1
A
Neo-commedia dell´arte
ou “A Invenção de uma Tradição”:
Carlo Boso e Leo de Berardinis, dois
Capocomici
Modernos
Giulia Filacanapa
Tradução: José Ronaldo Faleiro, Paulo Balardim Borges, Douglas Kodi
Para citar este artigo:
FILACANAPA, Giulia. A
Neo-commedia dell´arte
ou “A
Invenção de uma Tradição”: Carlo Boso e Leo de Berardinis,
dois
Capocomici
Modernos. Trad. José Ronaldo Faleiro, Paulo
Balardim Borges, Douglas Kodi.
Urdimento
Revista de
Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 3, n. 45, dez. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573103452022e0701
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
A
Neo-commedia dell´arte
ou “A Invenção de uma Tradição”:
Carlo Boso e Leo de Berardinis, dois
Capocomici
Modernos
Giulia Filacanapa | Tradução: José Ronaldo Faleiro, Paulo Balardim Borges, Douglas Kodi
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-18, dez. 2022
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A
Neo-commedia dell´arte
ou “A Invenção de uma Tradição”: Carlo
Boso e Leo de Berardinis, dois
Capocomici
Modernos
1
Giulia Filacanapa
2
Tradução: José Ronaldo Faleiro
3
, Paulo Balardim Borges
4
, Douglas Kodi
5
Resumo
O presente artigo estuda a
Commedia dell’arte
no século XX como uma
“Tradição inventada”, seguindo a perspectiva dos estudos de Hobsbawm
(1983), podendo ser nomeada de
Neo-Commedia dell’arte
. Para isso são
apresentados dois breves estudos de caso dos encenadores Carlo Boso e Leo
de Berardinis, com base nas peças
Il Falso Magnifico
[O Falso Magnífico] e
Il
retorno di Scaramouche
[A Volta de Scaramouche].
6
Palavras-chave:
Commedia dell’arte
. Encenação. Arte do Ator. Carlo Boso. Leo
de Berardinis.
1
Publicado originalmente sob o título
La Neo-commedia dell´arte
ou
L´invention d´une tradition”: Carlo Boso
et Leo de Berardinis, deux capocomici modernes
, na revista Laboratoire d´Études Romanes (EA 4385)
[Laboratório de Estudos Românicos (EA 4385), LES LANGUES NÉO-LATINES 109e année 1 372
Janvier-Mars 2015 [As línguas neolatinas 109º ano 1 n° 372 janeiro-março de 2015].
2
Giulia Filacanapa é docente-pesquisadora, diretora e pedagoga especializada em jogo de máscaras.
Professora na Universidade de Paris 8, França, é autora deste artigo sobre o renascimento da
Commedia
dell'Arte
no século XX a serviço da criação contemporânea. Nesse contexto, ela criou o termo e ilustrou a
noção de
Neo-Commedia dell'Arte
. A sua investigação atual centra-se nos usos e funções das máscaras de
palco e dos corpos artificiais (robôs, avatares), tanto do ponto de vista teórico e experimental como do ponto
de vista dos processos criativos e no dos usos sociais do teatro.
3
Prof. Dr. Titular no Centro de Artes (CEART) da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).
Membro do Círculo Artístico Teodora. Tradutor de Jacques Copeau. jrfalei@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/0185617848060730 https://orcid.org/0000-0003-4932-8181
4
Prof. Dr. Titular atuando na graduação e na pós-graduação em teatro (PPGT) do Centro de Artes
(CEART) da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Diretor, ator, e cenógrafo da companhia
teatral Caixa do Elefante Teatro de Bonecos. paulobalardim@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/9137483053075236 https://orcid.org/0000-0002-2586-2630
5
Doutorando no programa de pós-graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina
(UDESC). Diretor, ator, dramaturgo e mascareiro. Participa do grupo Arte da Comédia (Curitiba-PR) e é
fundador do Teatro do Alvorecer (Maringá-PR). douglaskodi07@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/2547501265624081 https://orcid.org/0000-0003-3322-9920
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Resumo de autoria dos tradutores.
A
Neo-commedia dell´arte
ou “A Invenção de uma Tradição”:
Carlo Boso e Leo de Berardinis, dois
Capocomici
Modernos
Giulia Filacanapa | Tradução: José Ronaldo Faleiro, Paulo Balardim Borges, Douglas Kodi
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-18, dez. 2022
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La Neo-commedia dell'arte ou "L'invention d'une tradition": Carlo
Boso et Leo de Berardinis, deux capocomici modernes
Résumé
Cet article porte sur la
Commedia dell'arte
au 20ème siècle comme une
"Tradition inventée", conformément à la perspective des études d'Hobsbawm
(1983), et peut être nommée
Neo-Commedia dell'arte
. Pour ce faire, sont
présentées et analysées deux brèves études de cas des metteurs en scène
Carlo Boso et Leo de Berardinis, basées sur les pièces
Il Falso Magnifico
[Le
Faux Magnifique] et
Il Ritorno di Scaramouche
[Le Retour de Scaramouche].
Mots-clés
: Commedia dell’arte. Mise en scene. Art de l´acteur. Carlo Boso.
Leo de Berardinis.
The Neo-commedia dell'arte or "The invention of a tradition": Carlo
Boso and Leo de Berardinis, two modern capocomici
Abstract
This article presents the Commedia dell’arte in the 20th century as an
“Invented Tradition”, following the perspective of the studies by Hobsbawm
(1983), and can be named Neo-Commedia dell’arte. For this, two brief case
studies are presented, from the plays
Il Falso Magnifico
[The False
Magnificent] (Carlo Boso) (and
Il Return di Scaramouche
[The Return of
Scaramouche] (Leo de Berardinis).
Keywords
:
Commedia dell'arte
. Staging. Acting. Carlo Boso. Leo de Berardinis.
A
Neo-commedia dell´arte
ou “A Invenção de uma Tradição”:
Carlo Boso e Leo de Berardinis, dois
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Esquecida durante quase dois séculos após a reforma goldoniana
7
, a
Commedia dell´Arte
conheceu, no espaço de cinquenta anos, um processo
evolutivo sem precedentes: o termo, forjado no século XVIII para designar um
fenômeno teatral complexo e proteiforme surgido no meio do século XVI, a
Commedia
dos
zanni
, ou
Commedia all´Improvviso
reaparece novamente na
Itália depois da Segunda Guerra Mundial. Em menos de cinquenta anos, a
Commedia dell´Arte
tornou-se oficialmente matéria de estudos para toda uma
nova geração de atores, dando origem a um fenômeno que se pode inserir na
categoria chamada por Eric Hobsbawm “a invenção de uma tradição”
8
, e que, neste
caso preciso, chamarei de
neo-Commedia dell´Arte
”, na qual se resolve a
oposição entre teoria e prática da Commedia, entre os resultados das novas
pesquisas universitárias
9
e os da experimentação dos atores e encenadores.
Acompanhando de trás para a frente a genealogia dos vários mestres e das várias
escolas
10
, torna-se evidente que as experiências fundadoras da prática da n
eo-
Commedia dell´Arte
na Itália são estas três: a linhagem De Bosio-Strehler
11
, a
7
Os estudos críticos sobre Goldoni são tão numerosos que não se pode aqui citá-los integralmente. Ver a
última atualização de Siro FERRONE, La vita e il teatro di Carlo Goldoni. Veneza: Marsilio, 2011, acompanhada
de uma bibliografia muito exaustiva.
8
Eric HOBSBAWM e Terence RANGER (org.) L´invention de la tradition [A Invenção da Tradição] (1983),
traduzido do inglês para o francês por Christine VIVIER. Paris: Éditions Amsterdam, 2006. [A referência em
português do Brasil é: HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence (org.) A Invenção das Tradições. Tradução de
Celina Cardim Cavalcante. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. (N. T.)
9
Desde o primeiro terço do século XX, os pesquisadores se empenham por retraçar e compreender a história
e a prática dos atores dell´arte. Após 1970, os estudos italianos propuseram enquetes articuladas e
aprofundadas visando a recompor organicamente o fenômeno, a inseri-lo no contexto sociocultural do final
dos séculos XVI e XVII, a penetrar a memória dos atores e os segredos da profissão por meio dos documentos
(correspondências, iconografia, coletâneas de scenari, etc.). Aqui a bibliografia também é muito rica. Para
uma análise das orientações contemporâneas da pesquisa, ver Maria Ines ALIVERTI, “Nota Introdutória”,
Maria Ines ALIVERTI, Giula FILACANAPA.
Gli studi italiani sulla Commedia dell´Arte dal 1996 a oggi
[Os
Estudos Italianos sobre a Commedia dell´Arte de 1996 até hoje], in Miriam CHIABO e Federico DOGLIO (org.).
Fortuna europea della Commedia dell´Arte
[Fortuna Europeia da Commedia dell´Arte],
Actes du XXXIIe
Colloque international
(2 5 octobre 2008) [Atas do XXXIIº Colóquio Internacional (2 5 de outubro de
2008)]. Roma: Centro Studi Sul Teatro Medioevale e Rinascimentale [Centro de Estudos sobre o Teatro
Medieval e Renascentista], 2009, p. 303-315.
10
Pier Giorgio NOSARI. “L
a legge di Lavoisier alla prova. Maschere e figure animate nel teatro italiano
contemporaneo
[A lei de Lavoisier posta à prova. Máscaras e figuras animadas no teatro italiano
contemporâneo], in Siro FERRONE e Anna Maria TESTAVERDE (org.).
Commedia dell´Arte. Annuario
Internazionale
[Commedia dell´Arte. Anuário Internacional]. Florença: Leo S. Olschki, nº 1, 2008, p. 199-225.
11
Arlequim, Servidor de Dois Amos
, criado em 1947 para a abertura do Piccolo Teatro de Milão, é o espetáculo
italiano mais representado no mundo; contribuiu muito para a criação e para a difusão de uma imagística
moderna da
Commedia dell´Art
e, símbolo da italianidade de uma nação jovem, que, após a derrota da
Segunda Guerra Mundial, havia perdido a sua identidade.
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linhagem Dario Fo
12
, e uma via intermediária proposta pelo veneziano Giovanni Poli,
cujo universo poético trilha um percurso autônomo, distante do teatro profissional.
Eu me proponho a abordar aqui a questão dos novos
emplois
13
da tradição,
das técnicas e dos códigos desenvolvidos nas experimentações das práticas de
dois c
apocomici
[chefes de Companhia Teatral] modernos que tentaram renovar
o teatro por meio de um novo emprego das técnicas e de códigos da
neo-
Commedia dell´Arte
: Carlo Boso (Vicenza, 1946), e Leo de Berardinis
14
(Gio, 1939 –
Roma, 2008). Serão estudados mais especificamente os vínculos de parentesco
ocultos entre o espetáculo Il falso magnífico [O Falso Magnífico], encenado em
1983 por Boso com a companhia TAG Teatro — celebrada em 1994 (no Festival di
Santarcangelo [Festival de Santarcangelo], dirigido por Leo de Berardinis) como “o
grupo de
Commedia dell´Arte
mais fenomenal da cena italiana”
15
e o espetáculo
Il ritorno di Scaramouche
[A Volta de Scaramouche], criado em 1994 pelo próprio
de Berardinis.
12
Dario Fo é um caso à parte, pois embora veja a
Commedia dell´Arte
como uma necessidade, como uma
obrigação de voltar às origens medievais do teatro, para criar “o seu” teatro popular ele haure as suas
referências em diversos modelos teatrais: a Commedia dell´Arte e os malabaristas, mas também o
vaudeville
e o teatro do absurdo. Cf. Anna BARSOTTI.
Eduardo, Fo e l´attore-autore del Novecento
[Eduardo,
Fo e o ator-autor do século XX]. Roma: Bulzoni, 2007, p. 85-86.
13
Literalmente, “empregos”. A edição brasileira do
Dicionário de Teatro
de Patrice Pavis assim registra o verbete
(intraduzível?): “EMPLOI (Diretamente do francês emploi, sem correspondente em português.) Fr.:
emploi
;
Ingl.: casting, character
type
; Al.:
Rollenbesetzung, Rollenfach
; Esp.:
parte
.) Tipo de papel de um ator que
corresponde à sua idade, sua aparência e seu estilo de interpretação: o emploi de soubrette, de galã etc. /
O emploi depende da idade, da morfologia, da voz e da personalidade do ator. (...) é uma síntese de traços
físicos, morais, intelectuais e sociais. (...) Baseia-se na ideia de que o ator deve corresponder aos grandes
tipos do repertório e encarnar sua personagem. (...)” (Tradução para a língua portuguesa sob a direção de J.
GUINSBURG e Maria Lúcia PEREIRA. São Paulo: Perspectiva, 1999. p. 121-122). V. também PIERRON, Agnès.
Le
théâtre, ses métiers, son langage. Lexique théâtral
[O Teatro, seus ofícios, sua linguagem. Léxico Teatral].
Paris: Hachette, 1994. Coll. Classiques Hachette. p. 47-48. (N. T.)
14
Leo de Berardinis é um dos protagonistas da vanguarda teatral na Itália, artista “visionário”, considerado por
alguns como “único” e comparável somente com Carmelo Bene. Cf. Claudio MELDOLESI.
L´apice di Leo,
artista del riso oscuro
” [O Ápice de Leo, Artista do Riso Sombrio], in Eva MARINAI, Sara POETA, Igor VAZZAZ
(org.).
Comicità degli anni Settanta. Percorsi eccentrici di una metamorfosi fra teatro e media
[Comicidade
dos anos 70. Percursos excêntricos de uma metamorfose entre teatro e mídia]. Pisa: ETS, 2005, p. 45-51, cf.
p. 49.
15
Cf. “Programma Santarcangelo 1994” [Programa Santarcangelo 1994],
Santarcangelo dei Teatri d´Europa
Giornale d´informazione teatrale
[Santarcangelo dos Teatros da Europa Jornal de Informação teatral],
ano V, nº 1, junho de 1994, p. 33.
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Carlo Boso e sua Arte da Comédia
Carlo Boso colabora pela primeira vez com o TAG Teatro
16
em 1983, quando
a Companhia lhe confia, em Veneza, a direção do primeiro Estágio Internacional
de
Commedia dell´Arte
, que resultará no espetáculo
Il Falso Magnifico
[O Falso
Magnífico], roteiro moderno que ele tentava encenar “à maneira” dos atores
dell´arte
. A originalidade da sua interpretação do fenômeno decorre da sua
formação híbrida, que absorve não os ensinamentos de Giorgio Strehler sobre
a encenação e sobre o jogo do ator, os de Paolo Grassi sobre o sentido e sobre a
importância do teatro na sociedade, mas também os de Giovanni Poli, com quem
participa, em 1965, da encenação de
La Venetiana
[A Veneziana], de Giovan Battista
Andreini, no âmbito do Festival Internacional da Bienal de Teatro. Com essa
bagagem, Boso entrou, em 1967, para a trupe do Piccolo Teatro, graças ao célebre
Pantaleão/Nico Pepe, que lhe confia o papel do Carregador no
Arlecchino servitore
di due padroni
[Arlequim, Servidor de dois Amos], de Strehler, para fazer uma turnê
de onze meses pela América do Sul. Foi uma experiência fundamental, em cujo
decurso pôde observar as reações do público e compreender os mecanismos
desencadeadores do riso. Com o Arlequim/Ferrucio Soleri, Boso aprofundou a sua
técnica e o seu conhecimento da
Commedia dell´Arte
, elaborando uma poética
pessoal que esquece às vezes os dados históricos, mas introduz noções
fundamentais sobre a relação ator-espectador, e sobre o papel que as máscaras
assumem na criação do riso
17
. Um papel por ele considerado “catártico, e que libera
o espectador de seu medo do drama”
18
. O riso permite que o público “evolua no
16
Animado desde o início, em 1975, por Nora Fuser e Alessandro Bressanello, o TAG Teatro está ativo
principalmente em Veneza e considera a cidade como um espaço de experimentação e de transgressão
cultural. As suas primeiras produções
Taci tu che sei donna
[Cala a boca, tu que és mulher] e
Il porco
e
l´avvoltoio
[O porco e o abutre] testemunham o seu apego a um teatro que se pode chamar de “popular”:
trata-se de espetáculos de rua, embora ainda bastante distantes do mundo das máscaras. É o encontro
com Carlo Boso e com a sua concepção da
Commedia dell´Arte
que garante o sucesso dessa companhia.
17
C. BOSO. “Contre la mort ‘sucrée’” [Contra a morte ‘açucarada’, ‘cor de rosa’], in
Bouffonneries
[Bufonarias],
nº 3, maio de 1981, p. 5-10.
18
Entrevista de C. BOSO a mim concedida em abril de 2007, em Paris, para a minha dissertação de mestrado
II,
A Commedia dell´Arte e il Novecento: Carlo Boso e Leo de Berardinis
[A Commedia dell´Arte e o século
XX: Carlo Boso e Leo de Berardinis], defendida em 2008 na Universidade de Pisa sob a direção de Anna
Barsotti, p. 229-246, cf. p. 234.
A
Neo-commedia dell´arte
ou “A Invenção de uma Tradição”:
Carlo Boso e Leo de Berardinis, dois
Capocomici
Modernos
Giulia Filacanapa | Tradução: José Ronaldo Faleiro, Paulo Balardim Borges, Douglas Kodi
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plano da consciência cívica, por meio da conscientização do seu papel no sistema
social fundado na propriedade privada”
19
. Por isso, explica Boso, “na arte da
comédia, não rimos do ator bufão que utiliza a sua arte para distrair o público; na
arte da comédia, o riso geralmente é sugerido pela inversão dos papéis”
20
.
Essa posição está em desacordo parcial com a de Dario Fo, para quem o riso
é entendido como arma que “te escancara a boca, mas também a mente, e
prega os pregos da razão”
21
. Portanto, para Fo, o riso é cruel e doloroso, enquanto
a função catártico-liberatória é atribuída ao choro. Aparentemente opostas, essas
duas posições convergem, porém, no objetivo comum de “despertar” o público do
seu torpor intelectual e de torná-lo consciente da sua situação de opressão.
Contudo, Boso privilegia a atividade de encenador e pedagogo, enquanto Dario Fo
faz uma carreira de ator-autor que o torna famoso.
Na primavera de 1978, Boso propõe um primeiro laboratório de neo-
Commedia dell´Arte
, centrado na redescoberta das técnicas e das máscaras, no
Campo San Polo de Veneza, realizando uma série de oficinas ao ar livre
intimamente ligadas a um ateliê de construção de máscaras dirigido por Stefano
Perocco di Meduna, aluno de Donato Sartori. Dessa experiência nasce o espetáculo
Maschere, cronache di servitori e padroni
[Máscara, crônicas de servidores e
patrões], apresentado durante um mês e verdadeiro ponto de partida de sua práxis
dramatúrgica. Nele, experimenta uma dinâmica de trabalho eficaz, baseada no
estudo das personagens da
Commedia
e das suas relações dentro dos roteiros
dell´arte
. Roteiros modernos são escritos pelos estagiários, e apresentados
imediatamente ao público para testá-los. Os estagiários participam também
diretamente da criação das máscaras de couro, apropriando-se, assim, não
somente da técnica de confecção, mas também do universo não realista dos
espetáculos
dell´arte
. Numa entrevista concedida a um jornalista de
La nuova
Venezia
[A Nova Veneza], Stefano Perocco insiste na importância dessa prática
“que envolve os participantes em duas frentes, a meu ver igualmente importantes:
19
Ibid.
20
Ibid.
21
Dario FO, Franca RAME.
Venticinque monologhi per uma Donna. Le commedie
[Vinte e cinco monólogos
para uma Mulher. As comédias]. vol. 8. Turim: Einaudi, 1989, p. 9.
A
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Carlo Boso e Leo de Berardinis, dois
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8
a do pensamento e a do fazer”
22
.
Posteriormente chamado para dirigir oficinas desse tipo em Paris, nos
Jardins
du Palais-Royal
[Jardins do Palácio Real] (1979), e em Avignon, na
Cour d´honneur
[Pátio de Honra, Pátio Principal], para o Festival in [oficial] (1982), Boso consegue
aperfeiçoar a sua poética. Ocorre então um deslizamento sintático que
provavelmente esconde um problema semântico. Boso inverte os termos da
noção
Commedia dell´Arte
, como o fizera Eduardo de Filippo numa das suas
comédias
23
, utilizando de preferência a expressão
arte della Commedia
[arte da
comédia]. Assim, apodera-se do fenômeno, distanciando-se de uma abordagem
arqueológica, que considera inadequada. Para ele, a arte da comédia se baseia “na
recuperação da simplicidade do fenômeno, como forma de teatro universal e
acessível a todos”
24
, pelo menos a todos “os públicos possíveis”; ela é “a
representação dos medos e dos defeitos de um povo, uma expressão popular que
pode chegar até os governos, para fazer com que se conscientizem da decadência
dos valores culturais e sociais”
25
. Como todas as formas de dramaturgia
consumível — ou seja, uma dramaturgia não fixada a
priori
na escrita — a arte da
comédia encontra no espectador um interlocutor direto. Assim, da confrontação
verbal e cênica com o público, Boso aprende os mecanismos que tornam um
espetáculo realmente vivo. Para ele, certamente essa relação com o auditório é “o
elemento mais difícil para os jovens atores compreenderem”
26
; procura antes de
tudo ensinar tal elemento a eles, estimando que as “escolas de teatro apenas
criam repetidores de Molière ou de Shakespeare, intérpretes do passado”, ao passo
que “a arte da
comédia
requer que se interprete diretamente a vontade do
22
G. B.
I ‘misteri’ della maschera svelati a tanti giovani attori
” [Os “mistérios” da máscara revelados a tantos
jovens atores], La nuova Venezia [A Nova Veneza], 5 de agosto de 1990.
23
Eduardo DE FILIPPO,
L´arte della commedia
[A Arte da Comédia]. Turim: Einaudi, Collezione di Teatro
[Coleção de Teatro], 1965.
24
C. BOSO, entrevista, abril de 2007, op. cit., p. 231.
25
Roberto CUPPONE.
Il teatro secondo Boso
[O Teatro segundo Boso],
Il giornale di Vicenza
[O Jornal de
Vicenza], 18 de fevereiro de 1990.
26
C. BOSO, apud Michel FRICHE.
Petit lexique d´une tradition vivante
[Pequeno léxico de uma tradição viva],
MAD, 6 de novembro de 1996.
A
Neo-commedia dell´arte
ou “A Invenção de uma Tradição”:
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Capocomici
Modernos
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9
público”
27
.
Em sua prática, o ator deve ser um ator “total”, pronto a entrar em
ressonância a qualquer momento com o público, para além do texto escrito. As
suas competências vão do mimo à dança, do canto à improvisação, e o trabalho
sobre o corpo se torna, então, fundamental. Boso cria muito rapidamente uma
pequena equipe de colaboradores, um grupo experimental de formação que
permanecerá quase inalterado ao longo dos anos: Pavel Rouba para o mimo e para
a pantomima, Nelly Quette para a dança barroca, Adriano Jurissevich para a
música e para o canto, Bob Heddle Roboth para a esgrima artística, e Stefano
Perocco di Meduna, citado, que inicia os alunos nos mistérios das máscaras. É
este último que serve “de intermediário para o encontro com o TAG”
28
,
primeiramente na Toscana, com um seminário realizado em Pitigliano, depois em
Veneza, quando a Cooperativa TAG e Alessandro Bressanello decidem organizar
para o carnaval de 1983, supervisionado por Maurizio Scaparro, um seminário de
estudos sobre o teatro improvisado, dando origem a uma colaboração fadada a
durar vários anos.
Il Falso Magnifico
: um roteiro tragicômico de
neo-Commedia
dell´Arte
O laboratório proposto no âmbito do Estágio Internacional sobre as Técnicas
da
Commedia dell´A
rte, no pavilhão belga da Bienal de Arte Contemporânea de
Veneza, reunia trinta atores provenientes de toda a Europa e até mesmo de
além dela, com a presença de um ator mexicano —, e terminou, como o relata
Stefano Perocco, “com a representação de três roteiros: uma tragédia, uma
comédia, e uma tragicomédia [...], servindo esta última de prelúdio ao espetáculo”
29
Il Falso Magnifico
.
Como muitos roteiros “históricos” de
Commedia
, os roteiros de Boso nunca
foram publicados, e vivem apenas na memória dos participantes.
Il Falso Magnifico
27
Ibid.
28
Stefano PEROCCO DI MEDUNA, entrevista a mim concedida em abril de 2007, em Paris, para a minha
dissertação de mestrado II,
A Commedia dell´Arte e il Novecento: Carlo Boso e Leo de Berardinis
[A
Commedia dell´Arte
e o século XX: Carlo Boso e Leo de Berardinis], op. cit., p. 290-300, cf. p. 291.
29
C. BOSO, entrevista, abril de 2007, op. cit., p. 230.
A
Neo-commedia dell´arte
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conta a história de Rodrigo, um vira-mundo que encontra na estrada o Magnífico,
enviado para controlar a administração duvidosa de Pantaleão, governador de uma
província veneziana, o qual sonha secretamente em se tornar Doge. O Magnífico
morre e Rodrigo, entrevendo os benefícios que pode tirar da situação, usa por
empréstimo a sua roupa e a sua aparência. Encontra também uma Feiticeira
(
Strega
), enviada por Pantaleão para lhe predizer o futuro. A partir daí, o falso
Magnífico será levado a viver aventuras movimentadas, atrapalhando os projetos
de dois casais de Enamorados, assim como os de Pantaleão, que, para suborná-
lo, chega a tentar casá-lo com a filha dele. Por fim, Pantaleão e os seus acólitos
tramam a morte do Magnífico, obtendo a ajuda da Feiticeira, que administra um
veneno a Rodrigo. A seguir ficamos sabendo que ele é nada mais nada menos que
irmão dela e que o veneno era falso. Rodrigo só escapa da vingança de Pantaleão
devido a um ataque imprevisto dos turcos contra a cidade, que ele aceita defender,
retomando o seu papel de falso Magnífico. O roteiro termina com um triplo
casamento. Esse roteiro em três atos talvez seja o exemplo mais explícito da neo-
Commedia dell´Arte
, pois revisita não somente as situações e as personagens,
mas também as condições materiais da representação. De fato, os nove atores
estavam em ação sobre uma pequena cena provisória, composta de quatro
tábuas, duas escadas laterais e um pano de fundo como vemos nos afrescos
de Tiepolo, ou nas gravuras de Callot, nos
Balli di Sfessania
[Danças de Sfessania]
nas quais os atores, segundo o crítico Domenico Rigotti, “transpirando, lançam
réplicas acrobáticas em forma de trava-línguas, fazem piruetas, interpelam o
público, esboçam lazzi e caretas, dando vida a um divertimento de incrível
frescor”
30
, que o crítico estima ser o verdadeiro espírito da
Commedia
. Tal
espetáculo será retomado mais de duzentas vezes na Europa (Alemanha, Estônia,
França, Espanha, Suíça, Turquia e Áustria), o que confirma o seu valor “universal”
e a sua abertura a todos os públicos, em acordo também com uma das
características originais da
Commedia
dos
zanni
, que sai dos limites da Península
desde o seu surgimento, na metade do século XVI, e se torna uma forma europeia
de teatro.
30
Domenico RIGOTTI. “
Ecco Il vero spirito della Commedia dell´Arte
” [Eis o verdadeiro espírito da Commedia
dell´Arte], Avvenire [Porvir], 16 de maio de 1984.
A
Neo-commedia dell´arte
ou “A Invenção de uma Tradição”:
Carlo Boso e Leo de Berardinis, dois
Capocomici
Modernos
Giulia Filacanapa | Tradução: José Ronaldo Faleiro, Paulo Balardim Borges, Douglas Kodi
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-18, dez. 2022
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Assim, o TAG Teatro se afirma, desde 1983, como a primeira verdadeira
companhia de
neo-Commedia dell´Arte
, portadora de uma visão pessoal e
comprometida de uma arte da comédia, que se apoia, não obstante, em certos
elementos constitutivos do fenômeno histórico, como “a construção do texto
pelos atores por meio da improvisação, a expressividade das máscaras e do corpo
mediante a pantomima, a inserção do canto e da dança como elementos não
secundários, a aprendizagem de movimentos codificados”
31
, mas também que se
apoia no uso culto das formas e dos conteúdos da linguagem contemporânea, à
maneira dos atores de antigamente.
Il Falso Magnifico
[O Falso Magnífico] quer ser um espetáculo atual que fala
do exercício corrompido do poder, do egoísmo das classes sociais ricas, cuja
linguagem traduz as exigências de comunicação duma sociedade sempre mais
voltada para fora. De fato, além do italiano e do dialeto veneziano, outras línguas
são faladas em cena, o que encontra mais uma das características fundamentais
da
Commedia dell´Arte
, profundamente cosmopolita em suas linguagens.
Francesco Lazzarini assim constata:
A
serva
[criada], Franceschina [Francisquinha] falava “etimologicamente”
em francês. A princesa da Espanha falava na ngua de Cervantes, o
príncipe da Dalmácia falava na língua das antigas colônias venezianas. E,
verdade seja dita, graças à mímica e à destreza vocal dos atores, tudo era
compreensível
32
.
Como também foi relatado por Eugenio Allegri, o pesquisador italiano
Roberto Tessari, grande especialista do teatro italiano, declarou, depois de ter visto
o espetáculo em Veneza, em 1983, que, após tantos anos escrevendo sobre a
Commedia dell´Arte
, era a primeira vez que ele a via realmente. Talvez fosse
preferível dizer que ele vislumbrava a sua “reinvenção moderna”. Com efeito, com
o seu teatro, Boso ataca o sistema político de hoje, por ele julgado obsoleto e
corrompido, e desse modo se distancia do fenômeno histórico e do mundo das
31
Ficha artística do espetáculo
Il Falso Magnifico
[O Falso Magnífico], conservada nos arquivos particulares de
Stefano Perocco, em Montreuil-sous-Bois, aos quais pude ter acesso em 2007, no âmbito de uma bolsa de
estudos Leonardo da Vinci.
32
Francesco LAZZARINI,
Bentornata Commedia dell´Arte
[Bem-Revinda
Commedia dell´Arte
], Il mattino di
Padova [A Manhã de Pádua], 10 de junho de 1983.
A
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ou “A Invenção de uma Tradição”:
Carlo Boso e Leo de Berardinis, dois
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máscaras, submetido por ele às suas exigências de encenador moderno e
engajado. Para além do anacronismo, não se deve, porém, subavaliar a realização
cênica bem-sucedida do trabalho interpretativo de Boso. Como testemunha o
jornalista Francesco Lazzarini, “As referências ao presente foram encaixadas com
naturalidade no tecido dialógico, como também o foi o riso inteligente que explodiu
no público”
33
: um riso inteligente, precisamente o que é buscado por Boso.
A retomada, em 1993, de
Il Falso Magnifico
[O Falso Magnífico], programado
no Festival de Santarcangelo dei teatri [Festival de Santarcangelo dos teatros]
graças a Leo de Berardinis, representa o ponto de junção que une os dois mestres.
De fato, é a última centelha de uma experiência única, a do TAG, que inflama o
interesse e a paixão que Leo Berardinis desenvolverá pelo mundo das máscaras
de
Commedia
, com o seu espetáculo
Il ritorno di Scaramouche
[A Volta de
Scaramouche].
O retorno de
Il Falso Magnifico
[O Falso Magnífico] e o
nascimento de
Il ritorno di Scaramouche
[A Volta de
Scaramouche]
De fato,
Il ritorno di Scaramouche
[A Volta de Scaramouche]
34
representa uma
ruptura na atividade teatral de Leo de Berardinis, conhecido por suas pesquisas
muito pessoais no teatro de vanguarda, um retorno à uma tradição que parece
uma reviravolta. Na realidade, talvez se deva pensar, como Stefano Perrocco me
deu a entender
35
, que, por meio do encontro com o universo poético de Carlo Boso,
ele introduz as máscaras no seu teatro de vanguarda, revelando vínculos de
parentesco ocultos entre o mundo
dell´arte
e a vanguarda teatral. A proximidade
33
F. LAZZARINI. “
Bentornata Commedia dell´Arte
” [Bem-Revinda Commedia dell´Arte], op. cit.
34
Il ritorno di Scaramouche
[A Volta de Scaramouche] é considerado pela crítica o terceiro elemento da trilogia
teatral que compreende
Ha da passà ´a nuttata
[A noite de passar], de 1989, baseada em
Napoli
Millionaria
[Nápoles Milionária], de Eduardo de Filippo, e
Totò, principe di Danimarca
[Totó, Príncipe da
Dinamarca], de 1990. Franco VAZZOLER,
Riscrivere la commedia dell´Arte, di Leo de Berardinis
[Reescrever a
Commedia dell´Arte
: A Volta de Scaramouche, de Leo de Berardinis],
Drammaturgia
[Dramaturgia], 8 de janeiro de 2007, http://drammaturgia.fupress.net/saggi/saggio.php?id=3171 (consultado
em 8/1/2007).
35
Cf. Giulia FILACANAPA.
Leo de Berardinis e le maschere. Intervista a Stefano Perocco di Meduna
[Leo de
Berardinis e as máscaras. Entrevista com Stefano Perocco di Meduna], Atti&Sipari [Atos & Cortinas], 2,
abril de 2008, p. 42-44.
A
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ou “A Invenção de uma Tradição”:
Carlo Boso e Leo de Berardinis, dois
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de atores como Bobette Lévesque
36
e Eugenio Allegri
37
, contratados pelo TAG, mas
também pela companhia de Leo, leva de Berardinis a interrogar o peso da tradição
italiana do teatro de máscaras no espírito dos atores italianos contemporâneos, e
a reedição de
Il Falso Magnifico
[O Falso Magnífico]
38
considerado pela crítica
como um manifesto de (neo)
Commedia dell´Arte
39
, no âmbito do Festival de
Santarcangelo, por ele dirigido entre 1994 e 1999 acelera o processo. Com vários
anos de distância, a companhia do TAG propõe novamente os princípios teóricos
que haviam guiado a sua criação:
A fidelidade a um trabalho constante de pesquisa e de experimentação
sobre a dramaturgia, sobre o gesto, sobre a interpretação das máscaras
e sobre os mecanismos do cômico, o vínculo com a tradição da “comédia
à italiana” e a ligação com os contextos (histórico, antropológico), [o
respeito] pela obra dos grandes mestres do pós-guerra
40
.
Pode-se emitir a hipótese de que esses princípios guiaram de Berardinis em
sua vontade de montar um espetáculo inspirado pelos tipos e pelas técnicas da
Commedia dell´Arte
, e que ele tirou do trabalho de Boso o gestual não realista, o
ritmo da improvisação e a extrema liberdade deixada para o ator a fim de compor
a sua própria personagem. No entanto, de acordo com Stefano Perocco, parece
que as máscaras entraram no projeto por acaso
41
, e foi a partir desse momento
36
Bobette LEVESQUE colabora com Leo em 1990, em
Metamorfosi
[Metamorfoses]; ela participa a seguir do
espetáculo
Totò, principe di Danimarca
[Totó, Príncipe da Dinamarca], e de uma reprise desse espetáculo
em 1993.
37
Eugenio ALLEGRI, ator de renome na Itália e no estrangeiro, atua para Leo em:
Novecento e Mille
[Século XX
e Mil] (1987),
Delírio
[Delírio] (1987),
Macbeth
(1988), e
Ha da passà ´a nuttata
[A noite há de passar] (1989).
38
O elenco do espetáculo em Santarcangelo, em 8 e 9 de junho de 1994, era composto por Eugenio Allegri,
Giorgio Bertan, Alessandro Bressanello, Laura Boato, Eleonora Fuser, Adriano Jurissevich, Bobette Levesque,
Marco Paolini e pelos dois substitutos, Barbara Mautino e Mirco Artuso. O espetáculo e a turnê subsequentes
eram produzidos por Moby Dick Centro de produção de Mira em parceria com os
Teatri della Riviera
[Teatros da Riviera].
39
Autor desconhecido,
Il Falso Magnifico, undici anni dopo
e
Scene d´estate
celebra il TAG” [O Falso
Magnífico, onze anos depois, e “Cenas de Verão” celebra o TAG],
La tribuna di Treviso
[A Tribuna de Treviso],
15 de julho de 1994.
40
E. ALLEGRI. “
Programma Santarcangelo
” [Programa Santarcangelo], op. cit., p. 33.
41
Ao voltar de uma exposição, Perocco se apresenta nos ensaios com uma caixa cheia de máscaras, que é
cercada pelos atores da companhia de Leo. Cf. G. FILACANAPA, “
Leo de Berardinis e le maschere. Intervista
a Stefano Perocco di Meduna
[Leo de Berardinis e as máscaras. Entrevista com Stefano Perocco di
Meduna], op. cit.
A
Neo-commedia dell´arte
ou “A Invenção de uma Tradição”:
Carlo Boso e Leo de Berardinis, dois
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Modernos
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que a metamorfose dos atores de Berardinis se realizou, adotando esses objetos,
e que
Il ritorno di Scaramouche
[A Volta de Scaramouche] se tornou um
espetáculo “com máscaras”. De Berardinis tenta então “reinventá-las
independentemente de qualquer vontade filológica, seja ela possível, seja ela
impossível”
42
. Para ele, o estrado da Commedia, iluminado, posto no centro do
palco, torna-se o lugar da utopia
dell´arte
, e o palco (quase sempre na sombra) é
o lugar da hipocondria.
Il ritorno di Scaramouche di Jean Baptiste Poquelin e Leòn de Berardin
[A
Volta de Scaramouche, de Jean-Baptiste Poquelin e de Leòn de Berardin] estreia
em novembro de 1994, pouco tempo depois da descoberta do mundo de Boso por
de Berardinis, por meio do espetáculo
Il Falso Magnifico
[O Falso Magnífico], o qual,
não obstante, nunca será reconhecido por ele como fonte da sua inspiração. Ao
contrário, na “Introdução” ao texto publicado em 1995
43
, declara que reuniu em seu
espetáculo dois dentre os seus centros de interesse principais: um relativo à vida
de Molière e outro relativo ao ator-autor Tiberio Fiorilli, inventor da personagem de
Scaramouche, mestre provável de Molière, ambos representativos, a seu ver, do
fenômeno complexo da
Commedia dell´Arte
, “único grande momento da história
do teatro ainda lembrado por nós por causa da maestria dos atores e não em
razão da grandeza dos textos escritos”
44
. Desse modo ele quer recuperar a
mentalidade dos grandes autores-atores, “na medida em que o ator é o teatro”
45
,
o que faz parte fundamentalmente da sua abordagem do teatro, e, além disso, o
aproxima de Carlo Boso.
Outro ponto comum é a utilização da improvisação, que Berardinis praticava
certamente na época em que trabalhava em Marigliano
46
, mas que se torna
42
Leo DE BERARDINIS. “Introduzione” [Introdução],
Il ritorno di Scaramouche di Jean Baptiste Poquelin e Leòn
de Berardin
[A Volta de Scaramouche, de Jean-Baptiste Poquelin e de Leòn de Berardin]. Bolonha: Libri Arena
Fuori Thema, 1995, p. 5-6, cf. p. 6.
43
Leo DE BERARDINIS.
Il Ritorno di Scaramouche di Jean Baptiste Poquelin e de Leòn de Berardin
[A Volta de
Scaramouche, de Jean-Baptiste Poquelin e de Leòn de Berardin], op. cit.
44
Ibid., p. 5.
45
Renzo GUARDENTI.
Leo, Il corpo vivente dell´attore
” [Leo, o corpo vivo do ator],
Il Castello di Elsinore
, ano
IX, n. 26, 1996, p. 135-142, cf. p. 141.
46
Leo de Berardinis está ativo a partir dos anos 60 em Roma, e depois na região de Nápoles (Marigliano), onde
experimenta a descentralização cultural com Perla Peragallo. Em 1983, está em Bolonha com a Cooperativa
Nuova Scena [Cooperativa Nova Cena]. Funda nessa cidade Il Teatro di Leo [O Teatro de Leo]. Cf. Gianni
A
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ou “A Invenção de uma Tradição”:
Carlo Boso e Leo de Berardinis, dois
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Modernos
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15
realmente — após o encontro com o mundo das máscaras de Boso — um modus
operandi por ele utilizado para pôr toda a companhia para trabalhar. Por isso, em
vez de dizer, como o faz Renzo Guardenti, que “Leo parece recuperar, na prática
da
Commedia dell´Arte
, os próprios princípios do seu trabalho”
47
, eu diria que ele
integra os princípios que estão na base da poética de Boso, adaptando-os ao seu
próprio trabalho e apropriando-se deles.
Nesse processo de aquisição, é evidente que o gênio criativo de Leo o impele,
posteriormente, para soluções muito diferentes das de Carlo Boso. É essa
“reutilização” ou essa “regeneração” da tradição, filtrada pelo trabalho de Boso,
que eu gostaria de analisar agora brevemente.
Novos horizontes
A trama muito despojada de
Il ritorno di Scaramouche
[A Volta de
Scaramouche] é apenas um pretexto para ações com máscaras e situações
cômicas. O espetáculo é uma sequência de “quadros” que alternam as ações de
uma “peça emoldurante” [pièce-cadre] e de uma “peça intercalada” [“pièce
enchâssée”], segundo a técnica do teatro no teatro, muito presente no repertório
dos atores
dell´arte
no século XVII, e em Molière
48
. A “peça emoldurante/peça-
quadro” [pièce-cadre] conta a partida da companhia de Tiberio Fiorilli rumo à Corte
da França, enquanto “a peça intercalada” se articula em torno da figura de Lallo,
primeiro Enamorado desaparecido, com atuação de Antonio Alveario.
Representando ser atores, os atores encarnam uma série de figuras — tipos fixos
da
Commedia dell´Arte
que compõem uma trupe ideal, e a mensagem global
do espetáculo é o choque entre a vida e a morte, sobre o tema da utopia
necessária: uma luta contínua da qual a arte do teatro é um símbolo e um
instrumento.
Duas sequências são particularmente significativas do vínculo mantido por
MANZELLA.
La belezza amara. Il teatro di Leo de Berardinis
[A Beleza Amarga. O teatro de Leo de Berardinis].
Parma: Pratiche Edit., 1993.
47
Renzo GUARDENTI. “
Leo, Il corpo vivente dell´attore
” [Leo, o corpo vivo do ator], op. cit., p. 141.
48
Cf. Franco VAZZOLER, “Riscrivere la commedia dell´arte,
Il ritorno di Scaramouche di Leo de Berardinis
[Reescrever a Commedia dell´Arte: A Volta de Scamamouche, de Leo de Berardinis],
op. cit
.
A
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Carlo Boso e Leo de Berardinis, dois
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16
de Berardinis com a
neo-Commedia dell´Arte
e da sua contribuição inovadora. A
primeira tem como protagonista Donna Elvira, irmã de Lallo, que vem em auxílio
do “seu” irmão e da Humanidade, na forma da Bruxa do Bem, lembrando a
Feiticeira criada em 1983 por Eleonora Fuser para
Il Falso Magnifico
[O Falso
Magnífico]. Como esta, a atriz Francesca Mazza escolheu para a sua personagem
a máscara branca, a qual importa salientar não pertence à panóplia das
máscaras utilizadas historicamente pelos atores improvisadores. A máscara da
Feiticeira é, pois, específica da
neo-Commedia dell´Arte
, tão funcional e
emblemática que é encontrada com frequência nos espetáculos mais recentes.
Eleonora Fuser a escolhera para preencher um vazio: na
Commedia dell´Arte
histórica, as mulheres nunca usam máscara, sem dúvida para não esconder com
objetos demoníacos (as máscaras) a beleza feminina, fonte de atração para o
público. Nos roteiros antigos, encontramos alguns exemplos, raros, de mulheres
com máscaras, mas se trata sempre de travestimentos, de mulheres que
envergam roupas masculinas para se livrar de situações embaraçosas. Portanto,
Fuser cria uma tipologia feminina, longe das matronas, das criadas e das
enamoradas, e um objeto-máscara feminino. Se ela escolheu a Feiticeira, talvez
seja como eco às reivindicações feministas italianas dos anos 70, em cujo decorrer
ressoava a palavra de ordem: “Tremam, tremam, as Feiticeiras estão de volta!” Em
compensação, a paternidade da máscara e da sua forma deve ser atribuída a
Stefano Perocco, que se inspira na cor do sudário, por excelência símbolo da
morte. Em
Scaramouche
, Francesca Mazza pensa que pode trazer algumas
modificações estruturais à personagem sem trair a sua essência e impedir o seu
reconhecimento pelo público. Ela caracteriza a personagem por um
grommelot
interessante e exótico e por uma “genial síntese gestual do teatro oriental”
49
.
Consequentemente, em menos de dez anos a máscara branca da Feiticeira
conseguiu entrar para os cânones da
neo-Commedia dell´Arte
e permitir também
a sua evolução.
Outra cena importante diz respeito ao “lazzo da mosca”, um dos lazzi tópicos
do Zanni das origens, que se tornou famoso hoje em dia pela sua reinterpretação,
feita por Dario Fo em seu espetáculo
La Fame dello Zanni
[A Fome do Zanni], mas
49
Ibid.
A
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17
presente na
Commedia degli Zanni
[Comédia dos Zanni], de Giovanni Poli, em
1958, espetáculo concebido com base em documentos originais oferecidos pela
coletânea de Vito Pandolfi
50
, assim como na reinvenção cênica de
O Arlequim
Servidor de Dois Amos
, de Giorgio Strehler. Leo de Berardinis utiliza esse lazzo
num jogo singular de desdobramento e de ironia. Sobre um estrado minúsculo,
dois pares de senhores-servidores se enfrentam: Pantaleão e Vongola contra Lallo
e Pulci. Já não é somente Arlequim e Zanni que combatem a sua própria fome, e
se banqueteiam ao redor de uma mosca magra, mas um verdadeiro desafio em
que os criados se transformam em cães de caça que brigam pelo inseto.
Graças ao testemunho de Elena Bucci, que interpreta a personagem
inquietante e ambígua da Morte, podemos perceber o alcance regenerador das
máscaras no trabalho de Leo de Berardinis e de seus atores, na sua maneira de
basear-se na tradição para explorar novos mundos, atmosferas desconhecidas em
que o ator finalmente podia se reconhecer como o único autor de si mesmo:
A proposta de trabalhar com máscaras foi, para nós, atores do Teatro de
Leo, uma ocasião excepcional de mudança, uma revelação. [...] Para
Il
Ritorno di Scaramouche
[A Volta de Scaramouche], ele fez com que
recorrêssemos a fontes que nunca havíamos utilizado, pesquisando-as e
afinando-as. Ele também as impôs a si mesmo. [...] Chegara a hora em
que cada ator devia se tornar autor, apropriando-se de todos os
instrumentos do ofício, do texto à criação da personagem, do
treinamento físico à prática da improvisação”
51
.
Um teatro composto de atores-autores: eis a grande “invenção” das
experimentações do século XX em torno da
Commedia dell´Arte
. Apesar do
desaparecimento demasiadamente rápido desse artista visionário, foram os seus
atores que fizeram com que progredisse a visão da
Commedia dell´Arte
desenvolvida pela tríade Strehler-De Bosio-Poli, por meio do filtro da experiência
de Carlo Boso, o qual viera à França para forjar novos Scaramouches.
50
Cf. Vito PANDOLFI.
La Commedia dell´arte. Storia e testi
[A
Commedia dell´Arte
. História e Textos]. 6 vol.
Florença: Sansoni, 1957-1961.
51
Elena BUCCI.
Inquieti e senza salutare. L´incontro com Scaramouche
[Inquietos e sem cumprimentar. O
encontro com Scaramouche], in Claudio MELDOLESI, Angela MALFITANO e Laura MARIANI (org.).
La terza
vita di Leo. Gli ultimi vent´anni del Teatro di Leo a Bologna
[A terceira vida de Leo. Os últimos vinte anos do
Teatro de Leo em Bolonha]. Corazzano (Pi): Titivillus, 2010, p. 128-133, cf. p. 131.
A
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18
Conclusão
Em Paris, no dia 21 de outubro de 2013, durante os funerais do mestre de
armas Bob Heddle Roboth — amigo e fiel colaborador de Carlo Boso desde o TAG
—, assisti a um momento particularmente comovedor e excepcional. Coube a um
jovem ator reconhecido, que atuava como Scaramouche, a honra de ler em voz
alta esta mensagem de condolências enviada por Carlo Boso: “Foi a Fabio, o nosso
Scaramouche atual, que pedi que lesse esta mensagem, Bob, pois Fabio carrega
na ponta da sua espada, a cada representação, o que tu sempre soubeste dar a
todos os teus alunos”. Carlo Boso reconhece assim em Fabio Gorgolini
52
, jovem
ator italiano imigrado (como na melhor tradição
dell´arte
, caracterizada pelas
viagens incessantes das trupes), o fato de ser esse o herdeiro moderno, não da
personagem inventada por Tiberio Fiorilli, mas de um Scaramuccia reinventado
pelo TAG, revisitado por Leo de Berardinis, e de volta à França depois de dois
séculos de silêncio.
Recebido em: 10/12/2022
Aprovado em: 10/12/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br
52
Fabio GORGOLINI funda, em 2008, com Ciro CESARANO ambos diplomados pela Académie Internationale
des Arts du Spectacle [Academia Internacional das Artes do Espetáculo] a companhia Teatro Picaro
[Teatro Pícaro], em busca de uma nova escrita teatral baseada na tradição do teatro popular.