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Teatro de Quermesse
Grácia Maria Navarro
Para citar este artigo:
NAVARRO, Grácia Maria. Teatro de Quermesse.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 1, n. 46, abr. 2023.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101462023e0201
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Florianópolis, v.1, n.46, p.1-31, abr. 2023
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Teatro de Quermesse
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Grácia Maria Navarro
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Resumo
O presente artigo trata do retorno da ação artística Passeio Cantante às ruas,
após dois anos de isolamento social provocado pela COVID-19, com o objetivo
de deixar um testemunho da experiência das artes da presença e do
isolamento. Soma-se uma narrativa sobre a linguagem que vem sendo criada
a partir da intersecção entre patrimônio histórico, cena e tradição junina, a
qual aqui é chamada de Teatro de Quermesse. Para descrever como tem sido
feito este teatro caipira, adicionamos às informações relacionadas ao Passeio
Cantante, informações sobre a urbanização de Campinas desde o século XVIII,
sobre as pessoas e a tradição junina aqui plantada desde o século XVI. A partir
do material aqui reunido, mostramos como esta dramaturgia para becos,
largos e praças, é pensada enquanto acontecimento cênico que evoca a
memória da cidade, de uma perspectiva política dos dias de hoje com vistas
para proposições de futuro. O texto dialoga com Leda Maria Martins (1997;
2002), Milton Santos (2014), Luís Antônio Simas (2019), entre outras
referências.
Palavras-chaves
: Teatro Brasileiro. Espaço Público. Intervenção Urbana.
Cultura Popular.
1
Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Talissa Ancona Lopez. Graduada em Letras -
Português pela Universidade de São Paulo (2020). Mestranda na Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp).
2
Artista, pesquisadora e professora do Departamento de Artes Cênicas da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP). Coordenadora do Grupo Pindorama (CNPq), site: https://www.grupopindorama.com/
gnavarro@unicamp.br
https://lattes.cnpq.br/1181345417180923 https://orcid.org/0000-0001-5620-1731
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Theater de Quermesse
Abstract
This article deals with the return of the Passeio Cantante artistic action to the
streets, after two years of social isolation caused by COVID-19, with the aim
of leaving a testimony of the experience of the arts of presence and isolation.
It adds a narrative about the language that has been created from the
intersection between historical heritage, scene and June tradition, which here
is called Teatro de Quermesse. To describe how this caipira theater has been
made, we add to the information related to Passeio Cantante, information
about the urbanization of Campinas since the 18th century, about the people
and the June tradition planted here since the 16th century. From the material
gathered here, we show how this dramaturgy for alleys, squares and squares
is thought of as a scenic event that evokes the memory of the city, from a
political perspective of today with a view to proposals for the future. The text
dialogues with Leda Maria Martins (1997; 2002), Milton Santos (2014), Luís
Antônio Simas (2019), among other references.
Keywords
: Brazilian theater. Public space. Urban intervention. Popular culture.
Teatro de Quermesse
Resumen
Este artículo trata sobre el regreso de la acción artística Passeio Cantante a
las calles, luego de dos años de aislamiento social provocado por el COVID-
19, con el objetivo de dejar un testimonio de la experiencia de las artes de la
presencia y el aislamiento. Agrega una narración sobre el lenguaje que se ha
creado a partir de la intersección entre patrimonio histórico, escena y
tradición junina, que aquí se denomina Teatro de Quermesse. Para describir
como se ha realizado este teatro caipira, agregamos a la información
relacionada con Passeio Cantante, información sobre la urbanización de
Campinas desde el siglo XVIII, sobre la gente y la tradición junina plantada
aquí desde el siglo XVI. A partir del material aquí reunido, mostramos cómo
esta dramaturgia de callejones, plazas y plazas es pensada como un hecho
escénico que evoca la memoria de la ciudad, desde una perspectiva política
de hoy con miras a propuestas de futuro. El texto dialoga con Leda Maria
Martins (1997; 2002), Milton Santos (2014), Luís Antônio Simas (2019), entre
otras referencias.
Palabras claves
: Teatro brasileño. Espacio público. Intervención urbana.
Cultura popular.
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A promessa do Ysmaille
Falamos aqui de Campinas, estado de São Paulo, Brasil, América Latina, para
contar como aconteceu a volta do Passeio Cantante às ruas da cidade, após o
isolamento social pela COVID 19. O fazemos ao mesmo tempo em que narramos
como sua linguagem vem sendo criada, posto que o abalo causado pela pandemia,
não deixa de reverberar em uma experiência de dramaturgia cênica que se faz na
rua, em contato com o fluxo vital da cidade. O Passeio Cantante é um Teatro de
Quermesse, criado pelo Grupo Pindorama
3
, ação cênica anual relacionada às festas
populares brasileiras do mês junino, chamadas pelo senso comum de "São João".
A primeira edição do Passeio Cantante foi em 2016, desde então sua linguagem
vem sendo criada, ao mesmo tempo em que é feita, ao longo de seis edições
consecutivas, as quais estão registradas no site do Pindorama, onde podem ser
apreciadas as fotografias, vídeos e fichas técnicas
4
.
Passada a quaresma, depois do Sábado de Aleluia e da Páscoa, começamos
a nos preparar para fazer o Passeio Cantante no Largo do Carmo, na quarta feira
mais próxima do dia vinte e nove, dia de São Pedro. Diferentemente dos anos
anteriores, em 2020 não fomos ao Carmo impedidos pelo isolamento social
imposto para controle da pandemia COVID-19. Em março, o Brasil havia registrado
a primeira morte causada pela doença, com números crescendo alargadamente.
Chegamos no dia de São Pedro de 2020, em luto, registrando 727 mortes em 24
horas e a soma de 58.835 mortes desde o início da pandemia, segundo o consórcio
de veículos de imprensa criado para monitorar a crise sanitária que reunia, sob seu
flagelo, a raça humana em contexto planetário, deixando imunes as mais de 8,7
milhões de espécies catalogadas que, junto com a espécie humana, são a vida do
planeta Terra, conforme chama a atenção Ailton Krenak em entrevista à Lilian
3
Grupo Pindorama: Grupo de estudos registrado no diretório de grupos do CNPq, disponível em:
<dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/0815912365216146> Coordenado por Grácia Navarro, o grupo reúne
pesquisadores, professoras e estudantes do Instituto de Artes da Unicamp, dedicados à pesquisa em corpo
e teatralidades brasileiras, com vistas à criação de artes da presença autorais. A produção do Pindorama
está disponível no site: https://www.grupopindorama.com
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Registro das edições do Passeio Cantante: https://www.grupopindorama.com/passeio-cantante-para-pedro
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Schwarcs: “...só o corpo dos humanos que estava sendo afetado por isso, porque
a vida toda seguia na sua graça, beleza e recriação...”
5
. A fala de Ailton Krenak faz
uma inversão de papéis, na qual a soberana raça humana encontra-se,
mundialmente, em impedimento, enquanto as outras vidas do planeta seguem,
destacando a COVID-19 como um problema do gênero humano, pondo em
evidência suas fragilidades, impondo o desafio de sobreviver sem poder estar perto
um do outro, sem poder aglomerar, reunir, abstendo-se dessa qualidade de
presença, eminentemente humana, determinante para a troca de múltiplas
naturezas que qualificam o espaço urbano… a cidade aquietou-se, esvaziou-se,
desmobilizou-se. O isolamento social e o uso de máscaras eram atitudes a serem
tomadas para o controle da doença, enquanto aguardávamos a produção e
distribuição global da vacina.
Virou o ano e chegamos ao Sábado de Aleluia em abril de 2021, registrando
mais de 2.500 mortes por COVID-19 em 24 horas, o que nos impediu de ir ao
Carmo por mais um ano. Diante dessa impossibilidade de atuar na cidade, fizemos
um Passeio Cantante virtual acompanhando o movimento dos artistas da cena e
da cultura popular que seguiram reexistindo, fazendo suas artes em meio digital.
A situação no Brasil tornou-se muito grave ao somar as agruras dessa doença
em dimensão mundial ao negacionismo do governo federal. A população brasileira
foi vitimizada com as aterrorizantes consequências da gestão irresponsável da
crise sanitária, atingindo em agosto de 2022, data em que escrevemos este artigo,
a soma aterradora de 682 mil mortes. Um caos de luto, de fome, de desabrigo, de
abandono escolar, de falta de atendimento médico, de insegurança do estado de
direito e de comprometimentos psíquicos consome transversalmente o Brasil,
atingindo com tudo as populações pobres, periféricas, indígenas e negras,
escancarando a desconstrução do Brasil, em curso anteriormente. Em rota
contrária ao presidente da república negacionista, em janeiro de 2021 as pessoas
começaram a receber a vacina contra a COVID-19 e, então, passado quase dois
anos de reunião gigantesca de forças da Ciência e do SUS (Sistema Único de
Saúde), em novembro de 2022, data em que revisamos este artigo, mais de 80%
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Schwarcz entrevista Ailton Krenak. Disponível em: https://youtu.be/GIz0hRuRXqc.
Acesso em: 26 ago. 2022.
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da população está vacinada, segundo o consórcio de veículos de imprensa, criado
em 2020, diante de ameaça de sonegação de dados sobre a pandemia, praticada
pelo presidente da república negacionista, segundo matéria jornalística da
Folha
de São Paulo
, publicada em 28/11/2022, disponível em <Brasil registra 41 mortes
por Covid e mais de 17,7 mil casos da doença>
Diante do avanço da vacinação, o convívio volta a ser possível, especialmente
ao ar livre, embora o final da pandemia ainda não esteja determinado
contaminações e mortes continuam ocorrendo: na quarta-feira, 29 de junho de
2022, quando fizemos o Passeio Cantante, o Brasil registrou 294 mortes em 24
horas.
Nos quatro anos consecutivos em que fizemos nossa ação artística junto ao
Largo do Carmo, fizemos junto a um jantar junino que os irmãos da Toca de Assis
serviam, de forma independente da Igreja do Carmo, às pessoas que estavam
morando nas ruas, nas praças, nas marquises, nas floreiras, em toda sorte de lugar
onde dá para encaixar um corpo, uma corpa, para a pernoite.... ali, montavam uma
quermesse demarcando o espaço por varais de bandeirinhas. Contudo, em maio
de 2022, quando voltamos ao Largo para preparar o Passeio, após dois anos de
isolamento social, os irmãos da Toca de Assis não estavam mais lá, não havia
mais o jantar junino... Procurados por nós, responderam ao telefonema dizendo
que estavam se organizando diante das mudanças profundas provocadas pela
pandemia e que, no futuro, retornariam suas atividades de forma diferente do
modo que faziam antes da COVID-19. Tomamos um susto! Não tínhamos a
quermesse, o espaço recortado pelas bandeirinhas para fazermos nossa ação
artística, não teríamos a comida quente, a reunião para o jantar, os indícios para
dinamizar a memória coletiva. Nós, artistas, estaríamos sem nossos aliados na
composição da linguagem, na amplificação do som e na segurança que o ajuntado
de pessoas, promovido pelos irmãos, proporcionava à nossa ação cênica; no
entanto, sabíamos que faríamos: assim como uma promessa, nos
comprometemos a voltar.
Diante dessa ausência afetiva e de infraestrutura, fomos falar com a igreja.
Ao rapaz que nos atendeu na secretaria, comunicamos que pagaríamos uma
promessa à Nossa Senhora do Carmo, na quarta-feira à noite, dia que não tem
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missa, e ele acenou afirmativamente sem proferir palavra, sem manifestar
curiosidade alguma em obter mais informações sobre a ação que estávamos
informando. Associamos arte e promessa, por razões óbvias que as artistas
certamente compreendem: uma e outra são plantadas no devir e tanto a artista
como a pagadora de promessas se entregam completamente para concretizar a
ação artística, para pagar a promessa, incorrendo em toda vulnerabilidade que as
posições agregam, expostas a toda instabilidade que é própria das trajetórias.
Tanto na arte como na promessa, toda diversidade de subjetivação é válida:
carregar a réplica de uma casa na cabeça, a réplica de um barco, ir descalço,
ajoelhado, vestir uma criança de nosso Senhor dos Passos, aquela imagem toda
ensanguentada de Cristo carregando a Cruz, vestir-se de Nossa Senhora das Dores
com um coração de feltro flechado, portar um manto de caranguejos... Estéticas
votivas e artísticas podem ser identificadas reciprocamente. A seguir
apresentamos fotografias de dois artistas da cena fazendo suas ações artísticas,
juntamente com a de uma jovem pagando a promessa, com a finalidade de ilustrar
a possível identificação entre as estéticas artística e votiva.
Figuras 1 e 2 Performance
How Much is that Nigger in the Window
(1991)
Fonte: William Pope. MOMA The Museum of Modern Art
6
.
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Disponível em: https://www.moma.org/artists/37145. Acesso em: 22 ago. 2022.
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Figuras 3 e 4: Performance
Tetéia
(2018)
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Acervo: Ysmaille Ferreira de Oliveira.
Figura 5: Menina representando Nossa Senhora de Fátima, paga promessa no Círio de
Nazareth, Belém do Pará, 2020. Foto: Fernando Sette (Mesquita, 2020, s/p)
Assim como na promessa, na arte o profundo comprometimento com a
manutenção de vínculos que queremos cultivar, conforme elabora Ysmaille
Ferreira de Oliveira (2020) ao criar o conceito em sua tese
Teatro das Promessas
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Tese de Doutorado (Oliveira, 2020, p.59).
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Amazônicas: Estudo Cênico das Teatralidades Amazônicas pelo Teatro de
Promessas
:
Aqui, fazem-se promessas. Afinal, as promessas fazem parte, em várias
ocasiões das nossas vidas, quer sejam, no contexto religioso, social ou
político. A democracia nada mais é do que a promessa de igualdade de
participação política. As promessas na arte podem ser chamadas
também do estabelecimento de um pacto entre o artista e público pelas
poéticas. As poéticas são promessas de vínculos que queremos manter
com as pessoas nos territórios (Oliveira, 2020, p.1).
Ano que vem tem mais!
Prometemos voltar! Em maio de 2022 retornamos ao Largo do Carmo para
preparar o Passeio Cantante, conforme fazíamos antes da interrupção provocada
pela COVID-19. Encontramos o Largo esvaziado, como mostra a fotografia a seguir,
tirada quando lá chegamos. Que a arte esteja entre nós!
Figura 6: Largo do Carmo, Campinas, maio de 2022. Foto: Jeovane Ferreira.
Acervo: Grupo Pindorama.
O retorno ao Largo do Carmo após o isolamento social provocado pela
pandemia, foi muito impactante posto que, em oposição aos tempos anteriores
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ao isolamento, não havia movimento, e quase não havia olhares... foi o Carmo
mais vazio que vimos desde 2016. O Largo do Carmo é considerado o marco zero
onde nasceu a Princesa D’Oeste, como é chamada a cidade de Campinas, nos
séculos XVIII e XIX também era conhecido como Largo do Pelourinho, Largo da
Cadeia, Largo do Mercado, Largo do Capim, Largo da Matriz Velha, onde foi feita a
missa de fundação da cidade de Campinas, em 14 de julho de 1774, a então
Freguesia de Nossa Senhora da Conceição das Campinas do Mato Grosso.
Sendo assim essa dramaturgia para largos, becos e praças se fez tendo como
dinâmica transversal mover o silêncio... Com a memória dos Passeios Cantantes
anteriores e carregados da geografia que enche de passado o Largo do presente,
reunimos os tempos e pisamos mais uma vez o marco zero da cidade, interagindo
corpo a corpo com o tenso e denso vazio silencioso que encobria a praça nuclear
da Vila de São Carlos.
Que a arte esteja entre nós: o mastro dos artistas
Em 2022, o enredo do Passeio Cantante começa com Nossa Senhora do
Carmo, a Carminha, embandeirando o largo e dando um baile, com música do São
João das quadrilhas, dos xotes e baiões, configurando a quermesse na exuberância
do fogo que arde na pequena fogueira sobre o carrinho de mão, a que chamamos
de “fogo que anda” ou “Boitatá”. Essa dramaturgia das ruas, dos largos, dos becos
e das praças, segue seu enredo reunindo números artísticos, que se apresentam
simultaneamente como atrações da quermesse, interagindo e fazendo junto com
os que estão na praça e entram no jogo, são eles:
Máscaras brasileiras: Baile das
Encantarias e outros números; Serafim; O Pote; Saudação a Carlos Gomes;
Encantante; Quem Sabe?
, entre outros
8
.
8
Aqui estão reunidos todos os números artísticos que compuseram o Passeio Cantante 2022: Números
artísticos
:
Máscaras brasileiras: Baile das encantarias e outro
s números, Grácia Navarro e Ysmaille Ferreira;
Saudação a Carlos Gomes, Inácio Azevedo; Quem sabe? (Poema de Bittencourt Sampaio, musicado por
Carlos Gomes), Ana Mowatcha (Flauta Transversal); Serafim, Diego Leal; Pote, Monique Cardoso; Dorysleia
vai ao Carmo, Rachel Marques; EncantantE, Jonas Gimenes Bíscaro.
Atuação
: Geovana Mangiavacchi, Léo
Thesolin, Victor Lima, Lucas Nathan Vilela, Heloisa Gavazzi, Monique Ferreira, Alessandro Oliveira e Paula
Senatore.
Música executada ao vivo
: Inácio Azevedo (voz, violão, repertório e ensaios), Cláudia Santos (voz e
zabumba), André Hernandes (voz), Maressa Gomes (voz), Ana Mowatcha (flauta), Rodrigo Nasser (pandeiro e
voz), Cristiano Gallep (zabumba, triângulo e voz), Gilson Rodney Almeida - Zuck (zabumba). Contamos ainda
com a participação especial de: Benê Moraes - Grupo Savuru (zabumba), Pedro Matsuda (zabumba), Lucas
Nathan Vilela (acordeon) e Rômulo Scarinni (acordeon). Ficha técnica completa disponível em:
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Figuras 07 e 08: Números artísticos Baile das Encantaria e Cabeçudas Imbatíveis. Foto:
Miguel O. Fernandes. Passeio Cantante 2022. Acervo: Grupo Pindorama.
Após o baile de Carminha com a apresentação dos números artísticos,
seguimos em cortejo, portando o mastro dos artistas e o “fogo que anda” à frente,
desde a igreja do Carmo até o túmulo monumento de Carlos Gomes. Evocamos
pelos “santinhos”, pendurados no mastro, os artistas Arthur Bispo do Rosário,
Benjamin de Oliveira, Jaider Esbell, Ruth de Souza, Nelson Sargento, Abdias
Nascimento e Marília Mendonça, para pisarem conosco o marco zero da cidade.
Chegando ao túmulo do maestro campineiro, fizemos a tradicional fotografia com
Carlos Gomes, celebrando essa noite memorável e complementando o perfil
dramatúrgico dessa ação artística de rua, com a suspensão em momento
fotográfico da reunião entre pessoas, patrimônio arquitetônico e objetos. Depois
do retrato com o ancestral musicista, retornamos em cortejo para o largo da
matriz velha, onde as prendas do mastro, que não foram apanhadas durante o
cortejo, são divididas entre os presentes.
A seguir estão fotografias do "Mastro dos Artistas", objeto cênico do Passeio
Cantante, no qual, penduramos prendas e santinhos de artistas, na Figura 07,
pode-se ver o "santinho" de Abdias Nascimento, um dos artistas homenageado no
Passeio de 2019
https://www.grupopindorama.com/c%C3%B3pia-ficha-tecnica-2019
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Figuras 9 e 10: Mastro Passeio Cantante 2019. Fotos: Raielle Mazzarelli.
Acervo: Grupo Pindorama
Figuras 11, 12, 13 e 14: Imagens no formato de “santinhos”, suspensas no mastro do Passeio
Cantante 2022. Arte digital por Jonas Gimenes Bíscarone. Acervo: Grupo Pindorama.
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Teatro de quermesse
O Passeio Cantante é uma ação artística dentro de uma estética mais ampla,
aqui chamada de Teatro de Quermesse, a qual norteia os trabalhos de rua do
Grupo Pindorama, que tem como traço estético, a dinâmica da ação artística
acontecer na cidade, compondo com aspectos históricos e de tradições populares,
acontecendo junto com as cenas do cotidiano urbano, sem criar uma situação de
apresentação. Praticamos a ideia de emergir na malha da cidade e sumir na
sequência, deixando as bandeirinhas como pista da nossa passagem. A aliança
com a fotografia é parte dessa perspectiva dramatúrgica, que é vista
completamente após sua ocorrência, plasmada na fotografia. Não interação a
partir de chamamento direto da atenção das pessoas para assistir ou participar da
cena, queremos estar como parte: passando e desenhando com outros corpos a
silhueta da cidade grande, que tem muitas ações justapostas formando seu corpus
em estado constante de vigília.
Na sequência estão fotografias do Grupo Pindorama embandeirando o Largo
do Carmo em ação inicial do Passeio Cantante 2022.
Figuras 15 e 16: Nossa Senhora do Carmo, em boa companhia, embandeirando o Largo.
Foto: Miguel O. Fernandes. Passeio Cantante 2022. Acervo: Grupo Pindorama.
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Para este perfil de dramaturgia que se quer específica para os becos, os largos
e as praças, feita na comunhão com os que estão presentes no local, é
fundamental provocar acesso à memória coletiva entre os artistas proponentes
da ação e as pessoas que estão na cidade no momento da ação artística. Para
tanto, reunimos espaço geográfico da história da cidade assim como objetos e
gestual da tradição junina que atravessa todo o imaginário do Brasil. A seguir
dialogamos com a Profa. Leda Martins sobre sua conceituação de "tecidos de
memória" (2002, p. 89), a partir da leitura da dinâmica corporal dos sujeitos das
tradições afro brasileiras, como inspiração para localizar a cenografia territorial da
cidade, somada aos corpos presentes e a atualização da tradição das festas
juninas, enquanto uma dinâmica cênica que é adotada pelo Passeio Cantante
como forma de historicizar o presente.
Para Leda Martins (2002), refazer gestos é historicizar e, ao mesmo tempo,
fazer novamente; inspirados nesse vai e vem entre tempos, criamos um tecido de
memória cenográfico para que, a partir da memória comum das festas juninas,
pudéssemos estabelecer um sentido de coletivo com os desconhecidos presentes
na praça. Começando por essa instauração da quermesse, pudemos vislumbrar
narrativas gestuais provocadas por esse tecido de memória cenográfico e, a partir
daí, historicizar o presente, plasmando em fotografia a memória da quermesse
criada, somada ao patrimônio arquitetônico que enche de passado os dias de hoje,
e as pessoas ali presentes, cujos corpos, corpas são texto em si mesmos.
A seguir vemos nas palavras da Profa. Leda Martins como a autora observa o
corpo nas tradições afro-brasileiras, para conceituar os sujeitos enquanto tecido
de memória, durante sua evolução artística e ritual:
Nas tradições rituais afro-brasileiras arlequinadas pelos seus diversos
cruzamentos simbólicos constitutivos, o corpo é um corpo de adereços:
movimento, voz, coreografias, propriedades de linguagem, figurinos,
desenhos na pele e no cabelo, adornos e adereços, grafam esse corpo /
corpus
: estilística e metonimicamente, como
locus
e ambiente do saber
e da memória. Os sujeitos e suas formas artísticas que daí emergem são
tecidos de memória, escrevem história (Martins, 2002, p.89).
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A profa. Leda fala de um tecido de memória manifestado no corpo; nós, no
Passeio Cantante, falamos de um tecido de memória criado cenograficamente,
para a partir dele acessar, despertar os corpos enquanto saber e lugar de
reminiscência, que em gesto são postos no mundo, nos permitindo historicizar o
presente e trazer, pelo corpo, o legado que o sustenta e assim ter uma visão de
futuro. Esse tecido de memória é densificado e tensionado pela arquitetura
histórica, pela música, pelo volume de pessoas reunidas e pela circulação de
objetos ancestrais: mastro, prendas, fogo, bandeirinhas, tipitis e músicas e
presenças. Temos a consciência de que não estamos falando de manifestação
devocional afro diaspórica, como o Congado, da qual fala Leda Martins: ao
evocarmos o “tecido de memória” (Martins, 2002, p.89), estamos falando sobre
criação artística para falar de cenografia e, então, provocar a experiência de dar
visibilidade ao gesto de tecidos memoriais que é o corpo de cada um, de cada
uma, ali presentes. O Passeio Cantante é uma proposição cênica que quer ser
teatro contemporâneo brasileiro, criado desde a articulação de cultura popular,
território histórico geográfico e cena.
As festas juninas estão no Brasil desde o século XVI. Uma apropriação cristã
dos ritos agrários pagãos da Europa medieval, essas festas populares na península
ibérica chegam ao Brasil junto com a colonização portuguesa. Mary del priori (1994)
retoma Câmara Cascudo ao dizer que a tradição de erguer o mastro demarcando
o início das festividades, comum na Europa do antigo regime especialmente para
anunciar as comemorações de São João, Santo Antônio e São Pedro, conserva-se
no Brasil, ação que vemos ainda no século XXI, demarcando o início e o final do
tempo festivo. A seguir, vamos ver nas palavras da autora rastros da memória
junina, conforme foi planteada no novo mundo:
Junto com o hasteamento da bandeira com a efigie do patrono, plantava-
se uma árvore, à qual penduravam-se frutos, flores e enfeites, ao som de
cantos. Aos seus pés lançavam-se ovos, para proteger os animais de
penas, de pestes. Os frutos da terra, sobretudo o milho, a ela amarrados,
deviam estar o mais expostos possível, representando a passagem da
vegetação que morre para aquela que desabrocha. Em outras partes, o
mastro recebia as mesmas honras votivas. Depois da festa era queimado,
e guardados os tições acreditava-se que era possível controlar com eles
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as forças das tempestades. Aliás, acreditava-se que o mastro ou a arvore
tinham poderes para neutralizar raios e trovões (Priori, 1994, p.34).
Desde a colônia, as festas juninas foram se tornando uma marca cultural do
Brasil. Certamente ao longo desses séculos uma grande negociação estética foi se
dando em torno dessas festas, que estão em todo território, tendo a diversidade
de linguagens como valor e a reunião de pessoas como traço comum. São
quadrilhas, forrós, bumba meu boi, tambor de crioula, promessas, jogos, comidas...
e a certeza de que ano que vem tem mais!
Colorindo o Carmo, demos um rastro atrás no tempo, indo para algum lugar
de antes e de sempre, das noites iguais a essa: "... foi numa noite igual a esta que
tu me deste teu coração, o céu estava assim em festa pois era noite de São João...
(Luiz Gonzaga, 1990).
As ruas, os becos e as praças: o hoje repleto de ontem
A seguir dialogamos com Milton Santos, com o intuito de evidenciar os
critérios adotados para localizar o lugar da cidade identificado com o perfil estético
deste Teatro de Quermesse, evidenciando o cuidado em localizar na cidade as
indícios da passagem das populações subalternizadas, marginalizadas e, ainda, as
escravizadas considerando que são, muitas vezes, portadoras dos legados da
tradição popular, como exemplo pontual, dentre a grande diversidade que é
manifesta, estão os festejos juninos, material específico do Passeio Cantante.
Em
A Natureza do Espaço
(2014), o geógrafo Milton Santos, ao tratar da
dimensão espacial do cotidiano na cidade, destaca espaços aproximativos e de
criatividade nos quais vivem as pessoas pobres. Ao observar a noite do centro
histórico da cidade de Campinas, podemos ver que o Largo do Carmo e a Praça
Bento Quirino, são espaços onde se reúnem pessoas de múltiplas procedências,
frequentadores dos bares, artesãos, pessoas em situação de rua que pernoitam
no local, passantes que por ali param em grupos. Na região do Jóquei, perto do
monumento à Carlos Gomes, ou ainda na outra ponta, muitos sentam-se nas
escadas da igreja. É possível sentir o espaço em constante negociação entre
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frequentadores, entorno institucional, comercial e de moradias particulares que
formam essa ilha: o marco zero, que percebemos como um de zona “opaca”,
no coração da cidade de campinas. A seguir uma citação de Milton Santos,
descrevendo o que chama de “zonas urbanas opacas”:
Na cidade “luminosa”, moderna, hoje, a “naturalidade” do objeto técnico
cria uma mecânica rotineira, um sistema de gestos sem surpresa. Essa
historicização da metafisica causa no organismo urbano áreas
constituídas ao sabor da modernidade e que se justapõem, superpõem e
contrapõem ao uso da cidade onde vivem os pobres, nas zonas urbanas
opacas”. Estas são os espaços do aproximativo e da criatividade, opostos
às zonas luminosas, espaços da exatidão” (Santos, 2014, p.325).
O geógrafo destaca também que a metrópole é o lugar onde os fracos podem
subsistir por reunir todos os trabalhos, técnicas e formas de organização, podendo
acolher populações pobres sem lugar no campo, diante da mudança de foco
mundial, dos maquinários e da forma de produzir comida. A seguir, vejamos as
palavras do autor:
Palco da atividade de todos os capitais e de todos os trabalhos, ela
pode atrair e acolher as multidões de pobres expulsos do campo e
das cidades médias pela modernização da agricultura e dos
serviços. E a presença dos pobres aumenta e enriquece a
diversidade socioespacial, que tanto se manifesta pela produção da
materialidade em bairros e sítios tão contrastantes como pelas
formas de teatro e de vida (Santos, 2014, p.323).
A seguir, destacaremos partes da história da urbanização de Campinas, tendo
como foco localizar histórica e geograficamente o Largo da Matriz Velha,
atualmente Praça Bento Quirino e Praça Antônio Pompeu, onde acontece o Passeio
Cantante. Circunscreveremos nossa narrativa, selecionando partes do todo, assim
como quem quer escrever o roteiro de um filme e criar cenas para não deixar
faltar do tudo que acreditamos que deva compor para comunicar a densidade do
lugar. Esses logradouros relacionados à fundação da cidade foram escolhidos
como lugar do Passeio Cantante para Pedro, para agregar à ação o patrimônio
material histórico da cidade, indispensável para compor as dramaturgias dos
largos, dos becos e das praças, que vem sendo pesquisada e proposta pelo Grupo
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Pindorama
9
. Neste último parágrafo acrescentamos o nome Pedro, ao nos
referimos ao Passeio Cantante, ação artística da qual tratamos aqui, o fazemos
em referência afetiva ao dia 29 de junho, dia de São Pedro, no qual
preferencialmente fazemos a ação.
Para contar essa história, o arquiteto e urbanista Prof. Luiz Cláudio Bittencourt
elabora um olhar para a sobreposição de dois planos urbanísticos que se
modulam, sendo um criado a partir perspectiva colonial e, outro, da perspectiva
imperial. Para dar visibilidade à sobreposição observada, o autor delimita sua
análise entre duas linhas de contorno da geografia da cidade: o córrego Proença e
os leitos ferroviários. O córrego Proença, anteriormente chamado de córrego Lava-
pés, banhava o local identificado com o início da povoação, em torno de um pouso
de tropeiros, em viagem, na abertura da Estrada dos Goiáses (rota dos
bandeirantes que levava de São Paulo a Goiás). Outros dois campinhos de pouso
demarcam esse início da cidade, são identificados com o Largo do Carmo e a Praça
da Cruz, sendo esses últimos irrigados pelo córrego Tanquinho. Os leitos
ferroviários, oficinas e espaços de manobra aparecem nas últimas décadas do
século XIX. Vejamos o que nos narra o autor sobre essa sobreposição de
arquiteturas nas palavras do autor:
Nesses limites, encontramos parte do traçado longilíneo do período
colonial integrado pela estrada, pelos pousos, e pelo grande terreiro onde
se implantou a Vila de São Carlos. Contornando o núcleo da vila em
sobreposição está a cidade imperial com seu traçado geométrico, eixos
reguladores e parque ferroviário. Nos limites norte e leste da cidade
imperial pressionada pelas epidemias de febre amarela, inserem-se as
obras saneadoras de Saturnino de Brito “retificando, drenando e
embelezando” as nascentes e alagados dos córregos Tanquinho (Av.
Anchieta) e Serafim (Av. Orozimbo Maia), com isso, viabilizam a ocupação
de vazios insalubres durante as primeiras décadas da República
(Bittencourt, 2013, p.132).
Em relação a essa sobreposição dos planos urbanísticos, o arquiteto soma
ao seu ponto de vista de urbanização de Campinas outros dois tipos de
urbanização, sendo o primeiro relacionado à tradição portuguesa de origem
9
Grupo de Estudos (CNPq), dedicado a pesquisa em cultura popular, com vistas a produção de teatro
contemporâneo: https://www.grupopindorama.com
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medieval, de formar aldeias como forma de apoderar-se de territórios, e o segundo
de origem francesa do séc. XVIII, afluente do iluminismo (Bittencourt, 2009).
Contudo, o resultado concretamente manifestado na arquitetura da implantação
da Vila de São Carlos está assentado na aliança entre igreja e Estado:
Assim a igreja toma iniciativa e demarca em 1773 o corpo da capela
curada fixando em rito próprio, através da Freguesia a praça nuclear da
vila onde se instalarão posteriormente o Pelourinho e a Casa de Câmara
e Cadeia (Bittencourt, 2009, s/p).
De açúcar e de café se fez Campinas, com expressiva população de pessoas
escravizadas, assim como narra o historiador Prof. Duílio Battistoni Filho, somando
dados demográficos dos séculos XVIII e XIX, de 1779 a 1872. De acordo com ele, a
população passou de uma centena e meia de indivíduos para milhares:
Em Campinas (na época Vila de São Carlos) a primeira grande atividade
econômica foi a produção do açúcar. Com a proliferação dos engenhos
houve muita importação de escravos. Entre 1779 e 1829, a população
escrava cresceu de 156 para quase 4.800 indivíduos. Em 1835 começam
a aparecer as primeiras plantações de café, cabendo ao fazendeiro
Francisco Egídio de Souza Aranha, proprietário da fazenda Mato Dentro,
ser o primeiro a exportar o precioso produto. Em 1872 o café era uma
realidade como a força motriz da economia campineira, aumentando a
população escravizada para 14 mil cativos (Battistoni Filho, 2017, s/p)
Sobre o período de consolidada cafeicultura, o historiador Valter Martins
(2009) em: Sobre o período de consolidada cafeicultura, o historiador Valter
Martins em: “O mercado de hortaliças e a cadeia. A intensa vida social em um
pequeno espaço da cidade. Campinas, século XIX”, descreve a abertura e o
cotidiano, em 1872, de um mercado de hortaliças, deliberada pela câmara para
organizar o comércio dos víveres no entorno de outros comércios na praça nuclear
da Vila de São Carlos, à época conhecida também como Largo do Mercadinho,
Largo da Cadeia, Largo do Pelourinho ou, ainda, Largo do Capim, posto que
comercializava-se capim para alimentar os animais. Cruzamento de ruas,
passagem e convívio de pessoas de muitas procedências, configurando inclusive,
um local de convívio da população escravizada, conforme descreve o autor:
Por ali circulavam muitos escravos domésticos que faziam compras para
seus senhores ou que vinham das fazendas com alguma obrigação. Entre
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uma e outra tarefa na cidade ou em momentos de folga, os escravos
paravam em algum de seus pontos de encontro, vários deles vizinhos
mercadinho. Eram verdadeiros territórios negros na malha urbana sob a
forma de botequins e cortiços. Naqueles lugares seus frequentadores
ficavam mais à vontade, como se fossem livres (Martins, 2009, p.7).
Em “Tanguás: simulacros da liberdade nos últimos anos da escravidão em
Campinas” (2007), Valter Martins, enfatiza que o mercadinho e o entorno eram
espaços de subversão da ordem escravagista, pelos momentos de prazer e alegria
usufruído pelas pessoas negras escravizadas e brancos pobres, assim como pela
partilha das agruras comuns da vida cativa, fazendo com que a região fosse
considerada inadequada às autoridades:
Nas estreitas e sujas ruas ao redor do mercadinho, velhas casas de taipa
viradas cortiços abrigavam gente pobre da rica Campinas. Negros,
mulatos e brancos, nacionais e estrangeiros, compartilhavam a
insalubridade, falta de conforto e as dificuldades da vida em uma
sociedade escravista (Martins, 2007, p.02).
No entorno do mercadinho estabeleceram-se pequenos comércios variados
aos quais o autor identifica por
tanguás
, ao falar da dificuldade da cidade rica em
identificar aquele território que se formava ali no entorno do mercadinho.
Comércio esse que se manteve e densificou mesmo após a demolição do
mercadinho: “Tal imprecisão confundia até mesmo a imprensa: ‘tanguás...
biombos, ou que diabo é!’, perguntava um articulista Correio de Campinas em
janeiro de 1887” (Martins, 2007, p.5). Os
tanguás
campineiros se pareciam com os
zugús cariocas, espaços de encontro, de abastecimento e sociabilidade das
classes populares, os quais as autoridades tinham dificuldade para identificar e
sobre eles exerciam controle, como por exemplo a aplicação regras, impostos
impraticáveis e multas mantendo essas “pessoas perigosa” afastada o máximo
possível do usufruto integral do país.
Da história e de processos criativos no teatro
O Passeio Cantante é para territórios históricos. Trazendo o passado para o
presente, compondo com os viventes uma teatralidade de atualização das
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tradições juninas, ao mesmo tempo que é lugar, também, de números artísticos,
evocando os artistas como santos padroeiros da noitada. Artistas que, assim como
o patrimônio arquitetônico, são da história das artes brasileiras. A história cravada
nos prédios do passado que ainda estão em no presente tem sido parte de
processos criativos e locais de apresentações para outros grupos teatrais.
Comungamos com outros grupos que fazem da história parte importante de seus
processos criativos, técnicas e estéticas. A seguir, trazemos para o diálogo o
trabalho do Grupo Cena Aberta do Maranhão.
Fernanda Oliveira e João Victor Pereira narram e refletem no artigo “A
reescritura de espaços históricos no processo teatral de Negro Cosme em
Movimento, do Grupo Cena Aberta” (2020), o processo criativo a partir do qual o
grupo teatral da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) recria a história da
personalidade Negro Cosme, em relação direta com o patrimônio arquitetônico
local, agindo em locais onde ocorreram fatos da vida de Negro Cosme, tanto
durante o processo criativo como também para a própria encenação.
Dessa relação direta entre prédios históricos e cena, podemos ilustrar,
citando a encenação da peça em 2012, na atual Casa de Cultura de Itapecuru Mirim
no Maranhão, que havia sido a cadeia onde o protagonista da cena foi preso e
enforcado no século XIX. A encenação se desloca da tradição regional, propondo
em seu processo criativo etapas de reconhecimento histórico e geográfico que
vêm muito antes da elaboração da dramaturgia. O Grupo Cena Aberta percorreu
cidades buscando recriar a trajetória do herói e da história da qual é epicentro. Ao
mesmo tempo, esse percurso historiciza o presente ao dar visibilidade a
apagamentos da história, dando a ver as camadas que densificam o hoje a partir
do patrimônio material arquitetônico na relação com a memória dos cidadãos e
cidadãs locais, somadas ao saber encarnado das atrizes e atores que fazem dos
seus próprios corpos escritas historiográficas sobre os dias de hoje e de ontem. O
grupo propõe, a partir dessa dinâmica, recompor traços e vestígios da história
apagados em lugares históricos da cidade, transgredindo o espaço funcional da
cidade e fazendo dessa intersecção entre teatro e arquitetura uma parceria que
nutre e alavanca os processos criativos do grupo, o que os faz, segundo o autor,
pertencerem a um perfil de grupos teatrais que investigam nos espaços
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arquitetônicos da cidade:
Inúmeros grupos caminham em direção a um entrelaçamento entre a
poética da cena e a arquitetura da cidade, por acreditarem que as suas
obras artísticas incidem e se retroalimentam no espaço que ocupam
tanto por suas características arquitetônicas quanto por suas atribuições
imateriais. Sem caracterizar-se como uma simples investigação de
linguagem, esta tendência contemporânea visa acompanhar a abertura
do teatro à alteridade, ao mundo e à história, ao confrontar as práticas
da representação com as características simbólicas e arquitetônicas do
lugar no qual se passa o trabalho cênico (Oliveira e Pereira, 2020, p.8).
O que o
Passeio Cantante
propõe enquanto linguagem é diferente da
proposta do Grupo Cena Aberta; contudo, uma identificação com o grupo no
entrelaçamento de cena e cidade, de patrimônio material e imaterial, assim como
na possibilidade de o corpo do ator intermediar toda essa transação, fazendo
escrita historiográfica encarnada.
Essa historiografia encarnada que se quer quermesse pertence ao gênero
teatro de rua e, com os artistas que o fazem, nos irmanamos no céu e inferno que
essa escolha nos proporciona. A cena na rua, na sua grande diversidade na
contemporaneidade, tem em comum o enfrentamento, a falta de fomento
específico, a insuficiência de leis que protegem e regulam o trabalho dos artistas
da rua, além da crescente violência e perseguição ideológica validada pelo governo
federal em direção a toda expressão que não se alinhe com seu slogan autocrático
de “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”
10
A gente perigosa, as leis e o ofício
Neste maio de 2022, o presidente Jair Bolsonaro vetou as propostas de lei
Aldir Blanc e Paulo Gustavo, sendo a primeira relacionada à política nacional de
fomento à cultura e, a segunda, ao fomento de atividades e produtos culturais
para amenizar o impacto social e econômico causado pela COVID-19. Da
mensagem de veto, dirigida ao presidente do senado, transcrevemos o parágrafo
10
Lema da campanha de Jair Bolsonaro em 2018 (Fonte: Folha de São Paulo. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/slogan-de-bolsonaro-foi-inspirado-em-brado-de-
paraquedistas-militares.shtml)
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a seguir, para dar visibilidade ao que pensa a autoridade máxima desse país:
Comunico a Vossa Excelência que, nos termos previstos no § do art.
66 da Constituição, decidi vetar integralmente, por contrariedade ao
interesse público e inconstitucionalidade, o Projeto de Lei 1.518, de 2021,
que “Institui a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura”
(Bolsonaro, 2022, s/p).
Contudo, os vetos foram derrubados no Congresso, em 5 de julho de 2022,
por pressão de artistas, produtores culturais, empresários e políticos unidos por
interesses que se interseccionam. Chamamos a atenção para essa pressão a qual
são submetidas as pessoas artistas constante e ciclicamente, tenho sua
estabilidade abalada para poder criar e gerir sua profissão e sua ação no mundo.
Esse desgaste toca os trabalhadores e as trabalhadoras da cultura e da arte,
impedindo seu prosperar frente à instabilidade das políticas publicas. O que
temem? O que pode a arte? Que gente perigosa é essa?
Dentre as artes, as artes da cena, as artes da presença, essa que fala com o
público diretamente, em tese, é a mais perseguida. E, entre essas, a arte que se
na rua, é mais ainda. Que gente perigosa são esses artistas da presença?
Vejamos, sobre esse assunto, o comentário de Licko Turle e Jussara Trindade,
articuladores da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR)
11
:
Teatro de rua é obra de arte temporária, realizada em local de grande
circulação, com acessibilidade gratuita e com função social ativa que
transforma o transeunte em espectador, promovendo uma intensa
comunicação entre a obra, o artista e a
comunidade. Apesar das semelhanças, a grande diferença é a visão que
a cultura dominante e os organismos culturais do estado e entidades
privadas possuem para cada uma. As atividades das artes visuais estão
alicerçadas tanto por leis municipais, quanto por federais de proteção,
fomento e manutenção; enquanto as artes cênicas são, muitas vezes,
marginalizadas e reprimidas, até mesmo com violência (Turle e Trindade,
2010, p.54).
11
A Rede Brasileira de Teatro de Rua RBTR, criada em março de 2007, em Salvador/Bahia, é um espaço físico
e virtual de organização horizontal, sem hierarquia, democrático e inclusivo. Todos os grupos de teatro,
artistas-trabalhadores, pesquisadores e pensadores envolvidos com o fazer artístico da rua, pertencentes a
RBTR podem e devem ser seus articuladores para, assim, ampliar e capilarizar, cada vez mais reflexões e
pensamentos, com encontros, movimentos e ações em suas localidades.
https://www.instagram.com/redebrasileiradeteatroderua
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Confirmando a crítica exarada no parágrafo acima, em pesquisa realizada em
2021, “A Relevância da RBTR Rede Brasileira de Teatro De Rua Para o
Movimento Do Teatro De Rua No Brasil”, conclui que os principais fomentos
vigentes são direcionados para salas fechadas de espetáculo, embora as salas de
teatro não estejam presentes na esmagadora maioria dos municípios brasileiros.
Nas palavras da pesquisadora:
Fato curioso é que a grande maioria dos editais e das políticas de fomento
à arte teatral são voltadas para as salas fechadas de espetáculo, apesar
de somente 10% dos municípios do país possuírem esses espaços. Este
fato, relacionado a todo o trabalho dos articuladores da Rede Brasileira
de Teatro de Rua em manter essa linguagem teatral viva e pulsante,
revela a falta de apoio do poder público para/com as Artes de Rua. Apesar
de muitas conquistas graças à união destes artistas de rua, ainda
muito caminho pela frente em busca do reconhecimento e valorização
ideais (Bellini, 2021, p.04).
Em um país democrático, pensamos que a valorização do espaço da rua é
consequência do regime político, enquanto lugar de possibilidade de convívio
ordinário e extraordinário da multiplicidade de subjetivações que compõe a
população da cidade, a população da concentração urbana. Porém, o que vemos
acontecer em Campinas, infelizmente em coro com muitas cidades brasileiras, é
o abandono do patrimônio histórico, a escassez de atividades culturais, a falta de
lugares para ficar e estar na cidade, a falta de banheiros públicos, o exílio da
população da própria cidade. A rua é perigosa! Compreendemos essa afirmação e
o sentimento de insegurança quando vamos atuar na rua, é uma companhia
constante, assim como o entusiasmo e a certeza de encontrar um público
interessante, diverso e interessado.
Qual é o perfil de perigo que a rua e as pessoas da rua trazem? No Brasil,
raça e classe são associadas a exclusão social, pobreza e criminalidade, assim
como a rua é associada a vadiagem, conforme decreto-lei de 1941, conhecido
como “Lei da Vadiagem”, que prevê prisão de 15 dias a três meses para quem se
entregar “habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda
que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover a própria subsistência
mediante ocupação ilícita”. Decreto que torna particular um problema de política
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pública, conforme os autores do Projeto de Lei 3158/2, que propõe a revogação do
trecho citado, da Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei 3.688/41), o qual, ainda
hoje, em agosto de 2022, tramita em caráter conclusivo e será analisado pela
Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Veja a justificativa do pedido
de revogação contida no projeto: “A pretensão punitiva da vadiagem configura,
senão um deboche, uma dupla punição a milhares de brasileiras e brasileiros
vitimados pelo desemprego, pela fome e pelo descaso do Estado”
12
.
Soma-se a isso o não reconhecimento e validação de formas de
sociabilidades diferentes do padrão classista, machista e racista coloniais, como
indiciado no texto de Valter Martins (2007), ao revelar que um articulista do Correio
de Campinas, em 1887, diante da dificuldade em entender o funcionamento
diferenciado de locais de encontro, comércio e sociabilidade, relacionados à
população negra e às classes populares, soltou um: “tanguás... biombos, ou que
diabo é!”, referindo-se aos os tanguás em Campinas, descritos aqui neste texto,
em parágrafos anteriores. A não validação de formas culturais diversas, de se
relacionar com a realidade, das formas herdadas da Europa colonizadora,
especialmente quando se refere às formas de ascendência africana e indígena,
preserva-se no hoje, como podemos comprovar vendo manifestações de ódio e
violência contra terreiros de religião afro-brasileira, que acontecem diariamente no
Brasil. Essa colonização escravagista que temos em comum com a América Latina
gerou uma multidão de pessoas jogadas à sua sorte, sem políticas públicas de
inclusão desde sempre, passando a usufruir de cotas para acesso à educação e
postos profissionais somente a partir do século XXI, em oposição aos imigrantes
europeus, que receberam cotas desde a colonização conforme observa o jornalista
e historiador Tau Golin:
As políticas de colonização do país foram as aplicações concretas de
políticas de cotas. Aos servos, camponeses, mercenários, bandidos,
ladrões, prostitutas da Europa foi acenado com a utopia cotista.
Ofereceram-lhes em primeiro lugar um lugar para ser seu, um espaço
para produzir, representado pelo lote de terra; uma colônia para que
pudesse semear o seu sonho (Golin, 2014, s/p).
12
Fonte: Agência Câmara de Notícias. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/845847-PROPOSTA-
RETIRA-VADIAGEM-DA-LEI-DE-CONTRAVENCOES-PENAIS Acesso em: 27 ago. 2022.
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Essas são as pessoas identificadas com gente perigosa, na hora de usufruir
integralmente do Brasil; a mesma gente que é portadora do legado cultural que
define este país. Para falar dessas pessoas consideradas perigosas, o historiador
Antônio Simas descreve a fundação do Rio de Janeiro, delineando o perfil das
populações que, segundo o autor, inventaram o diferencial cultural do Brasil, as
quais seguem inventando nas brechas e nas frestas do Brasil não institucional, do
Brasil que está nas ruas.
Para descrever esse recorte da população brasileira, o autor retoma a
fundação do Rio de Janeiro no século XVI, somando a caça aos Tupinambá ao
horror de mais de trezentos anos de escravidão, destacando que do século XVI ao
XIX, de cada cinco pessoas escravizadas no mundo, uma pisou na Guanabara.
O vento carioca, que traz em suas asas o brado lancinante dos tamoios,
sopra também os zumbidos dos chicotes nas costas lanhadas do povo
do Congo e a melancolia de muitos fados (Simas, 2019, p.12).
Esses sujeitos que bradam, que recebem o açoite e que proferem cantos
melancólicos, formaram as “classes perigosas” (Simas, 2019, p.12) maneira como a
cidade encarou as pessoas pobres, na transição da monarquia para a república,
com o fim da escravidão; segundo o autor, esse termo foi largamente disseminado
em documentos da época. Essa classe perigosa é quem vai fazer a reforma do
espaço urbano, realizando com trabalho braçal o sonho de cidade moderna ditado
pela elite brasileira, eram “operários, empregadas domésticas, seguranças,
porteiros, soldados, policiais, feirantes, jornaleiros, mecânicos, coveiros, floristas,
caçadores de ratos” (Simas, 2019, p.12). O autor chama ainda como componentes
dessa classe perigosa as seguintes categorias:
[...] os capoeiristas, malandros, sambistas, chorões, vendedoras de
comida de rua, mães de santo, devotos da Senhora da Penha, centenas
de Zés devotos de seu Pelintra, minhotos pobres, alentejanos atrás
dos balcões de botequins vagabundos, polacas, marujos, jongueiras,
funkeiros, festeiras e quizumbeiros de todos os matizes e lugares (Simas,
2019, p.12).
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Essa classe não construiu o sonho de cidade cosmopolita ditado pelo
modelo europeu, como também construiu o que de mais diferenciado e original
na cultura brasileira. Ainda assim, seguem à margem da sociedade brasileira até
hoje, no século XXI. Os portadores do legado cultural brasileiro não usufruem
integralmente do Brasil e seguem excluídos do mercado de trabalho, do acesso à
educação e da margem de segurança alimentar, de moradia e de saúde. Essas
populações também ocupam outros espaços da cidade, além dos centros
culturais e edifícios teatrais, criando uma cultura de fresta, de brecha, nas ruas,
nos becos e nas praças.
No chão de aldeia tupinambá virada em cais do Valongo, a morte,
convidada de honra que deveria campear soberana na nossa história,
insiste, mas morre sim, a morte morre na rua (Simas, 2019, p.13)
O ponto de vista da artista
Pelo exposto até aqui, podemos observar que acumulamos muitas
informações para localizar o Teatro de Quermesse, conseguindo, certamente, falar
do todo somente um pouco. Reunimos informações sobre a pandemia COVID-19,
a linguagem do Teatro de Quermesse, a cena do Passeio Cantante, a história da
urbanização de campinas, interseccionada com a fundação do Rio de Janeiro e o
uso do adjetivo “perigosa” para definir o perfil da gente que construía o Brasil, mas
que não combinava com o Brasil que as elites queriam moderno, na virada do
século XIX para o XX, da monarquia para a República e do trabalho escravo para o
trabalho livre. Somamos ainda a perspectiva de processos criativos que associam
patrimônio arquitetônico histórico a teatro, assim como aditamos a perspectiva
dos artistas que fazem o teatro, especialmente o teatro de rua, na rua, com a rua...
diante das leis regulatórias do ofício e do governo autocrático de Jair Bolsonaro,
que não é defensor do estado de direito para todos e todas as brasileiras, tocando
terror em tudo que não é identificado com sua forma abusiva de governar e de se
impor ao Brasil. Reunimos todas essas considerações, na certeza de que tudo se
interliga e de que a produção artística, seus processos e escolhas estão
absolutamente associados a posicionamentos políticos, onde estética e ética não
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se dividem e refletem na poética o ponto de vista do artista, proponente da obra
de arte autoral.
O Teatro de Quermesse aqui proposto se faz na encruzilhada de corpo,
história passada e história presente, articulando espaço geográfico com cena,
patrimônio material da arquitetura da cidade com patrimônio imaterial
reverberado nos corpos e corpas em gestual de memória alavancado pelo retorno
mítico impulsionado pela memória comum da quermesse, contornada de
bandeirinhas, sons e fogo. Fazemos baile, cortejo e números artísticos,
literalmente nas encruzilhadas da cidade, dos sentidos, dos tempos, dos corpos e
dos Brasis.
A encruzilhada, locus tangencial, é aqui assinalada como instância
simbólica e metonímica da qual se processam vias diversas de
elaborações discursivas, motivadas pelos próprios discursos que a
coabitam. Da esfera do rito e, portanto, da
performance
, é lugar radial de
centramento e descentramento, interseções e desvios, texto e traduções,
confluências e alterações, influências e divergências, fusões e rupturas,
multiplicidade e convergência, unidade e pluralidade, origem e
disseminação. Operadora de linguagens e de discursos, a encruzilhada,
como um lugar terceiro, é geratriz de produção sígnica diversificada e,
portanto, de sentidos. Nessa via de elaboração, as noções de sujeito
híbrido, mestiço e liminar, articuladas pela crítica pós-colonial, podem ser
pensadas como indicativas dos efeitos de processos e cruzamentos
discursivos diversos, intertextuais e interculturais (Martins, 1997, p.28).
O conceito de encruzilhadas, sintetizado por Leda Martins em “Afrografias da
memória” (1997), a partir de elaborações discursivas e filosóficas africanas, é uma
referência para essa ação artística que se quer em um “terceiro lugar” (Martins,
1997, p. 28). O marco zero da cidade é, para o teatro que aqui propomos,
encruzilhada de corpos, cultura popular, patrimônios materiais e imateriais, que
põe em contato o açúcar, o café, o passado, o presente, o largo do Carmo, da
Cadeia, do Pelourinho, do Capim, do Mercadinho, o córrego Tanquinho, as festas
juninas de ontem e de hoje, os vivos (nós) os mortos (Carlos Gomes e os artistas
evocados no mastro dos artistas). Encruzilhada esta que vibra todo o inferno e céu
que a colonização exploratória e o mercado de escravos em escala industrial,
deixaram como marca da cidade, do estado, do Brasil, da América Latina.
Buscamos esse lugar de encruzamentos e intersecções para o processo de
concepção da ação artística. O procuramos também nas linguagens artísticas,
Teatro de Quermesse
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cruzando teatro e fotografia, como forma de fazer essa dramaturgia para becos,
largos e praças, que não quer ser assistida, mas compartilhada na silhueta da
cidade, a qual se revela completamente nas fotografias feitas durante toda a
ação, evocando a memória do acontecimento cênico, como memória da cidade.
Assim se deu o Passeio Cantante em 2022, memória evocada não para reforçar o
passado, mas para provocar um olhar para o hoje, como sustentação para
proposições de futuros. É teatro de rua. É teatro na rua. É teatro com a rua... É
Teatro de Quermesse! Ano que vem tem mais!
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Recebido em: 05/09/2022
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Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento Revista de Estudos em Artes Cênicas
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