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A vulnerabilidade como aspecto de atuação
Pedro Henrique Silva Lopes
Nitza Tenenblat
Para citar este artigo:
LOPES, Pedro Henrique Silva; TENENBLAT, Nitza. A
vulnerabilidade como aspecto de atuação.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis,
v. 1, n. 46, abr. 2023.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101462023e0205
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A vulnerabilidade como aspecto de atuação
Pedro Henrique Silva Lopes | Nitza Tenenblat
Florianópolis, v.1, n.46, p.1-26, abr. 2023
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A vulnerabilidade1 como aspecto de atuação2
Pedro Henrique Silva Lopes
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Nitza Tenenblat
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Resumo
Este estudo examina a vulnerabilidade na atuação utilizando a bioética, as
ciências sociais e a psicologia, revelando-a como aspecto crucial e
significativo para aprofundamento. Para observar, desenvolver e aplicar a
vulnerabilidade na atuação, a Coletiva Teatro divide o processo criativo em
etapas como parâmetro metodológico. A partir de Stanislavski, Fabião e Feral,
a vulnerabilidade se revela pertinente em trabalhos de interpretação,
performance e teatro performativo. A observação da vulnerabilidade e seus
respectivos agentes vulnerabilizantes permite o reconhecimento dos seus
modos de operação e a busca por soluções que permitam uma relação
saudável e produtiva como a mesma enquanto potente ferramenta artística.
Palavras-chave: Vulnerabilidade. Atuação. Coletiva Teatro. Teatro
performativo. Performance.
1
Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Laís Campelo Corrêa Torres, graduada
em Letras Português (Licenciatura e Bacharelado), pela Universidade de Brasília (UnB).
2
Este trabalho resulta em parte do material produzido na dissertação de mestrado de Pedro Henrique Silva
Lopes.
A Vulnerabilidade como aspecto de atuação na Coletiva Teatro
. 2022. Departamento de Artes
Cênicas- Universidade de Brasília, Brasília.
3
Mestrado em Artes Cênica pela Universidade de Brasília (UnB). Graduação em Artes Cênica (UnB). Professor
e ator. lopesipedro@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/0545787832011364 https://orcid.org/0000-0001-7048-9604
4
Doutorado em Performance Studies pela Universidade da California - Davis (2011). Mestrado em Mestrado
em Artes - Royal Holloway University of London (2002). Graduação em Licenciatura Plena em Educação
Artística pela Faculdade de Artes Dulcina de Moraes (1999). Profa. Dra. Adjunto III da Universidade de Brasília
(UnB). nitzatenenblat@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/0968351689788914 https://orcid.org/0000-0003-2525-8430
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Vulnerability as an aspect of acting
Abstract
This study examines vulnerability in acting using bioethics, social sciences and
psychology revealing it as a crucial and significant aspect for further
development. To observe, develop and apply vulnerability to acting, Coletiva
Teatro divides the creative process in phases as a methodical parameter.
From Stanislavski's, Fabião's, and Féral’s perspectives on acting, vulnerability
reveals itself as pertinent for projects involving acting, performance and
performative theatre. The observation of vulnerability and its respective
vulnerating agents allows the recognition of its operating modes and the
search for creative solutions that enable a healthy and productive relationship
with it as a potent artistic tool.
Keywords: Vulnerability. Acting. Coletiva Teatro. Performative theatre.
Performance.
Vulnerabilidad como aspecto de actuación
Resumen
Este estudio examina la vulnerabilidad en la actuación utilizando bioética,
ciencias sociales, psicología, revelándola como aspecto crucial y significativo
para profundización. Para observar, desarrollar y aplicar la vulnerabilidad en
la actuación, la Coletiva Teatro divide el proceso creativo en etapas como
parámetro metodológico. A partir de Stanislavski, Fabián y Feral la
vulnerabilidad se revela pertinente en trabajos de interpretacn,
performance y teatro performativo. La observación de la vulnerabilidad y sus
respectivos agentes vulnerabilizantes permite el reconocimiento de modos
de operación y la búsqueda de soluciones que permitan una relación sana y
productiva como la misma como potente herramienta artística.
Palabras clave: Vulnerabilidad. Actuación. Coletiva Teatro. Teatro
performativo. Performance.
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Estar presente e responder ao “aqui e agora”, seja como ator, performer ou
dançarino, seja no início, meio ou final de um processo artístico, convida o atuador5
a lidar continuamente com a sua percepção interna e externa de forma sensível e
criativa. Mas para estar sensível e criativo a esse “aqui e agora” contextual é
necessário permitir que esse lhe afete. Segundo Ferracini (2013, p. 37), para
manter-se nesse estado
é necessária a contínua experimentação da “presentação” e da “escuta
desses campos de força em atravessamento. Um deixar-se afetar para a
ação e não somente a realização mecânica da ação por si (Ferracini, 2013,
p. 37).
Ou seja, é necessário estar continuamente vulnerável a estes campos de
força em atravessamento, seja em maior ou menor grau. Mas ...como manter a
potência latente, o frescor e vigor do improviso sem perder a contundência,
precisão e solidez advindas das inúmeras repetições e respectivos refinamentos
realizados para a versão final das cenas?” (Tinemba, 2020, p. 5). O que significa
estar vulnerável enquanto atuador? O que é estar vulnerável em prol da atuação?
É possível observar e desenvolver a vulnerabilidade diante de um processo
artístico?
Vulnerabilidade: Conceito e Definições
De acordo com o médico e pesquisador William Saad Hossne (2009) a
vulnerabilidade é um referencial bioético e no campo da bioética. Para ele,
o ser humano é sempre vulnerável; ele pode ou não estar em situação
de vulnerabilidade. Portanto, ser vulnerável o ser humano é sempre; estar
vulnerável pode ser sim ou não. Trata-se de ir de uma situação latente a
uma situação manifesta; de uma situação de possibilidade para uma
situação de probabilidade, do ser vulnerável ao estar vulnerável (Hossne,
2009, p.42).
Nota-se que para a bioética, enquanto seres humanos todos somos
vulneráveis apenas por estarmos vivos, por existirmos na condição vivente. Seria
5
Termo utilizado por Renato Ferracini que abrange os múltiplos ofícios pertencentes às artes da cena, entre
eles o de ator, dançarino ou performer.
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possível, portanto, de acordo com esta definição, sermos continuamente
vulneráveis enquanto atuadores. Se por um lado esta definição nos impulsiona
para uma possibilidade de compreensão da vulnerabilidade na atuação, por outro
lado, vida e morte como parâmetros não são suficientes para abarcar as
especificidades da aplicação deste conceito na área da atuação. Ainda assim, esta
definição traz consigo uma pista importante: uma diferença em ser vulnerável
e estar vulnerável. Enquanto seres viventes, em nosso dia a dia, nem sempre
estamos vulneráveis a tudo e a todos. Quem nunca ignorou ou alterou o seu
caminho propositalmente para evitar uma pessoa ou coisa que lhe fazia sentir
vulnerável de alguma forma? Na prática artística também sabemos que nem tudo
nos afeta e que nem sempre estamos vulneráveis a tudo. Tampouco permitimos
em cena, de forma consciente e proposital, que tudo nos afete. E nem poderíamos.
Caso contrário, seria impossível materializarmos nossos discursos artísticos com
arbítrio. É preciso ampliar, então, o estudo das definições sobre esse conceito para
abarcar a complexidade de sua aplicabilidade nas artes da cena.
Na busca por pesquisas sobre a vulnerabilidade nas artes, os resultados mais
próximos encontrados foram estudos relacionados ao medo de estar em cena
(
stage fright
) realizados por psicólogos e psiquiatras. Segundo o estudo feito pelo
psicólogo e psicanalista Donald M. Kaplan (1969), uma fantasia criada por parte
de artistas que acarreta num medo de estar no palco, vulnerabilizando-os. Para
este autor, além da perspectiva clínica médica que caracteriza o medo do palco
por um estado de ansiedade mórbida com semelhanças com a neurose, o medo
do palco é, em última instância, um problema criativo fenomenológico do teatro
que deve ser resolvido, entre tantos outros, pelo atuador (Kaplan, 1969). Este autor
não aponta possíveis soluções para o problema criativo. Para ele, se apazigua
com a reciprocidade estabelecida entre plateia e atuador durante a apresentação.
Neste caso a vulnerabilidade associada ao medo de estar no palco indica uma
perspectiva psicológica contraproducente, onde a vulnerabilidade provocada pelo
medo de estar no palco atrapalha a performance do artista.
Em 1995 foi realizada a primeira pesquisa sistemática sobre o impacto do
medo do palco em atores. A pesquisa envolveu diversas escolas de medicina e
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hospitais londrinos e foi conduzida com 178 atores no último ano de formação em
artes nicas de seis universidades londrinas diferentes. Ela identificou que:
O medo do palco é um problema comum entre os artistas. Ele tem vários
efeitos, que vão desde distúrbios de memória e pensamentos
apreensivos até sintomas sicos como tremores (Steptoe et al, 1996, p.
27-28).6
Esta pesquisa corrobora com a diferencião entre ser e estar vulnerável feita
por Hossne (2009, p.48):
Por outro lado, a vulnerabilidade é uma condição (situação, estado)
sindrômica. Metaforicamente, vulnerabilidade é uma síndrome, isto é,
estado (em medicina, estado mórbido) caracterizado por um conjunto de
sintomas de sinais e que pode ser produzido por diferentes causas. É
uma síndrome que pode atingir não apenas um ponto ou uma área, mas
que pode atingir o sistema. É uma síndrome que pode ser localizada a
uma ou mais área, mas que pode também ser sistêmica e pode ter várias
causas.
Identificado pela medicina, pela perspectiva bitica e pela psicologia, a
vulnerabilidade que acomete os atuadores ao longo do processo criativo pode
ocorrer de forma sistêmica ou localizada em seu corpo, podendo alcançar
sintomas físicos. Entre os sintomas mais relatados na pesquisa de Kaplan (1969)
estão: interferência na memória, postura, movimentação, prodão de voz,
envolvimento emocional e controle respiratório durante a apresentação.
Amparadas pelo trabalho de Kaplan (1969) no estudo intitulado
Stage Fright
and Joy: Performers in Relation to the Troupe, Audience, and Beyond
, realizado em
1969, as psicanalistas Janette Graetz Simmonds e Jane E. Southcott, muitos anos
depois, em 2012, identificam que a perceão da plateia por parte de um artista
pode tanto contribuir para o medo do palco quanto para estimular uma
performance especialmente eletrizante. Com suporte freudiano, as autoras
diferenciam pavor, ansiedade e medo, sensações frequentemente mencionadas
por artistas com relação às suas apresentações. Para Simmonds e Southcott (2012,
p. 319), a
6
Stage fright is a common problem among performing artists. It has manifold effects, ranging from memory
disturbances and apprehensive thoughts to physical symptoms such as trembling and nausea. (Tradução
nossa)
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ansiedade é a expectativa de, ou preparação para o perigo, mesmo se o
perigo for desconhecido; O medo é muito mais especificamente de um
objeto definido; E o pavor ocorre quando uma pessoa se defronta com o
perigo sem estar preparado para ele e é surpreendido por ele.
7
Uma musicista entrevistada na pesquisa de Simmonds e Southcott (2012)
relata que em uma de suas apresentações se viu em um estado alterado de
consciência e presença no palco. Essa expressão de vulnerabilidade que fluía em
seu corpo, ao ins de atrapalhar a sua performance acabou potencializando e
transformando essa experiência no palco de forma positiva e inesquecível era um
estado extremamente alterado, estando em níveis tão extremos de ansiedade,
mas felizmente, isso se tornou positivo”8 (Simmonds e Southcott, 2012, p. 323).
Embora reconheça a alteração em seu estado de consciência, a artista considera
como sorte o fato de ter gerado resultado positivo. Essa mesma entrevistada tem
a consciência e a recordação de outros momentos passados sobre o palco que
foram igualmente inesquecíveis, porém, pela via contraproducente causada pela
ansiedade que foi gerada por estar em performance:
É como se eu me tornasse uma pessoa diferente, o sou mais eu. Perco
todo o controle do meu corpo e da minha mente, muito desconectada.
Alguém descreveu isso, ao me ver atuar, como se eu estivesse paralisada,
e particularmente com a viola, minha ansiedade ia para o meu braço
esquerdo, o qual era o que mais me preocupava […] e se eu estivesse em
níveis extremos de ansiedade, minha mão ficaria literalmente paralisada
e eu não poderia tocar, o poderia fazê-la fazer o que eu queria
(Simmonds e Southcott, 2012, p.323)9.
Com receio de que todo o seu trabalho possa vir por água abaixo durante a
apresentação, seja por causa de um pico de adrenalina trazendo uma cascata de
reações desagradáveis, ou por uma auto cobrança de que tudo tem que sair de
maneira perfeita, ainda os atuadores que veem a plateia como um inimigo
7
Anxiety is the expectation of, or preparation for danger, even if unknown danger; fear is much more
specifically of a definite object; and fright occurs when a person “runs into” danger without being prepared
for it and is surprised by it. (Tradução nossa)
8
It was an extreme altered state being at such extreme levels of anxiety, but luckily, that turned into a positive
one. Tradução nossa)
9
Someone described it as, when watching me perform, as if I’m paralyzed, and particularly with the viola, my
anxiety would go to my left arm, which is the one that I was most concerned about [...] and if I was in
extreme levels of anxiety, my hand would be literally par- alyzed and I couldn’t play, I couldn’t get it to do
what I wanted. (Tradução nossa)
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durante a apresentação. Desta maneira, alguns encontram uma forma de se isolar
do público, seja mantendo o seu foco nos refletores que os impedem de ver a
plateia, seja criando uma quarta parede, ou, até mesmo, se convencendo de que
a presença da plateia durante a performance é irrelevante: o é sobre o que os
outros pensam de você, é o seu momento e é o seu concerto, é o seu desempenho
e é para você aproveitar. Nós o estamos fazendo isso para o blico, estamos
fazendo isso por nós....”10 (Simmonds e Southcott, 2012, p.324), como relatado por
um músico sobre o momento da apresentação. Curioso, pois a performance
artística é feita para o blico. Que sentido para um atuador se preparar para
se apresentar para um público e no momento da apresentação, de forma
voluntária, decide anular da sua mente a presença desse público?
Apesar da identificação das autoras de um espectro amplo com relação ao
medo do palco, que vai da sensação de pavor à de alegria, a perspectiva geral
deste estudo qualitativo implica na vulnerabilidade artística enquanto componente
mais debilitante do que produtivo. Em outras palavras, um estado psicológico
muito mais contraproducente ou que pode atrapalhar ao invés de potencializar a
performance de um artista.
Mas, se artistas que conseguem de fato sentir alegria ao estar no palco;
se a imensa maioria enfrenta o palco, a plateia e seus parceiros de cena mesmo
diante do medo, do pavor, da ansiedade, da paralisia e tantos outros efeitos
psicofísicos vulnerabilizantes; e se a vulnerabilidade é necessária para a
sensibilidade artística; como então compreender a vulnerabilidade artística de tal
forma que seja possível identificar seus diferentes modos de operação? Como
criar uma relação mais produtiva com a vulnerabilidade em prol da atuação? Uma
que não seja dependente de pura sorte?
A pesquisadora e cientista social Brené Brown (2013, p. 25), em seu livro
A
Coragem de Ser Imperfeito
propõe: “Vulnerabilidade não é algo bom nem mau:
não é o que chamamos de emoção negativa e nem sempre é uma luz, uma
experiência positiva. Ela é o centro de todas as emoções e sensações. Sentir é
10
[...] It’s not about what anyone else thinks of you, it’s your moment and it’s your concert, it’s your
performance and it’s for you to enjoy. We’re not doing it for the audience, we’re doing it for us [...]. (Tradução
nossa)
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estar vulnerável”. Se sentir é estar vulnerável, e é impossível uma atuação
desconectada do sentir no seu sentido mais amplo, a princípio parecemos retornar
à condição de estarmos sempre vulneráveis na atuação, mas sabemos não ser
este o caso. Também segundo esta autora,
Nossa rejeição da vulnerabilidade deriva com frequência da associação
que fazemos entre ela e as emoções sombrias como o medo, a vergonha,
o sofrimento, a tristeza e a decepçãosentimentos que não queremos
abordar […] O que muitos não conseguem entender […] é que a
vulnerabilidade é também o berço das emoções e das experiências que
almejamos. Quando estamos vulneráveis é que nascem o amor, a
aceitação, a alegria, a coragem, a empatia, a criatividade, a confiança e a
autenticidade (Brown, 2013, p.25).
Ainda segundo Brown (2013, p.25), “a percepção de que estar vulnerável seja
sinal de fraqueza é o mito mais amplamente aceito sobre a vulnerabilidade e
também o mais perigoso”. Esta perspectiva explica a rejeição à vulnerabilidade e
permite compreender melhor os estudos anteriores sobre o medo do palco. Ao
mesmo tempo, abre possibilidades para entender a vulnerabilidade como ponte
para sentimentos fundamentais na atuação como a criatividade, a coragem e a
confiança.
Brown (2013, p.26) define vulnerabilidade como “incerteza, risco e exposição
emocional”. Dentro do escopo desta pesquisa e em comparação às perspectivas
da bioética, da medicina, da psicologia e da psiquiatria vistas anteriormente, esta
definição avança na eleição de critérios em vida mais diretamente aplicáveis à
atuação. diferentes possibilidades de interpretação de vulnerabilidade e elas
não são excludentes, entretanto, a definição de Brown (2013) permite identificar
fontes de vulnerabilidade sobre as quais o atuador pode se debruçar em sua
trajetória e por isso se revela promissora. Ainda assim, quando aplicamos esta
definição às especificidades da atuação, precisamos questionar: incerteza, risco e
exposição emocional a quê? Ou a quem? Ou ainda, quando? Cada processo criativo
de atuação gerará variáveis contextuais de incerteza, risco e exposição emocionais
completamente únicas e singulares. E é possível imaginar também que cada
atuador dialoga de forma absolutamente particular às incertezas, riscos e
exposições emocionais de cada processo em questão.
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Caminhos para Aplicabilidade da Vulnerabilidade na Atuão
Pensando na complexidade das variáveis elencadas acima e na definição de
Brown (2013), a Coletiva Teatro11 realiza, entre 2016 e 2022, uma rie de
experimentos práticos e ações artísticas12 de atuação e tem como um de seus
objetivos responder às perguntas acima. Os experimentos incluem projetos de
iniciação científica13, ações de performance, espetáculos teatrais, ações de
palhaçaria e contação de histórias, bem como práticas docentes, que, somadas,
apontam para a seguinte proposta: olhar para as etapas do processo criativo e as
respectivas vulnerabilidades sentidas durante essas etapas como uma solução
para o desafio em questão.
Propomos cinco insncias de estado de vulnerabilidade ao longo de um
processo artístico: V1, V2, V3, V4 e V5, cada uma atrelada a uma etapa do respectivo
processo (Lopes, 2022, p.12). Ainda que a dinâmica de atuação seja complexa,
cíclica e cheia de turbulências, a divisão linear temporal, no qual estamos inseridos,
permite aprofundamento com o acumular de experiências ao longo do tempo.
Nesse mesmo estudo propomos:
o V1 é a vulnerabilidade sentida durante a exploração do trabalho cênico
que inclui os momentos iniciais de um projeto quando os integrantes
estão, por exemplo, buscando referências, realizando explorações ou
investigando sobre a temática ; V2 é a vulnerabilidade sentida desde a
composição do trabalho cênico até a compilação final resultante da
exploração; V3 é a vulnerabilidade sentida durante a durante a pré-
11
A Coletiva Teatro é uma das linhas do Grupo de Pesquisa Criação em Coletivo para a Cena do Departamento
de Artes Cênicas da Universidade de Brasília. Informações sobre o grupo e sua práxis estão disponíveis no
site www.coletivateatro.unb.br ou no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq em
http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/7177380416036993.
12
Optamos, por razões mencionadas no corpo do texto, bem como limitações de tamanho, em manter o
foco deste artigo na análise teórico-conceitual e metodológica da temática, mas os experimentos práticos
e as ações artísticas que ancoraram esta pesquisa entre 2016 e 2022 estão disponíveis no site da Coletiva
Teatro em www.coletivateatro.unb.br.
13
Os dois projetos de iniciação científica (PIBIC) que deram o pontapé inicial para este estudo foram: A
Vulnerabilidade como Ferramenta na Criação em Coletivo Diante da Plateia de Pedro Henrique Silva Lopes
e A Vulnerabilidade como Elemento Técnico do Ator na Criação em Coletivo de Alexandre da Silva Batista
(2017) ambos com financiamento do CNPq. No ano seguinte, Lopes (2018) aprofunda a temática com
segundo PIBIC intitulado A Vulnerabilidade como Dispositivo cnico do Palhaço diante da Plateia, com
financiamento da FAPDF. Os dois PIBICs compõem seu trabalho de conclusão de curso denominado A
Vulnerabilidade Como Ferramenta Técnica na Coletiva Teatro e com o Palhaço Baú (2019). Em 2022, Lopes
defende sua dissertação de mestrado intitulada A Vulnerabilidade como aspecto de atuação na Coletiva
Teatro. Alguns conteúdos teórico-conceituais destes trabalhos se encontram neste artigo.
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apresentação cênica que vai desde o período onde o trabalho pré-
apresentação cênica que vai desde o período onde o trabalho art
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stico
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pronto para ser dividido com o p
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blico at
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recebimento de cr
í
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çõ
es externas sobre o trabalho
apresentado (Lopes, 2022, p.21).
Ao longo destas etapas, diversos sentimentos podem assolar os atuadores, por
exemplo, a vergonha de fazer uma exploração artística sem qualidade, o medo de
esquecer uma marca ensaiada, de cometer erros ou de esquecer o seu texto
durante a apresentação, a insegurança e as vidas sobre o que a plateia está
achando da performance, o medo de atrapalhar os outros atuadores, de ser
atrapalhado pelos parceiros, da quantidade de adrenalina que es passando pelo
seu corpo e de como ela afetará o seu desempenho. Essas sensações todas
provocam uma variedade de percepções e reações psicofísicas em quem está
atuando, alterando sua sensação de vulnerabilidade. No entanto, com essa divisão
de estados de vulnerabilidade atrelada às etapas do processo criativo, é possível
que cada atuador identifique com maior precisão o que está lhe gerando incerteza,
risco e/ou exposição emocional em cada etapa em particular.
É importante notar que esta divisão em etapas se revelou extremamente útil
para a Coletiva Teatro na aplicação do conceito de vulnerabilidade à atuação (e,
por extensão, à direção). Mas, para destacar a aplicabilidade do conceito enquanto
aspecto de atuação de forma mais abrangente, conceitual e metodologicamente,
e para além das especificidades da Coletiva Teatro14, optamos neste artigo por
examiná-la em obras amplamente conhecidas e referenciais entre atuadores e
pesquisadores das artes da cena.
Iniciemos por um trecho do livro
A Preparação do Ator
de Constantin
Stanislavski (2001), um dos autores mais celebrados pela sua contribuição nas
14
Um exemplo específico de vulnerabilidade aplicada à atuação dentro da práxis da Coletiva Teatro encontra-
se descrito no artigo Portas Poéticas: espaço para a imprevisibilidade poética em cena.
Urdiment
o - Revista
de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 38, p. 1-30, 2020. Disponível em:
https://www.revistas.udesc.br/index.php/urdimento/article/view/18144. Um exemplo de vulnerabilidade
aplicada à direção encontra-se descrito no artigo Direção e Direcionalidade na Criação em Coletivo. ILINX -
Revista do LUME - Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais, UNICAMP, v. 7, p. 1-9, 2015. Disponível em
https://orion.nics.unicamp.br/index.php/lume/issue/view/21.
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artes nicas. Em um contexto de avaliação de interpretão da personagem
ficcional criado pelo autor para representar sua própria trajetória na arte da
atuação, Kostia relata, ao criar a personagem Otelo de Shakespeare, em seu
primeiro ensaio: “Tive a impressão de que muitos desses momentos deram ótimo
resultado. Eu trabalhara quase cinco horas sem ver o tempo passar. Isto me
parece uma prova de que a minha inspirão era real” (Stanislavski, 2001, p.28).
Em V1, ou seja, na etapa inicial de exploração do trabalho realizada na privacidade
da residência da personagem-atuador, as incertezas relacionadas às escolhas de
atuação geram desafios que o impulsionam à criatividade. A vulnerabilidade
sentida neste caso parece operar em prol da atuação. Mas no dia imediatamente
posterior, Kostia relata: “esta noite queria deitar-me cedo, porque estava com
medo de trabalhar no meu papel. […] nada de novo inventei: repeti, apenas, o que
fizeram ontem, e agora, parece que não tem mais propósito” (2001, p.29). E no
terceiro ensaio, se questiona:
Por que a minha atuação de ontem é exatamente igual à de hoje e à de
amanhã? Será que minha imaginação secou ou que não tenho material
de reserva? Por que meu trabalho corria tanto facilmente a princípio e
depois estacava num determinado ponto? (Stanislavski, 2001, p.30).
Muito rapidamente, quando adentra na etapa V2 de composição do trabalho,
Kostia sente medo de trabalhar no seu papel e se questionar sobre sua falta de
imaginação. Embora o tenha respostas para várias das suas próprias perguntas,
fica explícito que sente medo enquanto agente vulnerabilizante no sentido
contraproducente. Ao longo desta pesquisa, veremos que podem ser inúmeros e
muito variados os fatores que acionam a vulnerabilidade do atuador, que, a partir
de agora, definiremos como agentes vulnerabilizantes. No sétimo ensaio, desta vez
no palco, Kostia relata: “dentro daquele caos seria inútil buscar a quietude na qual
me habituara, em casa, a encenar o meu papel. Antes de mais nada, precisava
ajustar-me ao novo ambiente(Stanislavski, 2001, p.32). Ele identifica o caos no
novo ambiente como agente vulnerabilizante no sentido contraproducente à sua
atuação, mas como consegue identificá-lo de forma precisa, também é capaz de
buscar soluções. Importante notar aqui a consciência do atuador sobre sua
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13
vulnerabilidade e a busca ativa por soluções para transformá-la em prol da sua
atuação. Kostia ainda descreve:
estava excitado demais, esperando a minha vez. Essa espera tem o seu
lado bom. Deixa-nos em tal estado que podemos ansiar pela nossa
vez, para ficarmos livres daquilo que tememos. […] mas desde o instante
em que o pano se ergueu e o auditório surgiu na minha frente, senti-me
outra vez sua presa. […] comecei a sentir-me apressado, tanto no falar
como nos gestos. […] A menor hesitação e uma catástrofe seria inevitável
(Stanislavski, 2001, p.33).
Novamente Kostia identifica agentes vulnerabilizantes geradores de incerteza
e risco, desta vez tanto os que o atrapalham (excitação em excesso, sensação de
estar apressado, medo de hesitar, medo de uma catástrofe inevitável); quanto os
que o beneficiam na atuação (ansiedade). Essa identificação, registrada no diário
de bordo da personagem-atuador, continua por toda a narração detalhada por
Stanislavski. Entendemos como fundamental a identificação dos agentes
vulnerabilizantes na atuação, seja no sentido produtivo ou contraprodutivo, para
que seja possível criar uma relação saudável com a vulnerabilidade. Se não
conhecimento do que está gerando a incerteza, o risco ou a exposição emocional,
fica muito complicado buscar soluções em prol da atuação. Continuando o relato
de stia, no livro
A Preparação do Ator
de Stanislavski (2001, p. 35), temos:
É hoje o dia da prova de atuação. Pensei que podia prever exatamente o
que aconteceria. Senti-me cheio da máxima indiferença até que entrei no
meu camarim. Mas, uma vez dentro, o coração disparou e eu quase
tive um enjôo.
Identifica-se neste trecho a vulnerabilidade do atuador agindo em seu corpo
no momento de pré-apresentação ou de acordo com as definições propostas
nesta pesquisa, a etapa V3. Atuadores se preparam previamente de maneira
intensa para o momento chave, a apresentação propriamente dita, porém, quando
acreditam que possuem um controle sobre o que pode ocorrer, ou que podem
prever como a apresentação ocorrerá, percebem rapidamente que essa visão é
uma iluo e o entendimento dessa verdade os abala emocionalmente. A
personagem no livro
A Preparação do Ator
de Stanislavski
(2001) afirma que se
A vulnerabilidade como aspecto de atuação
Pedro Henrique Silva Lopes | Nitza Tenenblat
Florianópolis, v.1, n.46, p.1-26, abr. 2023
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sente indiferente, porém, ao chegar mais próximo do evento, seu coração dispara
e seu corpo reage com enjoo. A sensação de vulnerabilidade sentida, devido à
aproximação do momento da apresentação, é frequente entre atuadores. Lopes
(2022, p.22-23) diz que:
entender como lidar com essa vulnerabilidade não neste momento,
mas em todo o processo, pode ser uma potente alavanca para atuador.
Ele pode aproveitar as circunstâncias do momento para potencializar seu
estado de presença e alerta para a apresentação ao invés de se sentir
fragilizado diante do desafio que se aproxima.
Conseguir gerenciar, conscienciosamente, os pensamentos a fim de mediar
alguns processos físicos pode servir como suporte para o atuador. Assim, ao invés
de se sentir refém daquele estado/situação, o atuador pode trabalhar com e em
prol do seu desejo/necessidade nica. Mais adiante no trecho do livro de
Stanislavski (2001, p. 35-37), Kostia segue narrando:
no palco, a primeira coisa que me perturbou foi a extraordinária
solenidade, o silêncio e a ordem que ali reinavam. Passando da escuridão
dos bastidores para a plena iluminação da ribalta, das gambiarras, dos
refletores, senti que estava cego. O brilho era tão intenso que parecia
formar uma cortina de luz entre mim e a plateia. Senti-me protegido
contra o público e, por um momento, respirei livremente, mas os meus
olhos logo se habituaram à luz, pude enxergar no escuro e tanto o temor
quanto a atração do público pareceram-me mais fortes do que nunca.
Em pesquisa de mestrado de Lopes (2022, p.23), identificamos que a
vulnerabilidade percebida durante a apresentação, iniciada no instante em que o
atuador entra no palco, até o momento final de sua apresentação, é definida como
V4. De acordo com esse estudo, muitos são os agentes que ativam a
vulnerabilidade do atuador no momento da apresentação, em V4, e Kostia, a
personagem de Stanislavski, revela alguns deles. Observamos ainda que, os
agentes vulnerabilizantes podem se apresentar de múltiplas maneiras: uma
situação, uma sensação corpórea, um pensamento, uma ação física, ou mesmo
qualquer coisa que incite o estado de vulnerabilidade no atuador. Como
apresentado por Kostia, o silêncio e a ordem são exemplos de agentes que podem
perturbar, durante o tempo em que ele se protege por detrás de uma cegueira
A vulnerabilidade como aspecto de atuação
Pedro Henrique Silva Lopes | Nitza Tenenblat
Florianópolis, v.1, n.46, p.1-26, abr. 2023
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provocada pelo brilho da forte iluminação. Quando Kostia acredita estar “protegido
contra a plateia”, é um alerta de que a percebe como algo que possa desestabilizá-
lo, uma potencial ameaça. Essa autopercepção da personagem aponta uma
identificação de alguns dos seus agentes vulnerabilizantes. Graças ao
impedimento visual, ele pode respirar aliviado, porém, conforme se habitua, tudo
se transforma e ele reconhece em seu corpo o temor aumentar. Ainda de acordo
com o observado na pesquisa de Lopes (2022, p.23-24), o sentimento de exposição
e ou incerteza no momento em que está sendo assistido, analisado ou julgado
pela plateia pode provocar gatilhos internos que por consequência liberam doses
de adrenalina no corpo do atuador, o que pode aparentar serem toneladas, e que,
como numa reação em cascata, acarreta em outras manifestações mentais e
físicas. O atuador desenvolve ao longo de sua prática uma certa ideia do quanto
uma apresentação ao vivo pode desestabilizá-lo. Além dos diferentes causadores
externos que podem se mostrar naquele momento como possíveis agentes
vulnerabilizantes, o atuador necessita ainda mediar os possíveis agentes
vulnerabilizantes de ordem interna, ou seja, suas emoções e sentimentos de
caráter privado que podem, também, se apresentar e evitar que se tornem
emboscadas para si. No estudo de Lopes (2022, p.24) percebemos que o atuador
trabalha com diferentes fontes que produzem incertezas, riscos e exposição
emocional, internos e externos simultaneamente, o que pode ativar um estado de
vulnerabilidade ainda mais intenso. Ser capaz de observar, reconhecer e
administrar esses vetores, os agentes vulnerabilizantes, que atravessam o corpo
do atuador antes, durante e após uma apresentação, e que dispõem de tamanhos
e direções diferenciadas, pode lhe garantir uma melhor e mais eficaz
experiênciação da atuação, em oposição a uma equivocada sensação de controle.
Kostia segue narrando:
Estava disposto a me virar pelo avesso, a dar-lhes todo que tinha e,
entretanto, dentro de mim, nunca me sentira tão vazio. O esforço para
espremer mais emoção do que eu possuía e a incapacidade de fazer o
impossível encheram-me de um temor que petrificava minhas mãos e
meu rosto. Todas as minhas forças se gastavam em esforços infrutíferos
e inaturais. Minha garganta contraiu-se, todos os meus sons pareciam
subir para uma nota aguda. Minhas mãos, meus