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A criação de corpos em experiência no espetáculo
autoficcional
Casa Vazia
Gabriel Morais
Para citar este artigo:
MORAIS, Gabriel. A criação de corpos em experiência no
espetáculo autoficcional
Casa Vazia
.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2,
n. 47, jul. 2023.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573102472023e0208
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A criação de corpos em experiência no espetáculo autoficcional
Casa Vazia
Gabriel Morais
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-23, jul. 2023
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A criação de corpos em experiência no espetáculo
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autoficcional
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Casa Vazia
Gabriel Morais
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Resumo
“Uma casa, cinco atuantes, 24 horas: chegue quando puder, saia quando
quiser” – essa era a sinopse do espetáculo autoficcional
Casa Vazia
, trabalho
que se insere na zona de contágio entre teatralidade e performatividade e
aposta tanto em uma relação espaço-temporal não convencional, como na
proximidade radical entre performers e espectadores. A partir de materiais
do processo, entrevistas com o elenco e revisão bibliográfica, o artigo
investiga de quais maneiras
Casa Vazia
se estabeleceu como um campo
estético-político potente de criação de corpos que vibram, isto é, corpos em
experiência, através da circulação, agenciamento e negociação de afetos,
memórias e desejos entre atuantes, espectadores, o espaço da casa e o
território da cidade. O trabalho contribui com reflexões sobre os modos de
operação da cena contemporânea, com destaque para a oscilação entre cena
e não-cena e a experimentação de relações não tradicionais entre performers
e espectadores.
Palavras-chave
: Autoficção. Performatividade. Teatralidade. Corpos em
experiência.
1
Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Mariana Vidal de Vargas, mestra em ngua
Portuguesa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
2
Este artigo é resultado da pesquisa de mestrado intitulada O Teatro Performativo Autoficcional: Experiências
Estético-Políticas na Cena Contemporânea, realizada no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da
UFRJ, sob orientação da prof. Dra. Gabriela Lírio e contemplada com bolsa CAPES. A dissertação foi
defendida e aprovada em 04 de março de 2020.
3
Doutorando em Artes da Cena pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestrado em Artes da
Cena pela UFRJ. Graduação em Comunicação social, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Graduação em Artes Cênicas com habilitação em Direção Teatral pela UFRJ. Prof. Substituto na UFRJ.
gabrielmorais.itinerante@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/2377637940447270 https://orcid.org/0000-0002-5048-7203
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The creation of bodies in experience in the autofictional
performance
Casa Vazia
Abstract
“One house, five performers, 24 hours: arrive when you can, leave when you
want” – this was the synopsis of the autofictional performance
Casa Vazia
, a
work that falls within the contagion zone between theatricality and
performativity and bets so much on a space-time relationship unconventional
as in the radical proximity between performers and spectators. From process
materials, interviews with the cast and a bibliographic review, the article
investigates how
Casa Vazia
established itself as a potent aesthetic-political
field for the creation of bodies that vibrate, that is, bodies in experience,
through the circulation, agency and negotiation of affections, memories and
desires between actors, spectators, the space of the house and the territory
of the city. The work contributes with reflections on the modes of operation
of the contemporary scene, with emphasis on the oscillation between scene
and non-scene and the experimentation of non-traditional relationships
between performers and spectators.
Keywords
: Autofiction. Performativity. Theatricality. Bodies in experience.
La creación de cuerpos en experiencia en el espectáculo
autoficcional
Casa Vazia
Resumen
“Una casa, cinco performers, 24 horas: llega cuando puedas, vete cuando
quieras” esta fue la sinopsis del espectáculo autoficcional
Casa Vazia
, una
obra que se inscribe en la zona de contagio entre la teatralidad y la
performatividad y apuesta tanto por una relación espacio-tiempo no
convencional, como en la proximidad radical entre intérpretes y
espectadores. A partir de materiales del proceso, entrevistas con el elenco y
una revisión bibliográfica, el artículo indaga las formas en que
Casa Vazia
se
constituyó como un campo estético-político potente para la creación de
cuerpos que vibran, es decir, cuerpos en experiencia, a través de circulación,
agencia y negociación de afectos, recuerdos y deseos entre actores,
espectadores, el espacio de la casa y el territorio de la ciudad. La obra aporta
reflexiones sobre los modos de operación de la escena contemporánea, con
énfasis en la oscilación entre escena y no escena y la experimentación de
relaciones no tradicionales entre performers y espectadores.
Palabras clave
: Autoficción. Performatividad. Teatralidad. Cuerpos en
experiencia.
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Eu não sei o que a gente produziu um material final uma
criação.
Mas o meu corpo tá vibrando ainda.
Eu costumo medir como eu voo pelas coisas com as quais eu vou.
E me senti voando alto. Num bando grande de gaivota, que,
revezando a liderança, ia abrindo espaço no céu pra gente entrar
numas nuvens que não teria coragem de entrar sozinha. Na nuvem
da capoeira, da bola, do pixo, do grafite, do presente de
aniversário, do cajon, das crianças, da dança... Eu só entrei. Fingi
que sabia e acabei sabendo.
Que delícia que é voar junto, né? (miguel, 2016)
4
.
No trecho acima, a atriz e performer mariah miguel
5
nos conta sobre sua
experiência logo após a primeira edição do espetáculo autoficcional
Casa Vazia
6
,
realizada em dezembro de 2014, no bairro de Santa Tereza, no Rio de Janeiro. A
partir desse trecho, interessa refletir sobre o trabalho, procurando entender de
quais maneiras a sua estrutura tem potência estética-política para produzir corpos
que vibram. O que significa um corpo que vibra? Mais, se tais corpos estão voando
alto em bando, de quais modos essas vibrações fazem com que eles se afetem
mutuamente? E como e quais caminhos são abertos por entre essas nuvens
desconhecidas, impensáveis e improváveis? Como é se colocar em uma
experiência da qual se finge saber, mas que se conhece, de fato, entrando em
experiência?
“Uma casa, cinco atuantes, 24 horas: chegue quando puder, saia quando
quiser” essa era a sinopse de
Casa Vazia
. Construída em uma zona fronteiriça
entre teatro e performance, a experiência operava em uma relação espaço-
temporal não-convencional, na radicalização da proximidade entre espectadores
e atuantes, além de não apresentar uma dramaturgia linear e fixa. Partia-se de
4
Os materiais criados eram registrados no blog http://colecaocasavazia.blogspot.com/. O registro poderia ser
realizado da maneira que cada atuante desejasse. O blog também se tornou espaço para a escrita das
sensações, afetos, impressões sobre as experiências dos atuantes, bem como dos espectadores que nos
enviaram mensagens após vivenciarem
Casa Vazia
.
5
A atriz, performer e pesquisadora mariah miguel optou por grafar e assinar seu nome com todas as letras
em minúsculo.
6
O espetáculo
Casa Vazia
estreou em dezembro de 2014, no bairro de Santa Tereza, no Rio de Janeiro, e
depois realizou temporada no bairro de Santa Cruz, em agosto de 2016, contemplado pelo Fomento Cidade
Olímpica, da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro. Ficha técnica Direção: Gabriel Morais.
Atuação: Camila Costa, Chris Igreja, Isabel Figueira, Mariah Miguel, Ricardo Cabral, Samuel Paes de Luna.
Direção de arte: Clariana Touza. Iluminação: Rafael Turatti. Produção: Luiza Toschi. Teaser disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=j7L5VsPom-A&feature=youtu.be.
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experiências vivenciais dos atuantes para a construção de materiais textuais,
imagéticos, sonoros e/ou corporais, que poderiam ser utilizados durante as 24
horas da experiência. Materiais autoficcionais criados durante os ensaios, bem
como na realização das edições, na relação com as casas, entre os atuantes e no
encontro aqui e agora com os espectadores. Materiais autoficcionais que se
cruzavam, se contaminavam, em uma escrita processual, inacabada e que se fazia
no aqui e agora do acontecimento. A atriz e performer Isabel Figueira define
Casa
Vazia
como um espaço múltiplo. Um espaço de experimentação. Um lugar onde
tudo pode acontecer e, ao mesmo tempo, eu não consigo ver a possibilidade de
coisas bem definidas. Então, eu acho que é um emaranhado de possibilidades, de
quebra de ideias” (Figueira, 2019)
7
.
De acordo com Gilles Deleuze (2002), o filósofo Baruch Espinosa definia um
corpo qualquer pela infinidade de partículas que comporta “são as relações de
repouso e de movimento, de velocidades e de lentidões entre partículas que
definem um corpo, a individualidade de um corpo” (Deleuze, 2002, p. 128) – e pela
sua capacidade de afetar e de ser afetado por outros corpos. Uma casa qualquer
casa é um corpo, porque comporta em circulação, com velocidades e
intensidades diferentes, as partículas da memória, dos afetos e dos desejos,
afetando e sendo afetada pelos outros corpos que a habitam. Uma casa qualquer
compreende não apenas o seu corpo físico, organizado em uma arquitetura:
paredes, teto, chão, vigas, janelas, portas etc. Casa é corpo afetivo, mnemônico,
ancestral, familiar, mas também político, social e cultural. O processo de criação
de “Casa Vazia” experimentou a casa enquanto casa-corpo, buscando descobrir o
que ela poderia dizer, o que ativaria, o que possibilitaria circular, enfim, o que faria
vibrar?
Na visão do ator e performer Ricardo Cabral, o processo de criação realizou
uma trajetória que permitiu descobrir vários modos de ser da casa-corpo. “No
início, a casa foi sentida muito como um espaço íntimo, como espaço da família,
como espaço de tudo que te levou a ser o que você é hoje” (Cabral, 2019). Por sua
7
As entrevistas com as atrizes Isabel Figueira e mariah miguel e o ator Ricardo Cabral foram concedidas
durante a pesquisa de mestrado realizada por Gabriel Morais e estão disponíveis na íntegra como anexos da
dissertação
O Teatro Performativo Autoficcional: Experiências Estético-Políticas na Cena Contemporânea
,
que pode ser acessada em: https://www.ppgac-ecoufrj.com.br/uploads/f/s/disserta-gabriel-
morais_Rprp.pdf.
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vez, miguel afirma que a criação dos materiais veio “completamente da lida com
esse espaço arquitetônico da casa. A noção de casa era compartilhada por todo
mundo que estava ali criando o processo. A noção de casa como lar, a noção de
casa como um espaço de constituição de sujeitos” (miguel, 2019). para a atriz
Isabel Figueira, casa remete a pertencimento, sendo
o espaço onde você pode se expressar, ocupar e fazer as mudanças. Eu
lembro que acessava muito a minha casa em Barra do Piraí. Um espaço
familiar mesmo. Onde eu me construí. Onde eu tenho todas as minhas
memórias. Onde eu sei que eu posso voltar (Figueira, 2019).
O processo de criação pensou a casa como um “espaço sagrado”, para usar
uma expressão de Peter Brook (2011), no qual “o invisível pode aparecer nos objetos
banais” (Brook, 2011, p. 50). Pessoas, familiares, amigos e namorados(as); épocas e
lugares, infância, adolescência, casa das avós, descoberta do corpo e da
sexualidade; cores, volumes, cheiros, luzes, sons, silêncios, sabores, texturas;
objetos, caixas, presentes, cartas, livros, fotografias, brinquedos, músicas, roupas,
espelhos, comidas, chuveiros; ações, tomar banho, cozinhar, dormir, faxinar a casa,
comer, ver televisão ou seja, os espaços, os acontecimentos, os diversos objetos
e usos da casa “podem transformar-se e impregnar-se do invisível” (Brook, 2011, p.
50). Estes invisíveis são as partículas, as memórias, as imaginações, as percepções
sensoriais e os afetos que a relação entre casa-corpo e os corpos dos atuantes
faz circular e produzem as narrativas autoficcionais.
Uma das primeiras proposições de criação de materiais cênicos foi a
apresentação pessoal dos atuantes, na qual cada um deveria se relacionar com
uma parte específica da casa-corpo (quarto, sala, cozinha, banheiro). As regras
para a composição eram: a) se apresentar; b) realizar uma ação que tenha relação
com o espaço; c) utilizar uma música; d) um silêncio; e) uma repetição. Apesar
desses materiais serem criados durante os ensaios, não se desejava que se
fixassem. Não existia um momento exato para que acontecessem durante as 24
horas, nem deveriam se cristalizar em uma única forma. Eles poderiam ser
utilizados a qualquer momento do jogo e deveriam estar abertos para se
contaminarem e se modificarem na relação entre os atuantes e entre estes e os
espectadores. Dentre esses materiais, destaco o de miguel, nomeado
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“Apresentação Magnética”, realizado em frente à geladeira da cozinha, onde ela
apresentava sua família com imãs de geladeira.
Oi! Nem me apresentei, né? Meu nome é Mariah Valeiras Aguiar Miguel.
Valeiras por parte de mãe e Aguiar Miguel por parte de pai. E eu tenho
uma ex-madrasta, um ex-padrasto, uma madrasta, um padrasto, uma
mãe, um pai, quatro irmãos e uma irmã. Dois por parte de mãe, três por
parte de pai. Vem que eu vou explicar melhor. [
na geladeira, imãs
] Esse
aqui é meu pai Allan Aguiar Miguel, e essa é minha mãe Teresa Valeiras.
E essa sou - Mariah Miguel Valeiras. Mariah, de Mariah - Miguel de Miguel
- e Valeiras, de Valeiras mesmo. Quando eu tinha 7 meses, meus pais se
separaram - mas, quando eu completei dois anos eles se casaram outra
vez (
junta os imãs e separa outra vez
) só que com outras pessoas. Minha
mãe se casou com o meu padrasto Beto e meu pai se casou com a minha
madrasta Tóia. Mais uns dois anos e meu pai engravidou o Beto do
Matheus - menos de 6 meses depois, e minha mãe engravidou a Tóia da
Veronica. O Matheus, por parte de pai, tem 20 anos - e a Veronica, por
parte de mãe, também. que aí, mais uns dois anos foi a vez do Beto
parir o Victor e a Tóia, parir o Gabriel. O Victor, por parte de mãe, tem 18
anos e o Gabriel, por parte de pai, também. que aí, um tempinho
depois, minha mãe resolveu se separar - o meu pai nem esperou muito,
se separou também e casou de novo - aí, minha mãe deu um tempinho
e também casou a terceira vez. Nessa época, meu pai engravidou do
Arthur e minha mãe já foi logo fazendo a Alice. O Arthur, por parte de pai,
tem 7 anos, e a Alice, por parte de mãe também. O Matheus, a Veronica,
o Victor, o Gabriel e o Arthur são as pessoas que eu mais amo no mundo.
Alice também seria se eu não tivesse inventado ela pra história ficar
mais redonda. Prazer, meu nome é Mariah Miguel Valeiras e eu tenho 5
irmãos mais novos (miguel, 2014).
Figura 1- "Apresentação Magnética", da atriz mariah Miguel. Foto: Íra Barillo
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O texto nunca é dito da mesma maneira por miguel. Ele está em constante
processo de escrita durante as edições de
Casa Vazia
. Aos poucos, os outros
atuantes se apropriaram da proposta e passaram a apresentar suas famílias com
os imãs de geladeira. Depois, os espectadores também foram convidados a
participar do jogo, representando a si mesmos com os imãs da geladeira. O que
nasceu como uma proposta de composição de uma apresentação pessoal se
tornou um jogo autoficcional entre atuantes e espectadores, que, por sua vez,
deixam de ser espectadores e passam também a performar a si mesmos.
Com o caminhar da criação, a relação com a casa-corpo se modificou.
Deixamos de pensar nela como um corpo estritamente familiar e íntimo e
passamos a investigá-la como corpo político. Essa virada é identificada pela equipe
de criação em 2016. Após a primeira edição no bairro de Santa Teresa, a pesquisa
é interrompida por cerca de seis meses, retornando no segundo semestre de 2015
e se intensificando no ano seguinte, após ter sido contemplada no Fomento Cidade
Olímpica, da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, para realizar duas
edições no bairro de Santa Cruz, o que potencializou o desejo de criar diálogo com
a cidade. Santa Cruz é um bairro que fica na extremidade da Zona Oeste do Rio
de Janeiro. Um território estranho para a maioria da equipe de criação,
acostumada a circular pela Zona Sul da cidade. Esse encontro com o outro desloca
a percepção sobre o trabalho. Na visão de miguel, a ida para Santa Cruz fez com
que o trabalho desse um salto em uma dimensão social, entendendo “que
Casa
Vazia
é o entorno da casa também: é a cidade” (miguel, 2019). Enquanto Santa
Teresa era espaço que se manteve na zona de conforto, dos amigos, do círculo
social, acadêmico e afetivo, geralmente, frequentado pela equipe, Santa Cruz
potencializou o trabalho pela presença do outro, pelo voo alto para um território
desconhecido.
Ensaios, muitas vezes, performáticos, aconteceram dentro da linha de trem
da Supervia que liga a estação Central à Santa Cruz. É exemplar dessas práticas a
ação “Realizar uma festa de aniversário no trem”. A proposta era ir com bolo,
chapéu de festa, balões, línguas de sogra e encontrar uma pessoa dentro do trem
que estivesse fazendo aniversário naquele dia, oferecendo uma festa para ela. Não
desejávamos a representação de uma festa de aniversário, mas a realização de
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uma através da aposta no improvável e no incrível desse encontro. Bolo, chapéu,
balões, trem e passageiros estavam ali em sua presença material, sem nada
figurar. Logo no começo da ação, miguel pediu a um vendedor ambulante que
perguntasse no seu microfone se alguém ali estava fazendo aniversário. Uma
mulher logo levantou a mão e a festa começou. A princípio, ela não acreditou no
que acontecia; depois, pensou que se tratava de algum programa de televisão. Aos
poucos, as pessoas foram entrando no jogo, enchendo balões, colocando os
chapéus, cantando parabéns. Os ambulantes presentearam a aniversariante com
seus produtos. Uma senhora afirmou que estava indo visitar seu filho preso em
Bangu e que aquele acontecimento acalmou e esquentou seu coração.
Além disso, foram propostas derivas e performances, individuais ou coletivas,
por diversos espaços da cidade, em especial, espaços que se relacionavam com o
território de Santa Cruz e, dessas ações, recolhiam-se histórias, objetos ou ideias
para novas proposições de jogos e materiais para
Casa Vazia
. Durante uma deriva,
por exemplo, miguel se deitou num banco da praça e acabou pegando no sono.
Dentro de instantes, foi acordada por um guarda-municipal que a mandou
levantar, dizendo que não podia ficar parada ali, que outra pessoa poderia querer
se sentar no banco. A partir disso, a atriz criou o material “Área de Circulação”, no
qual pedia constantemente às pessoas (atuantes e espectadores) para se levantar,
movimentar e deixar a área livre para circulação. Criava-se uma coreografia aberta
para as possíveis reações e tensões, pois os comandos podiam ser recebidos com
consentimento ou resistência. Esse material conecta os afetos e uma vivência de
miguel uma mulher lésbica - com as práticas policiais que comandam as
circulações dos corpos pela cidade e definem quem pode sentar, onde/quando se
deve/pode sentar e quem/quando deve se movimentar.
Casa Vazia
é corpo que nasce deste processo: dos invisíveis que fazem vibrar
e circular afetos, memórias, desejos e dos encontros com os outros (casa-corpo,
territórios, sujeitos, cidade). É nessa relação com os diversos corpos que a
experiência se dá. A cada edição, a casa-corpo de Casa Vazia se construía de
maneira diferente como resultado das múltiplas possibilidades de circulação de
partículas. A casa é bem mais do que espaço físico no qual se executa uma ação
estabelecida previamente. Ela é um corpo que interfere radicalmente nas
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construções que podem ou não se estabelecer. É dentro da e com a casa-corpo,
com as relações de troca que se estabelecem entre os corpos presentes, que a
ação e as diversas possibilidades de dramaturgias se constroem.
Figura 2 - As atrizes Camila Costa e mariah miguel em
Casa Vazia
. Foto: Íra Barillo
I. Casa Vazia: isto é cena?
Imagine que você está de frente para a porta de entrada de uma casa e a
campainha é uma corda que você puxa e escuta o som suave de um mensageiro
dos ventos. Pouco tempo depois, uma pessoa abre a porta, o sorriso e os braços
para lhe receber com um abraço. Você não conhece essa pessoa. Ela se apresenta,
pergunta seu nome e fala que vai apresentar a casa. Você entra pelo quintal, vira
à direita, sobe uma pequena escada e está na sala. Passa pela cozinha, pelo quarto,
banheiro. É apresentada a outras pessoas que ali estão. De repente, alguém lhe
pergunta: “Quando foi a última vez que você fez algo pela primeira vez”? “Quando
foi a última vez que seu coração bateu forte?”. Isto é cena? O espetáculo
começou? Onde está o teatro? Quem são os atores e atrizes e quem são os
espectadores? Quais os limites entre teatro e vida?
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Josette Féral (2015) argumenta que a teatralidade não constitui uma
propriedade ou qualidade que se relaciona à natureza de um objeto específico,
mas se constitui por meio de um ato performativo do olhar que cria um outro
espaço que permite a emergência da ficção. “O outro torna-se ator seja porque
mostra que representa (nesse caso, a iniciativa parte do ator), seja porque o olhar
do espectador transforma-o em ator a despeito dele e o inscreve na
teatralidade (nesse caso, a iniciativa parte do espectador)” (Féral, 2015, p. 87). Em
relação à teatralidade do teatro, Féral propõe que, a princípio, é a iniciativa criativa
do ator /performer/encenador que leva o espectador a olhar para o evento cênico
e reconhecer a existência do espaço teatral.
Para a autora, nesse processo, acontece uma série de clivagens. A primeira
separa a ação cênica do espaço cotidiano, criando o espaço outro no qual a
representação nasce. A segunda clivagem acontece dentro do espaço da
representação e coloca, de um lado, a materialidade concreta dos corpos, objetos
e espaço e, do outro, o que estes corpos, objetos e espaços figuram. Por fim, a
terceira clivagem acontece no corpo do ator: trata-se do equilíbrio entre as forças
do simbólico e do pulsional. Essas clivagens geram dualidades que são percebidas
pelo olhar do espectador, que se movimenta constantemente de um para o outro,
realizando uma operação de disjunção-unificação, ou seja, unindo e opondo esses
dois universos que, simultaneamente, excluem-se e se superpõem. A teatralidade
do teatro opera com todos esses olhares ao mesmo tempo, mas seria a última
clivagem que, para a autora, causaria no espectador um dos seus prazeres mais
profundos, pois, ao olhar esse combate entre forças simbólicas e pulsionais,
apreenderia não apenas o que o ator diz e faz, mas também o que escapa, o que
diz e faz a despeito de si mesmo. Féral afirma que é na disputa entre o simbólico
e o pulsional que nos aproximamos da performatividade.
As experiências cênicas que apresentam a performatividade no centro do
funcionamento foram nomeadas pela autora como “Teatro Performativo”. O ator
transforma-se em performer, operando a partir dos seguintes verbos
performativos: ser ou estar, fazer e/ou mostrar o que se faz. Tais verbos, separados
ou combinados, fazem com que o performer trabalhe valorizando mais a ação em
si do que a representação. O que se coloca em cena é o processo, é o fazer. Nesse
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processo, “o ‘valor de risco’, o malogro, tornam-se constitutivos da
performatividade e devem ser considerados como lei” (Féral, 2015, p. 122). Além
disso, a autora sublinha que como o ator está e é na cena, sem figurar um outro,
a performatividade toca na sua subjetividade e impõe o “diálogo dos corpos, dos
gestos e toca na densidade da matéria” (Féral, 2015, p. 129). O agir negocia e agencia
afetos, desejos, intensidades entre os corpos. Ao tocar na subjetividade e criar esse
espaço-tempo de agenciamentos e negociações, aproxima-se, portanto, da
autoficção. Toca na subjetividade e nos corpos que, vibrando em experiência, são
desorganizados, desnaturalizados e recriados incessantemente no processo. O
espectador, muitas vezes, está incluído na intimidade desse agir, vivenciando o
imediatismo e o risco da experiência. Ele também participa dessa possibilidade de
produzir autoficções e tem sua subjetividade e seus corpos tocados tanto quanto
o ator/performer.
Na experimentação performativa, portanto, as clivagens operadas pela
teatralidade se tornam fluidas, instáveis e oscilantes e produzem redefinições
constantes das posições e das relações entre atores e espectadores. O espaço
outro da cena é territorializado e desterritorializado constantemente e surge de
diversas maneiras. O corpo em experiência de
Casa Vazia
seja das atrizes, dos
atores ou dos espectadores oscilam constantemente entre a cena e a não-cena.
Essa instabilidade e fluidez das fronteiras geraram, durante todo o processo,
dificuldade de delimitar o que se estava criando.
Casa Vazia
é ou não é teatro?
Que cena é esta que se produz? Tais dúvidas e questionamentos também eram
vivenciados pelos espectadores que, muitas vezes, perguntavam-se: “isto é cena?”.
Sobre a experiência, a espectadora Camila Barra disse:
Às vezes eu não sabia se via uma cena ou não. Era tudo tão honesto, tão
verdadeiro que sei lá. Foi difícil ver a construção em algumas coisas,
parecia tudo improviso, quero dizer, uma conversa que simplesmente
aconteceu. Parecia que cada um falava a sua história porque deu na telha
falar, sei lá. Pareceu que eu só estava ali na casa de uns amigos e, às
vezes, rolava umas conversas; que o Ricardo e a Mariah brincaram com
os imãs da geladeira porque ocorreu deles estarem ali mesmo. Claro
que era perceptível o trabalho construído, pensado, bem dirigido. Mas sei
lá, na hora a gente acredita que tá vivendo aquilo, aquele momento e só.
Não parece teatro, entende? Percebo, principalmente agora avaliando
com calma, que foi tudo muito bem pensado, ensaiado, preparado. Mas
para a gente que assistia parece que simplesmente aconteceu! (e ainda
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encucada porque a Cris, no banheiro, contou a mesma história que a
mariah tinha contado no jogo um pouco antes na sala, quando pegou o
papel escrito “meus pais... Ainda quero saber quem que, afinal, olhava o
vizinho pela janelinha do banheiro... (Barra, 2016).
A criação desse outro espaço da teatralidade, em Casa Vazia, pode se dar de
diversos modos, mas nunca de maneira cristalizada, estratificada. Primeiramente,
existem momentos nos quais a teatralidade parte da iniciativa das atrizes ou dos
atores. A atriz Isabel Figueira tem um material que pode ser exemplar desse
primeiro grupo. Ela prepara a sala da casa, acendendo várias velas e um incenso
pelo espaço. Depois, vai para fora da casa e começa a cantar um ponto de erê. Ela
percorre uma determinada trajetória do exterior da casa até chegar à sala,
espalhando cuidadosamente conchinhas durante o percurso. Todos param e
olham. Pelo modo como se portam e se organizam no espaço em relação à ação
de Figueira, parecem afirmar: “Isto é uma cena!”. A clivagem foi operada e o espaço
do outro se estabeleceu. Havia a intenção da atriz em gerá-lo e os espectadores
identificaram.
Figura 3 - A atriz Isabel Figueira em
Casa Vazia
. Foto: Íra Barillo
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Outra possibilidade é quando a clivagem se a despeito tanto dos atuantes,
quanto dos espectadores. Retomemos ao exemplo da Apresentação Magnética.
Após miguel apresentar a sua família com os ímãs, um espectador é convidado a
também apresentar a si mesmo e a sua família usando os mesmos ímãs. Enquanto
ele começa, outro espectador, recém-chegado na casa, vai até a cozinha e
presencia o momento. Este segundo espectador pode olhar o que acontece e falar
para si mesmo: “Isto é uma cena!”. Ao fazer isto, ele cria o espaço da teatralidade,
mesmo que o primeiro espectador não apresentasse o desejo de atuar e estivesse
apenas se imaginando numa conversa casual com miguel. O segundo espectador
poderia, logo em seguida, perceber que quem falava era outro espectador e pensar:
“Não, isso não é cena., desmontando o espaço do outro. Mas, por alguns instantes,
operou-se a clivagem e o dentro e fora da teatralidade foram gerados.
Seria importante analisar um último exemplo pelo qual o outro espaço da
teatralidade pode surgir. Quando o espectador vai a uma experiência artística que
ele supõe previamente que é teatro, ele chega acreditando que vai lidar com certas
estruturas reconhecíveis do fazer teatral. Ou seja, espera vivenciar a operação das
três clivagens que geram a teatralidade. Entretanto,
Casa Vazia
não apresenta,
como vimos, os limites estáveis, oscilando entre cena e não-cena constantemente
durante a experiência. As fronteiras são fluídas, nômades e construídas e
desconstruídas num movimento incessante. Isso gera questionamento e, muitas
vezes, um não saber como se posicionar na experiência. A função do espectador
também é desmontada e reconstruída durante o próprio ato. Durante a experiência,
a dúvida da espectadora Camila Barra repete-se em outros espectadores. Em vez
de afirmarem: “Isto é cena!”, questionam-se constantemente: “Isto é cena?”. Ao
realizarem este questionamento, por alguns instantes, colocam-se fora do que
acontece e olham procurando as fronteiras. Paradoxalmente, este olhar que
procura também cria fronteiras fluídas, efêmeras, nômades, instáveis, sutis,
vibráteis - e, consequentemente, também produz espaços outros da teatralidade
durante a experiência.
O que na vida cotidiana naturaliza-se como dois mundos diferentes
apreendidos por conceitos dicotômicos (real e ficcional / vida e arte), torna-se
impreciso em
Casa Vazia
, levando o espectador a não saber como deve se
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Casa Vazia
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posicionar: num mundo “real” ou “ficcional”? Se a dicotomia é abalada na
experiência, o sujeito não tem como se posicionar e entra em crise. Uma crise que
pode ser potente estética e politicamente, na medida em que pode produzir
corpos em experiência, que vibram e abrem caminhos pelos tensionamentos entre
a teatralidade e a performatividade, a representação e a presença e as camadas
simbólicas da cena e as pulsionais do “real”.
II. “Uma casa, cinco atuantes, 24 horas: chegue quando puder,
saia quando quiser”: o programa performativo de
Casa Vazia
Figura 4 - A atriz Ricardo Cabral em
Casa Vazia
. Foto: Íra Barillo
De acordo com José Sanchez (2007), quando fundou o teatro “Alfred Jarry”
em 1927, Antonin Artaud pensava que o teatro era a coisa mais difícil de se salvar,
pois, “Un arte basado enteramente sobre el poder de la ilusión que es incapaz de
procurar no puede sino desaparecer” (Artaud apud Sanchez, p. 104). Essa questão
refletia o desejo obsessivo do encenador francês de demolir o teatro em sua
organização clássica, combater o espelho, a representação, a repetição e explorar
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a potência da presença pura, do acontecimento, do corpo na experiência. Jacques
Derrida (1995) lembra que o que Artaud propõe com o
Teatro de Crueldade
é a
própria vida em seu aspecto irrepresentável. O teatro deve oferecer um mundo
verdadeiro, paralelo ao real, mesmo que efêmero. Ele busca uma arte sem obras,
que não seja via para outras coisas que não seja ela própria.
Com essa destruição da organização clássica, Artaud buscava romper com a
ilusão que, segundo ele, estava localizada nos corpos e que seria criada pela
acumulação de compromissos, inibições, frustrações, valores, expectativas,
normatizações etc. O encenador francês, por sua vez, pretendia inserir o
espectador em “...una recepción intelectual de la que no estuvieran excluidos los
sentidos, más bien, em la que tuviera una función protagonista el ser corporal em
su integridade” (Sanchez, 2007, p. 105). De acordo com Sanchez, Artaud defende
um critério de verdade que afirma a integridade do ser humano e, portanto, em
oposição às perspectivas dualistas tanto de René Descartes, quanto de Bertolt
Brecht, que se fundam na separação entre corpo e alma/razão. Os corpos dos
atores e dos espectadores devem ser inseridos na experiência em toda sua
potência, com todos os seus sentidos, carne, voz, sangue, sêmen, vísceras etc.
Seria possível afirmar que, em detrimento do corpo acumulado, o que o encenador
francês deseja é um corpo vibrátil?
Em seus escritos, Artaud afirma constantemente a potência do devir na cena,
aposta na criação do “corpo sem órgãos” (CsO), colocando em xeque todos os
alicerces e as estruturas do teatro clássico, baseado em dicotomias texto e cena,
palco e plateia, arte e vida, corpo e voz. O CsO, segundo Gilles Deleuze e Félix
Guattari (1999), não corresponde a um conceito ou uma noção, mas a um conjunto
de práticas. “Onde a psicanálise diz: Pare, reencontre o seu eu, seria preciso dizer:
vamos mais longe, não encontramos nosso CsO, não desfizemos ainda
suficientemente nosso eu” (Deleuze & Guatarri, 1999, p.10). Para criar para si um
CsO é necessário substituir a interpretação psicanalítica pela antipsicanalítica,
nomeada como “programa” pelos autores, que produziria corpos em constante
experimentação de intensidades, afetos e velocidades em circulação. “O CsO não
é uma cena, um lugar, nem mesmo um suporte. Nada a ver com um fantasma,
nada a interpretar. O CsO faz passar intensidades” (Deleuze & Guatarri, 1999, p. 12).
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Trata-se de um movimento de experimentação constante, no qual o grande
inimigo não são os órgãos, mas o organismo. Nesse sentido, o que Artaud proporia
é a destruição do modelo teatral que impõe a estratificação em formas, funções
e hierarquias. Devem ser combatidos
a superfície de organismo, o ângulo de significância e de interpretação, o
ponto de subjetivação ou de sujeição. Você será organizado, você será
um organismo, articulará seu corpo senão você será um depravado.
Você será significante e significado, intérprete e interpretado senão será
desviante. Você será sujeito e, como tal, fixado, sujeito de enunciação
rebatido sobre um sujeito de enunciado senão você será apenas um
vagabundo. Ao conjunto dos estratos, o CsO opõe a desarticulação (ou as
n
articulações) como propriedade do plano de consistência, a
experimentação como operação sobre este plano (nada de significante,
não intérprete nunca!), o nomadismo como movimento (inclusive no
mesmo lugar, ande, não pare de andar, viagem imóvel, dessubjetivação.)
(Deleuze & Guatarri, 1999, p. 20).
Artaud quer, portanto, destruir o teatro enquanto organismo, significante e
significado, intérprete e interpretado. Ao buscar romper com tal estrutura, propõe
a experimentação constante, o movimento nômade e a dessubjetivação. Deseja
um teatro que insira os corpos em experiências e que crie para si mesmo corpos
sem órgãos.
Estabelecendo uma ponte entre os pensamentos de Artaud, Deleuze e
Guattari, chegamos ao procedimento artístico nomeado como “programa
performativo”, pela performer e pesquisadora Eleonora Fabião (2013). Um
programa performativo corresponde ao enunciado de uma performance ou ato
performativo e propõe “um conjunto de ações previamente estipuladas,
claramente articuladas e conceitualmente polidas a ser realizado pelo artista, pelo
público ou por ambos sem ensaio prévio” (Fabião, 2013, p. 4). Com isso, tal
procedimento se estabeleceria como um
Motor de experimentação porque a prática do programa cria corpo e
relações entre corpos; deflagra negociações de pertencimento; ativa
circulações afetivas impensáveis antes da formulação e execução do
programa. Programa é motor de experimentação psicofísica e política
(Fabião, 2013, p. 4).
Segundo a autora, através da realização de programas performativos, o artista
opera uma desprogramação do meio em que está inserido e de si mesmo,
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produzindo relações, associações, agenciamentos e afetos extraordinários. uma
desorganização e recusa do que é dado como “natural”, mas que, na verdade,
trata-se de uma construção política, ideológica, cultural e estética. O programa
performativo aproxima-se do desejo artaudiano de romper com a ilusão e o
acúmulo e opera por meio da experimentação de novas e outras relações,
negociações, velocidades e circulações de afetos.
Sugiro que através da prática de programas performativos, o ator poderá
ampliar seu campo de experiência e conhecer outras temporalidades,
materialidades, metafisicalidades; experimentar mudanças de hábitos
psicofísicos, registros de raciocínio e circulações energéticas; acessar
dimensões pessoais, políticas e relacionais diferentes daquelas
elaboradas no treinamento, ensaio ou palco. Tal prática conduzirá o
artista pelas campinas da desconstrução da ficção e da narrativa; pelos
sertões da quebra da moldura; pelas imensidões do desmanche da
representação. Conduzirá à realização de ações físicas cujo objetivo é a
experiência do espaço-tempo no aqui-agora dos encontros; cujo super-
objetivo é o embate com a matéria-mundo (Fabião, 2013, p. 9).
“Uma casa, cinco atuantes, 24 horas: chegue quando puder, saia quando
quiser”: essa era a sinopse do espetáculo
Casa Vazia
, mas também podemos
entender como um programa performativo que tinha como objetivo a abertura
para voos altos entre as nuvens do acaso, do imponderável, do imprevisível do
acontecimento e da suspensão de tudo o que é dado, hábito e automático. Dessa
forma, visava à produção de espaços-tempos de criação de corpos que vibram
intensamente por meio da circulação de afetos que não fossem aqueles impostos
pelas práticas hegemônicas que anestesiam corpos e sujeitos. Nesse sentido,
proponho que a sinopse de
Casa Vazia
constitui um programa performativo
autoficcional, na medida em que entendemos a autoficção como processo de
criação constante de si, desarticulação de um “eu” organizado, significante e
significado, intérprete e interpretado, de produção de corpos em experiência. Para
a atriz mariah miguel, durante as edições de Casa Vazia, seu corpo
Estava negociando limites e possibilidades com quem estava em cena
comigo. Eu estava negociando essas bordas entre arte e vida. Negociando
afetos. E, ao mesmo tempo, estava me posicionando com muita
disponibilidade e desejo para o jogo. Tinha uma coragem de mergulhar
violentamente. Mas não violência de agressivo. Violência de um rompante
para uma coisa completamente desconhecida. Porque não tinha controle.
Não existia uma narrativa, não sabia qual era o final. Tinha um percurso
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Casa Vazia
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que a gente fazia coletivamente. Muito risco de se perder neste percurso
(miguel, 2019).
Para um corpo em experiência no programa performativo, “‘organismo’,
‘sentido’ e ‘sujeito’ são atos nem algo, nem dados, nem plenos, nem prontos,
nem repetíveis, mas atos, atos performativos e, como tal, configurações
momentâneas de aderências-resistências, modos relacionais em devir” (Fabião,
2013, p. 6). Casa Vazia constitui um programa performativo autoficcional porque
essa violência, essa coragem, essas negociações coletivas que miguel cita
vulnerabilizam e produzem corpos em vibração que rompem com a estratificação
e permitem a desorganização dessa “coisa, essa construção subjetiva ‘a Mariah’, a
minha linha do tempo, tempo linear. Desorganizar mesmo” (Fabião, 2013, p. 6).
Figura 5 - A atriz Camila Costa e o ator Ricardo Cabral em
Casa Vazia
. Foto: Íra Barillo
Casa Vazia
, para Cabral, “é um jogo. Um jogo performativo.
Casa Vazia
é uma
máquina de inventar histórias sobre si, sobre o mundo. É um jogo disso” (Cabral,
2019). Em outras palavras, é um programa performativo que trabalha a partir da
autoficcionalização dos atuantes. No começo do processo de criação, o
entendimento da equipe acerca do conceito de autoficção se dava da seguinte
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maneira: existe um “eu” e daí se fabula a partir deste “eu”. Essa concepção vai ao
encontro da ideia de um “eu” que é dado, organizado, essência, que está escondido
e pode ser revelado. Com o caminhar da investigação, o entendimento foi se
aprofundando e percebeu-se que qualquer narrativa de si é um ato performativo,
uma criação de si mesmo.
E aí, eu acho que é com isso que a gente começa a brincar. Do tipo,
determinadas histórias minhas ou de outras pessoas me interessam.
Determinadas visões de mundo minhas ou de outras pessoas me
interessam. Isso é o bastante. Eu sou para aquele momento, em termos
deste auto, de autoficção, o que eu quero, o que me interessa, o que me
atrai, o que me seduz. Então, a coisa fica muito mais livre, ela fica mais
engraçada, ela fica mais jogada, ela fica mais estratégica, ela fica mais
aberta para o externo e não numa confabulação interna (Cabral, 2019).
Portanto, foram construídos materiais menos interessados numa estrutura
narrativa autobiográfica, linear, teleológica. A cena autoficcional tocava na
subjetividade das atrizes e dos atores, na medida em que criava o diálogo entre os
corpos, agenciando e negociando desejo e afetos. Esse diálogo poderia se dar
através de um material como “Corpo de Presença”, no qual a miguel pede para
que os espectadores assinem seus nomes no corpo dela, no lugar que desejam.
Agenciam-se e se negociam, assim, desejo e afeto entre o corpo que assina e o
corpo suporte da assinatura. Ao escrever, a pessoa se inscrevia também no corpo
da atriz, que já não era mais apenas ela, mas um acúmulo de “eus”. A autoficção
também trata dessa relação que se constrói entre o “eu” e o “outro”.
Para miguel,
Casa Vazia
constitui um projeto “que é aberto, que é poroso, que
tem uma relação esgarçada com o espaço e com o tempo” (miguel, 2019). Isso
exigiria abertura para o jogo, disponibilidade para o presente e corpos vulneráveis.
Uma vulnerabilidade que pode ser potencializada com a radicalização da
temporalidade. Sobre essa questão, Cabral afirma:
Mas, o ponto é isso: é você estar aberto. E aí é você passar vinte e quatro
horas aberto sob os efeitos que determinadas coisas começam a dar. O
cansaço. A estafa. O que eu quero dizer é: para você entrar para jogar,
você tem que estar muito ligadão no que você quer trabalhar, no que
você não quer. Quando você vai fazer isso durante vinte e quatro horas,
você começa a não ficar tão ligadão, porque uma hora o corpo começa a
dar ruim. E aí, tem o lado bom, porque surgem coisas inesperadas, mas
tem um que pode ser, eventualmente, ruim que é você começar a perder
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um pouco o controle das águas por onde você quer navegar e onde você
não quer (Cabral, 2019).
É na produção dessa vulnerabilidade que podemos encontrar a potência
estético-política de
Casa Vazia
. Tal vulnerabilidade desestrutura os organismos e
os corpos acumulados para produzir novas possibilidades de percepção e
presença. O voo alto em bando através das nuvens de
Casa Vazia
produz corpos
que vibram e permanecem vibrando após o voo. O espetáculo investe, portanto,
nessa possibilidade de voo sempre em bando, na relação entre os corpos em
vibração - de um estrato para o outro, que abre caminhos impensados e
improváveis entre os estratos e que só é possível conhecer atravessando.
Figura 6- Atriz Chris Igreja em
Casa Vazia
. Foto: Íra Barillo
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Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br