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Da rua à encenação:
encontros entre dança e cidade
Clara Gouvêa do Prado
Para citar este artigo:
PRADO, Clara Gouvêa do. Da rua à encenação:
encontros entre dança e cidade.
Urdimento
Revista
de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 3, n. 45,
dez. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573103452022e0301
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Florianópolis, v.3, n.45, p.1-33, dez. 2022
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Da rua à encenação
1
: encontros entre dança e cidade
2
Clara Gouvêa do Prado
3
Resumo
Este artigo propõe adentrar em processos de criação coletivos em dança
contemporânea que investem na cidade como matéria poética, estética e
política, partindo da produção artística da Cia Damas em Trânsito e os
Bucaneiros, grupo paulistano que tem como eixos de seu agir composicional
a improvisação e a atuação nos espaços urbanos. Aqui, apontamos a
experiência de criação do espetáculo
Espaços Invisíveis
(2013), na qual o
processo foi dividido em um primeiro momento de ações performativas na
cidade de São Paulo, e em um segundo momento, no qual o material criado
na primeira fase na rua inspirou e originou a montagem para espaço não
convencional. Assim, refletimos sobre como corporeidades, espaços e cidade
têm se articulado no fazer da dança, para traçar paralelos entre o processo
coletivo do grupo e as ideias de dança de ocupação, arte relacional e
contextual, dialogando com discussões sobre os regimes espaciais e cinéticos
nas cidades segundo Milton Santos e André Lepecki.
Palavras-chaves
: Dança contemporânea. Improvisação. Dança em espaços
urbanos. Cidade. Processos de criação.
1
Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Mirelle Iano. Graduada em Letras pela Universidade
de São Paulo (USP). mirelle.iano@gmail.com
2
Este artigo se origina da pesquisa da dissertação de mestrado de Prado, 2021. Pesquisa foi realizada com o
apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Brasil (CAPES).
3
Mestrado em Artes pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Graduação em
Dança pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). clara.gouvea@unesp.br
http://lattes.cnpq.br/9531037697591625 http://orcid.org/0000-0002-7587-5296
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From the street to the staging: encounters between dance and
the city
Abstract
This article proposes to dig into collective creation processes in contemporary
dance that invest in the city as a poetic, aesthetic and political matter based
on the artistic production of Cia Damas em Trânsito e os Bucaneiros, a group
from São Paulo, whose “compositional action” is based on improvisation and
acting in urban spaces. Here, we point to the experience of creating the show
Espaços Invisíveis
(2013), in which the process was divided into a first moment
of performative actions in the city of São Paulo, and a second moment, in
which the material created on the street during the first phase inspired and
originated the staging for unconventional space. Thus, we reflect on how
corporeities, spaces and the city have been articulated in the craft of dance,
to draw parallels between the collective process of the group and the ideas
of “occupation dance”, relational and contextual art, dialoguing with
discussions about the spatial and kinetic regimes in the cities according to
Milton Santos and André Lepecki.
Keywords
: Contemporary dance. Improvisation. Dance in Urban Spaces. City.
Creative processes.
De la calle a la escena: encuentros entre la danza y la ciudad
Resumen
Este artículo propone adentrarse en procesos de creación colectiva en danza
contemporánea que invierten en la ciudad como materia poética, estética y
política, a partir de la producción artística de Cia Damas em Trânsito e os
Bucaneiros, grupo paulista, cuya acción compositiva es basada en la
improvisación y la actuación en espacios urbanos. Aquí, apuntamos a la
experiencia de creación del espectáculo
Espaços Invisíveis
(2013), en el que
el proceso se dividió en un primer momento de acciones performativas en la
ciudad de São Paulo, y en un segundo momento, en el que el material creado
en la primera fase en la calle inspiró y originó el montaje para un espacio no
convencional. Así, reflexionamos sobre como las corporeidades, los espacios
y la ciudad se han articulado en la realización de la danza, para trazar
paralelos entre el proceso colectivo del grupo y las ideas de danza de
ocupación, arte relacional y contextual, dialogando con discusiones sobre lo
espacial y los regímenes cinéticos en las ciudades según Milton Santos y
André Lepecki.
Palabras clave
: Danza contemporánea. Improvisación. Danza en espacios
urbanos. Ciudad. Procesos de creación.
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Corpo e mundo nunca estarão formados: corpo e
mundo geram suas incompletudes recíprocas. Corpo
e mundo não são exatamente inacabados, mas
inacabáveis: provisórios, parciais, participantes,
precários, precários, precários. Não estão única ou
exatamente em processo de transformação
contínua, mas em estado de geração permanente.
Corpo-mundo que gera o mundo-corpo que o gera.
(Fabião, 2015, p.45).
Neste artigo parto da experiência artística da Cia Damas em Trânsito e os
Bucaneiros (CDTB), grupo em que atuo e do qual sou uma das fundadoras, para
adentrar em processos de criação em dança contemporânea nos quais as relações
corpo, espaço e cidade se compõem intrinsecamente. A CDTB é território de
pesquisa da minha dissertação de mestrado, recém-finalizada, intitulada
Composições do instante: a improvisação no processo de criação e composição
em dança da Cia Damas em Trânsito e os Bucaneiros.
Desde o princípio das nossas pesquisas estivemos interessados nas relações
entre dança e espaço – espaço e arquitetura, espaço e memória, espaço e corpo;
16 anos desenvolvemos um trabalho de criação coletivo na qual as bases da
pesquisa de linguagem cênica perpassam a improvisação em dança e música, o
Contato Improvisação, a dança em espaços urbanos e espaços cênicos
alternativos, principalmente na cidade de São Paulo. Acreditamos que a relação
instigante entre dança e espaço presente na improvisação nos levou para as
danças situadas nos espaços urbanos. O risco, o inesperado, a diversidade de
encontros na rua, com pessoas de diferentes lugares, origens, idades, gêneros, nos
mobilizaram em pesquisas que foram se verticalizando a cada nova obra do grupo.
Para o(a) artista da dança, o espaço não se caracteriza somente como um
elemento objetivo, uma matéria manipulável, mesmo que muitos(as)
coreógrafos(as) e criadores(as) utilizem seus conceitos objetivos (níveis, planos,
orientações, dimensões, distâncias, etc.) como campos de investigação e
composição.
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É muito presente nas falas dos(as) improvisadores(as) da dança essa
convocação dos assuntos que o espaço instiga, como a frase “abrir o corpo ao
espaço”. Dudude Herrmann, por exemplo, instrui, em suas aulas e conduções, que
o “espaço fala”, “que tem muitos assuntos”, que “deixemos o espaço dizer as
coisas”, que podemos dançar as “dobras do espaço”, sintonizar a presença das
coisas, deixar que os seres e as coisas tenham o mesmo valor de presença
4
(Herrmann, 2015). Como aponta Lisa Nelson sobre as suas investigações na
improvisação em dança:
Após um longo período de tempo, eu percebi que tudo está presente no
espaço. Todos os movimentos possíveis que alguém pode fazer estão
aqui [...]. Quando alguém coloca os seus sentidos em um espaço, você
está iluminando algumas coisas e deixando outras na sombra (Lisa, 2015).
Lisa diz que, ao dançar, mostramos para os que nos assistem como
percebemos o mundo, nos relacionamos com ele, criamos mundo. A partir dessa
perspectiva, o corpo dançante habita o espaço, é espaço, produz espaço (Merleau-
Ponty, 2011; Gil, 2004). Assim, podemos expandir o conceito de habitar para além
do espaço como morada: o espaço como lugar de existência (Santos, 2014), e a
improvisação em dança como modo de existir.
Em nosso agir, mesmo quando em nossas criações elegemos nos relacionar
com a arquitetura, a concretude física dos espaços, ou seja, os fixos, estamos em
relação às inscrições do espaço vivido e também das percepções sensíveis sobre
o espaço em sintonia com o exercício de escuta da improvisação. Quero dizer que,
mesmo quando olhamos para a materialidade do lugar, os elementos fixos,
convocamos os corpos que construíram esses lugares e que os constituem,
lidando, dessa forma, com os fixos e fluxos do espaço, como aponta Milton Santos
5
(2014, p.61-62):
4
Caderno de pesquisa, anotações e expressões ditas pela artista na oficina “Improvisação, Ação, Sentidos e
Composição” no Sesc Pompeia, de 29 de janeiro a 1 de fevereiro de 2019.
5
Milton Santos (1926-2001), renomado intelectual afro-brasileiro, foi um dos grandes nomes da renovação da
Geografia no Brasil ocorrida na década de 1970.
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Os elementos fixos, fixados em cada lugar, permitem ações que
modificam o próprio lugar, fluxos novos ou renovados que recriam as
condições ambientais e as condições sociais, e redefinem cada lugar. Os
fluxos são um resultado direto ou indireto das ações e atravessam ou se
instalam nos fixos, modificando a sua significação.
Nossas corporeidades dançantes movimentam esse jogo entre fixo e fluxos,
são pronúncias do e no mundo (Vilela, 2010). Nesse encontro e embate entre
dança-mundo/mundo-dança, partimos de escutas entre interiores-exteriores, das
práticas de si apoiadas nas investigações da dança do Contato Improvisação e das
abordagens somáticas, também da perspectiva relacional da improvisação e a
dança nos espaços urbanos.
Para o grupo essa relação corpo-espaço/espaço-corpo guiou, definiu,
estabilizou e desestabilizou modos, estéticas e poéticas, sendo a improvisação,
este
habitar nas escolhas
.
Louppe (2012, p.188) afirma que:
O bailarino vive do espaço e do que o espaço nele constrói. Assim se
justifica que o projeto espacial do coreógrafo e do bailarino deva ser
objeto de uma aproximação e percepção particularmente atentas. As
escolhas espaciais condensam as marcas essenciais da filosofia de uma
dança.
Diante disso, nos processos de criação do grupo, nos encontros entre corpo-
espaço-dança-cidade, o espaço urbano não foi apenas o lugar onde se dança, ele
foi igualmente aquilo que se performa; em uma relação em que a ação artística
comunica, pronuncia-se enquanto dança, faz-se nos discursos e poéticas.
Para tanto, buscando fomentar o debate sobre dança e cidade, nos apoiamos
na perspectiva da geografia cidadã e existencial
6
de Milton Santos, entre outros
teóricos, o qual nos ajuda a entrar em discussões sobre os espaços da cidade,
entre disputas e negociações, apropriações e práticas, sobre como estes
6
“No bojo de uma geografia cidadã, Milton Santos pensou o meio geográfico enquanto sinônimo de território
usado; nos anos 1990, ele situou a Geografia pela ótica das técnicas e seus efeitos na atualidade,
entendendo-a como uma
filosofia das técnicas
e como uma epistemologia da existência. Aqui optamos por
uma derivação deste conceito, pensando que nas grandes cidades as existências são sempre plurais”. (Costa,
2017, p.16, itálicos do autor)
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constituem maneiras de existir, pronúncias do/no mundo. Tais discussões aliam-
se às reflexões de André Lepecki (2012) firmadas nos conceitos de “coreopolícias”
e “coreopolíticas”, expostas pelo autor.
André Lepecki (2012), na direção de reflexões sobre os regimes cinéticos
urbanos e a dança, enfatiza que os arranjos coreográficos urbanos podem ser
vistos em um ambivalente movimento na gestão dos corpos. Ele discute a política
do movimento por meio dos dois conceitos citados acima: “coreopolícia” e
“coreopolítica”. De um lado, aponta a polícia do movimento e suas ordenações,
um coreopoliciamento dos espaços urbanos, formatado para moderar gestos e
ritmos, que visa estabelecer estados de controle, vigilância e estabilizar consensos.
De outro lado, propondo uma coreopolítica, ou seja, a possibilidade de outras
perspectivas de mobilidade e paragens que criam gestos dissonantes e deslocam
a partilha cinética, em consonância com uma “política de chão”
7
que, atenta à
ressonância constitutiva entre lugares e danças, está igualmente em relação ao
horizonte do chão dos acontecimentos concretos das cidades.
O terreno das cidades não é como uma superfície plana, “o chão é fissurado,
quebrado, frio, doloroso, quente, fedido, sujo. O chão fura, fere, prende, arranha. O
chão, acima de tudo, pesa” (Lepecki, 2017, p.180). A metrópole paulistana reflete
isso, imprime regimes cinéticos muitas vezes de aceleração, privilegiando os
espaços como propriedades, atropelando temporalidades de partilha do comum,
cada vez mais na lógica da especulação imobiliária. Diante disso, pontua Laila
Padovan (2020, p.8):
Assim, quando a dança passa a ocupar outros espaços normalmente
considerados não ideais para seu livre desenvolvimento, habitando ruas
da cidade, paisagens naturais e espaços não-convencionais, ao invés de
se buscar um espaço livre de tropeços ou obstáculos imprevistos, busca-
se colocar o corpo em contato com espaços do cotidiano que vêm
carregados de uma história específica e que nada têm de neutros. Ao
percorrer ruas, construções, praças, becos, ladeiras, vislumbra-se uma
nova relação da dança com seus espaços, não apenas exigindo que os
bailarinos enfrentem chãos sujos, esburacados, ásperos ou cheios de
7
A noção “política do chão” cunhada pelo teórico crítico Paul Carter, utilizada por Lepecki, percorre reflexões
sobre quais relações profundas regem aquilo que compreende as artes ocidentais de representação. Para
isso o autor abriu discussões sobre o colonialismo e a questão da representação, a questão da ontologia e
a noção do chão. Carter afirma que o colonialismo aplaina os chãos e se afasta deles, e assim deixa de
considerar as marcas e memórias inscritas neles. “Enquanto isso, outros corpos caem e habitam dobras e
fissuras não consideradas. Enquanto isso, o chão sacode e treme, agitando os caídos.” (Lepecki, 2017, p.182)
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obstáculos, mas também que se relacionem com lugares que têm
assumidamente uma história, que possuem uma dinâmica cotidiana
específica e que já possuem habitantes ou transeuntes.
A cidade de São Paulo, e suas coexistências, é território de investigação de
nossa
dança de ocupação
. Em nossas criações estamos interessados em estar
nesse campo de negociação e disputas que a rua nos propõe. Para gerarmos e
sermos gestados por ela, e criar novos regimes sensíveis, outros imaginários, novos
encontros e modos de estar e viver.
Essa dança que propomos parte da escuta e do encontro como premissas, a
possibilidade de criar campos de afeto, outros modos de habitar os espaços, de
trazer poéticas escondidas, de convidar o olhar para diferentes perspectivas dos
lugares, da relação com o chão, abrir-se à diversidade de olhares e pessoas que
habitam os lugares e ir em direção à partilha desses espaços. Ocupar pressente o
risco, o risco do confronto. Dizer sobre uma
dança de ocupação
é deflagrar as
disputas e negociações que acontecem no urbano, das forças dos poderes
econômicos e políticos que operam na cidade e silenciam expressividades e
presenças.
Nas próximas páginas falaremos da criação do espetáculo
Espaços Invisíveis
(2013), e de seu movimento da rua à encenação em um espaço cênico alternativo.
Pouco a pouco adentraremos nas estruturas do processo a partir dos
procedimentos, imagens e narrativas que o compuseram.
O processo de criação
Em
Espaços Invisíveis
(2013), partimos das reverberações de discussões sobre
indivíduos e coletivo, eu-outro, espaços públicos e privados abordados em
processos anteriores; porém, desdobramos em investigações sobre visibilidades e
invisibilidades, apropriações e experimentações dos/nos espaços da cidade, a
sensorialidade e a percepção corporais da cidade na dança e o habitar os espaços;
a relação com o espectador e seus pontos de vista na fruição no espaço urbano e
no espaço cênico não convencional; as qualidades do espectador da rua (aqueles
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que vêm assistir, aqueles que passam, aqueles que habitam, frequentam aquele
lugar).
Esse foi um momento de convergências e aprofundamentos dos
pressupostos cênicos, bem como da corporeidade dançante que constitui o
trabalho do grupo em seu
agir composicional
, salientando dois focos importantes:
a atuação na rua, seus procedimentos e dispositivos, em diálogo com a criação de
um espetáculo/encenação para espaço cênico alternativo.
Nomeio como agir composicional a totalidade de procederes e pressupostos
cênicos que compõe o fazer do grupo. “Agir” como conceito que localiza a ação
artística nas suas dimensões estética, poética e política, suas pronúncias,
transformações e dizeres que irrompem no/do mundo. Aqui, esse
agir
composicional
tem a improvisação em dança como eixo compositivo sensível dos
processos de criação, assim como a ação e a atuação coletivas nos espaços
urbanos.
O processo de criação foi dividido em dois momentos de igual importância.
Um primeiro momento de ações cênicas nos espaços urbanos, na cidade de São
Paulo (principalmente na região central), no qual desenvolvemos ações
performativas individuais e coletivas como primeira fase do processo de criação.
E um segundo momento, no qual o material criado na primeira fase na rua inspirou
e originou a montagem de um espetáculo para espaço não convencional em que
encenação e dramaturgia tiveram a cidade de São Paulo como matéria poética.
A estreia do espetáculo aconteceu no Paço das Artes
8
, na Cidade
Universitária/USP, em agosto de 2013. No Paço ocupamos um espaço que era
pouco usado pelo centro cultural; o vão livre abaixo do prédio principal, um lugar
amplo, cimentado, com níveis e alturas, com um gramado atrás do edifício e um
bosque ao lado. Esse espaço possibilitou a concomitância de cenas, o
deslocamento do público e sua itinerância, como contaremos mais à frente.
8
O espetáculo ganhou o prêmio Denilto Gomes (prêmio da Cooperativa Paulista de Dança) em 2013, na
categoria “Melhor criação em dança para espaços específicos”. Uma segunda temporada foi realizada, em
2015, na Escola de Meninas, ruínas de uma vila operária, na Vila Maria Zélia (por intermédio do Grupo XIX de
Teatro, aí sediado), no bairro Bresser, na cidade de São Paulo.
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Destaco aqui que, apesar de
Espaços Invisíveis
ter sido concebido para um
espaço cênico, já havia ficado exposto ao grupo que não interessava criar obras na
disposição palco-plateia, palco italiano, e, nesse caso especialmente, que o(a)
espectador(a) permanecesse necessariamente o tempo todo sentado(a).
Assim, em
Espaços Invisíveis
, a partir das experiências na rua e suas
possibilidades de encontro com o Outro, a estruturação da encenação teve a
relação com o espectador como peça importante da concepção poética e
dramatúrgica. Durante a primeira parte do espetáculo, o público era convidado a
transitar pelo espaço cênico (caminhando, andando de bicicleta, sendo conduzido
em uma plateia móvel), elegendo modos de estar e fruir, em um exercício de
emancipação, como expõe Rancière (2014), pois sua maneira de olhar, observar a
obra, e adentrar na experiência cênica fazia dele coautor do acontecimento
cênico.
A cidade como matéria poética
Em
Espaços Invisíveis
, a cidade é tratada como matéria poética e lugar de
coexistências (Santos, 2014). Nesse campo de coexistências, existe um jogo de
visibilidade e invisibilidade; dinâmicas, tempos, pessoas, fatos se apresentam aos
nossos sentidos enquanto outros são invisibilizados, e também marginalizados. As
dinâmicas cinéticas urbanas, suas “coreopolícias”, contribuem para esses
movimentos ao privilegiar fluxos e ordens em detrimento de outros, a exemplo da
exaltação à mobilidade e à velocidade, associadas ao sucesso e à eficiência na
sociedade do capital, em oposição a estados desacelerados e à apropriação dos
espaços urbanos como lugares de partilha do comum.
Nas ações cênicas do grupo na cidade, articulou-se um corpo que dança na
rua no encontro com outros corpos corpo-gente, corpo-asfalto, corpo-chuva,
corpo-cidade, etc. Em encontros entre peles, em uma relação mútua de tocar e
ser tocado(a), como expõe José Gil (2004), “um corpo paradoxal que se abre e
fecha sem cessar ao espaço e aos outros corpos” (Gil, 2004, p.57).
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O nome
Espaços Invisíveis
nasce desse desejo de estar nos espaços da
cidade de São Paulo e vê-los para além daquilo que está posto à primeira
vista. Compomos, criamos nossas danças a partir dos atravessamentos do espaço,
fluxos e fixos, podendo colocar foco em chamamentos que a sensibilidade e a
atenção fina convocam. Raquel Gouvêa (2012) diz que o improvisador da dança
aprende a olhar e sentir esses pequenos movimentos invisíveis e dar forma a essas
forças.
Essas invisibilidades compreendem as múltiplas coexistências do espaço, há
a invisibilidade que o chão dos lugares e suas estruturas expõem, cantos
escondidos ao olhar com poéticas singulares, outras composições possíveis,
pessoas e presenças que estão invisibilizadas, em sua fragilidade e também na
sua potência, possibilidades de outros encontros e convívios.
Diante desse desejo de encontrar outras formas de adentrar nas poéticas da
cidade, foi referência para a criação de Espaços Invisíveis o livro de Ítalo Calvino
intitulado
As cidades invisíveis
(1990). Para Calvino, a cidade, além do conceito
geográfico, é símbolo complexo da existência humana. Este traz em sua poética
novas possibilidades de olhar e viver a cidade, sensorial, imagética e
fantasticamente. O fantástico como hipérbole daquilo que se escancara na
paisagem ou está velado “penetra-se por ruas cheias de placas que pendem das
paredes. Os olhos não veem coisas, mas figuras de coisas que significam outras
coisas” (Calvino, 1990, p.17).
Para além do que percebo de concretude “do real” na cidade, algo a mais se
apresenta em relação aos seus espaços, ou seja, sua matéria poética, simbólica e
imaginária a habita; nos encontros na e com a cidade essa potência poética
que escapa à normatividade estabelecida.
Para nós é importante que esse fazer na cidade seja realizado coletivamente,
em uma rede de conexão compositiva, colocando-nos em abertura aos desejos
imaginativos que nos atravessam como criadores para encontrar brechas e frestas,
para amplificar imagens, fluxos, tensões, emoções, sensações que estavam
“invisíveis” nos espaços, velados e silenciados.
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Que cidade é essa que desejamos habitar? Como possibilitar outros
imaginários urbanos? Como habitarmos com uma corporeidade sensível a cidade
que pouco cria espaços para estados e modos diferentes de ser e estar? Como
criar espaços de convívio e partilha?
Procedimentos e dispositivos de criação no espaço urbano
As concepções das ações na rua, na primeira fase da criação de
Espaços
Invisíveis
(2013), partiram dessa atualização de nossas reflexões sobre os
encontros com os territórios da cidade de São Paulo, com base em uma visão da
estética relacional e contextual; pontuando que nos anos anteriores havíamos
atuado com intensidade em lugares abertos constituindo uma maneira de agir de
corporeidades dançantes no espaço urbano.
Tratando-se de um processo colaborativo e coletivo, as estratégias de criação
visaram dar vazão às experimentações e proposições dos integrantes da CDTB, as
quais eram dirigidas ao coletivo como um todo ou em ações individuais. Essas
estratégias foram criadas a partir de derivas na cidade, danças instantâneas
improvisacionais, ações e situações performativas e coreográficas. Importante
dizer que mesmo nas ações individuais havia a presença do coletivo mantendo a
rede de conexão e apoio.
Nas ações cênicas, nós nos colocamos disponíveis corporal e sensorialmente
à “escuta” e à “leitura” do espaço, porém, agora trazendo propostas de ações
específicas. Nesse exercício de análise, compreendi que a nossa prática na
improvisação em dança desdobrou-se em novas proposições compositivas,
aproximando-se de dispositivos como as derivas, os programas performativos e
outras invenções.
Essas proposições/ações (emprestando o nome que Eleonora Fabião (2013)
ao seu fazer na rua) também friccionam o campo da dança com o da
performance, com mais ou menos intensidade. Marina Guzzo (2020) expõe que as
ações de dança feitas na cidade nem sempre aparecem com o formato
tradicionalmente reconhecível como “dança” (Guzzo, 2020), pois um hibridismo e
aproximações com outras linguagens cênicas podem acontecer, a exemplo da
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performance.
Emprestei de Fabião (2013) o procedimento de nomear seus programas e
ações performativos
9
para denominar os dispositivos de criação que realizamos
nas ruas nesse processo. Esses nomes foram dados por mim como maneira de
identificá-los e auxiliar em sua leitura. Neste artigo não discorreremos sobre todas
as ações; elegemos algumas que exemplificam os princípios desse agir. Foram dez
ações realizadas
10
:
Derivas
;
Cartas de Saudades e Danças Instantâneas
;
Ouvindo
os Fones de Ouvido das Pessoas no Metrô
;
Tocando e Ouvindo a Cidade; Danças
na Faixa de Pedestre
;
Ser Carregada
;
Ouvir Conto de Calvino Dançado
;
Pequena
Dança no Ponto de Ônibus
;
Estar Fora do Lugar
;
Esperar Duas Cadeiras e Um
Tapete
.
Um dos importantes e primeiros dispositivos desse processo foram as
derivas na cidade. A deriva é vivida aqui como modo de praticar a cidade.
Experienciar a cidade e encontrar a diversidade de habitá-la que se expressa no
cotidiano. Deambular nesse movimento de “escuta”, de perder o automatismo, o
“controle”, para encontrar “outras” cidades, deixando-se ser atravessado(a) por
situações que a pressa urbana nos impede de perceber e sentir, de encontrar
visibilidades e invisibilidades, presenças e ausências, barulhos e silêncios.
Considerar a deriva enquanto prática da improvisação em dança é disponibilizar-
se corporalmente para perambular na cidade seguindo o fluxo das nossas
atenções, abrindo nossos sentidos e percepções aos atravessamentos do espaço,
as boas e más afecções.
O procedimento da deriva reverberou nas demais ações propostas. Nas
Cartas de Saudades e Danças Instantâneas
, por exemplo, as derivas pensando em
alguém de que se sentia saudades criaram paralelismo entre as memórias com a
pessoa querida e o aqui-agora na cidade, e esse procedimento, a experiência do
9
Sobre programa performativo, procedimento composicional, Eleonora explica que usa o termo
“programa” inspirada nos conceitos de Deleuze e Guattari e na ideia do programa como “motor
de experiência”, cuja prática cria corpos e relações entre corpos. Para a artista e pesquisadora, o
programa é o enunciado da performance, “um conjunto de ações previamente estipuladas,
claramente articuladas e conceitualmente polidas a ser realizadas pelo artista, pelo público ou
por ambos sem ensaio prévio” (Fabião, 2013, p.4). Fabião nomeia cada um dos programas e seus
respectivos enunciados.
10
Ver vídeo com trechos das ações na rua (Clara…, 2021), disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=iWbT6tnig-U. Acesso em: 04 out. 2021.
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deambular e as narrativas das cartas, desdobrou-se em danças improvisadas na
cidade, as
Danças Instantâneas
.
Não de maneira direta, mas as reverberações das deambulações nos
provocaram a criar situações performativas, intensificando poéticas. Por exemplo,
a ação
Ser Carregada
, concebida por mim, realizada no Viaduto Santa Ifigênia (no
centro da cidade), foi inspirada em um fragmento da minha Carta de Saudades,
na qual cito que, para meu irmão Gabriel, a cidade era composta de muitas
cadeiras. Meu irmão tinha paralisia cerebral e não andava, assim, para ele, a cidade
era feita de muitas cadeiras, mas também dos braços que o amparavam e o
carregavam para os lugares da casa e da cidade. A proposição dessa ação também
foi permeada pelas investigações dos treinamentos de Contato Improvisação,
vividos durante o processo, nas quais pesquisávamos como os ajustes do tônus e
tensão muscular acontecem no jogo de carregar e ser carregada(o). A partir desses
disparadores, propus uma ação situacional que consistia em duas pessoas que
amparavam e carregavam uma outra com o corpo entregue, que, aos poucos, ia
ganhando tônus e autonomia de movimento (Figura 1).
Figura 1 - Frame de vídeo do processo de criação de Espaços Invisíveis, 2013.
Na imagem: Carolina Callegaro, Clara Gouvêa e Laila Padovan
Fonte: Acervo do grupo.
Outro exemplo, Esperar
Duas Cadeiras
e Um Tapete
, proposição de Laila
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Clara Gouvêa do Prado
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-33, dez. 2022
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Padovan, consistia em construir um espaço delimitado na rua, com a utilização de
um tapete e duas cadeiras, dispostas frente a frente; a ação performativa consistia
na atitude de espera da artista Laila, sentada em uma das cadeiras a aguardar um
acontecimento, uma dança, uma conversa, uma pausa. Quando, às vezes, alguém
se sentava, um diálogo era estabelecido, dança e fala, entre ela e o passante
desconhecido.
Esses exemplos pontuam qualidades de ação que estavam presentes nos
demais dispositivos para criar situações que trouxessem invisibilidades do espaço,
como acontece em
Ser Carregada
, com estados corporais sensíveis e imaginários
diferentes, a entrega e a suspensão do suporte do chão, o contato corporal, o
estado de “estar entregue” a condução e cuidado dos outros, a vulnerabilidade, o
silêncio em meio à agitação urbana. E também proposições de convívio e partilha,
como em Esperar
Duas Cadeiras e Um Tapete
, deflagrando a falta de espaços
de encontro na cidade, de tempo para estar junto, de ralentamentos necessários
para outros estados de abertura para o mundo e os outros, na produção de outros
imaginários, como acontece nos contos de Calvino. Ademais, os princípios da
dança do Contato Improvisação se desdobraram em suas proposições de escuta
sensível, encontro com o(a) outro(a), jogo com a gravidade, relação com os “chãos”,
quedas e suspensões, toque pele com pele, intimidade, espaços de “contato”;
como nos diz Lepecki (2020, p.15), em um contato que acontece entre os corpos
e por causa do espaço entre os corpos, e que através da amplificação sensorial
pode ser percebido como nunca neutro ou vazio, mas preenchido com o
compartilhamento de um corpo sutil e cuidadoso do engajamento coletivo,
apostando na criação de um outro modo de ser, de sentir e de cuidar para sentir.
A criação do espetáculo
Na segunda fase da criação, agora dirigida à feitura da encenação em um
espaço cênico alternativo, as experimentações, os dispositivos e os repertórios
criados na rua tornaram-se material cênico. O grupo procurou tecer estratégias
para trazer as qualidades das danças feitas na rua para essa nova encenação,
buscando, mais que reproduzir experiências, encontrar/revelar as poéticas
Da rua à encenação: encontros entre dança e cidade
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gestadas nesses encontros.
Assim, depois das ações na rua, em 2013, o espaço cênico ocupado foi no
Paço das Artes, na USP (Cidade Universitária), um vão livre em área do subsolo
abaixo do prédio que abrigava a sede do lugar. Por se tratar de um espaço amplo,
foi possível ocupá-lo de diferentes formas, o que no princípio se mostrou inóspito,
por ser quase inabitado, mas que, depois, quando a dança ocupou cada canto, foi
revelando suas potências.
O vão abaixo do Paço das Artes tinha chão de cimento concreto, duro e frio,
gramado, chão de terra batida, árvores e arbustos ao redor, vãos com passagem
de corrente de ar, o frio das noites, uma rampa, um lugar mais alto, desníveis no
chão, um cubo branco no meio do espaço, paredes descascadas que revelavam a
passagem do tempo, vestígios de um desenho inacabado na parede; enfim,
diferentes topografias e paisagens do lugar, que atravessaram a criação das
danças. Em
Espaços Invisíveis
, a encenação ocupava todo o espaço do vão abaixo
do Paço. As trajetórias e os trânsitos no espetáculo se desenharam a partir dessa
ocupação, com percursos livres na primeira parte e mais definidos no final.
A escolha desse local ocorreu porque sua amplitude e características
possibilitavam ocupá-lo de diferentes formas. Um não-lugar (Augé, 1994), um lugar
entre, que permitia habitá-lo de maneira a criar outras paisagens. Exemplos dessa
ocupação, no espetáculo: Carolina dançava nas escadarias de acesso para a caixa
d’água, enquanto Laila dançava no gramado com um irrigador de jardim (Figura 2);
em outro momento, eu dançava um solo em um canto de terra batida, Ciro Godoy
dançava entre entulhos (Figura 3) e Larissa Salgado, entre as árvores ao redor do
edifício. É difícil descrever as tantas paisagens criadas a partir do encontro desse
lugar com as poéticas da dança.
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Figura 2 e 3 - Espetáculo
Espaços Invisíveis
, Paço das Artes, em São Paulo, 2013.
Foto: Clarissa Lambert. Na foto: Laila Padovan e Ciro Godoy. Acervo do grupo.
Depois da experiência “tridimensional” da rua não interessava estar em
espaço dividido na frontalidade palco-plateia, palco italiano, mas sim ter um(a)
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espectador(a) emancipado(a), como diria Rancière (2014), movedor, que
compusesse com sua fruição e seu olhar sobre a obra. Assim, a amplitude do lugar
também permitiu que dessa vez os espectadores pudessem percorrer a
encenação, característica que descreverei mais adiante.
O grupo estava refletindo sobre sua criação em dança e os espaços da cidade,
no sentido do que o espaço da rua propõe de movimento e relação, se comparado
à dança realizada dentro do espaço protegido da sala de ensaio ou do espaço
teatral.
A profusão de movimentos e ritmos que pode habitar o espaço urbano nos
fez perguntar se era preciso o espaço teatral para propor olhares mais detalhistas
para determinadas situações, trazer mais delicadezas e silêncios, tanto para nós
como para o público. Indaga Carolina:
Vamos trazer a experiência de como a gente cria danças na rua, de como
a gente é visto, de como a gente vê essas danças na rua para um espaço
onde a gente consiga elaborar isso com mais “refinamento”. Iniciado em
Lugar do Outro
[espetáculo da CDTB de 2010-2011], mas, naquele
momento, nosso desejo de elaborar mais minuciosamente certas coisas
fazia com que a gente entendesse que precisava do espaço protegido
para fazer isso. Porque na rua a gente não estava conseguindo. Porque
acho que tem mesmo uma dificuldade, não dificuldade no sentido
negativo, mas de uma demanda mesmo de trabalho de investigação que
é estar na rua, e que por conta de muitas características dela, de início
vai gerando respostas que você precisa de tempo para investigar, para
chegar em outros lugares (informação verbal
11
).
Essa dificuldade perpassava a demanda corporal e energética necessária ao
dançar no espaço urbano, desde o impacto que a dureza do chão causava nas
nossas articulações até os encontros, às vezes reativos, às vezes oriundos da
violência silenciosa e explícita da metrópole. Não podemos deixar de considerar a
violência presente nos espaços, fruto das tensões sociais, assim como dos regimes
de controle e poder.
Vale acrescentar que a atuação nos espaços urbanos provoca instabilidades
e novos arranjos composicionais. O cotidiano também se compõe
11
Entrevista concedida por Carolina Callegaro à pesquisadora em 30 jul. 2020 via videochamada na plataforma
digital
Zoom
.
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19
improvisadamente, lugar de múltiplos atravessamentos, de encontros ora
agressivos, ora empáticos. Para dançar na rua é necessária uma preparação
cuidadosa de nosso estado corporal e energético, para não estarmos fechados e
mantermos a conexão composicional entre nós, o espaço e seus habitantes, ao
mesmo tempo para conseguirmos lidar com os atravessamentos e
enfrentamentos, e não sermos “soterrados” pela agitação e excessos do urbano.
Nesse movimento de expansão e recolhimento, de fora para dentro,
acreditamos que ter os limites do espaço cênico auxiliou a criação das camadas
de complexidade da encenação, sua dramaturgia, e, principalmente, a investigação
da relação com o espectador.
Ademais, todos os dispositivos criados na primeira fase da pesquisa de
alguma forma reverberaram na encenação. Antes da estreia do espetáculo,
tivemos uma fase final de criação de dois meses no espaço do Paço das Artes,
período importante para experimentações. Um dos primeiros experimentos foi
uma improvisação na qual íamos trazendo livremente os materiais das
proposições dos espaços da cidade, experimentando novas alquimias a partir do
encontro com aquele espaço e juntos(as). Foi então que o material das
Cartas de
Saudades e Danças Instantâneas
se destacou, trazendo qualidades de presença e
corpo para nossas danças, principalmente da primeira parte da encenação, com
exceção de Laila, que trouxe para esse momento da obra a experiência da ação
Esperar – Duas Cadeiras e Um Tapete
.
O espetáculo
12
começava com uma banda musical formada por nós.
Pequenos barulhos faziam alusão aos ruídos da cidade, vindos de uma instalação
sonora (uma mesa de objetos frigideira, taças, potes de cerâmica, etc. que
parecia uma minicidade) criada por Gregory Slivar e tocada por Carolina Callegaro
e Larissa Salgado (ver Figura 4). Eu, Clara, tocava violino; Laila Padovan, acordeão,
12
Concepção: Cia Damas em Trânsito e os Bucaneiros; Direção: Alex Ratton Sanchez; Intérpretes-criadores:
Carolina Callegaro, Ciro Godoy, Clara Gouvêa, Laila Padovan e Larissa Salgado; Direção Musical: Gregory
Slivar; Trilha Sonora: Gregory Slivar e Cia Damas em Trânsito e os Bucaneiros; Preparação Corporal: Cristiano
Karnas (Contato Improvisação), Letícia Sekito (BMC) e Silvia Leblon (Palhaço); Produção: Paula Sassi e Zeca
Duarte; Figurino: Fause Haten; Designer gráfico: Fernando Sciarra; Design e operação de luz: Cristina Souto;
Cenário: Cia Damas em Trânsito e os Bucaneiros; deos das intervenções: Cia Damas em Trânsito e os
Bucaneiros; Edição de vídeo: Vinícius Paulino; Contrarregras: Evandro Gonçalves e Iratã Lisboa; Grafite e tela:
Luciano Lucko. O projeto desse espetáculo foi contemplado com o Fomento à Dança para a Cidade de São
Paulo.
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Ciro Godoy, baixo elétrico, e Gregory tocava bateria. Uma tela fachadeira como
aquelas usadas na construção civil encobria o espaço do vão do Paço das Artes
desenhado nela um grafite da cidade, feito pelo grafiteiro Luciano Lucko. O público
chegava ao espaço e ficava entre nós, criando um lugar mais fechado e protegido,
permitindo que a plateia estivesse mais concentrada e próxima à cena.
Figura 4 - Espetáculo Espaços Invisíveis, Paço das Artes, em São Paulo, 2013.
Foto: Fernando Sciarra. Na foto: Carolina Callegaro e Larissa Salgado
Acervo do grupo
Em um segundo momento, o espaço do vão era revelado, e cada solo
instaurava um estar naquele lugar. Laila sentada em frente a outra cadeira
delimitava um nicho com um tapete; Carolina, com seus passos ritmados,
percorria o espaço indiretamente e às vezes interagia com a plateia; Ciro transitava
com um skate e depois se localizava em um monte de entulho em um dos cantos;
Larissa, como em um devaneio entre plantas, no limite do espaço perto do muro,
fazia movimentos ondulados com a coluna e com o corpo todo; eu corria pelo
espaço, fazia algumas contenções e explosões engajando o corpo, subia em um
lugar mais elevado e me lançava à queda.
Esse solo de dança desenvolvi a partir da Carta de Saudades de Ciro, suas
memórias no centro de São Paulo e o movimento punk, e também das
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experiências vivenciadas nas manifestações de junho de 2013. A partir desses
materiais desenvolvi repertórios de movimentação que continham corridas,
movimentos diretos, punhos fechados, explosões e contenções, a repetida ação
de subir em um lugar mais alto (um cubo branco no meio do espaço cênico), abrir
os braços e entrar em queda, em alusão ao
mosh
das rodas
punks
.
Esse processo de estar-agir na cidade e gerar material poético também nos
convocou a lidar com questões e conflitos que estavam latentes no contexto
socioeconômico e político de 2013. Um exemplo é a percepção de como os
movimentos das manifestações de junho daquele ano
13
geraram as qualidades de
explosão e profusões que se tornaram material poético do espetáculo, ou então a
relação com as questões de mobilidade urbana que atravessaram as escolhas da
encenação (referentes a como os espectadores transitam na obra), ou mesmo os
estados de solidão na multidão das metrópoles tornando-se assunto dessas
figuras separadas no começo do espetáculo, quando se destacavam e se
misturavam no todo do público presente.
Concomitantemente aos solos da primeira parte, Lucko desenhava um grafite
em uma das paredes o desenho foi criado ao longo da temporada e finalizado
no último dia. Também era exibida e projetada uma edição dos registros em vídeo
das ações nas ruas do processo de criação. Fones de ouvido foram espalhados
pelo espaço e por meio deles o público podia ouvir os relatos das cartas das
derivas pela cidade, além de trechos do livro de Calvino, recitados por cada um(a)
de nós. Esses eventos simultâneos se sobrepunham, justapunham, compondo
uma rede de coexistências, concomitâncias, dramaturgias que eram tecidas por
nós e os(as) espectadores(as). O grafite de Lucko (Figura 5) era uma obra nascida
dentro de outra obra e vice-versa.
13
Essas manifestações foram nomeadas como “Jornadas de Junho” de 2013, manifestações populares que
aconteceram em todo o Brasil, principalmente nas capitais, inicialmente para contestar o aumento das
tarifas de transporte público. Momento delicado da nossa história como nação que, posteriormente,
culminou em um processo de retrocesso das políticas de direitos sociais e na escalada de uma agenda
política e econômica conservadora nos costumes e na moral, e ultraliberal na economia (Chaui, 2013).
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Figura 5 - Espetáculo
Espaços Invisíveis
, Paço das Artes, em São Paulo, 2013.
Fotografia de Fernando Sciarra. Grafite de Luciano Lucko. Acervo do grupo.
Na estrutura da encenação de
Espaços Invisíveis
(2013), igualmente à fase
inicial da pesquisa na rua, estavam presentes as perspectivas subjetivas que
reverberaram das ações performativas individuais de cada criador, havia figuras
solitárias e certos momentos de relação, em duetos, trios e grupos.
Poderíamos fazer uma associação com as figuras de
Café Müller
de Pina
Bausch: mais que personagens, são personas/figuras que imprimem
gestualidades, ritmos, intensidades e deslocamentos no espaço. Assim cada
criadora/criador desenvolveu sua figura alimentada pelos materiais que
levantamos através das ações cênicas, que fizeram com que lidássemos com
diferentes camadas de memórias no corpo, com as lembranças de nossas derivas,
as memórias contidas nas cartas, as memórias presentes nos espaços da cidade,
nossas danças instantâneas e demais ações.
Durante os primeiros vinte minutos do espetáculo, essas figuras transitavam
pelo espaço, algumas mais locadas, os(as) espectadores(as) compunham a
“coreografia” do espaço, em um primeiro momento, livres para passear e ver o que
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lhes chamasse atenção, trazendo o fluxo das idas e vindas da cidade para a obra.
O público “transeunte” podia circular, caminhando, andando de bicicleta
14
ou
sendo “levado” em duas pranchas móveis com cadeiras. Esses diferentes trânsitos
promoviam qualidades de olhar que faziam alusão aos encontros que vivenciamos
no cotidiano da cidade nas ações, e, assim, instaurava-se o lugar como
cruzamento de forças motrizes. Como Augé afirma, “são os passantes que
transformam em espaço a rua geometricamente definida pelo urbanismo como
lugar” (Augé, 1994, p.75).
Em um terceiro momento, duas cenas aconteciam simultaneamente: um trio
(eu, Ciro e Larissa) inspirado na ação
Ser Carregada
, em um jogo de suportes e
carregamentos; e um dueto de Laila e Carolina, inspirado na ação
Estar Fora do
Lugar
, no qual, vestidas com roupas que as deixavam “desconfortáveis”, uma de
maiô e a outra de calça justa e salto, transitavam entre proximidades e repulsas,
serem vistas sem querer ser vistas, um lugar cômico desconfortável (Figura 6).
Usamos a palavra “inspirado”, porque não tínhamos a intenção de reproduzir as
ações da rua dentro da encenação, pois isso não seria possível. Assim, elas foram
material poético para novas criações.
Figura 6 - Espetáculo
Espaços Invisíveis
, Paço das Artes, em São Paulo, 2013. Foto: Daniel Carvalho.
Na foto: Carolina Callegaro, Laila Padovan e Gregory Slivar. Acervo do Grupo.
14
Disponibilizávamos bicicletas e algumas pessoas traziam as suas.
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24
Em um quarto momento do trabalho, o solo de Laila acontecia no jardim com
um irrigador. Ela trazia o repertório da sua
Dança Instantânea
realizada no Vale do
Anhangabaú durante uma chuva torrencial. Concomitantemente aconteciam
outros três solos. O de Carolina, na escadaria do jardim, no qual ela brincava de se
pendurar, e até tirava os pés do chão o jogo de qualidade de movimento que
desenvolvia partiu da experiência de sua
Dança Instantânea
no Largo do São Bento,
uma dança de passos ritmados nas pontas dos pés, hesitações e o jogo de apoio
com as coisas e as pessoas passantes; já Larissa fazia uma cena em cima de um
tanque de lavar roupa; e, em outro canto ocupado de chão de terra, anunciada
pelo barulho de uma explosão, eu desenvolvia meu solo acompanhada pelo grupo
tocando tambores, percutindo o espaço e entoando gritos e chamamentos (esse
momento dava mais visibilidade a minha figura do que na primeira parte do
espetáculo). Em seguida, uma banda de acordeões e escaletas acompanhava a
trajetória da figura de Carolina, que conduzia o público ao espaço da cena final.
No início, a plateia era convidada a passear pelo espaço cênico e, pouco a
pouco, conduzíamos os olhares para uma cena única. A estrutura da encenação
delimitava como lidávamos com a improvisação em cada momento do trabalho.
Eram improvisações com roteiro e tínhamos um compêndio de qualidades de
gestualidades e movimentos de que poderíamos lançar mão em cada situação,
cena, no jogo com o espaço e na relação com a plateia.
A trilha musical era em sua totalidade executada ao vivo, tocada por Gregory
Slivar (pianista e diretor musical), e, no entanto, era alternada com momentos de
arranjos coletivos nos quais todos nós tocávamos: a banda inicial (no começo do
espetáculo), momentos de percussão e tambores, de acordeões e escaletas, de
sonoplastias, além da música final. Slivar desenvolveu conosco uma trilha na qual
o universo ruidoso urbano permeava a paisagem sonora, ora como ruído, ora como
sonoplastia, trazendo a sensorialidade da escuta sonora como mais uma camada
de fruição. Sua figura, trajando saia de vestido de noiva e casaca de maestro,
percorria algumas vezes o espaço, em um giro repetido (alusão ao giro sufi) e
tocando um derbake (Figura 7). O músico não executava a trilha sonora, mas
era também uma figura cênica importante na encenação e dramaturgia, por
potencializar como a musicalidade fazia parte da obra integralmente e por ser uma
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figura dentre as figuras que coexistiam na cena.
A ideia de dramaturgia na dança não diz respeito a uma perspectiva textual,
mas de uma dramaturgia que nasce do corpo, dos estados e relações, das
corporeidades dançantes que constituem a cena, além da dramaturgia do
espetáculo que é delineada na encenação. Dessa maneira, são camadas
dramatúrgicas que se entrelaçam, corpo, jogo cênico, relação com o espaço cênico
e os espectadores, assim como os outros elementos que compõem a encenação.
Como expõe Michèle Febvre:
Toda a dança contemporânea escapa à continuidade dramatúrgica e
propõe-se como uma sucessão ou uma justaposição de sequências entre
as quais se estabelecem ligações fluidas que não têm a ver com uma
organicidade narrativa (Febvre apud Louppe, 2012, p.274).
Figura 7- Espetáculo Espaços Invisíveis (2015), na Vila Maria Zélia, em São Paulo.
Foto: Clarissa Lambert. Na foto, Gregory Slivar. Arquivo do grupo
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26
Figuras 8 e 9 - Espetáculo
Espaços Invisíveis
(2013), no Paço das Artes USP, em São
Paulo. Foto: Daniel Carvalho. Nas fotos: Carolina Callegaro, Clara Gouvêa, Gregory Slivar, Larissa
Salgado, Ciro Godoy e Laila Padovan. Arquivo do grupo.
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27
Figura 10 - Espetáculo Espaços Invisíveis (2013), no Paço das Artes USP, em São Paulo.
Foto: Daniel Carvalho. Na foto: Carolina Callegaro, Clara Gouvêa, Gregory Slivar, Ciro Godoy e Laila
Padovan. Arquivo do grupo.
Os fones de ouvido, disponibilizados ao público na primeira parte, continham
neles narrativas contadas (trechos das cartas de saudades, contos de Calvino,
relatos das ações na rua). Essa relação das narrativas e sonoridades no fone de
ouvido criava camadas íntimas dramatúrgicas: somente aquele que escuta o fone
faz a sobreposição de elementos, em silêncio e em segredo, “invisível”.
Essa relação com a voz e as narrativas também ocorria na cena final do
espetáculo. Entre o público aconteciam danças de proximidade, sonoridades e
sonoplastias e trechos de narrativas contadas ao “pé do ouvido” (Figura 8),
camadas que se sobrepunham. Danças entre as cadeiras (Figuras 9 e 10), uma
correria, espaços entres que culminavam em pressões entre nós e um
carregamento. As gestualidades das figuras do início voltavam nesse final, agora
transformadas pelos encontros e trajetórias; a proximidade permitia delicadezas,
silêncios, simples composições e pausas.
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Aos poucos, durante o espetáculo, conduzíamos o público para
agrupamentos, que acompanhavam de perto e/ou de dentro o desenrolar das
cenas. Na cena final, como dito, o público era disposto em cadeiras espalhadas
em uma região concentrada do espaço cênico, viradas para diferentes direções e
formando pequenos corredores e bolsões onde a dança acontecia, nesse entre
espaços, bem próxima das pessoas sentadas. No fim do espetáculo, aos poucos,
os fluxos de dança e música iam cessando, e, um a um, cada um de nós sentava
nas cadeiras, devagar íamos nos unindo à “multidão”, fazendo parte daquele todo,
a última nota do piano era tocada, a luz baixava lentamente, e se instaurava um
silêncio, um silêncio que perdurava.
Essas sobreposições caracterizam a encenação e a localiza em um
movimento das artes cênicas contemporâneas, no qual a fragmentação e a
justaposição são recursos de composição que não procuram se organizar em uma
ordem representativa única. Ao mesmo tempo, segundo Sanches (2020), fazendo
referência à obra de Pina Bausch, tal fragmentação e justaposição podem ser lidas
em relação a um regime estético, seguindo o conceito de Rancière:
Assim, a fragmentação, no regime estético, implica uma concepção da
arte segundo a qual cada fragmento é significativo não porque é uma
parte de um todo que tem neste todo um papel pré-determinado, com
um sentido unívoco e único, mas porque é habitado em si pelas
“palavras das coisas mudas”, isto é, por uma significação própria e
multifacetada, cujos nexos com as significações de outros fragmentos
dependem de cada espectador (Sanches, 2020, p.86).
No caso de
Espaços Invisíveis
, essas justaposições no modo de composição
vão ao encontro da própria natureza do espaço urbano, espaço de coexistências,
no qual o espectador movente, durante o espetáculo, tem a ação de escolha sobre
o que assistir e de que maneira. Porém, havia um percurso de encenação definido:
a sequência de cenas partia de um movimento de concomitâncias (solos, duetos,
trios e grupos) e se encaminhava para os momentos de coletividade.
A encenação foi constituída procurando expandir a condução do olhar do
espectador, propor um espaço “maior” de escolhas; as primeiras cenas
aconteciam simultaneamente e os espectadores podiam caminhar pelo espaço,
serem conduzidos em pranchas com rodas, ou estar de bicicleta e eleger o que
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gostaria de olhar e quanto tempo ficaria olhando. O público estava implicado a
escolher, selecionar e renunciar ao que assistir, como uma proposição de maior
autonomia e engajamento. “Tudo isto para trazer para a cena a qualidade do nosso
olhar na cidade e, desta forma, propor ao espectador aguçar seu olhar poético e
fazê-lo mais ativo na construção da própria obra” (Cia Damas em Trânsito e os
Bucaneiros, 2013, p.5)
15
.
Não era tarefa fácil manter o estado improvisacional coletivo em uma
estrutura na qual o espectador podia transitar pela obra livremente, ao mesmo
tempo, um desafio interessante. O(A) espectador(a) era convidado(a) a constituir
suas redes dramatúrgicas, ao deambular dentro da obra, e por ela ser
interpelado(a), em momentos de proximidade e distância.
Laila, no trecho abaixo, nomeia o espectador como movedor engajado de
corpo inteiro na experiência. O corpo dos
performers
e do espectador estão na
obra com os sentidos sendo convocados, agindo no espaço, habitando-o:
Em
Espaços Invisíveis
queríamos manter este espectador móvel, em
movimento. Desta possibilidade de escolha do espectador, possibilidades
desta mobilidade. Caminhar, estar na prancha, ser empurrado e ficar
deslizando, e andar de bicicleta (informação verbal
16
).
Em nossa pesquisa cênica, nos dedicamos a investigar a relação com o
espectador como um aspecto importante do nosso modo de compor, nosso
agir
composicional
. Na perspectiva de Rancière (2014) sobre o espectador
emancipado, no encontro do ato teatral uma ação ativa na constituição da obra
cênica, pois, ao olhar, o espectador age em direção à obra, observa, seleciona,
compara e interpreta. Rancière aponta que as atuais encenações transitam em
dois polos em relação ao espectador, um em que este é observador e analista
distanciado do espetáculo, e outro para o qual é convocado a estar de corpo inteiro
na relação com a obra, “de posse de suas energias vitais integrais” (Rancière, 2014,
p.10).
15
Trecho do Relatório da Terceira Fase entregue para o Programa de Fomento à Dança 2013 (arquivo do grupo,
material não publicado).
16
Entrevista concedida por Laila Padovan à pesquisadora em 24 jul. 2020 via videochamada na plataforma
digital
Zoom.
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30
Conclusões finais
Em Espaços Invisíveis, acredito que o convite ao deslocamento na encenação
seja uma forma de intensificar essa atividade do espectador, explicitando que é o
encontro que constitui a obra, “são ao mesmo tempo espectadores distantes e
intérpretes ativos do espetáculo que lhes é proposto” (Rancière, 2014, p.17). E,
assim, o autor resume:
está um ponto essencial: os espectadores veem, sentem e
compreendem alguma coisa à medida que compõem o seu próprio
poema, como fazem, à sua maneira, atores ou dramaturgos, diretores,
dançarinos ou performers” (Rancière, 2014, p.18).
No espetáculo é essa relação de movimento entre espectadores e artistas
que também potencializa as discussões sobre os espaços da cidade na
dramaturgia. Ademais, mesmo em uma obra para espaço cênico alternativo, as
corporeidades dançantes da CDTB impregnadas pela prática da improvisação em
dança nos espaços urbanos estão presentes. Identifico que nossas escolhas como
improvisadores se caracterizam na relação com o espaço e o tempo e também se
“especializa[m], revelando o plano de um campo perceptivo, e que se
transforma[m] pela mudança das escolhas direcionais” (Louppe, 2012, p.194).
Nesse processo, as investigações em torno da improvisação em dança e
música expandiram para novas invenções, novos procedimentos e dispositivos que
dessem conta das poéticas emergentes que nasceram da atuação do grupo nos
espaços urbanos.
Esse encontro gerou a ocupação da dança em diferentes lugares, a busca por
regimes sensíveis diversos, o trânsito entre música e dança, os processos coletivos
e colaborativos, as pronúncias do coletivo e suas singularidades, corpos-sujeitos,
em partilhas de autoria e criações em rede, investindo na relação com o
espectador tanto na rua quanto em espetáculos em espaços cênicos alternativos
como perspectivas dramatúrgicas e de encenação.
O percurso igualmente diz do
agir composicional
do grupo que se adensa e
se complexifica em cada nova oportunidade de pesquisa, confluindo em um modo
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próprio de realizar-se como poética da dança. Dessa maneira, acreditamos que,
ao colocar em relação a noção (escuta) de corpo e espaço que atravessa a prática
da dança na atuação da
Cia Damas em Trânsito e os Bucaneiros
, considerando
seu modo de conceber a dança no espaço urbano e suas encenações para espaços
cênicos não convencionais, podemos revelar saberes pronunciados desses
corpos-sujeitos. Nas poéticas emergentes das obras, nas quais a improvisação é
modo de
agir composicional
, estão entrelaçadas questões sobre corpo-espaço-
memória, ocupações e apropriações, relações eu-outro, subjetividades e coletivos,
e artista-espectador.
Percebemos nesta “deriva” como a cidade, a metrópole paulistana, ganhou
um lugar importante na constituição da poética do grupo; esta, que nos engole e
nos alimenta, nos isola e nos faz coletivo, tornou-se matéria para as inspirações
criativas; simbólica, imaginária e vivida, a cidade disse muito sobre o que somos e
o que não somos, como nos constituímos.
Nesse lugar de coexistências, as danças no espaço urbano podem ser
exercícios de perspectivas e visibilidades; como pronúncias no/do mundo (Vilela,
2010), friccionam seus discursos-dança com as pronúncias da cidade, corpos-
sujeitos que se pronunciam e encontram os discursos-corpos nos espaços da rua.
Consideramos que a presença do corpo dançante pode instabilizar os regimes
cinéticos da cidade, instaurando outros ritmos, imprimindo contrapontos e
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Recebido em: 29/08/2022
Aprovado em: 14/10/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br