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O olhar, o escutar e o ato de escrever como processo
metodológico de pesquisas em artes
Ivone Maria Xavier de Amorim
Bene Martins
Para citar este artigo:
AMORIM, Ivone Maria Xavier de; MARTINS, Bene. O olhar,
o escutar e o ato de escrever como processo
metodológico de pesquisas em artes.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2,
n. 47, jul. 2023.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573102472023e0205
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O olhar, o escutar e o ato de escrever como processo metodológico
de pesquisas
1
em artes
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Ivone Maria Xavier de Amorim
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Bene Martins
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Resumo
Este artigo é resultado das aulas ministradas na disciplina Atos de Escritura
para alunos de mestrado no Programa de Pós-graduação em Artes
PPGARTES-UFPA, no ano de 2021. Objetiva refletir sobre os processos
metodológicos de pesquisas no campo das artes e suas múltiplas linguagens,
propondo aprofundamentos sobre os atos de olhar, escutar e escrever como
técnicas de investigação necessárias à investigação de processos criativos,
cuja ênfase recai sobre ações dialógicas entre subjetividades e
intersubjetividades dos sujeitos envolvidos no processo. A base
epistemológica está assentada em autores da Etnografia (Geertz, 2008;
Oliveira, 2000; Peixoto, 1999), Fenomenologia (Merleau-Ponty, 2003; Rangel,
2009; Salles, 1998) e da Cartografia (Deleuze, 1992, 1997, 1997; Foucault, 2004,
1997; Martin-Barbero, 2002), além de outros autores que auxiliam na reflexão
proposta.
Palavras-chave
: Olhar. Escutar. Escrever. Pesquisa em artes.
1
Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Alana Clemente Lima, graduada em Letras
Língua Portuguesa, pela Universidade Federal do Pará-UFPa (2011-2015). Mestrado em Artes, Universidade
Federal do Pará, UFPA, Brasil.
2
Artigo produzido a partir das reflexões provocadas na disciplina “Atos de Escritura”, ministrada pelas autoras
para a turma de mestrado em Artes-PPGARTES/UFPA, em 2021.
3
Doutora em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2010). Mestre em Antropologia
Social pela Universidade Federal do Pa(1998). Bacharel em Ciências Sociais, com ênfase em Sociologia e
Antropologia, pelas Faculdades Integradas Colégio Moderno - FICOM (1984). Professora Adjunta da
Universidade federal do Pará (UFPA), lotada no Instituto de Ciências e Artes (ICA), vinculada à Escola de
Teatro e Dança (ETDUFPA). Professora do Programa de Pós-graduação em Artes em Rede Nacional (UFPA)
e do Programa de Pós-Graduação em Artes (Mestrado e Doutorado) PPGARTES-UFPA.
ivmaxavier@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/5012937201849414 https://orcid.org/0000-0001-8277-5210
4
Pós-doutorado em Estudos de Teatro, 2016, Universidade de Lisboa-PT. Doutorado em Letras pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG - 2004). Mestrado em Letras: Linguística e Teoria Literária pela
Universidade Federal do Pará (UFPA - 1997). Graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Pará
(UFPA - 1987)Professora associada da Faculdade de Dança; do Programa de Pós-graduação em artes
(PPGARTES), da Universidade Federal do Pará. behneafonso@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/6379814397024971 https://orcid.org/0000-0002-5265-1054
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The look, listening and the act of writing as a methodological
process of research in arts
Abstract
This article is the result of the classes taught in the discipline Acts of Scripture
for master's students in the Graduate Program in Arts PPGARTES-UFPA, in
2021. It aims to reflect on the methodological processes of research in the
field of arts and its multiple languages, proposing deepening on the acts of
looking, listening and writing as research techniques necessary for the
investigation of creative processes, whose emphasis is on dialogical actions
between subjectivities and intersubjectivities of the subjects involved in the
process. The epistemological basis used as a guiding thread in the
construction of the article is based on authors of ethnography (Geertz, 2008;
Oliveira, 2000; Peixoto, 1999), Phenomenology (Merleau-Ponty, 2003; Rangel,
2009; Salles, 1998) and Cartography (Deleuze, 1992, 1997, 1997; Foucault,
2004, 1997; Martin-Barbero, 2002), in addition to other authors who assist in
the reflection.
Keyword
s: Look. Listen. Write. Research in arts.
La mirada, la escucha y el acto de escribir como proceso
metodológico de investigación en las artes
Resumen
Este artículo es el resultado de las clases impartidas en la disciplina Actos
de Escritura para estudiantes de maestría en el Programa de Posgrado en
Artes PPGARTES-UFPA, en 2021. Su objetivo es reflexionar sobre los procesos
metodológicos de investigación en el campo de las artes y sus múltiples
lenguajes, proponiendo profundizar en los actos de mirar, escuchar y escribir
como técnicas de investigación necesarias para la investigación de los
procesos creativos, cuyo énfasis está en las acciones dialógicas entre
subjetividades e intersubjetividades de los sujetos involucrados en el proceso.
La base epistemológica se basa en autores de etnografía (Geertz, 2008;
Oliveira, 2000; Peixoto, 1999), fenomenología (Merleau-Ponty, 2003; Rangel,
2009; Salles, 1998) y Cartografía (Deleuze, 1992, 1997, 1997; Foucault, 2004a,
2004b, 2008,1997; Martin-Barbero, 2002), además de otros autores que
ayudan en la reflexión propuesta.
Palabras clave
: Mira. Escuchar. Escribir. Investigación artística.
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Palavras iniciais
É cada vez mais recorrente, no campo das pesquisas qualitativas na área das
humanidades, o apreço por métodos de investigação que privilegiem uma incursão
mais subjetiva no trato com os sujeitos/dados/fenômenos investigados. Na mesma
proporção, é correto afirmar que a produção de conhecimento advinda de
pesquisas acadêmicas na área das artes em suas múltiplas linguagens, cada vez
mais acionam a experimentação de métodos pautados em um olhar micro sobre
a realidade/fenômeno investigado, como é o caso do método fenomenológico, da
etnografia, da (auto)etnometodologia, da cartografia, dentre outras alternativas de
apoios epistemológicos.
No método fenomenológico, a premissa básica é a de que
não é o mundo
que existe
, mas sim o modo como o conhecimento do mundo se dá, tem lugar, se
realiza para cada pessoa em sua compreensão e subjetividades predominantes. A
aplicabilidade deste método parte da
vivência
, considerando-a como ato psíquico.
As vivências são intencionais e nelas é essencial a referência a um objeto, a um
dispositivo a ser acionado para estudo, para escrita, por exemplo. A consciência é
caracterizada por intencionalidade, porque ela é sempre a consciência de alguma
coisa, de algo que fez sentido, que ficou na memória da pessoa. O filósofo francês
Merleau-Ponty (1908-1961), em sua
Fenomenologia da Percepção
, afirma que “o
homem se faz presente pelo seu corpo e este participa do processo cognitivo”
(Merleau-Ponty, 2003, p. 28). Ainda de acordo com este filósofo, quando o ser
humano se depara com algo diante de sua consciência primeiro, ele nota e
percebe esse objeto em total harmonia com sua forma, em sua visibilidade. A
partir de sua
consciência perceptiva
, após perceber o objeto, este entra em sua
consciência
e passa a ser um
fenômeno
. O ato de perceber, no sentido de prestar
atenção, não apenas ver o objeto, apreender o visto, assim ele passará para a
consciência, pois acionou o estabelecimento de relação entre o visto e o inteligível,
foi interiorizado porque foi compreendido, passou do concreto ao abstrato, ao
estado de percepção passível de ser alterada.
Para o método fenomenológico o objeto é
intencional
e trabalha com duas
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proposições: 1. proposições universais e necessárias que se constitui na condição
para a construção de uma teoria, a chamada
essência eidética
e, 2. proposição
advinda indutivamente da experiência, que é a intuição eidética. a
redução
fenomenológica
Epoché
significa restringir o conhecimento ao fenômeno da
experiência de consciência, desconsiderar o mundo real para colocá-lo entre
parênteses. A questão para a fenomenologia é antes o modo como o
conhecimento do mundo acontece, ou seja, a visão do mundo que o indivíduo
construiu, não de modo acabado. Os verbos de ação que conduzem a aplicação
deste método são
intuir
e
vivenciar
. Isso é, o ato de ver algo, requer a
atenção/percepção/intelecção/abstração para que haja a
compreensão/apreensão do que está a sua volta. Naturalmente, nem tudo que a
pessoa despertará esse processo, para que o concreto passe ao estado de
abstração, a pessoa precisa envolver-se com o visto!
Após breve explanação do método fenomenológico, passamos ao
etnográfico. Este, embora originário na área da antropologia, nas últimas décadas
tem sido amplamente utilizado por vários saberes das humanidades, como
Educação, Geografia, Psicologia, Artes, dentre outras. Este método consiste em um
mergulho profundo e prolongado na vida cotidiana de outros grupos, comunidades
– ou de si, autoetnografia – que se quer apreender e compreender. Este modo de
“acercamento” ou “mergulho” tem três fases: a) mergulho nas teorias, informações
e interpretações sobre a temática; b) vivência com os
nativos
trabalho de campo
–ouvir a voz aos
nativos
e c) a escrita. No caso das escritas de si, autoetnografia,
é a imersão corajosa em suas vivências relacionadas à pesquisa em
desenvolvimento, neste caso, nas artes. Este procedimento tem trazido à cena
vozes até então ignoradas, a exemplo dos quilombolas, índios, estudos de gêneros
etc.
Para o antropólogo americano Clifford Geertz, a etnografia é uma descrição
densa, “é interpretativa e está em busca de significados” (Geertz, 2008, p. 45).
Ainda de acordo com este autor, o método etnográfico permite que o pesquisador
ouça o que as pessoas dizem e veja o que elas fazem. Acrescentamos, se ouçam,
olhem para suas vivências atentamente, se o forem os pesquisados.
Se -correndo o risco de simplificar- a etnográfica é mais intimista, traz
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subjetividades à tona, a perspectiva filosófica do método cartográfico abre o
campo perceptivo, o que não descarta, percepções subjetivas do (a) pesquisador
(a), numa referência à
Cartografia Sentimental, Transformações Contemporâneas
do Desejo
, de Suely Rolnik.
Esta metodologia encontra seu nascedouro na obra de Michel Foucault, mais
especificamente em
Arqueologia do Saber
,
Genealogia do Poder
e
Genealogia da
Ética
(2004a,2004b). Nestas obras, Foucault aplica a arqueologia como cartografia
ou geopolítica dos discursos uso de metáforas espaciais: posição, campo,
deslocamento, território, domínio, solo, arquipélago, geopolítica, paisagem, como
dimensão espaço-temporal em suas análises.
Na perspectiva metodológica, a cartografia presta-se à análise e
desmontagem de dispositivos, ação que consiste em desemaranhar suas
enredadas linhas. É instrumento para a História do Presente, possibilitando a crítica
do nosso tempo e daquilo que somos, se constituindo em pesquisa processual
que, na compreensão de Martin-Barbero é o tipo de pesquisa contemporânea,
muito adequada às pesquisas em artes. Este autor, na obra
Ofício do Cartógrafo
afirma que “é necessário perder o objeto para ganhar o processo (Martin-Barbero,
2002, p.139). Martin-Barbero chama nossa atenção para o que ocorre em nossas
pesquisas, elas são processuais, não como, a priori, estabelecer certezas quanto
aos caminhos percorridos. Por vezes, o objeto nos conduz para outras veredas
metodológicas, para o que virá, cabe ao (à) pesquisador (a) estar atento e aberto
aos desvios, brechas, atalhos, surpresas advindas do fenômeno observado.
O método cartográfico incorpora o método histórico de Foucault e seu eixo
metodológico centrado na tríade
saber-poder-subjetividade
, considerando a
subjetividade como modo de análise para os dispositivos. Neste sentido,
desemaranhar as linhas de um dispositivo é, em cada caso, traçar um mapa,
cartografar, percorrer terras desconhecidas, é o que Foucault chama de trabalho
de terreno. “É preciso instalarmo-nos sobre as próprias linhas, que não se
contentam apenas em compor um dispositivo, mas atravessam-no, arrastam-no,
de norte a sul, de leste a oeste ou em diagonal” (Deleuze, 2005, p.1). De modo que,
seja em diagonal, em espiral, em linhas não estabelecidas, seguimos ao encontro
do que se nos apresenta, no processo de investigação.
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Mas, o que existe em comum entre os métodos fenomenológico, etnográfico
e cartográfico? Para além de considerá-los como métodos ligados a
epistemologias contemporâneas, mais flexíveis em oposição às epistemologias
rígidas do final do século XIX e XX, tais quais o positivismo, marxismo e
estruturalismo estes métodos acionam verbos de ação cujos centros
investigativos partem da subjetividade do pesquisador, em diálogo com o mundo
das realidades, provocando o movimento e a constatação de intersubjetividades
movidas pelos verbos
compreender, intuir, perceber
, os quais põe em cena as
complexidades ou os traços identitários do Ser-pesquisador (a). No processo
criativo de execução da pesquisa em artes, neste texto, a aplicabilidade desses
métodos recorre a esses verbos não tão usuais no campo da pesquisa, como por
exemplo, criar, artistar, ficcionalizar, projetar, escritar, os quais estão
interrelacionados com a tríade de ação advindas dos verbos mais usuais: olhar,
escutar, perceber e, por fim, escrever. A utilização destes verbos aponta para uma
escrita epistemologicamente poética, o que torna a leitura mais saborosa, na
mistura de saber e sabor, nos termos de Roland Barthes (1977).
O olhar como procedimento investigativo
A visão é responsável por cerca de 75% da percepção humana. O ato
fisiológico de ver é resultado de três ações distintas: operações óticas, químicas e
nervosas. O olho humano é formado por um conjunto complexo de elementos que
atuam de modo específico para que o ato de olhar, ver ou enxergar ocorra. “De
forma simplificada o olho é formado por: córnea, íris, pupila, cristalino, retina,
esclera e nervo ótico” (Ramos, 2006, p.03). A córnea é a primeira estrutura do olho
que a luz atinge. A íris é a porção visível e colorida do olho, logo atrás da córnea. A
pupila é a abertura central da íris, pela qual a luz passa para alcançar o cristalino,
que ajusta na retina o foco da luz que vem através da pupila. A retina é a
membrana que preenche a parede em volta do olho, ela recebe a luz focalizada
pelo cristalino. De acordo com Ramos (2006), Esclera é o nome da capa externa,
fibrosa, branca e rígida que envolve o olho, contínua com a córnea. É a estrutura
do globo ocular. Por fim, o nervo ótico, responsável por transportar os impulsos
elétricos do olho para o centro de processamento do cérebro, para a devida
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interpretação do que é visto.
Do ponto de vista mítico, a função de olhar tem papel significativo na
mitologia grega e egípcia. O autor Kérenyi (2015) afirma que na mitologia grega,
Theia é considerada a deusa da visão. Theia era uma deusa titã, mais comumente
referida como a deusa dos elementos brilhantes. Ela foi relacionada a metais
brilhantes, joias ou luz brilhante, também era conhecida como a deusa da visão e
os gregos acreditavam que seus olhos eram feixes de luz, que os auxiliavam a ver
com seus próprios olhos mortais. Ela era um dos doze titãs e, como suas famosas
irmãs Phoebe e Themis, também associada ao dom de profecia e tinha um
santuário na Tessália. Hyperion e seus irmãos, também irmãos de Theia, eram
vistos como os deuses responsáveis pela criação do homem. Cada um dos deuses
deu à humanidade um de seus sentidos. Supõe-se que Hipérion era o deus que
capacitava os homens a ver, pois seu nome se traduz como “aquele que observa
do alto” (Kerényi,2015, p.21). Outra pista que sustenta essa suposição é que Theia,
a deusa da visão, era parte da razão pela qual Hipérion deu à humanidade seu
presente escolhido.
De acordo com Bakos & Silva, “na mitologia egípcia, Hórus é considerado o
deus do céu, da visão, do sol nascente e mediador dos mundos. Filho dos deuses
Ísis e Osíris, ele representa a luz, a realeza e o poder. Simbolizado por um homem
com cabeça de falcão, o deus Hórus era encarregado de garantir o nascimento
dos dias” (Bakos & Silva ,2017, p.35). O Olho de Hórus, também conhecido como
udyat
, é um símbolo que significa poder e proteção. O olho de Hórus era um dos
amuletos mais importantes no Egito Antigo, utilizado como representação
de força, vigor, segurança e saúde. Outra leitura é a de que o olho de Hórus é uma
representação da glândula pineal, que se encontra no cérebro e produz
melatonina. Em uma perspectiva mais mística, alguns autores chamam esta
glândula de “terceiro olho”, indicando que essa glândula era responsável pela
ligação entre o corpo e alma
5
.
Ainda segundo Bakos & Silva (2017), na perspectiva simbólica, o olho de Hórus
aparece composto por duas partes, o olho esquerdo e o direito. O olho esquerdo
5
informações retiradas do site: www.significados.com.br. Acesso em: 25 ago. 2022.
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simboliza a lua e o olho direito, o sol. Quando o olho esquerdo de Hórus foi
arrancado, em uma luta com o deus Seth, o mesmo passou a ser usado como
amuleto, dando origem
[...] ao que hoje é conhecido como o olho de Hórus. O olho direito de
Hórus representa a informação concreta, que é controlada pelo lado
esquerdo do cérebro. Esse lado é responsável pelo entendimento de
letras, palavras e números, e é mais voltado ao universo de um modo
masculino. O olho esquerdo representa a informação abstrata, é
representado pela lua, e simboliza um lado feminino, com pensamentos
e sentimentos, intuição, e a capacidade de enxergar o lado espiritual
6
.
A interpretação sobre o olho direito e esquerdo do deus Hórus nos permite
refletir sobre o ato de enxergar na perspectiva objetiva olho direito e na
perspectiva subjetiva – olho esquerdo.
Existe uma diferença de monta entre o ato de ver e o de olhar. O
ver
se
constitui na ação fisiológica do olho nu. O olhar é resultante do processo de
associação do indivíduo e é social e historicamente produzido. Em outras palavras,
o ver é imediato, é orgânico, é frio, sem interesse, não aguça a vivência, não traz
ação e não provoca atitudes. O olhar, entretanto, é lento, é analítico, traz
sentimento, sensibilidade, requer atenção, minúcias, perspicácia, contemplação.
Olhar é contemplação, exige dedicação e profundidade interior. Roberto Cardoso
de Oliveira, em
O trabalho do Antropólogo
(2000), acredita que a primeira
experiência do pesquisador, no ato de pesquisar, esteja na domesticação teórica
de seu olhar. A partir do momento em que nos sentimos preparados para a
investigação empírica, o objeto/fenômeno sobre o qual debruçamos o olhar, já foi
previamente alterado pelo modo e pelas lentes com as quais o pesquisador
enxerga o mundo.
Seja qual for esse objeto, ele não escapa de ser apreendido pelo esquema
conceitual da disciplina formadora de nossa maneira de ver a realidade.
Esse esquema conceitual [...] funciona como uma espécie de prisma por
meio do qual a realidade observada sofre um processo de refração. É
certo que isso não é exclusivo do olhar, uma vez que está presente em
todo processo de conhecimento [...]. Contudo, é certamente no olhar que
essa refração pode ser melhor compreendida (Oliveira, 2000, p. 19).
No exercício da pesquisa, o processo de refração do olhar pode estimular o
6
mitomaislogia.blogspot.com. Acesso em: 02 dez 2022.
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ato de dilatar possibilidades no ato de enxergar, no e pelo confronto da rigidez do
músculo ocular e esgarçar a abertura enrijecida que seleciona luzes, ângulos,
dimensões para ampliar as condições de ver, sempre mais e mais. Neste aspecto,
o olhar se torna uma ação mediada por conhecimentos de variados tons, pela
dimensão afetiva que nos move, consciente ou inconsciente, a
ver
e
a não ver
.
Reconhecer essa condição sociocultural e histórica do olhar é fundamental no
processo de pesquisa, é fundamental no movimento de olhar o outro e, ao mesmo
tempo, de fazer-se ver, de observar-se enquanto que se observa, de “estar entre
um todo interior ao frame da visão e um todo exterior” (Canevacci, 2009, p. 26).
Ainda é importante considerar que o exercício de olhar – na pesquisa – deve
provocar um exercício de estranhamento (Oliveira,2000), ou seja, estranhar o que
se olha. A possibilidade de um olhar estrangeiro olhar daquele que não é do lugar
e que, em razão dessa condição, pode ver aquilo que a familiaridade costuma
cegar. Assim, desconfiar das primeiras impressões, se perguntar sobre os porquês
da estranheza, é fundamental para o reconhecimento do que se faz, para entender
o próprio estranhamento e vislumbres outros, em relação ao supostamente
conhecido. Cleise Mendes, em apresentação à obra de Sonia Rangel,
Olho
descarnado. Objeto poético e trajeto criativo
, destaca que:
O olho que se . O abrir-se de um olho é como o abrir-se de uma
pergunta. Indagação renovada a cada contato das retinas com a face e a
pele do mundo, esse evento por vezes toma corpo e voz, cor e textura
nos produtos da imaginação artística, em obras que tentam capturar os
vestígios luminosos dessa experiência repetida e sempre inaugural
(Mendes, 2009, p. 7).
Perguntas nos movem para buscas, nos tiram do habitual cotidiano, nos
(en)elevam para o mundo da imaginação, para o mundo dos possíveis, mesmo que
estes nos escapem, o importante é o exercício de abrir os olhos e perceber
potências inimagináveis em nosso entorno. E, caso os vestígios luminosos nos
deixem com o olhar meio nublado, podemos cerrá-los por instantes, para que o
excesso de luz, de imaginação, de potência criativa encontre o estado da
rememoração, da intelecção, da (re)criação.
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O escutar como procedimento investigativo
A audição é um dos cinco sentidos do corpo humano e se constitui em um
ato fisiológico. O que o ouvido humano escuta é o som, que “é uma onda mecânica
produzida pela compressão e descompressão do ar, captado pelo ouvido
formado pelo ouvido externo, ouvido médio e o ouvido interno decodificado e
interpretado por uma região denominada córtex auditivo” (Miritz, 2015, p.32). De
acordo com Michel Serres (2001, p. 52),
[...]as ondas sonoras, após atingir a orelha, são encaminhadas para o
interior do canal auditivo, local onde está localizada uma fina membrana
chamada de tímpano. O tímpano é muito delicado e sensível, de modo
que pequenas variações de pressão são capazes de colocá-lo em estado
de vibração. Essas vibrações são transmitidas a um conjunto de três
pequenos ossos denominados de martelo, bigorna e estribo. As
vibrações passam primeiro pelo martelo, que ao entrar em vibração
aciona a bigorna e este ossinho, finalmente, faz o estribo vibrar. Durante
esse processo, as vibrações são ampliadas de modo que o ouvido passa
a ter capacidade de perceber sons de intensidades muito baixas.
O antropólogo alemão Christoph Wulf (2002), afirma que parte do universo
dos sons circundantes ao homem está sujeito a mudanças históricas, sociais e
culturais. Por exemplo, os sons de espaços rurais se diferenciam drasticamente
daqueles provocados em territórios urbanos. Para compreender a importância do
ouvir, Wulf faz uma análise ontogenética, enfatizando (2002, p.32) “que aos quatro
meses e meio, o feto tem condições de reagir a estímulos acústicos, que o ouvido
se desenvolve antes da vista e que o ouvir é condição prévia para que se
desenvolvam os sentimentos de segurança e pertencimento”. Neste sentido, é no
ambiente sonoro, muito antes das palavras com significados específicos, que o
bebê irá perceber o timbre da voz, o seu tom, sua articulação, fundamentais na
relação com os interlocutores.
Merleau-Ponty, em sua obra
A Fenomenologia da Percepção
, apresenta
reflexões sobre o imbricamento entre o corpo real e o que ele pode vir a ver. “Meu
corpo como coisa visível está contido no grande espetáculo. Mas meu corpo
vidente subtende esse corpo visível e todos os visíveis com ele” (Meleau-Ponty,
2003, p.135). O autor entende que existe reciprocidade e entrelaçamento entre
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corpo visível e todos “visíveis com ele”, descrevendo que a reversibilidade
definidora da carne permite o estabelecimento de relações entre os corpos e
ultrapassa o campo do visível, posto que:
Entre meus movimentos, existem alguns que não conduzem a parte
alguma, que não vão nem mesmo procurar no outro corpo sua
semelhança ou seu arquétipo: são os movimentos do rosto, muitos
gestos e, sobretudo, estes estranhos movimentos de garganta e da boca
que constituem o grito e a voz. Tais movimentos terminam em sons e eu
os ouço. Como o cristal, o metal e muitas outras substâncias, sou um ser
sonoro, mas a minha vibração, essa é de dentro que a ouço; como disse
Malraux, ouço-me com minha garganta. E nisto, disse ele também, sou
incomparável, minha voz está ligada à massa de minha vida como
nenhuma outra voz. “Mas se estou bastante próximo do outro para ouvir-
lhe o alento, sentir-lhe a efervescência e a fadiga, assisto quase, nele
como em mim, ao terrível nascimento da vociferação (Merleau-Ponty,
2003, p. 140).
Ainda de acordo com Merleau-Ponty na reflexibilidade do tocar, da vista e do
sistema tocar-ver, existe também uma reflexibilidade do processo da fonação e
do ouvir. Para ele, “as vociferações têm em mim seu eco motor [...]”. Assim,
“[...]esta nova reversibilidade e a emergência da carne como expressão constituem
o ponto de intersecção do falar e do pensar no mundo do silêncio” (Merleau-Ponty,
2003, p. 140). A reversibilidade do vidente e do visível, do tato e do tangível, da
fonação e do ouvir, é sempre iminente e nunca realizada de fato. Percebemos
nossa existência como seres que se entreveem, que veem pelos olhos uns dos
outros, e sobretudo como seres sonoros. Assim, em tal entrelaçamento, “nossa
existência de seres sonoros para os outros e para si próprios contém tudo o que
é necessário para que, entre um e outro, exista fala, fala sobre o mundo” (Merleau-
Ponty, 2003, p. 149).
O ato de escutar já foi pensado, nas antigas práticas gregas do cuidado de si,
como o primeiro estágio na ascese
, que é o que permite ao sujeito adquirir e dizer
o discurso verdadeiro. Na mesma proporção em que é necessária uma arte para
falar, são necessárias habilidades no ato de escutar. Ação tão necessária quanto
dificílima de acontecer em nosso mundo barulhento, acelerado e nada empático,
mais uma habilidade para o pesquisador (a) desenvolver e aplicar em suas buscas
teórico-práticas-vivenciais.
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Na ascese cristã, nessa disciplina elevada, a escuta tem “a função de renúncia
a si, trazendo como exigência a confissão como ato de verdade” (Foucault, 1997,
p. 101). De acordo com este autor, foi somente a partir do século XVIII com o
surgimento das disciplinas na Europa, que a potência de escutar foi sendo
aprisionada em práticas diversas de poder-saber, ao ponto em que escutar se
tornou, basicamente, uma prática autorizada e domínio de especialistas. O juiz, o
delegado, o pedagogo, o médico, os assistentes sociais, os
psis, todos escutam
segundo um código, uma regra, um pressuposto no qual
o que escutam deve se
enquadrar” (Foucault, 1997, p. 123). Desta feita, é possível considerar que os
processos de construção de subjetivações das sociedades modernas estão, de
certa forma e em certa medida, relacionados a escuta especializada ou uma
escuta conveniente a quem determinou, por vezes, o que quer ouvir, sem prestar
atenção a ruídos outros, mas estes podem ser altamente esclarecedores, porém
muitos ouvintes os excluem, deliberadamente.
E é essa escuta especializada que passa a ser acionada no campo das
pesquisas na área das humanidades. O pesquisador é treinado para ouvir somente
as vozes/narrativas que vão ao encontro de sua problemática de investigação.
Aquilo que não dialoga com a pesquisa, é, consequentemente, descartado,
tornando-o surdo para outros sons, ruídos, vozes dissonantes, silêncios que
podem, sobremaneira, contribuir com maior riqueza para a compreensão do
fenômeno investigado. Há necessidade, portanto, de antes de ir a campo, se fazer
um exercício de revisão desses procedimentos, sem a qual, se perpetuará a prática
de excluir o outro, o pesquisado.
Neste sentido, a ampliação do ato ou da prática de ouvir aproxima-o ao ato
de sentir, da paixão. Na obra
Os cinco sentidos
, Michel Serres escreve sobre o
papel do corpo no processo de racionalização e afirma que o “corpo tanto ouve
pela sola dos pés como pelos lugares onde se atam e se ligam músculos, tendões
e ossos, enfim, na vizinhança de onde o ouvido atinge os canais que guiam o
equilíbrio, toda a postura está ligada ao ouvido” (Serres, 2001, p. 139). A citação do
filósofo francês reforça a compreensão de que o exercício de ouvir
principalmente no ato da pesquisa deve envolver todos os demais sentidos,
propiciando condição necessária a um ambiente de interação entre o pesquisador
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(a) e sua fonte, em uma relação dialógica, na qual ambos possam ser ouvidos em
um ato de partilha e comunhão sobre aquilo (objeto/fenômeno) que lhe é tão caro.
O escrever como procedimento investigativo
De acordo com o Dicionário online de Português (Dicio) o verbo escrever no
transitivo direto, significa “representar por meio de caracteres ou escrita”. No
transitivo indireto e intransitivo, significa “expressar-se por meio de escrita”.
De acordo com Bakos & Silva (2017) na mitologia egípcia, o Deus da Escrita é
Zehuti, Tehuti ou Thoth. Deus egípcio da magia e de todos os ramos de sabedoria
e das artes, a quem se atribuía a invenção da escrita hieroglífica. Aparece como
filho de Seb (ou Geb) e irmão de Nuit (também chamada de Nut), ou como
primogênito de Rê, sendo irmão de Nephtys, Seth e Ísis. Também se diz ter brotado
da cabeça de Seth, tal como Atena. O seu nome significa
três vezes muito, muito
grande
. Era usualmente representado por corpo humano encimado por uma
cabeça de Íbis com um quarto crescente de lua no topo (por ser uma divindade
lunar) e segurando uma tábua de escrita e um estilete. Este Deus egípcio distinguia
as boas das más palavras e representava a magia da palavra que era escrita, assim
como o juízo que distinguia o bem do mal. Era o arquivista e secretário das
reuniões divinas
7
, passando para o papel tudo o que era dito nestes encontros.
Na mitologia grega, de acordo com Kerényi (2015), o atributo da escrita é dado
a Hermes, um dos deuses do Olimpo. Era Chamado de Mercúrio pelos romanos,
Hermes era filho de Zeus e da ninfa Maia, filha do gigante Atlas. Deus da velocidade
e do comércio, Hermes protegia os viajantes, mágicos e adivinhos. Entre as
funções mais comumente ligadas a ele na literatura grega estão as de ser o
mensageiro dos deuses, e o deus das habilidades da linguagem, da escrita, do
discurso eloquente e persuasivo, das metáforas, da prudência e da circunspecção
[...]” (www.todamateria.com.br),
A cultura da escrita está intimamente relacionada com a descoberta do
alfabeto, que, por sua vez, tem início com o surgimento dos primeiros símbolos,
durante a idade antiga, tais como a escrita cuneiforme da civilização
7
Informações extraídas do site www.infopedia.pt. Acesso em: 31 maio 2021
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mesopotâmica e os hieróglifos dos egípcios. Na sociedade contemporânea e no
tempo presente, a escrita é um dos meios de comunicação mais comumente
usados, com especial destaque para as áreas do ensino e pesquisas.
Particularmente, em se tratando do ato de escrever, da escrita da pesquisa,
é oportuno considerá-la como processo que acompanha o exercício de olhar e de
ouvir como atos cognitivos do trabalho de campo, posto que, a observação ativada
pelo olhar suscita registros em cadernos/diários de campo. Na mesma proporção,
a ação de ouvir falas de informantes em atos de entrevistas e/ou conversas
informais também oportuniza escritas reflexivas. Neste sentido, as escritas
provenientes do exercício de olhar e ouvir no ato da coleta de dados, qualifica esta
ação, de acordo com Geertz (2008), como “estando lá”. Já o momento da escrita
da pesquisa propriamente dita, “corresponde à experiência de viver, melhor
dizendo, trabalhar, ‘estando aqui’” (Geertz,2008, p.14).
Neste sentido, toda pesquisa, via de regra, se efetiva em uma escrita que
apresenta variadas faces: o percurso da investigação e seus resultados, mesmo
que parciais; a problemática, os disparadores que a provocaram e as possíveis
contribuições do pesquisador em alguns casos, tão potentes ao ponto de
produzirem desvios nos eixos dessa problemática, dada a função processual da
investigação e do conhecimento; o referencial teórico que modula, ampara, alerta
o olhar do pesquisador para a realidade investigada e as tensões que essa
realidade apresenta a esse referencial que, por vezes, pode ser totalmente
questionado e até descartado, substituído por outros mais adequados à pesquisa;
as escolhas teórico-metodológicas e seus efeitos éticos-estéticos-políticos. Faces
ou fases destacadas para chamar a atenção sobre a importância do olhar e escuta
atenta do pesquisador (a) face ao objeto/fenômeno/sujeito pesquisado, a relação
entre pesquisador-pesquisado é de mão dupla. E, principalmente, chamar a
atenção para as possibilidades da escrita embasada numa percepção a qual
resulta de olhar perscrutador e aberto ao que pode advir do observado.
A escrita da pesquisa não é posterior ao próprio processo de pesquisar, posto
que uma é condição do outro. Isto é, embora haja planejamento de trabalho,
que se ter em mente que surpresas e desvios de percurso ocorrem e devem ser
acolhidos. Os métodos mencionados acima demonstram que ao pesquisador
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cabe, acima de tudo, considerar a alteridade dos povos-sujeitos-campo a ser
conhecido. A empatia é um dos procedimentos para chegar à negociação, à
confiança, à cumplicidade entre pesquisador e pesquisado. Para Cecília Salles, o
processo de criação envolve percurso sensível e intelectual, a qual afeta quem
pesquisa, o transforma, o faz refletir sobre suas criações.
Percurso sensível e intelectual de objetos artísticos, científicos e
midiáticos que pode ser descrito, numa perspectiva semiótica, como um
movimento falível com tendências, sustentado pela lógica da incerteza,
englobando a intervenção do acaso e abrindo espaço para a introdução
de ideias novas. Um processo contínuo sem um ponto inicial, nem final.
Um percurso de construção inserido no espaço e tempo da criação, que
inevitavelmente afetam o artista. (Salles, 2013, p. 43).
A escrita da pesquisa é muito mais que relato; é a narrativa da relação de
quem escreve/pesquisa com a situação investigada que possibilita a sua
reinvenção, intempestiva e insistentemente. A mera descrição do visto, não basta,
há necessidade da observação atenta, da imersão, do envolvimento no sentido da
cumplicidade. Este procedimento proporcionará uma escrita poético-
humanizada-sensível, porque resultado da interrelação pesquisador-pesquisado.
Deleuze destaca que: “Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre
em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um
processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido”
(Deleuze, 1997, p. 11). Ou seja, essa escrita aberta ao devir, seria a que assinalamos
acima, uma escrita não autoritária, inacabada, nos termos de Cecília Salles (2006).
Uma escrita ciente do que poderá vir, que nenhuma pesquisa, nenhum tipo de
conhecimento está concluído, principalmente nas artes e humanidades!
E mais, todo escrito denota as escolhas de seu autor, e, simultaneamente,
comporta outros dizeres possíveis, subentendidos, daí a importância tanto da
escrita, quanto da leitura atenta, considerando as entrelinhas da tessitura textual.
Tal reflexão permite compreender que todo autor depende do leitor-receptor para
que os sentidos do escrito aconteçam, o que não significa transparência total, ao
contrário, pois pesquisar-escrever-ler são atos processuais submetidos e advindos
de inúmeros disparadores subjetivos a envolver texto e leitura, autoria e recepção.
Assim, nas pesquisas em artes é necessário acatar que a escrita é movente,
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o que requer, naturalmente, dentre tantas especificidades, “pesquisar na
diferença”, isto é, termos em mente os possíveis desvios, surpresas que o campo
pesquisado se nos apresenta, termos em mente que a natureza processual do
conhecimento envolve, acima de tudo, o sujeito pesquisador, ele também em
constantes mudanças, aberto ao devir. Luiz Fuganti, nos lembra que “Devir é
tornar-se diferente de si. É potência de acontecer, diferindo de si sem jamais
confundir-se com o estado resultante dessa mudança” (Fuganti, 2015, p. 75). O que
vale ressaltar que nossos escritos não nos asseguram estados definitivos, porque
estamos todos num processo incessante de mudanças, assim é com nossas
identificações, com nossas pesquisas, nossas criações, nossos conhecimentos!
Para interromper este texto, frisamos que não receita para criação, se
houvesse, seria repetição, então o pesquisador (a) em artes “inventa um itinerário
com muitas veredas e “perguntas-passaporte”, para mover-se entre os
imponderáveis da criação, para transitar por esta floresta de símbolos”. (Mendes,
2009, p. 8). Aquela ânsia de procurar respostas para inquietações variadas e
constantes não condiz com nosso espírito de época, mais fluida, mais
escorregadia, mas dinâmica, o que não significa abrir mão da qualidade em nossas
pesquisas, em nossas escritas, em nossas vivências poético-epistemológicas.
Por fim, é necessário apontar que o processo de escrita nas pesquisas no
campo das artes assume o devir como campo do sensível, colocando em destaque
a necessidade de se reinventar o ato de escrever, de modo a considerar o leitor
contemporâneo e suas necessidades cognitivas/sensitivas/afetivas em um
movimento dialógico, que coloca o autor e leitor como geradores de estados
compreensíveis sobre o pesquisado e, por conseguinte, sobre o escrito.
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Recebido em: 22/11/2022
Aprovado em: 15/06/2023
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