias infecções. As consequências
políticas dessas representações podem ser desastrosas para aqueles
privados de seus direitos, com um possível aumento do preconceito com
pessoas com AIDS, reforçando o pensamento geral de que tais seres
perigosos deveriam ser isolados ou encarcerados (Severino apud Martins,
2009, p.128).
Além disso, as mulheres se tornavam duplamente invisíveis socialmente, de
um lado, pelo apagamento de suas vidas com o passar do tempo no sistema
carcerário; de outro, por uma abordagem supostamente universal do drama
moderno informada nos juízos críticos, que ocultam o fato de ele se reportar ao
grupo de mulheres presas e à marginalidade de seus dramas da vida. Nesse
sentido, elas protagonizam sua ausência em cena diferente de
Barrela
.
O choque e o impacto são os termos destacados pela crítica para dizer da
experiência diante da peça e do espetáculo, que tensionam, por sua vez, a
identificação almejada entre atriz e personagem, cena e sala, arte e vida. Além
disso, é preciso observar como as metáforas da crítica sobre a “roxa” e seu alcance
semântico, político e poético investem na direção da aids, sobrecarregando de
significados a doença que, por si mesma, já demandava dos portadores uma série
de cuidados e tratamentos sem nenhuma garantia de sucesso.
Sua obra, no entanto, não se separa das próprias metáforas que, ao longo do
tempo, foram sendo forjadas para lhe conferir inteligibilidade.
Considerações finais
As metáforas utilizadas pelos críticos para dar sentido a
A mancha roxa
abarcam desde a vida no cárcere, passando pela experiência trágica provocada
pelo abandono e pela doença, o sentimento de punição, a ameaça de morte, até
o horizonte da vingança final como resposta à segregação social. Metáforas da
doença que culminam em abordagens mais amplas, como a denúncia de uma
sociedade moribunda e desprovida do mínimo de direitos humanos e sociais, signo
de um país excludente historicamente e ainda marcado por relações de poder
autoritárias (lembrando que a peça é de 1989, quatro anos depois de decretado o
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fim da ditadura).
É preciso observar que, enquanto a violência esteve restrita às relações entre
as personagens, ela não parece ter causado o mesmo espanto e mal-estar que a
peça provocou entre os críticos. Por outro lado, as dificuldades e/ou os balanceios,
as reviravoltas da apreciação pela crítica, em seus julgamentos dos erros e dos
acertos cometidos pelo autor na obra, diante da peça e do espetáculo, não
ressaltam justamente os limites e os impasses dos critérios adotados pelos
críticos atuantes no final do século XX?
O fato de a peça tratar da doença e de sua marginalidade do ponto de vista
das mulheres lésbicas parece também não interessar à crítica, uma vez que não
faz parte dos argumentos com que procuram o sentido do texto. Nessa
perspectiva, perde-se a inversão de papeis praticada pelas mulheres, a qual tira
partido da cultura patriarcal-cristã erigida, pela ditadura, como referência em
saúde no âmbito da ordem familiar e modelo da organização social. Tais
associações persistem como um nó ainda a ser desvelado.
A Plínio não parecia possível remediar as fraturas sociais, apagar a dor e o
sofrimento, eliminar as cicatrizes e abrir espaço para a conciliação democrática da
sociedade, nos termos vigentes da época; afinal de contas, a violência, a exclusão
e a morte continuaram guiando a vida daquelas mulheres, cuja cidadania, tal como
o reflexo no espelho, nunca se completou.
Num misto de atração e repulsa (Paranhos, 2013), Plínio Marcos continua a
nos perturbar com suas obras.
Referências
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dramaturgia de Plínio Marcos. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2001.
CARDOSO, Luiz Carlos. Drama sufocante no Bexiga.
Visão
, 29 mar. 1989. Disponível
em: https://www.pliniomarcos.com/criticas/mancha-roxa-luizcarlos.htm. Acesso
em: 17 fev. 2021.
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Rilke e Proust. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1996.
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DEL RIOS, Jefferson. A mancha roxa, um efeito devastador.
O Estado de São Paulo
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21 mar. 1989. Disponível em: https://www.pliniomarcos.com/criticas/mancha-roxa-
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GARCIA, Lauro Lisboa. Plínio Marcos, atrás das grades.
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GUZIK, Alberto. Com o impacto de um soco: em A mancha roxa, Plínio Marcos
mostra que está em plena forma e com muita emoção.
Veja
, 9 jul. 1989. Disponível
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HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.).
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Recebido em: 22/12/2022
Aprovado em: 26/05/2023
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br