1
Da técnica como poética: um quiasma de dança a
partir de Michel Bernard
Thereza Cristina Rocha Cardoso
Rosa Ana Fernandes de Lima
Sylvio de Sousa Gadelha Costa
Para citar este artigo:
CARDOSO, Thereza Cristina Rocha; LIMA, Rosa Ana
Fernandes de; COSTA, Sylvio de Sousa Gadelha. Da
técnica como poética: um quiasma de dança a partir
de Michel Bernard.
Urdimento
Revista de Estudos
em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1, n. 46, abr. 2023.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101462023e0206
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Da técnica como poética: um quiasma de dança a partir de Michel Bernard
Thereza Cristina Rocha Cardoso | Rosa Ana Fernandes de Lima | Sylvio de Sousa Gadelha Costa
Florianópolis, v.1, n.46, p.1-20, abr. 2023
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Da técnica como poética: um quiasma de dança a partir de Michel
Bernard
1
Thereza Cristina Rocha Cardoso
2
Rosa Ana Fernandes de Lima
3
Sylvio de Sousa Gadelha Costa
4
Resumo
O presente artigo é parte inédita da pesquisa de doutorado, em fase de
finalização, no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade
Federal do Ceará, em que se realiza um estudo tradutório para o português
da seminal obra
De la Création Chorégraphiq
ue, de Michel Bernard (2001). O
texto integra a Introdução crítica da tese em que são propostas reflexões no
intento de enredar as práticas filosófica e pedagógica em dança, a partir do
pensamento do filósofo. Investigou costuras conceituais que buscaram
colaborar para uma compreensão de técnica em dança imanente aos
processos sensório-perceptivos da experiência corporal. As experimentações
aqui apresentadas colocaram, em relação, noções fulcrais na obra do autor
corporeidade dançante, orquesalidade e teoria ficcionária da sensação
enquanto território fértil para repensar o ensino de saberes técnicos em
dança, tomando-os como uma das imbricadas faces da poética da dança.
Pensar a técnica enquanto poética foi o nosso intento.
Palavras-chave:
Técnica em dança. Poética da corporeidade. Michel Bernard.
Pedagogia em dança.
1
Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Eva Celia Barbosa - Bacharel em Letras pela
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP).
2
Pós-doutorado pelo Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal de São João del
Rei (UFSJ). Doutora em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Mestre
em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduada em Comunicação
Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF ). Professora dos cursos de Bacharelado e de Licenciatura
em Dança e do Programa de Pós-graduação em Artes| PPGARTES do Instituto de Cultura e Arte (ICA) da
Universidade Federal do Ceará (UFC). thereza.rocha@ufc.br
http://lattes.cnpq.br/9450346202377323 https://orcid.org/0000-0001-5583-1571
3
Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre
em Artes do Espetáculo Coreográfico pela Universidade de Paris 8. Graduada em Artes do Espetáculo
Coreográfico pela Universidade de Nice Sophia Antipolis e pela Universidade de Paris 8. É professora dos
cursos de Graduação em Dança da Universidade Federal do Ceará (UFC). rosaana@ufc.br
http://lattes.cnpq.br/4427706793228362 https://orcid.org/0000-0001-7234-1996
4
Pós-Doutorado em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutor em Educação
pela Universidade Federal do Ceará (UFC) - com estudos complementares no Núcleo de Estudos e Pesquisas
da Subjetividade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP). Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Graduado
em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor do Departamento de Fundamentos da
Educação da FACED-UFC. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Ceará (UFC), Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia do
Instituto de Cultura e Arte (ICA-UFC). sylviogadelha@uol.com.br
http://lattes.cnpq.br/4315233410228338 https://orcid.org/0000-0003-3590-1979
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Of the technique as poetics: a chiasm of dance from Michel Bernard
Abstract
The present manuscript is part of the still unpublished ongoing PhD research
developed in the Post-Graduation Program in Education of the Federal
University of Ceará, which performs an investigation along with the translation
to the Portuguese of the seminal work
De la Création Chorégraphique
de
Michel Bernard (2001). The text comprehends the critical Introduction of the
thesis and proposes considerations in the search of entangle the
philosophical and pedagogical practices in dance from the philosophical
thinking. It has been investigated conceptual bonds that aim to collaborate
for a comprehension of the techniques in dace which are immanent to the
sensory-perceptual processes of the bodily experience. The experimentation
presented here relate central notions of the author’s work dancing
corporeality, orchesality and the author’s fictioning theory of sensation- as a
fertile ground to rethink the teaching of the technical knowledge in dance,
making them as one of the imbricate aspects of the poetics of the dance. To
think technique as poetics has been our goal.
Keywords
: Dance technique. Poetics of corporeality. Michel Bernard. Dance
pedagogy.
De la técnica como poética: un quiasma de danza desde el
pensamiento de Michel Bernard
Resumen
Este artículo es parte inédita de la investigación de doctorado en fase de
finalización en el Programa de Posgrado en Educación de la Universidad
Federal de Ceará, que realiza un estudio de traducción al portugués de la obra
seminal
De la Création Chorégraphique
, de Michel Bernard (2001). El texto
forma parte de la introducción crítica de la tesis y propone reflexiones en la
búsqueda por enredar las prácticas filosóficas y pedagógicas en danza desde
el pensamiento del filósofo. Investigó costuras conceptuales que buscaron
colaborar para una comprensión de la técnica en danza inmanente a los
procesos sensorio-perceptivos de la experiencia corporal. Los experimentos
aquí presentados relacionaron nociones clave en la obra del autor -
corporeidad danzante, orquidealidad y teoría ficcional de la sensación - como
territorio fértil para repensar la enseñanza de los saberes técnicos en danza,
tomándolos como uno de los rostros entrelazados de la poética de la danza.
Pensar la técnica como poética fue nuestra intención.
Palabras clave
: Técnica en danza. Poética da corporeidad. Michel Bernard.
Pedagogía en danza.
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Introdução
O artigo aqui apresentado é fruto de uma pesquisa de doutorado
5
em fase de
finalização, desenvolvida no Programa de Pós-graduação da Faculdade de
Educação da Universidade Federal do Ceará (UFC). Na pesquisa assumiu-se como
tarefa primacial a primeira tradução, para a língua portuguesa do Brasil, da íntegra
da obra basilar do filósofo francês Michel Bernard (2001):
De la Création
Chorégraphique
.
A tradução é tratada, na tese, como estudo, uma vez que auxilia a pesquisa
em suas costuras conceituais entre o conteúdo da obra original e a hipótese de
pesquisa. O texto integra a introdução crítica da tese na qual se propõe a
apresentar o autor, a circunscrever o contexto de emergência da obra e a forma
como integra sua trajetória filosófica. Sugere uma leitura singular ao produzir
incursões da filosofia de Michel Bernard em questões oriundas do estudo das
técnicas em dança, experimentando colocar em ressonância conceitos
trabalhados na obra em exame e indagações emergentes da experiência do
movimento dançado. Por essa razão, no artigo, são compartilhados excertos da
introdução crítica supracitada, incorporando uma cartografia dos trânsitos, das
aproximações e fricções conceituais que o filósofo realiza para elaborar sua “‘teoria
ficcionária’ da sensação” (Bernard, 2001, p. 120, grifo no original)
6
, sugerindo-a, e
essa é nossa suposição, como privilegiada interlocutora para problematizar a
noção de técnica em dança e das práticas de ensino que pretendem abordá-la.
O recorte que ora apresentamos pretende cindir um veio na atualidade da
pesquisa para fazer aparecer um autor, uma obra e um exercício conceitual de
filosofia e pedagogia em dança. É o que será tecido nas linhas deste artigo.
Michel Bernard
7
é diplomado pela Faculdade de Letras e Ciências Humanas de
5
Título da tese: Tradução da obra
De la création chorégraphique
, de Michel Bernard: contextos,
tensionamentos e possíveis relações com as experiências de uma artista-docente. Autora: Rosa Ana
Fernandes de Lima. Previsão de defesa: junho de 2023.
6
Théorie ficcionaire de la sensation. (Tradução de Rosa Ana)
7
Informações biográficas acessíveis no site do Departamento de Dança da Universidade de Paris 8. Disponível
em: http://www.danse.univ-paris8.fr/chercheur.php?cc_id=8&ch_id=22. Acesso em: 28 jan. 2021.
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Grenoble/França, em Estudos Superiores de Filosofia. Foi professor de Estética
Teatral na Universidade de Avignon/França, onde fundou o Instituto de Pesquisas
Internacionais sobre as Artes do Espetáculo. Criou, em 1989, o Departamento de
Dança, na Unidade de Formação e Pesquisa Artes-Filosofia-Estética, da
Universidade de Paris 8. Michel Bernard escreveu importantes obras para os
campos da estética, da filosofia e das artes, como
O Corpo
(1995)
8
, que foi
traduzida para o italiano, espanhol e português. Em
De la Création Chorégraphique
(2001), o autor reúne seus principais artigos sobre dança contemporânea. Filósofo
interessado insistentemente pelas produções corporais, Michel Bernard lançou
instigantes questionamentos acerca dos fenômenos da expressividade do corpo,
sobretudo, nas práticas artísticas ligadas à dança e ao teatro.
Assumindo uma abordagem filosófica em conexão com as experiências de
dança, seu projeto, tanto pedagógico quanto filosófico, deslocou, na universidade
francesa, as relações entre dança contemporânea e pesquisa, criando, ao
inaugurar o Departamento de Dança, em colaboração com dançarinos, coreógrafos
e pedagogos, um espaço formativo aberto para acolher trabalhos de artistas e
pesquisadores de dança
9
. Horizontalidade intra/extra-acadêmica, cuja política
interessou à pesquisadora Thereza Rocha (2012, p. 72-73), quando afirma:
Trata-se, importante marcar, de
uma
filosofia e
uma
dança que supõem
no artigo indefinido a possibilidade de tantas filosofias e tantas danças
quanto queira o fôlego inventivo de uma e de outra, em acordo com o
filósofo Michel Bernard, em seu texto
Parler, penser la danse
, quando
assinala ‘Eu digo: dançarinos e filósofos para não utilizar de maneira mais
fácil a categorização institucional, a dança, a filosofia, como se existissem
como tais, em si, enquanto não existe outra coisa senão indivíduos que
inscrevem seus pensamentos em uma dada cultura’ (grifos no original).
Na obra aqui em estudo, Michel Bernard (2001) compartilha reflexões e
problematizações acerca dos modelos cognitivos e discursivos que sustentam, no
pensamento hegemônico ocidental, bem como no campo da dança,
entendimentos sobre corpo, sensação e percepção. O autor questiona as
8
Em português, tradução de Renato Aguiar: Michel Bernard, 2016.
9
Considerações sobre Michel Bernard disponíveis em: http://www.chercheurs-en-danse.com/fr/actualites-
recherche/hommage-%C3%A0-michel-bernard. Acesso em: 12 jan. 2021.
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implicações desses modelos nas políticas de criação, fruição e formação em
dança, propondo, em contraponto, pensar tais noções a partir de concepções
singulares de corporeidade e temporalidade.
Para tanto, Michel Bernard (2001) delineia o que seria o território de
acontecimento e a matéria específica do ato de dança, considerando-os como
orquestrações das temporalidades que movem a corporeidade e o conjunto de
suas ficções sensoriais. Construindo tramas conceituais, ao mesmo tempo em que
toma como referência diferentes obras contemporâneas, esse filósofo analisa
possibilidades de criação nas interlocuções entre dança e outras organizações
poéticas, como o texto escrito, a música e imagem.
Trata-se de uma rede conceitual intrinsecamente ligada aos estudos
conduzidos por pesquisadores com passagens e ancoragens na Universidade de
Paris 8
10
e ao cenário de insubordinação mobilizado pelas danças contemporâneas
europeias e estadunidenses, sobretudo, aquelas da França das décadas de 1970,
1980 e 1990.
Como produção teórica instigada pela prática artística, a obra dedica parte
significativa de seus escritos a um exame refinado do que, para o autor, seriam
elementos fundantes dos processos de criação coreográfica. Desse modo, Michel
Bernard (2001) examina minuciosamente a dinâmica da sensorialidade atrelando-
a à invenção conceitual das noções de corporeidade dançante e orquesalidade.
Em
De la Création Chorégraphique
, portanto, o filósofo conecta as questões
relacionadas aos atos de dançar e sentir, ao poder ficcionário da corporeidade e
aos processos de criação e recepção coreográfica.
A riqueza conceitual encontrada na obra pode ter propriedade catalisadora
10
Entre os anos de 2007 e 2012, Rosa Ana em análise realizou parte da graduação e a integralidade do
mestrado no Departamento de Dança da referida universidade, entrando mais profundamente em relação
com o pensamento de M. Bernard durante essa jornada formativa. A produção escrita do filósofo é de grande
valia para as pesquisas em dança da Universidade de Paris 8. A noção de corporeidade dançante, a
articulação que ele sugere entre agir e sentir, seus contributos conceituais para (re)pensar o fenômeno
sensório-perceptivo e a importância conferida à função do imaginário, sustentam, disparam e
problematizam muitos dos desejos de pesquisa que ali circulam. Durante a estada nessa universidade, a
doutoranda pôde elaborar uma postura de pesquisa aliada à trajetória de artista-docente. Nesse processo,
a filosofia de M. Bernard a estimulou a produzir pensamento em dança partindo da investigação do seu
próprio contexto de dançarina e professora. Este escrito resulta justamente de um dos voos, sempre
aventurosos, que a leitura do autor permitiu-lhe alçar, no qual se empenha em formular perguntas para
fortalecer, e até mesmo reivindicar, a dimensão poética do ensino de saberes técnicos em dança.
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de diversos problemas de pesquisa. No caso deste artigo, incita um exercício de
articulação entre práticas filosóficas e pedagógicas em dança. Desse modo, o texto
aqui compartilhado partiu de noções fulcrais no pensamento do autor
corporeidade dançante, orquesalidade e teoria ficcionária da sensação –, enquanto
território fértil para repensar o ensino de saberes técnicos em dança, tomando-os
como uma das imbricadas faces da poética da dança.
Neste escrito, propõem-se costuras filosóficas que podem colaborar para
uma (urgente) compreensão de técnica em dança imanente aos processos
sensório-perceptivos da experiência corporal. Desenvolve-se, assim, uma
investigação conceitual com o intento de apreender as coordenadas técnicas do
movimento em meio à trama da atividade sensorial, apontando desdobramentos
pedagógicos e metodológicos que podem advir dessa leitura quiasmática da
técnica como poética.
Desenvolvimento
Em
De la Création Chorégraphique
, Michel Bernard (2001) promove a
subversão do conceito de corpo, ao propor a noção de corporeidade enquanto
devir material e energético, moldados pela historicidade de um imaginário, a um
só tempo, social e individual
11
. Essa concepção de corporeidade, atravessada pela
compreensão poética que o autor oferece da dança, proporciona a emergência da
ideia de corporeidade dançante, enquanto modo singular de vivenciar o instante
de dança, de criar e recriar a si mesmo como fruto da experiência única do
movimento.
O autor enumera quatro traços que especificam a corporeidade que dança:
11
Como explica o próprio M. Bernard (2001, p. 21-22, tradução de Rosa Ana), o termo corporeidade não é
originário de seu pensamento: “os tradutores franceses de Husserl e, em particular, Paul Ricoeur,
empregaram-no, por vezes, como o equivalente de duas palavras alemãs: Leibhaftigkeit e Körperlichkeit”.
Porém, esse filósofo afirma que as significações conferidas a esse termo pelo fundador da fenomenologia
e seus discípulos, diferem do entendimento que ele sugere: “a acepção fenomenológica da categoria de
‘corporeidade’ se reduz a designar a modalidade concreta ou sensorial do processo cognitivo e não, como
eu acredito fazer, a estrutura ou a trama que subtende a própria sensorialidade, unicamente em sua
materialidade e maleabilidade, independente de toda intencionalidade noética”. Assim, segundo M. Bernard
(2001), a acepção de corporeidade que as fenomenologias de Husserl e M. Ponty oferecem ainda
permanecem atreladas a uma preocupação ontológica, tomando a corporeidade como realidade orgânica
que preenche a consciência ou a relação desta com o mundo.
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(1) a capacidade de se metamorfosear, de diluir sua identidade numa rede de
sensações e imaginários que produzem uma infinidade de sentidos; (2) a tecedura
e destecedura da temporalidade, em seu próprio devir, em seu fazer e desfazer
em acontecimentos, afirmando, em atos, a existência do sujeito e a sua realidade;
(3) a questão da gerência de seu peso, ou seja, o jogo que a corporeidade cria com
a gravidade; (4) e o desejo de retorno a si mesma, um mergulho numa espécie de
espaço fictício, no qual pode explorar suas potencialidades sensório-motoras, o
que lhe permite distanciar-se do mundo ao mesmo tempo em que busca a ele
fundir-se
12
.
Segundo Michel Bernard (2001, p. 83), a dança irrompe quando o movimento
se esquiva de uma finalidade imposta. Nesse evento, o corpo liberta-se das
predeterminações técnicas, estéticas e econômicas, podendo gingar com as forças
postas pela gravidade e pela razão, embriagando-se num processo de intenso
devir. Esse movimento de devir é aquele de se metamorfosear em formas e
sentidos sempre transitórios, numa impermanência entre imersão em si mesmo,
em suas possibilidades sensório-motoras, e num movimento de fusão com o
mundo:
Ele [o corpo] tende, então, a se refletir como num espelho, a se especular,
jogando inocentemente com as restrições simultâneas da força da
gravidade e da ordem racional: assim, ele desconstrói e perverte, a seu
bel-prazer, o fluxo temporal segundo as fantasias de seu imaginário
sensorial, enquanto o converte espacialmente, tornando-o visível e
figural.
13
Para o filósofo, essa dinâmica temporal da corporeidade dançante permite a
emergência de seu jogo expressivo, enraizado, como antes citado, em seu
imaginário sensorial. No pensamento do autor, essa disposição temporal e sensível
do funcionamento da expressividade em dança faz com que o movimento
dançante seja um acontecimento que subverte as normalizações e normatizações
de qualquer finalidade exterior à sua realização.
12
Para mais informações, ver:
De la Création Chorégraphique
(Bernard, 2001, p. 82).
13
Il tend alors à se réfléchir comme dans un miroir, à se spéculariser, jouant innocemment avec les contraintes
simultanées de la force gravitaire et de l’ordre rationnel : ainsi déconstruit-il et pervertit-il à plaisir le flux
temporel, selon les fantaisies de son imaginaire sensoriel, tout en le convertissant spatialement, en le
rendant visible et figural. (Tradução de Rosa Ana).
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Aliado ao entendimento de corporeidade que ele mesmo elabora, a partir da
observação de experiências artísticas contemporâneas, o autor investiga o
trabalho da sensorialidade, afirmando a articulação entre dizer, sentir e agir. Michel
Bernard (2001) sublinha as conexões entre os funcionamentos da corporeidade e
sensorialidade, na realização e percepção do ato dançado e nos processos de
criação coreográfica. O filósofo acredita que o processo de desconstrução
perceptiva do corpo desvelado pela situação espetacular, mas que ocorre, em
outra medida, na mais cotidiana das experiências corporais –, encontra-se
imbricado a um mecanismo que ele considera como ainda mais radical e que é
intrínseco a todo ato perceptivo. Tal processo diz respeito ao próprio
funcionamento da sensorialidade, que se dá por meio de “interferências cruzadas
de projeções múltiplas e heterogêneas” (Bernard, 2001, p. 90)
14
, regendo a
totalidade do ato de sentir.
Esse mecanismo habitaria e animaria cada modalidade sensorial, seja “no seio
da própria sensação, entre sensações de órgãos diferentes, entre o sentir e o dizer,
ou se preferirmos, entre o sentir e o ato de enunciação da fala e da escrita, e,
in
fine
, entre corporeidades distintas” (Bernard, 2001, p. 90)
15
.
Essa leitura do fenômeno sensorial advém da articulação que Michel Bernard
(2001) experimenta entre sua própria interpretação da teoria quiasmática da
sensorialidade (Merleau-Ponty, 1964) com a concepção de “mecanismo
enunciativo” (Bernard, 2001, p. 95)
16
, que ele propõe tendo como apoio os estudos
de Algirdas Julius Greimas e Joseph Courtés (1979).
Com efeito, ao sugerir o cruzamento entre o sentir e o ato de enunciar, Michel
Bernard (2001) prolonga o achado de Maurice Merleau-Ponty (1964) que
observava uma correspondência entre ver e dizer ao passo que também
recupera a noção de mecanismo de “debreagem” (Greimas; Courtés, 1979, p. 79-
14
Interférences croisées de projections multiplex et hétérogènes (Tradução de Rosa Ana)
15
Au sein de la sensation elle-même, entre des sensations d’organes différents, avec le dire ou, si l’on préfère,
l’acte d’énociation de la parole et de l’écriture et, in fine, entre des corporéités distinctes. (Tradução de Rosa
Ana)
16
Mécanisme énonciatif (Tradução de Rosa Ana)
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10
82)
17
. Esse mecanismo é usado no campo da linguística para nomear o processo
de emissão e agenciamento de elementos linguísticos, tanto fonéticos quanto
escriturais, como modo de criar enunciados capazes de funcionar como
“‘realidades-substitutas’” (Bernard, 2001, p. 117)
18
. Tal procedimento envolveria,
portanto, a produção e projeção de simulacros críveis, passíveis de substituir, por
meio da enunciação, o próprio ser do enunciador, como também suas ações, o
espaço e tempo por ele vivenciados e, até mesmo, funcionar como representante
de sua imaginação.
Assim, o ato de enunciação realmente implica uma crença da mesma
ordem daquela que torna possível o ato teatral: o enunciado é, nesse
sentido, o arquétipo e o protótipo dos simulacros e, por consequência, da
cena teatral primordial, do modelo teatral originário (Bernard, 2001, p.
117)
19
.
O autor compreende, então, o funcionamento sensório-perceptivo como
produção e projeção de simulacros, enquanto ficções gestadas por forças
pulsionais que, por sua vez, são mobilizadas pelo desejo enunciador da
corporeidade
20
. Essa dinâmica sensorial ocorre, segundo ele, por meio de
entrelaçamentos que enredam a corporeidade com os outros de si mesma, com
as demais corporeidades, assim como coloca em conexão o sentir e o enunciar.
Com isso, Michel Bernard (2001) distingue quatro quiasmas
21
que constituem a rede
17
Débrayage (Tradução de Rosa Ana)
18
“Réalités-substituts” (Tradução de Rosa Ana)
19
Ainsi l’acte d’énonciation implique bien une croyance du même ordre que celle qui rend possible l’acte
théâtral : l’énoncé est, en ce sens, l’archétype et le prototype des simulacres et, par conséquent, la scène
théâtrale primordiale, le monde théâtral originaire. (Tradução de Rosa Ana)
20
Para a elaboração de sua teoria ficcionária da sensação, Michel Bernard tece também substancial
interlocução com o filósofo Gilles Deleuze, tomando como referência, especialmente, a problemática da
sensação, por ele concebida, a qual Michel Bernard (2001, p. 108, tradução da doutoranda) qualifica como
“‘rizomática’”. Emblemático filósofo da diferença, Gilles Deleuze (2007) relaciona a sensação a um “devir de
forças sensíveis” (Bernard, 2001, p. 107, tradução da doutoranda), sugerindo, assim, uma estreita ligação entre
as noções de sensação e de força, sendo, esta última, uma espécie de onda energética que deflagra o
acontecimento da sensação. No pensamento deleuziano, a sensação pode ser entendida “como o
encontro de uma onda que percorre o corpo com as forças que agem sobre ele” (Deleuze, 2007, p. 52),
porque é tomada num movimento de devir que, por sua vez, produz diferença e o está subordinado às
formas representacionais. Em Deleuze, o devir, segundo Michel Bernard (2001, p. 108, tradução da
doutoranda), trata-se de “um agenciamento ou uma conexão de multiplicidade heterogênea e variável de
forças ou de intensidades que percorre e anima a totalidade do mundo material e vivente, inorgânico e
orgânico”.
21
Noção trazida da filosofia de Maurice Merleau-Ponty (1964) para explicar o entrelaçamento entre corpo,
mundo e ação, sendo, o quiasma, um modo de funcionar por meio de operações de cruzamento que
enredam não corpo e mundos natural e cultural, mas que também “pressupõe que haja, no próprio corpo,
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11
cruzada dessa produção e projeção de ficções e que implicam: uma autoafecção
da sensação, como alteridade radical que produz um duplo fictício no seio da
corporeidade; uma correspondência dos sentidos entre si; uma articulação do
sentir e do dizer, a saber, o funcionamento respectivo de ambos, com a ajuda do
mecanismo comum da enunciação; e uma relação entre diferentes corporeidades,
colocando em jogo o duplo acontecimento de perceber e ser percebido.
Como o próprio Michel Bernard (2001) anuncia, o reconhecimento do poder
ficcionário da sensação pode oferecer preciosos efeitos teóricos e práticos à
dança, mas também ao teatro, arriscaríamos dizer. Para ele, é justamente esse
poder que enreda sensorialidade, imaginário e expressividade. Portanto, ao
considerar que o imaginário se constitui no processo sensório-perceptivo e que a
expressividade é a face que emerge dessa coextensividade entre sensação e
imaginário, na ótica desse filósofo, um dos imprescindíveis trabalhos da dança,
enquanto possibilidade de existência poética da corporeidade, consiste em fazer
mover a sensorialidade para fazer mover o imaginário e vice-versa.
Esse pensamento sobre corporeidade, dança e sensação também sugere
importantes implicações pedagógicas, pois, quando coloca o trabalho da sensação
e do imaginário no centro dos questionamentos técnicos e estéticos da dança,
tem o poder de afetar diretamente os modos de encarar os processos de
ensino/aprendizagem do movimento dançado.
Acreditamos que a abordagem que Michel Bernard (2001) faz da sensação, e
o entendimento de corporeidade dançante que daí decorre, permitem remexer
nas cartografias do ensino de dança e investigar outros caminhos para percorrê-
las. E isso porque as noções de corpo, sensação e dança são incontornáveis forças
moventes que compõem tais cartografias. Portanto, uma vez tais forças
deslocadas de um entendimento puramente mecânico, instrumentalizador e
racionalista, o desenho dessas cartografias também experimenta uma
desestabilidade.
uma unidade, por um lado, dos cinco sentidos, e por outro, entre sentidos e movimento, isto é, na verdade,
o sentido cinestésico e, enfim, esta sensório-motricidade e a palavra” (Bernard, 2016, p. 100, tradução de
Renato Aguiar). Nesse funcionamento é que se dá o quiasma que Maurice Merleau-Ponty (1964), em
O Visível
e Invisível
, nomeia de intercorporeidade.
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Ao sugerir uma compreensão de dança articulada à musicalidade do sentir, e
da própria sensação como produção de ficções, o pensamento desse filósofo
possibilita restituir a dimensão poética da técnica enquanto campo de
agenciamento das coordenadas sensório-motoras e expressivas da corporeidade
dançante. Cartografia que, inclusive, passa a se configurar na atenção que dá e na
costura que faz das relações, dos espaços-entre: corpo docente/corpo discente,
corpo/espaço, sensação/forma, técnica/criação, corpo/pensamento, etc.
Em diálogo com Michel Bernard, se pensarmos numa pedagogia que toma
para si a intenção de mover as conjugadas esferas da sensação e do imaginário,
sendo, os estudos técnicos, um precioso caminho para a experimentação desses
modos de fazê-las mover, a aula de dança não mais se reduzirá à reprodução de
passos, orientada somente pela finalidade de alcançar modelos dominantes de
corpo e dança.
Assim sendo, o conceito de sensação articulado por esse filósofo pode ser
posto em experimentação por meio da mobilização e transformação do
“imaginário sensorial” (Bernard, 2001, p.83)
22
enquanto estratégia de
ensino/aprendizagem de saberes técnicos em dança. E isso como modo de
fortalecer uma experiência de técnica mais próxima de um processo de criação
coreográfica do que da execução de protocolos biomecânicos.
Por sua vez, o conceito de orquesalidade
23
, que o autor elabora para
22
Imaginaire sensoriel (Tradução de Rosa Ana)
23
Nossa tradução estabelece uma diferença entre o modo como a professora e pesquisadora Laura Seidler
de Oliveira (2012) verte o termo
orchésalité
(Bernard, 2001) para o português. Em sua tese de doutorado,
intitulada
Dancidade: gesto como campo de circulação de forças
, a autora propõe a invenção do termo
dancidade
. Para Laura Seidler de Oliveira (2012, p. 19-21),
dancidade
seria como um “estado eminentemente
de movimento, de criação e de relação em todos os veis, dos mais profundos aos mais superficiais”, ou,
ainda, “estado de gerenciamento e investimento e como a insistência nos ‘movimentos do movimento’, por
assim dizer, um estado cambiante, sensível e não definido” (grifos no original). Como a própria pesquisadora
considera, os dois termos não são idênticos, portanto, não caberia tomar
dancidade
como tradução de
orchésalité
: “Assim, a noção de
dancidade
parte da ideia de Bernard mas foi ganhando um corpo novo e aí
esta pesquisa acrescenta que além de uma ressonância dinâmica ou cinética e transmutação visível do
fluxo da nossa musicalidade corporal ou modulação cinética singular deste tecido multissensorial e ficcional
da nossa corporeidade que as faz ressoar simultaneamente, a
dancidade
, como aqui é preferido chamar, é
um estado sensível, modulável, convergente e que produz relações potentes” (Oliveira, 2012, p. 183). Neste
estudo tradutório, optamos pelo neologismo
orquesalidade
como tradução para
orchésalité
, referindo-nos
à explicação dada pelo próprio autor, que justifica a escolha da palavra orchésalité (também um neologismo
na língua francesa) “em referência à sua origem grega
orchèsis
(Bernard, 2001, p. 23, tradução da
doutoranda). Como apontado por Michel Bernard (2001, p.167, tradução da doutoranda), em nota de rodapé,
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circunscrever o campo de produção poética próprio da dança, pode também ser
um estimulador de produção de perguntas que auxiliam a repensar a noção de
técnica e a reinventar referenciais pedagógicos e metodológicos para a criação e
o ensino do movimento dançado.
Esse conceito é trabalhado por Michel Bernard (2001) a partir de uma
compreensão intrínseca da sensação, distinguindo os quatro traços que
caracterizam a dança
24
e que, em última instância, dizem sobre seus próprios
modos de jogar com o processo ficcionário da sensorialidade. Nessa investigação
acerca do trabalho, por assim dizer, adverbial da dança, ou seja, do modo como a
ação de dança modula e intensifica, de forma única, esse poder ficcionário da
sensação, é que Michel Bernard (2001, p.173)
25
cunha o conceito de “orquesalidade”.
Essa denominação, na pesquisa do filósofo, expressa o pujante jogo, próprio da
dança, de fiar e desfiar as malhas da temporalidade da corporeidade por meio da
implicação de todos os nossos sentidos na organização do ato sensório-motor.
Para Michel Bernard (2001, p. 173)
26
, a orquesalidade e seu trabalho de
produção de metamorfoses, aquelas advindas da busca insistente, mas nunca
completada, que a dança faz para escapar de sua “aparente unidade e identidade”,
trazendo, em seu bojo, a urdidura de uma temporalidade própria, pode
acontecer na conjunção da corporeidade com a força da gravidade, no diálogo
gingado e improvisado que o corpo realiza com a terra.
Esse diálogo, como avançara Hubert Godard (2003) no campo
plurirreferenciado da Análise do Movimento, implica permanente organização e
agenciamento dos tônus postural e afetivo, o que, segundo ele, confere a carga
orchèsis
designa dança e também se refere ao espaço dedicado à dança e orquestra no teatro grego.
Ademais, a tradução
orquesalidade
remete ao ato de orquestração da musicalidade inerente aos fenômenos
sensoriais ficcionários, que subtendem a própria emergência da corporeidade dançante. Ato que, para esse
autor, singulariza o campo de atuação da dança.
24
Como mencionadas neste artigo: a capacidade de se metamorfosear, de diluir sua identidade numa rede
de sensações e imaginários que produzem uma infinidade de sentidos; a tecedura e destecedura da
temporalidade, em seu próprio devir, em seu fazer e desfazer em acontecimentos, afirmando em atos a
existência do sujeito e a de sua realidade; a questão da gerência de seu peso, ou seja, o jogo que a
corporeidade cria com a gravidade; e o desejo de retorno a si mesma, um mergulho numa espécie de espaço
fictício no qual podem ser exploradas suas potencialidades sensório-motoras, permitindo-lhe, ao mesmo
tempo, um distanciamento e uma fusão em relação ao mundo.
25
Orchésalité (Tradução de Rosa Ana)
26
Aparente unité et identité (Tradução de Rosa Ana)
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expressiva do gesto. Corroborando essa leitura, Michel Bernard (2001) acredita que
o jogo gravitário, e a riqueza sensório-motora que ele engaja, envolve, justamente,
a dinâmica pulsional da corporeidade ao ser movida pelo desejo de se projetar
num simulacro. Desejo este que constitui todo o processo expressivo, ele mesmo,
como já indicado, articulado ao ato de sentir e, portanto, fundado no fenômeno de
enunciação. Esse fenômeno, que, no caso da expressão coreográfica, Michel
Bernard (2001) chama de transvocalização, nutre-se de sua própria produção de
metamorfoses, livre de imposições utilitárias e por meio de movimentos dançados
que ficcionam temporalidades singulares.
A orquesalidade, por conseguinte, seria o trabalho intensivo que a dança faz
de orquestrar as musicalidades que emergem, ao mesmo tempo, da própria
sensorialidade da corporeidade e da relação desta com outras corporeidades e
com o espaço que a circunda, transmutando, na esfera do perceptível, essas
musicalidades em movimentos coreográficos, ou seja, criando seu singular regime
de expressividade. A musicalidade corporal de que Michel Bernard (2001) fala é
aquela ligada à temporalidade do sentir e sua criação de ficções; aquela que
emerge das experiências quiasmáticas da corporeidade.
E se essa musicalidade, como ele insistentemente afirma, está ancorada na
sensorialidade, não é uma constante fechada, uniforme e monotônica, podendo
diversificar-se, transfigurar-se em inesperados tons, cores e texturas, como uma
figura movendo-se sobre um variável fundo sensório-perceptivo e afetivo que
anima e habita os traços e rastros do movimento perceptível.
Como Michel Bernard (2001, p. 178)
27
explica, essa musicalidade varia
segundo as modalidades de tratamento qualitativo e quantitativo da
matéria sensorial, por meio do jogo diferenciador dos operadores
energéticos e espaço-temporais, e, por fim, pelo emprego seletivo dos
mecanismos bipolares, musculares e articulares da corporeidade.
São conjuntos de fatores que, combinados, abrem um campo infinito de
emergência e interferência, no que diz respeito à musicalidade corporal. Esses
27
Selon les modalités du traitement qualitatif et quantitatif de la matière sensorielle par le jeu différenciateur
des opérateurs énergétiques et spatio-temporels, et, enfim, par l’emploi sélectif des mécanismes bipolaires,
musculaires et articulaires de la corporéité. (Tradução de Rosa Ana)
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fatores envolvem, por exemplo, o modo como o corpo se organiza; seu
agenciamento postural; a escolha das partes do corpo que movem e dos gestos
realizados; como também a amplitude, velocidade e duração do movimento;
compreendem, ainda, mecanismos de funcionamento que Michel Bernard (2001)
enxerga como pares dinâmicos antinômicos. São aqueles que põem em jogo as
paisagens musculares e articulares do corpo, produzindo, na experiência do
movimento, diferentes formas de relação com o espaço e o tempo: por exemplo,
os pares apoio/impulso, contração/descontração e simetria/dissimetria. Além
disso, o autor enumera três fatores extrínsecos que atravessam a musicalidade
corporal, afetando sua musicalidade intrínseca: a relação da corporeidade com
outros corpos humanos, com objetos, e com a gestão topológica e espacial (aquela
que rege a natureza de suas trajetórias espaciais e o modo como a corporeidade
as realiza).
Mais do que uma lista de fatores, esse esforço de enumeração que Michel
Bernard (2001) efetua visibilidade à pluralidade de recursos sensório-motores,
logo, de recursos expressivos, de que a experiência dançada dispõe para fazer
emergir, modular e transformar a musicalidade corporal. Essa imensa força de
orquestração sensório-perceptiva é o que a leitura atenta desse filósofo pode não
só nos fazer compreender, mas desejar experimentar enquanto artistas do corpo
e da dança. É, ao menos, o que pode mobilizar a criação de proposições
metodológicas de ensino de saberes técnicos cujas poéticas se nutrem do jogo
com a matéria sensorial que dá vida expressiva ao movimento dançado.
Dessa forma, a teoria ficcionária avançada por Michel Bernard (2001), bem
como o modo como ele reivindica o trabalho com a sensorialidade no campo da
criação coreográfica, inauguram um território fecundo para, na experiência do
movimento, problematizar hábitos perceptivos e despertar sensações e
imaginários outros. E isso não no contexto das produções cênicas, mas também
no âmbito do ensino de saberes técnicos em dança, e aqui tentamos avançar em
diálogo com o autor, ensejando a vivência desses por meio da experimentação de
coordenadas sensório-motoras que cartografam determinado movimento que se
deseja ensinar/aprender.
Por esse caminho, o estudante pode não compreender, a partir das
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singularidades histórica e afetiva de sua corporeidade, a cartografia que suporte
para a emergência do movimento, mas também, graças às variações na esfera do
imaginário-sensível, experimentar possibilidades de modulação dessas
coordenadas sensório-motoras.
E que esses referenciais sensíveis e imaginários não funcionam como
pontos cardeais, enquanto dados fixos, mas como texturas e intensidades
mobilizadas por forças pulsionais e afetivas, a construção de um saber técnico
apresentaria a oportunidade de colocar a corporeidade em situação de criar
diversas paisagens expressivas, frutos de seu imaginário e modo de sentir. Esse
poder de criar e recriar diferentes paisagens ou, como diria Michel Bernard (2001),
ficções, abriria, talvez, a possibilidade de vivenciar a dimensão dita técnica da
dança, de modo indissociável da dimensão expressiva, assumindo, assim, o saber
produzido pelo próprio acontecimento do movimento como campo de força
poética da dança.
Ao estimular o entendimento da sensorialidade enquanto encontro com a
alteridade radical e com a alteridade posta pelo mundo, enredando as histórias
individual e coletiva, Michel Bernard (2001, p. 118)
28
convida-nos a mirar numa
perspectiva em que “cada acontecimento sensorial constitui, antes de ser a
descoberta de um objeto reconhecido e identificado, um encontro vivido, a um só
tempo, passiva e ativamente com a materialidade bruta do que nos circunda”.
Essa acepção de sensação, por sua vez, concorre para um entendimento do
trabalho artístico sugerido pelo autor a partir da leitura de Anton Ehrenzweig (1976):
“o artista é aquele que explora a riqueza imaginária das relações transversais do
espectro sensorial” (Bernard, 2001, p. 270)
29
. Nessa ótica, Michel Bernard (2001), ao
propor uma abordagem intrínseca da sensação, afirma, ao mesmo tempo, sua
aposta na arte da dança enquanto campo mais fecundo para revelar o
funcionamento paradoxal e ficcionário de nossa sensorialidade. Por isso mesmo,
segundo ele, a dança também se torna privilegiada reveladora do trabalho de
28
Chaque événement sensoriel constitue, avant d’être la découverte d’un objet reconnu et identifié, une
rencontre vécue à la fois passivement et activement avec la matérialité brute de ce qui nous entoure.
(Tradução de Rosa Ana)
29
l’Artiste est celui qui exploite la richesse imaginaire des relations transversales du spectre sensoriel.
(Tradução de Rosa Ana)
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tecedura e destecedura da temporalidade que compõe a existência humana. Ela
seria, por assim dizer, um valioso modo de perceber o sujeito enquanto
corporeidade e, como tal, enquanto ser temporal, que se faz e se desfaz em seus
atos de enunciação, na tentativa de produzir simulacros de si mesmo e das coisas
à sua volta.
Para Michel Bernard (2001, p. 271)
30
, o desejo de educar e produzir
artisticamente seria um modo de lidar com essa “temporalidade da condição
humana do corpo enunciador”, e, por isso mesmo, um tensionador dos
mecanismos de identificação, reprodução e disciplina encontrados nas lógicas
institucionalizantes. Nessa perspectiva, os trabalhos de criação pedagógica e
metodológica no ensino de saberes técnicos de dança, tal como sugerido neste
texto, trazem o compromisso de fazer/pensar a dança como prática e pensamento
de produção de outros de si e de mundos outros, driblando qualquer tentativa de
engessamento identitário da corporeidade e de economia utilitária e rentista do
movimento.
Com efeito, justamente por engendrar um contínuo exame de si, o corpo que
se experimenta em seus territórios sensório-perceptivos instaura, na sua
existência, e por meio do intensivo trabalho de elaboração de imaginários sensíveis,
contingências temporal e espacial que inauguram um permanente
reposicionamento de suas realidades. Essa operação, que Michel Bernard (2001)
chama de ficcionária, inscreve-se na articulação transversal entre sentir, expressar,
pensar e agir, criando modos, sempre renovados, de estar consigo e com o mundo.
É a partir dessa leitura de corpo, dança e sensação que a aposta pedagógica aqui
aventada ancora-se na dimensão revolucionária e política do sentir, como
contraponto às experiências apassivadoras e alienadoras da arte, sobretudo, no
contexto educacional. Michel Bernard (2001, p. 269)
31
, de sua parte, afirmava que
“Longe de se reduzir, como se constuma repetir de bom grado, à promoção do
Belo, a experiência artística, ao contrário, é a experiência do questionamento de
todos os valores estabelecidos”.
30
Temporalité de la condition humaine du corps énonciateur. (Tradução de Rosa Ana)
31
Bien loin de se réduire, comme on le répète volontiers, à la promotion du Beau, l’expérience artistique est
au contraire celle de la remise en question de toutes les valeurs établies. (Tradução de Rosa Ana)
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Segundo o autor, os compromissos sociocultural e político que as artes
trazem em seu bojo parecem implicar, sobretudo no campo da dança, um
deslocamento que propõe a insubordinação à imagem do movimento, enquanto
representação do que a dança deve ser, na direção de um imaginário do
movimento, enquanto ficção sensorial criada no seio da experiência corporal.
Reconhecer e reivindicar essa força presente na arte da dança não aponta, como
uma leitura apressada poderia supor, para um fechamento da dança sobre si
mesma. O próprio Michel Bernard (2001) afirma que a separação entre as artes se
trata mais de um imperativo institucional, herdado das aspirações da modernidade
ocidental, do que uma realidade existente no fazer artístico, que, para ele, as
diferentes experiências artísticas comungam desse manejo da matéria sensível
como impulso primeiro de suas criações.
As proposições filosóficas do autor em torno da criação, mas também da
educação coreográfica, ao vincular a singularidade da dança ao seu modo de
trabalhar com a natureza enunciadora e temporal da sensação, em vez de
restringir os modos de ser dessa arte, mira na libertação do gesto diante de
modelos preconcebidos, para deixá-lo existir como expressão de sentidos e afetos
que animam a historicidade sensório-perceptiva. Essa historicidade está
intimamente ligada às escritas coletivas da história que conecta corpos em
determinados contextos sociocultural e político. Expressa, portanto, um estar no
mundo, conferindo atualidade à dança como modo de reflexão e intervenção na
realidade com a qual a corporeidade dançante se relaciona.
Considerações finais
Com o território cruzado apresentado neste artigo, significativamente
alicerçado na filosofia de Michel Bernard, intentamos, especialmente no campo
dos estudos técnicos em dança, assentar um chão epistemológico para revolver a
noção de técnica e provocar uma torção nos processos de criação poético-
pedagógicas. Nesse ensejo, a teoria ficcionária da sensação, assim como as noções
de corporeidade dançante e de orquesalidade, ajudaram a experimentar, no
interior de uma proposição metodológica de ensino, modos de desterritorializar
categorias engessadas de corpo e dança, bem como de modelos técnico-estéticos
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autoritários.
Com efeito, quando Michel Bernard (2001) nos possibilita perceber o jogo que
a corporeidade dançante efetua com a temporalidade das existências carnal e
afetiva, por meio de sua musicalidade sensorial, ele permite, ao mesmo tempo,
abrir um frutuoso campo de pesquisa pedagógica que põe o trabalho com o
imaginário e a sensorialidade no cerne das atividades de ensino/aprendizagem. A
contrapelo dos imperativos tecnicistas, reprodutivistas e utilitários, a experiência
técnica de dança viria agenciar o contato das subjetividades com a trama sensível
que atravessa a constituição do movimento, explorando a musicalidade que pulsa
de modo paradoxal e errático em cada corporeidade e orquestra sua presença
expressiva, sua produção poética, portanto.
A proposição anunciada no título deste texto, conjugando, como um quiasma
de dança, técnica e poética, é dedicada a um movimento conceitual que
experimenta a reversibilidade dessas duas instâncias na qualidade de vibrações
expressivas que singularizam o acontecimento do gesto, desprendendo a
experiência dançada das expectativas teleológicas e livrando o movimento “do
peso de suas correntes instrumentais que o alienam aos imperativos econômicos
e técnicos” (Bernard, 2001, p. 83)
32
.
Por meio dessa remição, nosso intento foi, também, estimular a investigação
de práticas de criação e ensino que impulsionem histórias perceptivas e desejos
de enunciação de si, ensejando, ao mesmo tempo, a contínua invenção de sentidos
acerca do próprio corpo e do espaço vivente que o circunda na experiência,
sempre poética, do movimento dançado.
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BERNARD, Michel.
O corpo
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BERNARD, Michel.
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. Pantin: Centre National de la
32
Du poids de ses chaînes instrumentales qui l’aliènent aux impératifs économiques et techniques. (Tradução
de Rosa Ana)
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Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 19, p. 071-080, 2012.
Disponível em: https://www.revistas.udesc.br/index.php/urdimento/article/view/3192. Acesso
em: 27 nov. 2022.
Recebido em: 28/11/2022
Aprovado em: 13/03/2023
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