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Teatro na rua: quando a cidade invade a cena
Entrevista com André Carreira
Concedida a José Alencar de Melo (Zekhety)
Orientação e organização: Natássia Duarte Garcia Leite de Oliveira
Para citar este artigo:
CARREIRA, André; MELO, José Alencar de (Zekhety).
Orientação e organização: Natássia Duarte Garcia Leite de
Oliveira. Teatro na rua: quando a cidade invade a cena.
[Entrevista concedida à José Alencar de Melo (Zekhety)].
Urdimento
- Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v.3, n.45, dez. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573103452022e0504
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Teatro na rua: quando a cidade invade a cena
Entrevista com André Carreira - Concedida a José Alencar de Melo (Zekhety)
Orientação e organização: Natássia Duarte Garcia Leite de Oliveira
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-25, dez. 2022
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Teatro na rua: quando a cidade invade a cena
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Entrevista com André Carreira
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Concedida a José Alencar de Melo (Zekhety)
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Orientação e organização: Natássia Duarte Garcia Leite de Oliveira
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Resumo
André Carreira (1960) inaugurou práticas e teorias de suma relevância para o
teatro latino-americano. Neste diálogo, o diretor fala do início de sua carreira
e das principais influências artísticas que permeiam sua história. Além disso,
pistas do conceito de cidade e da noção do espaço urbano como
dramaturgia e esclarece sua compreensão acerca dos termos espaços
convencionais e não convencionais, teatro na cidade, teatro na rua, teatro de
rua, dentre outros. A entrevista semiestruturada foi dividida em três partes: a
primeira aborda os aspectos gerais acerca das formas teatrais e do espaço
urbano; a segunda enfatiza o teatro na rua, e a terceira expõe a experiência
com o grupo Teatro que Roda (Goiânia/Goiás/Brasil). A oportunidade do
encontro se deu presencialmente, em 2014, na ocasião em que o entrevistado
participava de um projeto na cidade de Goiânia. Carreira teve acesso à
transcrição bruta do material, que também foi revisado por ele antes dessa
publicação.
Palavras-chave
: André Carreira. Teatro na rua. Teatro de invasão. Espaços
urbanos. Cidade.
1
Revisão ortográfica e gramatical da entrevista realizada por
André Luiz
Antunes Netto
Carreira
e Natássia
Duarte Garcia Leite de Oliveira.
2
Pós-Doutorado pela New York University. Doutorado em Teatro pela Universidad de Buenos Aires. Graduado
em Licenciatura em Educação Artística (Artes Plásticas) pela Universidade de Brasília. Professor da
Universidade do Estado de Santa Catarina, no Departamento de Artes Cênicas e no Programa de Pós-
Graduação em Teatro (Mestrado - Doutorado). Professor do Mestrado Profissional em Artes (Rede). Professor
convidado na Maestría en Práctica Escénica y Cultura Visual da Universidad Castilla-La Mancha / Museo
Reina Sofia (Espanha). Maestría en Teatro Latinoamericano da Universidad de La República (Uruguai).
Membro de ARTEA - grupo de investigadores em artes cênicas (Espanha). Diretor do grupo teatral Experiência
Subterrânea de Florianópolis. andre.carreira@udesc.br
http://lattes.cnpq.br/4224540229202107 https://orcid.org/0000-0003-1846-4551
3
Entrevista realizada no dia 21 de novembro de 2014. Diretor de Arte, formado pela Escola de Música e Artes
Cênicas da Universidade Federal de Goiás (UFG). Trabalha com inúmeras produções - teatrais e audiovisuais
- de Direção de Arte em Goiânia e no Brasil. kethybelo@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-
9200-4580
4
Doutora em Educação pela Universidade Federal de Goiás (PPGE/ FE UFG - 2013). Mestra em Arte pela
Universidade de Brasília(PPGA/ IdA/ UnB - 2009). Bacharel em Artes Cênicas, Interpretação Teatral (IdA/ UnB,
2006). Docente efetiva da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás (Emac/ UFG),
atuando nos cursos de graduação ‘Teatro’ e ‘Direção de Arte’ e no Programa de Pós-Graduação em Artes da
Cena (PPGAC). natassiagarcia@ufg.br
http://lattes.cnpq.br/2673206479757870 https://orcid.org/0000-0003-1744-2035
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Entrevista com André Carreira - Concedida a José Alencar de Melo (Zekhety)
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Theater on the street: when the city invades the scene
Abstract
André Carreira (1960) inaugurated great relevant practices and theories for
latin american theater. In this dialogue, the director talks about the beginning
of his career and the main artistic influences that permeate his history.
Furthermore, he gives clues to the concept of the city and the notion of urban
space as dramaturgy and clarifies his understanding about the terms
conventional and unconventional spaces, theater in the city, theater in the
street, street theater, among others. The semi-structured interview was
divided into three parts: the first deals with general aspects about theatrical
forms and urban space; the second emphasizes theater on the street, and
the third exposes the experience with the Teatro que Roda Theater that
Runs group (Goiânia/Goiás/Brazil). The opportunity for the meeting was held
in person, in 2014, at the time the interviewee was participating in a project in
the city of Goiânia. Carreira had access to the raw transcript of the material,
which he also reviewed prior to publication.
Keywords
: André Carreira. Theater on the street. Invasion theater. Urban
spaces. City.
Teatro de calle: Cuando la ciudad invade la escena
Resumen
André Carreira (1960) inauguró prácticas y teorías de gran relevancia para el
teatro latinoamericano. En este diálogo, el director habla del inicio de su
carrera y de las principales influencias artísticas que impregnan su historia.
Además de esto, nos da pistas del concepto de ciudad y de la noción del
espacio urbano como dramaturgia y esclarece su comprensión acerca de los
términos espacios convencionales y no convencionales, teatro en la ciudad,
teatro en la calle, teatro de calle, entre otros. La entrevista semiestructurada
fue dividida em tres partes: la primera aborda los aspectos generales acerca
de las formas teatrales y del espacio urbano; la segunda enfatiza el teatro en
la calle y la tercera expone la experiencia con el grupo Teatro que Rueda
(Goiânia/ Goiás/ Brasil). La oportunidad del encuentro se dio presencialmente
em 2014, en cuya ocasión el entrevistado participaba en un proyecto en la
ciudad de Goiânia. Carreira tuvo acceso a la transcripción bruta del material,
que también fue revisada por él antes de esta publicación.
Palabras clave
: André Carreira. Teatro en la calle. Teatro de Invasión. Espacios
Urbanos. Ciudad.
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A presente interlocução foi realizada em 21 de novembro de 2014, na cidade
de Goiânia, Estado de Goiás para o projeto de pesquisa intitulado
Teatro que Roda
invade a cidade: Ensaio acerca do espetáculo Das Saborosas Aventuras de Dom
Quixote de La Mancha e seu escudeiro Sancho Pança - um capítulo que poderia
ter sido
, desenvolvido pelo pesquisador e diretor de arte José Alencar de Melo
(Zekhety) no curso de Direção de Arte da Escola de Música e Artes Cênicas da
Universidade Federal de Goiás (EMAC/ UFG)
5
, sob orientação da profa. Dra. Natássia
Duarte Garcia Leite de Oliveira.
Na ocasião do encontro, André Carreira (1960) estava de passagem por
Goiânia, dirigindo o espetáculo
AntígoNaCidade
6
, uma tragédia urbana que estreou
no mesmo ano. No diálogo aqui apresentado, o diretor e encenador fala do início
de sua carreira e das principais influências artísticas as quais permeiam sua
história. E, ainda, pistas do conceito de cidade e da noção do espaço urbano
como potencialidade dramatúrgica; além de esclarecer sua compreensão acerca
dos termos espaços convencionais e não convencionais, teatro na cidade, teatro
na rua, teatro de rua, dentre outros. A entrevista semiestruturada foi concebida
com objetivo de compreender como Carreira pensava: os aspectos gerais acerca
das formas teatrais e do espaço urbano; o teatro na rua; e a experiência com o
grupo Teatro que Roda
7
(Goiânia/ Goiás/ Brasil).
5
Direção de Arte | Emac (ufg.br)
6
AntígoNa Cidade
, projeto do Grupo SoloS de Baco, produzido por Plano V Eventos, com apoio do Fundo de
Arte e Cultura de Goiânia, sob direção de André Carreira (2014). Para ver mais, acesse: (4) AntígoNa Cidade |
Facebook
7
TEATRO QUE RODA. http://teatroqueroda.blogspot.com
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5
André Carreira (Juiz de Fora, Minas Gerais, 1960). Foto: Leo Macário
Arquivo: Grupo SoloS de Baco, Goiânia, GO.
André Luiz Antunes Netto Carreira, conhecido no campo das artes cênicas
como André Carreira, é diretor de teatro com pesquisa em atuação e teatro na
cidade. Atualmente é professor do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
(PPGAC) e do PROFARTES na Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC).
Em sua formação é Licenciado em Artes Visuais pela Universidade de Brasília (UnB/
1984) e Doutor em Teatro pela Universidad de Buenos Aires (1994). Tem pós-
doutorado junto a Richard Schechner (NYU), em 2011; e a Óscar Cornago, na
Espanha, entre 2017 e 2018. Também é pesquisador do CNPq desde 1997 e autor
dos livros:
Falas Sobre o Coletivo; Teatro de Rua: Uma Paixão no Asfalto
e
Teatro
de Invasão: a cidade como dramaturgia, Meyerhold: Experimentalismo e
Vanguarda
, entre outros. Além das contribuições teóricas, dirigiu os espetáculos:
Das Saborosas Aventuras de D. Quixote
(Teatro que Roda/ GO);
Marias da Luz
(As
Graças/ SP);
Final da Tarde
(Teatro de Caretas/ CE) e
Women’s
(Experiência
Subterrânea/ SC), entre outros.
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Primeira parte: as formas teatrais e o espaço urbano
Você poderia nos falar um pouco acerca da noção e dos conceitos de espaços
convencionais e não convencionais a partir do século XX?
Eu não uso a terminologia ‘espaço convencionais e não convencionais’,
digamos. Eu entendo [o uso] porque tradicionalmente se usa, mas no século XX,
sobretudo, a partir do final da primeira metade do século XX, essa divisão entre
espaço convencional e espaço não convencional começa a entrar em crise muito
rapidamente e a ideia da sala italiana, a ferradura, o palco com seus diferentes
lugares de observação começa a mudar muito rápido. Porque esses espaços vão
deixando de ser os únicos, muito rapidamente vão aparecendo salas muito
pequenas, salas alternativas. Quando o teatro entra em crise, do ponto de vista de
ser a grande arte performativa, por causa do cinema, as grandes salas vão ficando
muito custosas, vão aparecendo salas menores. Nesse processo, os formatos de
sala vão variando muito e a ideia de espaço convencional, por um lado, e espaço
não convencional por outro fica muito pulverizada para mim.
É impossível entender o trabalho do [Jerzy] Grotowski
8
se a gente considerar
essa categoria, porque ele trabalhava num teatro, teatro sala, estruturado, mas no
uso desse espaço ele rompia com todas essas regras, pois ele trabalhou [em]
vários tipos de salas teatrais. E assim a gente poderia continuar listando outros
trabalhos que foram desarticulando essa dicotomia.
Por exemplo, se a gente continuar usando as categorias espaço convencional
e espaço não convencional, como é que explicamos o teatro da Ariane
Mnouchkine
9
? O trabalho da Ariane Mnouchkine é numa sala, mas é uma sala
teatral que é uma adaptação de um velho edifício industrial. Tem plateia, o público
está sentado, mas os espetáculos também caminham dentro desse espaço. Em
alguns de seus espetáculos o público está em pé, mas está dentro de uma sala. O
público vai até cartoucherie, paga a entrada, entra na sala. Considerando estes
exemplos, entre muitos outros, podemos ver que o que seria convencional hoje é
8
Jerzy Grotowski (1933 - 1999), pesquisador teatral polonês, autor do livro
Em Busca de um Teatro Pobre
.
9
Ariane Mnouchkine (1939) é uma diretora francesa de teatro e cinema, fundadora do Théâtre du
Soleil em Paris, no ano de 1964.
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muito diferente [daquilo] que a gente poderia supor no começo do século XX.
Então, não uso mais essas categorias de espaço não convencional e espaço
convencional. Acho que essas categorias têm que ser ampliadas. A gente tem os
espaços que são mais frontais, os que são circulares, os que são mais
desorganizados, aqueles que são espaços públicos reaproveitados, temos os que
são lugares específicos, que a gente poderia chamar de
site specific
. [Ou seja] o
espetáculo foi feito para um lugar bem definido, então, por isso que eu não uso as
categorias espaços convencionais e espaços não-convencionais. Quando você
tenta articular uma definição para espaço não convencional, é muito difícil
encontrar algo que sintetize o não convencional. Algo que represente um conjunto
de coisas que a gente possa colocar sob esse nome e que diga alguma coisa
particular. Já não diz muito.
Quando e como se deu o processo da percepção da cidade como ambiente
teatral? Existe algum artista de referência no seu trabalho com o espaço urbano?
Se sim, qual ou quais?
O teatro como ‘coisa’, como forma expressiva, nasce com a ideia de cidade.
No caso do Ocidente isso é muito claro, [pois] quando o teatro começa a se
estruturar, considerando a Grécia clássica, tem-se um movimento em direção à
constituição de um espaço onde tem gente que faz uma performance para outros
assistirem. [Isso] porque o teatro se define basicamente por essa criação desse
espaço dual alguém se apresenta, outra pessoa assiste. Nós estamos falando
que as festas agrárias na Grécia, ao invés de serem festas em que todo mundo
estava dançando e andando junto, aparece alguém que diz: “– Para aí. Vou te
mostrar como era a vida de Baco”. Esse é o nosso grande mito fundador com o
Carro de Téspis. E esse movimento de parar a festa para que o outro assista tem
muito a ver com a origem da cidade ocidental.
Quando a gente olha a história das artes cênicas, tanto no Oriente na China,
no Japão, como no Egito clássico você vai ver que essas formas, que vão do
ritual para o espetacular, aconteciam na cidade. Ou seja, você não tinha um edifício
teatral definido porque o espaço era o espaço público. Os gregos, depois,
construíram algo mas é um edifício que se define como uma extensão do espaço
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já experimentado nas festas. A ideia do anfiteatro grego não é um lugar separado
da cidade, ele tem uma ideia de continuidade com a vida da cidade. É um outro
âmbito da própria cidade.
Quando eu penso no teatro na cidade e poderia continuar fazendo um
mapa histórico e a gente veria que ao longo da história ocidental o teatro está
muito associado à reutilização de construções que antes tinham outros usos na
cidade. As formas das salas do renascimento, todas elas vieram de reutilização de
um espaço feito para outra coisa. Por exemplo, o caso espanhol é bem concreto:
o teatro espanhol era feito em currais no espaço que ficava atrás das estalagens
onde se albergavam os animais de quem estava viajando. A forma dos teatros
espanhóis do renascimento, que é a forma de um curral o
Teatro de Los Currales
.
Então, é a cidade sendo usada.
Na França o primeiro teatro é feito dentro de um hotel reutilizado ou de uma
quadra do tênis primitivo. São espaços da cidade, de uso público, que foram
convertidos, como também as igrejas e seus pátios na idade média. Esse é um
vínculo importante para compreender as dinâmicas do teatro e da cidade.
O que acontece, é que o desenvolvimento urbano do renascimento e do
capitalismo estratificou e começou a fazer mais complexo o negócio do
entretenimento. Isso explica, em certa medida, a construção de lugares específicos
que são mais rentáveis e mais adaptados para o espetáculo. Essa especificidade
é uma invenção de um momento do teatro que nós herdamos. Paralelamente a
isso está o outro lado, pois a cidade, de um modo geral, continuou tendo espaços
muito permeáveis ao acontecimento ficcional sob as mais diferentes formas.
Parte do meu trabalho tem a ver com tentar explorar as permeabilidades da
cidade para o acontecimento ficcional, onde você tem, ao mesmo tempo, fluxo da
vida cotidiana, que a gente poderia chamar de realidade, com a presença da ficção,
a ficcionalidade, a teatralidade. A junção dessas coisas na cidade, se dá,
primeiramente, porque a cidade é uma estrutura dinâmica e porosa. Quem habita
uma parte da cidade consegue entender que algo é ficcional; também pode
relacionar isso com a realidade cotidiana; e ver as tensões entre sua realidade e a
ficção. É isso que abre espaços de jogo.
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Por exemplo, a gente apresentou
AntígoNacidade
nas ruas de Goiânia, e as
pessoas viam que era ficção, mas sentiam que podiam falar com os atores e
atrizes sabendo que eles eram reais, e podiam [portanto] estabelecer um certo
diálogo.
Ensaio do espetáculo
AntigoNaCidade
(2014) no Centro da cidade de Goiânia, Goiás, Brasil
Arquivo: Grupo SoloS de Baco. Fotos: André Carreira.
Uma pessoa na rua pode aceitar isso que é sobrepor realidade e ficção. A
cidade é bem porosa porque está conformada pelos fluxos das pessoas no espaço,
está habitada pela vida cotidiana. Então ela é mais porosa que os edifícios teatrais,
do ponto de vista da potência da teatralidade. Quando o espectador vai ao Teatro
Goiânia, ele senta e diz: - “Tá, o que vai acontecer no palco é para eu ver.” O que
acontece na cidade como ficção é para eu ver, mas me diz respeito porque é o
meu espaço, posso participar. Ele [o espectador] é interferido por aquilo e se sente
no direito de interferir. Tem-se ali a possibilidade de um diálogo com muito mais
porosidade do que no espaço normatizado pelo teatro.
Quais foram suas influências artísticas?
Eu morei muitos anos na Argentina, onde fiz toda minha carreira teatral.
Comecei como ator em Brasília, mas trabalhei muito pouco no Brasil, trabalhei
dois anos como ator, depois fui embora para Buenos Aires onde vivi onze anos. A
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minha grande influência é o teatro de Buenos Aires. Mas eu morei em Buenos Aires
nos anos 1980, no período da pós-ditadura, quando uma enorme quantidade de
artistas internacionais visitou Buenos Aires. Então, eu tive oportunidade, morando
e vivendo lá, de conviver com uma cena muito ativa e de ver artistas internacionais
bem importantes. A minha maior influência, de fato, do ponto de vista técnico, foi
o diretor chamado Francisco Javier
10
, de quem fui assistente e orientando em meu
doutorado. Um diretor importante em Buenos Aires, Javier foi o introdutor do
‘teatro do absurdo’ na Argentina. Aprendi muito vendo seus ensaios. Do ponto de
vista artístico o trabalho que mais me impactou foi o de Tadeusz Kantor
11
, com o
Cricot 2, cujos espetáculos realmente me fizeram repensar o que eu entendia
como teatro. Então, essa é uma referência muito grande, uma espécie de ponto
de ruptura na minha formação. No que diz respeito à experiência com o teatro na
cidade, o trabalho da companhia francesa Royal de Luxe
12
que também foi muito
importante ao longo das minhas experiências. Poderia citar esses e vários outros,
mas essas foram as referências mais fortes, mais impactantes. Agora,
principalmente a cena nova da Argentina na década de [19]80 que eu participei.
Artistas como Daniel Veronese
13
e Ricardo Bartis
14
foram muito importantes na
minha leitura do teatro.
A partir dos seus textos e trabalhos podemos compreender o espaço urbano não
apenas como o lugar que recebe o espetáculo, mas como um elemento
estruturante de uma teatralidade multifacética. Pode nos falar um pouco mais
sobre esta questão, citando exemplos? Ainda neste sentido, a cidade pode ser
vista como um espaço de dramaturgia e não apenas cenográfico?
Geralmente as pessoas chamam o teatro na cidade de teatro de rua, e
relacionam isso com uma forma muito específica de teatro que por ocupar este
10
Jorge Amado Lurati, mais conhecido como Francisco Javier (1923 - 2017), foi diretor de teatro e
docente da Universidade de Buenos Aires (UBA).
11
Tadeusz Kantor (Wielopole, 1915 - 1990), artista polonês, pintor, cenógrafo, encenador e criador
de happenings e performances. Em 1955 criou o Teatro Cricot 2.
12
Royal de Luxe é uma companhia francesa de teatro de rua, fundada em 1979 por Jean Luc
Courcoult, que é conhecida por usar marionetes gigantes em suas obras.
13
Daniel Veronese nasceu na Argentina, em 1955. É ator, dramaturgo, titiritero, diretor de teatro e
criador do grupo El Periférico de Objetos.
14
Ator, diretor e dramaturgo argentino, nascido em 1949.
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âmbito público teria qualidades que representaria o povo na rua. Este ponto de
vista relaciona este teatro com a busca de um tipo específico de espectador, mas
a rua é, principalmente a diversidade de pessoas e de formas de habitar o espaço
da cidade. Outro aspecto que muitas vezes marca o trabalho de quem faz teatro
de rua é reafirmar o uso de alguma característica cenográfica de um lugar. Então
se faz o espetáculo ali porque este elemento cenográfico que representa algo
concreto. No meu trabalho eu não parto dessa premissa cenográfica da cidade.
Quando vou para rua não sei o que eu vou encontrar ali. Posso imaginar, mas não
vou porque tem um tipo de público específico para assistir meu espetáculo, ou
porque busco um cenário. O que eu procuro na rua, é eu chamo de ‘elemento
estruturante’, ou seja, algo que oferece um suporte ou estímulo para o processo
de criação.
‘Elemento estruturante’ é um termo recorrente em sua fala, poderia comentar um
pouco mais sobre esse termo?
Trato de encontrar algo da dinâmica da rua que me permite criar
teatralmente. Isso pode ser um mecanismo que se identifica nesta parte da
cidade, ou uma sensação, ou mesmo uma dificuldade a ser superada pelo elenco.
Tomo estas coisas como ponto de partida para criar uma estrutura. Eu procuro
algo da rua que funcione muito menos como espaço cênico – como cenografia –
e muito mais como texto, como dramaturgia. Por isso, trato de ler a rua como se
fosse uma dramaturgia e a partir disso penso uma forma de experimentar com o
elenco para então chegar a uma encenação. Ou seja, eu vou a um lugar, visito um
espaço, imagino esse espaço e trato de que ele me sugira as possibilidades de
criação.
Eu não crio um espetáculo para fazer na frente de uma igreja porque a igreja
vai dar tal sentido. Se eu tenho interesse na igreja, eu começo a pensar o que
aquilo me sugere como material. Eu tento deslocar da noção de cenário para
noção de dramaturgia. E esse será o ‘elemento estruturante’ do processo da
criação que me conduz a uma forma de trabalhar que não se apoia na busca de
lugares para fazer tal texto ou esta ou aquela cena. A coisa é experimentar o
espaço com o elenco para ver como juntos se pode ler a cidade como dramaturgia
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e atuar este texto na rua.
Quando o ator está fazendo teatro na cidade, diferentemente de num espaço
fechado, a sobreposição de fluxos cotidianos vai modificando o trabalho da
atuação. Cada vez que você faz algo na rua, ela reestrutura o teu trabalho, pois os
fluxos do espaço geram para você outras imagens, geram outros estímulos; e [o
material encontrado] vai modificando o que se fazendo na cena. Isso se de
forma muito intensa e permanente. Então, o espaço da cidade continua sendo
estruturante cada vez que o teatro penetra nesse espaço.
A cidade não se estabiliza nunca, os atores sempre vão ter uma nova
experiência muito forte, porque têm pessoas circulando, são pessoas que habitam
esse espaço, que, portanto, têm autonomia no espaço. Você é o estranho. Então,
elas interferem em você de uma maneira muito diversa do que é fazer teatro numa
sala. Na sala você conduz a cena, o outro te assiste. Pode-se gostar ou não gostar,
o público pode ser um participante muito ativo, mas não é proprietário do espaço,
é um convidado a te assistir. Na rua é diferente. Você interfere, perfura um espaço
que é do outro e, então, o outro sempre é o elemento estruturante.
O teatro de rua avança para além das tradicionais noções de teatro popular?
De fato, o teatro na cidade sempre esteve além das noções de teatro popular.
O que acontece é que no Brasil, e em parte da América Latina, se construiu uma
lógica que associa diretamente teatro de rua como uma modalidade do teatro
popular. Por influências muito de movimentos dos anos 1960. Mas é uma redução
de um fenômeno muito mais complexo e diverso.
O teatro de rua pode ser popular, pode ser vanguardista, pode ser uma
infinidade de estilos. Está na rua, está na cidade como uma forma de ocupação,
um modo de vivência da cidade. Quem disse que tudo que está na rua tem
características que poderiam ser associadas a uma matriz de popular? É muito
difícil dizer em poucas palavras o que é popular. Mas, supondo que a ideia de um
teatro popular fosse algo simples de ser definido e o popular fosse algo contrário
do experimental e do vanguardista, como explicar as formas de teatro na cidade
que se caracterizam por experimentar com a fronteira das linguagens da cena? Os
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dadaístas mostraram que a rua pode ser espaço da invenção. A vanguarda
futurista russa também. A cena da rua não precisa ser, necessariamente,
relacionada com essas matrizes do popular, ela pode ser popular, mas não é
necessariamente isso, como muitas vezes se pensa no Brasil. Aqui se reforça
muito essa ideia de que o teatro na cidade, o teatro na rua, o teatro de rua, seria
sempre um teatro popular. Esse ponto de vista limita nosso olhar sobre um objeto
complexo.
O diálogo que as formas teatrais estabelecem com os espaços urbanos
ressignificam esses espaços?
Toda vez que você habita um espaço, qualquer que seja ele, por um tempo
razoável, você o modifica. Um prisioneiro que é posto numa cela, fica lá um mês,
alguma coisa ele vai deixar naquela cela, enquanto está na cela ela pertence a ele.
Sempre inventamos formas de nos apropriar dos espaços que habitamos. Habitar
é uma forma de definir o espaço. Quero dizer que toda vez que você habita o
espaço, este te define e você o define também.
O teatro na cidade existe como habitação do espaço da cidade. Nunca se está
em um espaço sem interferir no seu funcionamento. Todo teatro que se faz na
cidade modifica o espaço, ressignifica este espaço de alguma maneira. Por
exemplo, quando temos uma rua aonde todo mundo vem e vai, faz compras e
uma dia você passa e tem dez pessoas deitadas no chão falando como fazíamos
em
AntígoNaCidade
15
não é exatamente a mesma rua. No momento em que
os transeuntes encontram as outras pessoas deitadas no chão a rua ganha um
novo significado.
15
Para assistir à cena descrita por André Carreira, bem como ao espetáculo na íntegra, acesse:
Antígona Cidade - YouTube
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André Carreira, ao fundo, observa a cena do espetáculo
AntígoNaCidade
.
Apresentação na porta do Colégio Lyceu de Goiânia
Arquivo: Grupo SoloS de Baco. Foto: Leo Macário.
Isso é ressignificar, ainda que esta ressignificação do espaço urbano pelo
teatro, seja momentânea e pouco duradoura. Essa rua não virou outra coisa, mas
circunstancialmente é diferente. E é possível que na memória das pessoas que
transitam por ali ela perdure como uma experiência nova. Logicamente isso
dependerá da dimensão e do impacto do espetáculo, podendo durar mais tempo
ou menos tempo como acontecimento que se recorda e se comenta. É uma
ressignificação efêmera, a cidade é assim, os acontecimentos das ruas são
efêmeros como fragmentos da memória. Busco com meus trabalhos que quem
assiste sinta o impulso de contar para outras pessoas.
Então, o teatro na cidade ressignifica porque interfere no espaço; e porque
ele não é natural na cidade. Ele é uma construção, um habitar poético que modifica
o uso [da rua]. Mas é momentâneo, mesmo assim é uma forma de mudar a vida
da cidade porque reivindica o valor da fala artística dentro do cotidiano funcional
do espaço urbano.
Teatro na rua: quando a cidade invade a cena
Entrevista com André Carreira - Concedida a José Alencar de Melo (Zekhety)
Orientação e organização: Natássia Duarte Garcia Leite de Oliveira
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-25, dez. 2022
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A tensão gerada entre as formas teatrais e as dinâmicas características da rua
redefine a cidade como um lugar cultural?
A cidade é uma construção, é uma prática cultural. Goiânia, não é seu
espaço físico, suas construções e vias. Se trocássemos toda a população de uma
cidade em pouco tempo ela seria outra absolutamente diferente. A cidade não
está definida pelos edifícios. Está definida pela relação que nós, sujeitos,
estabelecemos com nossas ruas, com nossos edifícios, nossas memórias e nossas
formas de usar/habitar os espaços. Então, a cidade é, basicamente, uma produção
decorrente dos usos e das consequentes tensões culturais.
Para mim o elemento chave da cidade é a cultura do uso das ruas. O espaço
se define através dos usos culturais. Isso não implica que como artista eu a olhe
de fora. Estou na cidade, sou a cidade e meu olhar também é um fator cultural. O
olhar dos atores e atrizes também é um elemento que modifica culturalmente a
cidade. O próprio espetáculo se converte em um componente cultural que
modifica de modo transitório a cidade. Como a cidade é definida pelos usos, o uso
pela ação artística também é intervenção no espaço cultura da cidade.
Segunda parte: o teatro na rua
Teatro de rua, teatro na rua e teatro de invasão: características e diferenças
Pensando estas nomenclaturas que você menciona como objetos artísticos,
não encontro grandes diferenças entre essas três categorias. Mas, como disse
antes, opto por pensar as formas do teatro na cidade. O que acontece é que, a
escolha desses nomes geralmente está determinada por uma delimitação de
campos de ação ou campos culturais em relação ao teatro. Enquanto o ‘teatro de
rua’ parece indicar um gênero, que seria um gênero diferente do teatro de sala, o
‘teatro de invasão’ seria uma nomenclatura para explicar uma atitude com relação
ao objeto teatral. Teatro de invasão não é um gênero. Longe de ser um gênero,
penso o teatro de rua como uma modalidade. O ‘teatro de invasão’ faz referência
a uma poética, é um teatro que invade o espaço do outro, que desorganiza o fluxo,
que reorganiza as relações de um determinado espaço. Então, não uso mais o
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Entrevista com André Carreira - Concedida a José Alencar de Melo (Zekhety)
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termo teatro de rua porque ele parece indicar que estamos falando de um gênero,
e dentro do que seria “teatro de rua” tanta diversidade que eu não vejo muito
sentido em usar esse termo, porque existe uma enorme quantidade de formas
teatrais que podem ser postas dentro dessa nomenclatura. Eventualmente, uso
essa expressão porque as pessoas usam, os festivais usam, todo mundo entende,
mas prefiro chamar de teatro na cidade ou até mesmo teatro de ocupação do
espaço urbano. Quer dizer, isso faz referência a um outro uso do espaço urbano.
E, evidentemente, o termo invasão é meio provocativo. Ele serve para indicar que
é um teatro que não vai ao espaço em busca de um público, senão que vai ao
espaço em busca de uma nova relação com o espaço. A invasão implica em
penetrar no espaço gerando uma nova possibilidade de uso.
Que incômodo/provocação esse teatro de rua/invasão provoca nas pessoas que
transitam pelos espaços urbanos transformados em cenários de um teatro dito
não convencional?
Nós somos seres muito conservadores. Preferimos repetir nossa rotina vinte
vezes antes de mudá-la uma vez. É óbvio que eu estou generalizando e vai haver
exceções. Mas as cidades são plasmadas por aquilo que o antropólogo Roberto Da
Mata
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chama de ‘repertório de usos’. Na cidade temos um repertório de usos que
nos situa nos espaços que frequentamos. Quando quebramos isso provocamos
um certo distúrbio: se a rua é para andar e pessoas deitadas no asfalto ou na
calçada já colocamos em questão alguns dos usos estabelecidos. Isto é, a ordem
dos deslocamentos. Se uma pessoa pendurada no prédio fazendo algo que não
é limpar janela, podemos gerar algumas rupturas na percepção da cidade.
A ideia do teatro de invasão é gerar isso, produzir possibilidades de
desorganização na percepção das pessoas. Podemos pensar a cidade sempre de
um mesmo modo ou poderíamos pensá-la de outras maneiras? A cidade pode ser
um espaço de jogo teatral intenso. E isso implica em romper com a repetição dos
usos, introduzindo o poético também como material do cotidiano. Então, o teatro
de invasão traz isso para esse espaço onde se repetem muito as ações, este teatro
busca transformar rotinas. A ruptura do repertório de usos tem a ver com a criação
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Roberto Augusto DaMatta (Niterói, 29 de julho de 1936) é um antropólogo, conferencista, consultor, colunista
de jornal e produtor brasileiro de TV.
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Entrevista com André Carreira - Concedida a José Alencar de Melo (Zekhety)
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de um espaço de jogo, ainda que de modo efêmero.
No livro Teatro de Callejero você diz que a manifestação teatral na rua ocupa, cada
vez mais, um espaço de marginalidade. Por que e como se dá esse processo?
A cultura hegemônica todo produto cultural que não produz benefícios
financeiros como algo menos importante. Lógico que exceções porque o
sistema cultural é complexo e flexível, mas, via de regra, os modos de criação que
não produzem rentabilidade são situados à margem.
O teatro, de um modo geral, aparece como uma arte secundária. Sabemos
que é muito diferente para uma jovem chegar em casa e dizer que vai fazer teatro
ou dizer que foi contratada pela televisão. A família vai festejar uma coisa e vai
estranhar a outra, e o teatro será, seguramente, o estranho. Isso é meio inevitável
quando pensamos as tensões entre o teatro e a indústria do entretenimento.
Mesmo dentro do teatro, este teatro que se faz nas ruas, via de regra também
reconheço que há exceções – é visto como uma forma marginal. É fácil perceber
isso lendo algum livro sobre a história do teatro brasileiro. Logo se constata que
poucas referências ao teatro de rua, ao teatro na cidade. Poucos teóricos
estudaram isso.
Os festivais costumavam ter as “mostras oficiais” e as “mostras de teatro de
rua”, marcando uma clara diferenças de hierarquia. Minha percepção cotidiana me
mostra que fazer teatro na cidade pode chamar a atenção pelo inusitado, mas,
raramente, chama atenção pela potência artística, como reconhecimento, como
se eu estreasse uma peça em um grande teatro da cidade, a não ser que se trate
de um espetáculo grande que se destaque como grande evento visual.
Terceira parte: a experiência do/com o grupo Teatro que Roda
Como foi a experienciação do teatro de invasão e a utilização dos espaços urbanos
no contexto do trabalho com grupo Teatro que Roda?
Durante o [Festival] Goiânia em Cena, em uma palestra, falei que eu
trabalhava com tipo de teatro na cidade, na rua, mas que não estava relacionado
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Entrevista com André Carreira - Concedida a José Alencar de Melo (Zekhety)
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a um modelo popular. A atriz Liz Eliodoraz e o ator Dionísio Bombinha me
procuraram e disseram que tinham ficado interessados pela palestra, que eles
trabalhavam com teatro popular e estavam curiosos de pensar sobre o teatro que
eu propunha. Então, organizamos uma oficina com eles.
Tudo começou a partir da discussão se o teatro na cidade é necessariamente
um teatro popular ou não. Isso se transformou nessa oficina, que depois deu
origem a um projeto de encenação da cidade organizado pelo Teatro que Roda.
Um dos primeiros passos desse projeto foi essa oficina sobre a encenação na
cidade. Ela funcionou como base para a experimentação junto ao grupo dos
exercícios que foram dando origem ao processo de criação do
Dom Quixote
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.
André Carreira dirigindo
Dom Quixote
Acervo: André Carreira. Produção do Teatro que Roda.
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Referência ao espetáculo
Das Saborosas Aventuras de Dom Quixote de La Mancha e seu Escudeiro Sancho
Pança um capítulo que poderia ter sido
(2006). Uma adaptação livre do clássico de Miguel de Cervantes
encenado pelo Grupo Teatro Que Roda com direção de André Carreira.
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André Carreira dirigindo
Dom Quixote
Acervo: André Carreira. Produção do Teatro que Roda.
Você poderia falar um pouco sobre o processo do espetáculo
Das Saborosas
Aventuras de Dom Quixote de La Mancha e seu Escudeiro Sancho Pança um
capítulo que poderia ter sido?
A premissa desse espetáculo foi trabalhar, obviamente, com um conceito de
um teatro que invadisse a cidade. E para fazer isso trabalhamos com a premissa
de usar o ‘risco’, que é um outro componente do meu trabalho. Experimento na
cidade, mas me interessa muito o trabalho com o risco na atuação do ator. Por
outro lado, no meu trabalho como diretor, de um modo geral, eu procuro que a
atuação seja menos enfática e menos grandiloquente possível. Eu trabalho muito
próximo de uma cena mais perto do realismo, do ponto de vista da atuação, não
da história, ou do estilo.
O primeiro elemento que a gente experimentou foi ir para cidade, aqui na
Avenida Anhanguera, no centro, perto da Avenida Goiás, pois a premissa era fazer
o espetáculo em um lugar dos mais barulhentos da cidade. Não queríamos
procurar uma praça calma porque o objetivo era trabalhar no meio da cidade com
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todo seu barulho e fluxo intenso. Então, o começo do processo foi dedicado a
fazer exercícios e encenar pequenas cenas nessa região. Combinamos isso com a
experimentação de elementos de risco. Ao mesmo tempo, os atores fizeram
treinamento com os bombeiros para o uso de cordas, praticamos técnicas de
violência cênica. Juntando tudo isso, começamos o processo de estruturação das
possibilidades para a criação do espetáculo.
André Carreira em conversa com o ator Dionísio Bombinha, a atriz Liz Eliodoraz,
a preparadora vocal Cristiane Lopes e o figurinista Júlio Van
Acervo: André Carreira. Produção do Teatro que Roda.
A gente não se sentou para discutir o texto de modo a buscar os espaços
adequados à encenação, apesar de que Liz e Bombinha tinham desde o início o
desejo de montar algo a partir da história de Cervantes. No entanto, eu
normalmente não começo nenhum espetáculo pela dramaturgia, prefiro começar
pela experiência do espaço. Geralmente, começo pelas imagens que a cidade me
oferece, aquilo que chamei de elemento estruturante e, depois, procuro o texto.
Como [foi também com o] no
AntígoNaCidade
, o [Teatro que] Roda tinha um
desejo de trabalhar com um texto predeterminado. Então, o que fiz foi deixar o
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texto de lado por um tempo e trabalhei com: os elementos de risco; a ocupação
da cidade; e explorei as relações entre o elenco, fazendo exercícios [os quais
fizeram emergir os elementos] que nos permitiram interpretar
Dom Quixote
. Quer
dizer, criar a ideia de um Dom Quixote como um homem que abandona um
escritório e vai pra cidade, tentando ter uma nova aventura. No seu trajeto Quixote
capta um catador de papel para ser o seu Sancho.
Nada das soluções dramatúrgicas foram coisas que estavam estabelecidas
no roteiro desde o começo. Isso foi aparecendo porque estávamos trabalhando na
rua e fomos armando nossa leitura, o que implicou o desaparecimento de
qualquer tentativa de mostrar o texto do renascimento. Este procedimento nos
permitiu uma leitura completamente contemporânea do material. Cabe lembrar
que junto com Liz Eliodoraz, Dionísio Bombinha e Hélio Fróes criamos o roteiro
que orientou a sequência de cenas.
Como foi a reação do público a esse espetáculo?
É difícil responder de maneira muito pontual a essa pergunta, pois isso
demandaria algum tipo de pesquisa com as audiências. Apresentamos esse
espetáculo muitas vezes e [em] lugares muito distintos, portanto, tivemos
experiências muito variadas. Talvez [tenhamos apresentado] o espetáculo mais de
duzentas vezes. Impossível dizer de forma resumida algo sobre a ‘reação do
público’, porque tivemos muitos públicos.
Prefiro usar o termo espectadores, na rua o que se tem é uma enorme
diversidade de pessoas e de arranjos de espectadores que muda muito
rapidamente. Sabemos que a recepção se de uma forma individual, [mesmo]
quando ainda [há] circunstâncias por uma série de fatores coletivos. Mas no final
das contas cada pessoa um espetáculo distinto, o vive de modo singular. Para
mim isso condiciona muito o processo de criação e as expectativas que devemos
colocar na construção da linguagem de cada espetáculo que [irá] ocupar o espaço
da cidade.
Nossa experiência apresentando
Das Saborosas Aventuras
nos mostrou que
os elementos [inseridos] em cena, entre eles o risco, criaram relações intensas
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com as pessoas. O conjunto dos movimentos de cena provocavam deslocamentos
das pessoas e isso produzia aproximação entre [as] pessoas da audiência e o
elenco. As figuras descendo dos prédios, o trator em movimento com as noivas, a
luta de espadas no meio da rua, alimentava a atração pelo inusitado das situações.
Também creio que alguns elementos da encenação ofereciam aos espectadores
algo de cinematográfico, [produzindo] uma espécie de empatia que permitia uma
aproximação com a cena que era muito estimulante. Não era raro ouvir
comentários sobre a coragem dos atores. As pessoas se colocavam no lugar dos
atores e [das] atrizes correndo riscos e isso excitava as pessoas que
acompanhavam o espetáculo, bem como divertia e fazia as pessoas falarem com
as personagens contribuindo com o desenvolvimento das cenas.
Todos os elementos que usamos tinham relação com a possibilidade de
produzir um evento ao redor do trajeto das personagens. Buscamos produzir nos
espectadores, aquela sensação de “seu eu estivesse com seria?”. Assim, posso
dizer que o espetáculo trabalhava com a percepção dos espectadores sobre o
próprio andamento da cena. Nosso objetivo não era produzir uma narrativa
completa para ser totalmente compreendida, estávamos mais interessados em
estimular jogos ao redor das possíveis narrativas. De todas as formas, o percurso
de Dom Quixote e Sancho era o instrumento das interações e garantia uma linha
dramatúrgica consistente.
Você acredita que a percepção é possível nesse espectador em movimento, que
passa pela calçada, que vê um fragmento do espetáculo de dento de um ônibus?
Então, a coisa é assim, todo espetáculo que ocorre na rua dialoga com essas
pessoas que apenas passam e observam um fragmento do que está acontecendo.
Das Saborosas Aventuras
tinha muita relação com os diferentes processos de
recepção. Uma coisa em particular, me interessa muito, era aquilo que eu chamo
de ‘resíduo’.
Um espetáculo que invade a cidade tem que ter consciência de ele deve
produzir algo mais do que aquilo que os espectadores que vão ver o espetáculo
inteiro poderão perceber. É importante oferecer imagens para aquelas pessoas
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que escolheram ficar um pouco, e logo vão embora, ou para quem passou de
ônibus e viu um fragmento fugaz. A meta para mim sempre é que as pessoas
que cruzam como o trabalho cheguem em casa e contem para alguém um pouco
do que viram. Então, penso que é um bom sinal quando o espetáculo consegue
produzir resíduos e perdurar na memória das pessoas, isto é, ficar dentro da
pessoa o suficiente para ela comente com alguém.
Então, todas as estratégias de risco e de encenação têm muito a ver com
isso: produzir imagens fortes para durar dentro do espectador que circulou na
zona. Isso está relacionado com [diversas cenas do espetáculo]: o Coro de Noivas;
as Dulcineias, que vão para um lado e para outro ampliando a zona de repercussão
do espetáculo [por exemplo]. Elas não contam nada muito específico e não têm
uma história definida a ser compreendida, no entanto, elas produzem
possibilidades de que as pessoas inventem suas próprias histórias e as
compartilhem.
Como é o comportamento do ator nesse processo?
Na cidade, os atores sempre estão expostos, ainda quando [estão]
amparados por algum tipo de cenário. Isso porque a cidade não é do ator, ou
melhor, não é da cena teatral. Esta, está adentrando em um território que, via de
regra, é hostil. Como se trata de um espaço que é do outro, [os atores ficam] à
mercê das decisões das diversas pessoas que circulam pelo espaço público. Estar
na rua é muito diferente de estar no palco onde ele [o ator] está protegido por um
conjunto de convenções muito bem estabelecido. O palco te protege.
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André Carreira com a atriz Liz Eliodoraz
Acervo: André Carreira. Produção do Teatro que Roda.
No caso desse trabalho, e de outras montagens que dirigi nas quais se
trabalha com o risco, o ator que está em uma zona de insegurança vai muito
além nessa experiência. A arte do ator implica em uma condição de risco, porque,
no mínimo, se está exposto ao risco do ridículo. Na cena na cidade o ator está
exposto a mais riscos quando se está muito perto do público, pois isso amplia a
zona de insegurança. Trabalhar nessa zona de insegurança é muito propício para
construção de energias intensas na cena, porque isso permite, ou exige, melhor
dito, que o ator produza intensamente para sustentar seu trabalho porque ele não
tem o aparato cenográfico, uma luz, um palco que garanta um olhar atento e
concentrado. Tem-se que estar o tempo todo produzindo uma intensidade que
garanta que o outro veja sua realização como ficção.
Quando se está em um palco a ficção se produz de forma mais convencional.
Mas na rua esta ficção é articulada como um campo relacional mais variável e
instável. E, certamente, [tal campo] depende basicamente da qualidade da energia
que o ator coloca na cena. Esse é o grande desafio da atuação que o elenco de
Das Saborosas Aventura
enfrentou cada vez que entrou em cena, nas diferentes
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cidades visitadas durante as apresentações do Palco Giratório, em Bogotá ou no
Timor Leste.
Referências
CARREIRA, André.
El teatro callejero en la Argentina y en el Brasil democráticos de
la década del 80: la pasión puesta en la calle
. Buenos Aires: Editorial Nueva
Generación, 2003.
Recebido em: 20/11/2022
Aprovado em: 21/11/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br