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Invenções do espaço-tempo: imaginários,
narrativas e cabarés do sul do mundo
Patrícia Fagundes
Para citar este artigo:
FAGUNDES, Patrícia. Invenções do espaço-tempo:
imaginários, narrativas e cabarés do sul do mundo.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 3, n. 45, dez. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573103452022e0205
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Patrícia Fagundes
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-25, dez. 2022
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Invenções do espaço-tempo: imaginários, narrativas e cabarés do
sul do mundo
1
Patrícia Fagundes
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Resumo
O artigo aborda relações entre espaço cênico e espaço social através da
reflexão sobre duas experiências artísticas, em diálogo com conceitos de
diferentes autores(as), de diferentes áreas do conhecimento. As experiências
aqui enfocadas compreendem, além da montagem de
Cidade Proibida
, da Cia
Rústica de Porto Alegre, um campo mais difuso de experiências e fazeres,
que identificamos como “cabarés do sul mundo”. A intenção deste trabalho
é reconhecer e destacar saberes e práticas de pequenas produções no
contexto das Artes Cênicas do sul do mundo, que com frequência se
estruturam em construções compartilhadas, as quais subvertem a
precariedade imposta pelo neoliberalismo vigente e inventam outros
espaços-tempos em suas frestas. São os fazeres coletivos, corpóreos e
festivos, que colapsam binarismos e podem inspirar imaginários e narrativas
que anunciem futuros renovados.
Palavras-chave
: Espaço-tempo. Cabaré. Artes cênicas. Imaginários. Sul do
mundo.
1
Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Adriana Emerim Borges Licenciada em Letras com
Habilitação em Português e Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS). Mestrado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande de Sul (PUC/RS).
2
Doutora em Ciências del Espectáculo pela Universidade Carlos III de Madri (2010). Mestre em Direção Teatral
pela Middlessex University (Londres, 2003). Graduada em Artes Cênicas - Habilitação em Direção Teatral-
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1995). Docente no Programa de Pós-graduação em Artes
Cênicas e no Departamento de Arte Dramática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Encenadora. patfag26@hotmail.com
http://lattes.cnpq.br/4833760995067683 https://orcid.org/0000-0002-3744-0689
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Inventions of space-time: imaginaries, narratives and cabarets
of South world
Abstract
The article addresses relationships between scenic and social space through
the reflection on two artistic experiences, in dialogue with concepts from
different authors and fields of knowledge. The focused experiences include
the staging of
Cidade Proibida
, by Cia Rústica from Porto Alegre, and a more
diffuse field of experiences and practices that we identify as " cabarets of
South world ". The intention is to recognize and highlight knowledge and
practices of small productions in the context of scenic arts from the South
of the world, which are often structured in shared constructions that subvert
the imposed precariousness and invent other spaces-time in the gaps of the
prevailing neoliberalism. Collective, corporeal and festive performances that
collapse binarism’s and can inspire imaginaries and narratives that announce
renewed futures.
Keywords
: Space-time. Cabaret. Performing Arts. Imaginareis. South world.
Invenciones del espacio-tiempo: imaginarios, narrativas y cabarets
del Sur del mundo
Resumen
El artículo aborda las relaciones entre el espacio escénico y el espacio social
a través de la reflexión sobre dos experiencias artísticas, en diálogo con
conceptos de diferentes autores y campos del conocimiento. Las
experiencias enfocadas incluyen la puesta em escena de
Ciudad Prohibida
,
de la Cía. Rústica de Porto Alegre, y un campo más difuso de experiencias y
haceres que identificamos como "cabarets del sur del mundo". La intención
es reconocer y resaltar conocimientos y prácticas de pequeñas producciones
en el contexto de las artes escénicas del sur del mundo, que a menudo se
estructuran en construcciones compartidas que subvierten la precariedad
impuesta e inventan otros espacios-tiempo en las brechas del neoliberalismo
vigente. Acciones colectivas, corporales y festivas que colapsan binarismos y
pueden inspirar imaginarios y narrativas que anuncian futuros renovados.
Palabras clave
: Espacio-tiempo. Cabaret. Artes escénicas. Imaginario. Sur del
mundo.
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As artes cênicas são feitas de composições corpóreas que se desenvolvem
no tempo e no espaço, em relação com o contexto social de seu lugar e de sua
época, inserindo-se em uma estrutura coletiva que depende do encontro entre
pessoas para existir. E é neste contexto que múltiplas aventuras cênicas vêm
sendo desenvolvidas desde o início do século XX, levando para espaços não
convencionais experiências de relações diversas com o público, ensaios com o
tempo e composições poéticas que esgarçam limites, entre outras possibilidades.
O entendimento do espaço-tempo como matéria constituinte da cena, que na
mesma medida o constitui, nos leva além das próprias composições e arranjos
internos à cena, iluminando assim suas relações com a cidade e seu tempo.
Nesta perspectiva, este artigo aborda relações entre espaço cênico e espaço
social, nas quais estão implicadas relações entre teatro e cidade, por meio de duas
experiências artísticas, em diálogo com conceitos de diferentes campos, que
entrelaçam reflexões sobre imaginários, narrativas e invenções. Interessam
saberes e práticas das artes cênicas do sul do mundo, que com frequência se
estruturam em construções compartilhadas que acionam grande potencial
inventivo e subvertem a precariedade imposta; fazeres coletivos que podem
inspirar modelos diversos de se produzir, organizar, criar e entender a vida e a arte.
Para pensar a noção de espaço consideramos o trabalho do geógrafo social
britânico David Harvey, que destaca complexas interações entre dimensões
concretas, relacionais, concebidas e vividas do espaço-tempo. Milton Santos,
geógrafo brasileiro, elabora seu pensamento teórico nas mesma bases, ao afirmar
que espaço é sociedade (Santos, 2006, p.67), reunindo necessariamente a
materialidade e a vida que a anima (Santos, 2006. p. 38), de modo que deve ser
analisado como “um conjunto inseparável de sistemas de objetos e sistemas de
ações” (Santos, 2006, p.66). Estas noções contribuem para pensar espacialidade e
criação cênica em suas relações com o contexto social, histórico, econômico,
cultural e político que habitam. Assim, entende-se o espaço da cena tanto como
um lugar no mundo, que o integra e constitui, quanto como um lugar de
construção de mundo, que o tensiona e reinventa.
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No artigo
O espaço como palavra-chav
e (2013), Harvey indica a necessidade
de certas definições frente à amplitude de uma noção disseminada por diversas
áreas, que evoca múltiplas e complexas referências. O autor esquematiza uma
matriz que entrecruza dimensões materiais do espaço com sentidos, percepções
e construções humanas e sociais, relacionando sua visão tripartite de espaço
(absoluto-relativo-relacional) com a do sociólogo francês Henri Lefebvre (material-
concebido - vivido). O espaço absoluto, associado a Newton e a Descartes, é um
espaço fixo, concreto e limitado em si mesmo, enquanto o espaço relativo é
associado a Einstein e a geometrias não-euclidianas, e é um espaço que se
transforma a partir do ponto de vista do observador, conectando-se ao tempo.
Também o espaço relacional afirma a indissociabilidade espaço-tempo,
acrescentando o processo e o contexto como denominadores, em uma
perspectiva na qual coisas e eventos precisam ser compreendidos na relação com
tudo o que está a seu redor. Harvey insiste nas interações e “tensões dialéticas”
que as três noções mantêm entre si, evitando hierarquias ou definições únicas,
assim como na visão tripartida de Lefebvre, que assim sintetiza:
[...] o espaço material (o espaço da experiência e da percepção aberto ao
toque físico e à sensação); a representação do espaço (o espaço como
concebido e representado); e os espaços de representação (o espaço
vivido das sensações, da imaginação, das emoções e significados
incorporados no modo como vivemos o dia a dia) (Harvey, 2013, p.15).
É desta forma que o cruzamento matricial proposto por Harvey multiplica as
categorias imaginadas, ao abarcar diversas áreas da experiência humana, com
exemplos que vão desde muros e condomínios fechados (espaço absoluto -
espaço material) a concentrações de poluição (espaço relativo – espaço material)
e “desejos, frustrações, lembranças” (espaço relacional espaço vivido). O autor
ainda propõe relações entre esta matriz e noções de espacialidade da teoria
marxista, o que gera novos exemplos em suas nove categorias, como “relações
geopolíticas e estratégias revolucionárias” (espaço relativo espaço representado)
e “hegemonia capitalista” (espaço relacional – espaço vivido).
Tal mapeamento da noção de espaço-tempo promove o reconhecimento
simultâneo da materialidade e da subjetividade implicadas em suas dimensões
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políticas, sociais e relacionais. E porque o espaço-tempo é lugar de construção de
mundo, portanto de imaginários e narrativas, apresenta-se atravessado por
permanente tensão como lugar de disputa pois os mundos imaginados pelos
diversos atores sociais não são os mesmos.
Em
Espaços de Esperança
(2014), Harvey mapeia desejos e possibilidades de
outras organizações sociais, em contraponto à percepção de que “não outra
alternativa”, frase de Margareth Thatcher que ressoa como slogan em toda
narrativa neoliberal, em seu contínuo esforço de capturar o imaginário social e
colocá-lo a seu serviço. O autor destaca que, em termos de produção humana,
tudo que existe foi antes imaginado, portanto, a imaginação é uma força política
necessária para qualquer transformação, fundamental para que sejamos
arquitetos de nossos destinos.
E é este campo de luta, que inclui tanto a tensão da disputa como a
possibilidade de imaginação de outras realidades possíveis, que é abordado em
Cidade Proibida
, uma das experiências artísticas mencionadas, a qual consiste em
uma montagem que propõe a ocupação cênica de espaços urbanos, no espaço-
tempo da noite, buscando a formação de comunidades temporárias e percepções
afetivas e convivais da cidade. A segunda experiência envolve uma rede mais difusa
de criações, movimentos e articulações de espaços artísticos
independentes/dissidentes em contextos de precariedade
3
, que compõem o que
identificamos como “cabarés do sul do mundo”. Ambas estão entretecidas no
movimento da cena de inventar espaços-tempos outros nas frestas de uma época
em que o feroz projeto neoliberal corrói perspectivas de bem-comum, destrói
estruturas públicas e políticas sociais, esgota recursos do planeta, mercantiliza
todos os aspectos da existência e ataca setores que podem fomentar outros
imaginários e narrativas – arte, cultura, educação.
É importante considerar que tais experiências cênicas são movediças e
3
Consideramos “precariedade” conforme o recorte definido por Judith Butler em
Corpos e Aliança e a Política
das Ruas
(2018), como uma “situação politicamente induzida” (p.40), na qual a condição precária da vida
humana é distribuída e maximizada de forma irregular entre a população mundial, através de políticas
neoliberais em um processo “que adapta populações, com o passar do tempo, à insegurança e à
desesperança” (p.21), atribuindo responsabilidade individual à estruturas sociais inviáveis. Para Butler,
“uma condição compartilhada de precariedade que situa nossa vida política” (p.106), e a precariedade é a
rubrica que une as mulheres, os queers, as pessoas transgêneras, os pobres, aqueles com habilidades
diferenciadas, mas também as minorias raciais e religiosas” (p.65).
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temporárias como a própria cena, ao mesmo tempo em que envolvem espaços
concretos e toda a materialidade que constitui as Artes Cênicas, e embora não
resolvem problemas dados, instauram questões que perturbam a ordem das
coisas, em desvios e dissidências potenciais da constituição coletiva, corpórea e
imprevisível do fazer cênico. Deste modo, se relacionam à noção de invenção
proposta pela pesquisadora Virginia Kastrup no campo dos estudos da cognição:
são microinvenções de nós e do mundo, que abalam compreensões retilíneas da
subjetividade, questionando certezas e formas prontas, buscando “saídas, linhas
de fugas, novas formas de ação, ou seja, novas práticas, cujos efeitos devem ser
permanentemente observados, avaliados e reavaliados” (Kastrup, 2007, p.238).
Trata-se da ideia de invenção como busca sempre inacabada, como
problematização e ação, como janela e rede, movimento e transformação,
Ela é uma prática de tateio, de experimentação, e é nessa
experimentação que se o choque, mais ou menos inesperado, com a
matéria. Nos bastidores das formas visíveis ocorrem conexões com e
entre os fragmentos, sem que este trabalho vise recompor uma unidade
original, à maneira de um puzzle. O resultado é necessariamente
imprevisível. A invenção implica o tempo. Ela não se faz contra a
memória, mas com a memória, como indica a raiz comum “invenção” e
“inventario”. Ela não é corte, mas composição e recomposição incessante
(Kastrup, 2007, p. 27).
A memória conecta tempos, se lança ao futuro e alimenta a imaginação,
que para inventar é preciso imaginar. Invenção e imaginação são, então,
movimentos relacionados, que anunciam outros mundos dentro do mundo, que
afetam e podem transformar o real, de modo que imaginários e narrativas
constituem um espaço fundamental de luta política, pois abrigam possibilidades
de mudanças radicais do que chamamos realidade. Neste espaço de risco, sonho
e memórias do futuro, a cena transita e encontra chão para saltos e voos.
Assim, a partir desse campo de experiências, referências e noções, este artigo
percorre uma trajetória artística e geográfica que corresponde ao contexto de
pequenas produções do sul do mundo, em histórias que desenham seu mapa na
cidade e na cena, em espaços que correspondem aos tempos, espaços-tempos
concretos e imaginados entre asfalto e afeto, caminhos de artistas em territórios
de conflitos. Entre a cena, que se faz no tempo e no espaço, e a cidade, lugar de
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memórias, encontros e festas, e também de embates, exclusão e violência.
Em um recorte que abarca o período de 2013 até o presente, esta narrativa
sobre experiências cênicas e a cidade, sobre o fazer artístico na cidade, se
entretece com a história de um país em chamas, onde a ação de esperançar se
torna um desafio cada vez maior. E nesse país do sul do mundo, nossa história se
relaciona a uma cidade no sul do sul, fora do eixo predominante de produção
cultural no Brasil: Porto Alegre. Uma cidade onde os espaços para a criação, o
convívio e a fruição artística se tornam cada vez mais limitados; onde se fecham
teatros e onde a privatização do que é público avança de modo assustador. Neste
contexto, pensar a continuidade do fazer cênico é pensar em insistências,
estratégias de sobrevivência e planos de luta por espaços, concretos e imaginados,
porque sabemos que nosso tempo, o tempo desta história, é um tempo de disputa
por espaços, imaginários e narrativas.
Cidade Proibida
- convívio cênico festivo
Cidade Proibida
é um espetáculo-manifesto, concebido para locais urbanos
de possível convívio, os quais, à noite, se tornam proibidos pela ameaça potencial
da violência urbana comum em parques, praças e largos de muitas cidades do
Brasil. A estreia ocorreu em Novembro de 2013 no Parque da Redenção, em Porto
Alegre. Desde a estreia
4
,
Cidade Proibida
realizou apresentações em várias cidades
do estado de São Paulo, no interior do Rio Grande do Sul, em Florianópolis e em
Porto Alegre. A última apresentação foi em 2018, mas a montagem continua ativa
no repertório da Cia Rústica
5
, núcleo de criação cênica fundado em 2004 e sediado
na capital gaúcha, que desenvolve projetos diversos em espaços fechados e
4
A equipe inicial do projeto, em 2013, dirigido pela autora, foi composta por Di Nardi, Gabriela Chultz, Heinz
Limaverde, Karine Paz, Lisandro Bellotto, Marina Mendo, Mirah Laline, Mirna Spritzer, Priscilla Colombi,
Roberta Alfaya, Rodrigo Shalako, Rossendo Rodrigues, Silvero Pereira e Suzi Weber. Durante estes anos, a
equipe foi alterada de acordo com o fluxo de possibilidades das pessoas e do tempo, sendo que a montagem
foi adaptada a cada mudança. Em 2018, na circulação via Programa Petrobrás Distribuidora de Cultura, a
equipe contava com: Ander Belotto, Camila Falcão, Di Nardi, Gabriela Chultz, Heinz Limaverde, Laura Backes,
Lisandro Bellotto, Mirna Spritzer, Patricia Fagundes, Priscilla Colombi, Roberta Alfaya, Rodrigo Shalako, Suzi
Weber, Mauricio Casiraghi, André Varela, Batista Freire. Além das pessoas citadas, já integraram a equipe de
Cidade Proibida: Lucca Simas, Bruno Fernandes, Kaya Rodrigues, Francisco de los Santos, Iassanã Martins,
Juliana Kersting.
5
Ver www.ciarustica.com e www.cidadeproibidacircuito.com.
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abertos. É importante destacar que a autora é a encenadora de todas as
montagens da Cia Rústica citadas neste artigo, ou seja, este texto é ancorado na
experiência vivida, no fazer cênico da artista-pesquisadora que entretece reflexões
com a prática criativa, no desejo de um saber amoroso, corpóreo e teatreiro.
Figura 1 -
Cidade Proibida
, Porto Alegre, 2013. Foto: Adriana Marchiori
Acervo da autora
A proposta de convívio e urbanidade como temática fundamentam e se entrelaçam
em
Cidade Proibida
, que afirma o desejo de ocupar e celebrar a cidade, ressaltando sua
arquitetura sensível, sua trama relacional, sua dimensão humana, mnemônica, afetiva. Tal
desejo encontra seu espaço na própria constituição do acontecimento cênico, que
instaura aberturas para o encontro, em possíveis experiências de sociabilidade que
remetem ao que a teatróloga alemã Erika Fisher-Lichte denominou como “comunidades
temporárias”, forjadas em um ciclo de retroalimentação autopoiético e cuja efemeridade
afasta o risco da rigidez homogênea do grupo fechado, rasgando frestas no isolamento
individualista do tempo.
Uma comunidade teatral não é apenas temporária, transitória e efêmera
como qualquer performance. [...] Ademais, é uma comunidade que não
está baseada em crenças comuns e ideologias compartilhadas nem
mesmo em significados compartilhados, não depende de significados,
pois nasce através de meios performativos. Enquanto dura a
apresentação é capaz de estabelecer um vínculo entre indivíduos com os
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mais diversos
backgrounds
biográficos, sociais, ideológicos, religiosos,
que permanecem indivíduos que estabelecem suas próprias associações
e percebem diferentes significados. A performance não os força a uma
confissão comum, ao contrário, permite experiências compartilhadas
(Fischer-Lichte 2008, p.58) .
6
Figura 2 -
Cidade Proibida
, apresentação em Pelotas, 2018. Foto: Janine Tomberg
Acervo da autora
A breve comunidade composta durante o tempo de apresentação, no
espaço-tempo noturno de espaços urbanos abertos, é parte da espacialidade, da
composição visual e da relação com o público proposta na montagem: tudo está
exposto, inclusive o público, que se como parte da cena. O cenário
propriamente dito se define por uma estrutura composta por uma longa
plataforma de aproximadamente 1,50m de altura, com acesso por rampas e
escadas, além de uma pequena plataforma acessória. Nas plataformas e no
espaço aberto que a circunda, o elenco evolui, caminha, corre, dança, canta, fala,
manifesta-se, em uma narrativa fragmentada e episódica que comporta cenas
6
A theatrical community is not only a temporary community, as transitory and ephemeral as any performance.
[...] Moreover, is a community which is not based on common beliefs and shared ideologies not even shared
meanings, it can do without then. For it comes into being trough performative means. As long as the
performance lasts it is capable of establish a bond between individuals who came from the most diverse
biographical, social, ideological, religious backgrounds and remain individuals who have associations of their
own and generate quite different meanings. The performance does not force then into a common
confession; instead, it allows for shared experiences. (Tradução nossa)
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improvisadas e outras mais definidas. Muitas vezes o texto assume um tom de
ensaio sobre a cidade, como na abertura, onde duas pessoas enunciam em
microfones:
A.
Cidade Proibida
. (
diz a data do momento da apresenta
ç
ão
). Cidade é o
lugar onde sou, onde estou, é aquilo que me alimenta e se alimenta de
mim. O lugar onde as coisas se desenvolvem e as pessoas somem. Onde
somos únicos e múltiplos.
B. A cidade com idade do C, a idade do tempo, onde não se tem tempo,
sempre pouco tempo. Quem somos, de onde somos, por onde somos.
Quem é a cidade que vive, ou quem vive na cidade que é.
A. Cidade sou eu, somos nós e o corpo. Um corpo. A cidade é um corpo.
Casa-cidade-corpo-mundo. Cidades pequenas, cidades grandes, cidades
gigantes. Cidades dentro da cidade. Fluxo, diversidade, convívio. Fluxo
incessante de homens e máquinas. Espaço atravessado de linhas de
força, encontro e desencontro.
B. A cidade sou eu e o outro. Uma composição, uma rede, encruzilhadas
onde confluem e fusionam pessoas, modos de vida, esperas, esperanças,
medos, violências, surpresas, acasos e encontros.
A. O corpo-cidade flui seus humores, temperaturas, temperamentos,
relevos, densidades, geográficos acidentes de convívio.
B. A cidade é uma paisagem sobre a qual vão passando gerações e seus
gritos. [...]. às vezes vivemos momentos de delícia (
eu e ela
). A cidade
somos nós.
A. Aqui na ...(
local
)........., as (
horário
) de uma (
dia da semana
) de 20... (
ano
).
(Fagundes, 2016, p.4408 e 4409)
Enquanto este texto é enunciado na pequena plataforma acessória, dez
artistas se deslocam pela grande plataforma central, em uma marcação que
desenha encontros e colisões, compondo uma trama entre várias duplas e o
coletivo. O roteiro foi composto a partir de fragmentos escritos pela equipe e
organizados pela diretora em um processo dramatúrgico que buscou
multiplicidade de vozes, habitando um espaço relacional entre a multiplicidade da
cidade e do próprio teatro, que se espelham em sua constituição, como destacam
diversos estudos. Para a pesquisadora Evelyn Furquim Werneck Lima, “o teatro é
uma criação artística em que o fato social e o fato artístico tornam-se
coincidentes” (2008, p.12).
A artista e pesquisadora inglesa Jean Harvie, em seu estudo sobre relações
entre teatro e cidade, afirma que
Cidades são estruturas geográficas, arquitetônicas, políticas e sociais em
constante transformação, onde a maior parte das pessoas vive e trabalha
em intensa densidade demográfica, em estruturas sociais extremamente
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complexas [...]. o teatro, de modo similar, é uma estrutura material,
estética e social em constante transformação, onde muitas pessoas se
reúnem para participar através de trabalho e lazer, em atividades
sociais complexas, sendo também usualmente localizado em cidades. O
teatro é, assim, sintomático de processos urbanos, demonstrando
estruturas, dinâmicas de poder social, políticas e econômicas, e de modo
geral dinâmicas que operam na cidade. Na verdade, o teatro faz mais que
demonstrar processos urbanos, produzindo experiências urbanas e
consequentemente a própria cidade. [...] Paralelamente, parte do teatro e
da performance objetivam explicitamente intervir e transformar
processos urbanos convencionais
7
(Harvie, 2009, p.6-7).
A autora indica três recursos por meio dos quais as artes cênicas podem
produzir sentidos urbanos: texto dramático, condições materiais e a própria prática
cênica.
Cidade Proibida
propõe ações nestes três campos, ainda que seu texto não
possa ser classificado como dramático, assumindo a polifonia e fragmentação de
um modelo cabaré, variando entre ensaio, manifesto, canção, jogo; transitando
entre dança, teatro, circo,
show drag
, música. Propõe-se, aqui, uma experiência
teatral a partir da cidade, articulada com a noção de festividade investigada pela
companhia, que celebra a dimensão de convívio que é parte do próprio fenômeno
cênico, em corpo, relação, encontro, prazer no estar-junto, dissenso da rigidez.
Convívio que se faz nos interstícios do tempo regular da cidade e suas rotinas
produtivas, um espaço-tempo outro, que se infiltra no cotidiano e pode produzir
outros ritmos de sociabilidade, em que outras realidades podem ser imaginadas.
7
...cities are ever changing geographical, architectural, political and social structures where most people live
and work densely gathered in extremely complex social structures. […] Theatre, likewise, is an ever changing
material, esthetic and social structure where many people gather to participate through work and leisure,
in complex social activities, it is also usually located in cities. Theatre is therefore in same ways symptomatic
of urban process, demonstrating the structures, social power dynamics, politics and economics also at work
more broadly through the city. Theatre actually does more than demonstrate urban process, producing
urban experience and thereby producing the city itself. […] Alongside this, some theatre and performance
aims explicitly to intervene in and change conventional urban process. (Tradução nossa)
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Figura 3 -
Cidade Proibida
, Porto Alegre, 2015. Foto: Adriana Marchiori
Acervo da autora
Em uma das cenas finais, aborda-se justamente a cidade imaginada, primeiro
evocada pelo elenco, em breves frases como “a cidade que imagino tem árvores
frutíferas por todas as ruas” ou “a cidade que imagino não mata travestis”. A seguir,
atores e atrizes se misturam com o público, formando pequenos grupos nos quais
buscam provocar diálogos sobre a cidade que as pessoas imaginam, acionando
uma espécie de pensar/desejar coletivo, em uma breve fundação de imaginários
urbanos mais afetivos e próximos.
Figura 4 -
Cidade Proibida
, Florianópolis, 2018. Foto: Cristiano Prim
Acervo da autora
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O pesquisador colombiano Armando Silva propõe a noção de
imaginários
urbanos
como algo coletivamente elaborado, relacionado às percepções cidadãs
sobre a cidade e apoiado em construções simbólicas compartilhadas, e que se faz
presente na dimensão real do espaço:
O urbano, entendido a partir dos imaginários, corresponderia a um efeito
de incorporações sociais sobre tudo isso que nos afeta e nos torna
cidadãos: a ciência, os meios de comunicação, as tecnologias, além dos
sistemas viários, da arte e da literatura. O territorial, nesta configuração,
não será tanto um espaço físico quanto um lugar de relações, de
interações e intercâmbios, que produzem contextos em várias escalas,
desde as mais próximas até as mais globais (Silva, 2014, p.28 e 29).
Nesta perspectiva, os imaginários compõem e interferem nas formas de
habitar e viver a cidade, definindo outra dimensão do espaço-tempo urbano, feito
de memória, convívio e desejos; e, assim, se inscrevem em uma relação est(é)tica
entre as pessoas e a cidade. E porque a imaginação é indissociável da possibilidade
da invenção, abala a certeza das lógicas do “não alternativa”, e em si mesma
abriga o real, tanto no sentido de que tudo que fazemos precisa ser antes
imaginado, como no sentido da dimensão imaginária da experiência humana, e,
mais especificamente, da cidade. Harvey (2014) destaca sua importância na
urdidura do tecido urbano:
Ao produzirmos coletivamente nossas cidades, produzimos
coletivamente a nós mesmos. Projetos referentes ao que desejamos que
sejam nossas cidades são em consequência projetos referentes a
possibilidades humanas, a quem queremos ou, o que talvez seja mais
pertinente, a quem não queremos vir a ser. Cada um de nós, sem
exceção, tem algo a pensar, a dizer e a fazer no tocante a isso. A maneira
como nossa imaginação individual e coletiva funciona é, portanto, crucial
para definir o trabalho da urbanização. A reflexão crítica sobre nosso
imaginário envolve todavia tanto enfrentar o utopismo oculto como
ressuscitá-lo a fim de agir como arquitetos de nosso próprio destino em
vez de como “impotentes marionetes” dos mundos institucionais e
imaginativos que habitamos (Harvey 2014, p.210 -211).
Invenções do espaço-tempo: imaginários, narrativas e cabarés do sul do mundo
Patrícia Fagundes
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-25, dez. 2022
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Figura 5 -
Cidade Proibida
, Caxias do Sul, 2018. Foto: Maurício Casiraghi
Acervo da autora
Em
Cidade Proibida
, a cena busca a produção de uma experiência de
sociabilidade, a ocupação de brechas no concreto urbano com encontro e
celebração, a infiltração no espaço-tempo automático do capital que nos isola,
fomentando outros imaginários que envolvam certa rebeldia festiva e corpórea. E
nessa busca, alia-se a múltiplas propostas da arte contemporânea que saem às
ruas e propõem a tecitura urbana, a arte pública, e que tanto podem indicar
cidades desejadas como criticar as estruturas existentes.
É importante ressaltar que, no contexto das Artes Cênicas, uma obra que
envolve uma equipe de quinze pessoas, transporte de cenário, instalação de
equipamento básico de sonorização e iluminação, e é realizada em espaços
públicos, aberta ao público em geral, sem cobrança de ingressos, demanda
financiamento de alguma fonte. A invenção de
Cidade Proibida
foi viabilizada por
um edital de financiamento público, o hoje extinto Prêmio Funarte Artes Cênicas
na Rua, que contemplou o projeto com 50.000 reais para montagem e realização
das primeiras apresentações, em dois locais de Porto Alegre: o Parque da
Redenção e a Praça Júlio Mesquita, localizada nas proximidades da Orla do
Gasômetro. Conforme o orçamento, a maior parte deste valor foi destinada aos
artistas envolvidos. A estrutura cenográfica foi desenvolvida a partir da reciclagem
de cenários de trabalhos anteriores da Cia Rústica, em uma proposta que entende
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a reciclagem como prática política necessária, inclusive na criação cênica. O
figurino também partiu do acervo do elenco. Além disso, o projeto forneceu apenas
camisetas básicas coloridas. Ainda assim, o custo de aluguel de equipamento
básico de som e luz, o transporte de cenário e o pagamento da equipe acabaram
por onerar a realização. Apesar disso, e contrariando expectativas da própria
equipe,
Cidade Proibida
realizou turnês
8
, participou de festivais, e segue em
repertório.
Além do contexto um pouco mais favorável em termos de publicação de
editais e políticas públicas no início de sua trajetória, e da sorte de ter sido
selecionada (Outros projetos não o foram.), entendemos que a existência e a
continuidade de uma montagem como
Cidade Proibida
também se deve à sua
relação estrutural com a noção de cabarés do sul do mundo, que evoca modos
de fazer, produzir, inventar e continuar criando em Artes Cênicas em um contexto
de precariedade. Esta relação não é fruto do acaso ou de intervenção crítico-
teórica externa sobre uma obra artística. A relação com o cabaré é manifesta em
muitos projetos da Cia Rústica desde sua fundação, marcada pela montagem de
Sonho de Uma Noite de Verão
(2006) como uma “comédia em acordes de cabaré”;
pela realização de vários cabarés ao longo de sua trajetória (
Cabaré da Glória,
Cabaré da Rústica, Cabaré da Vagabundagem, Cabaré do Amor Partido
, entre
outros, montados entre 2012 e 2020). Igualmente é marca dessa relação a
inspiração festiva, misturada e cabareteira presente em montagens como
A
Megera Domada
(2008),
Clube do Fracasso
(2010),
O Fantástico Circo-Teatro de
um Homem Só
(2011) ou
Desmedida Noite
(2018).
Por outro lado, para além do trabalho da Cia Rústica, a referência do cabaré
está disseminada em muitas experiências da cena contemporânea, como indicam
Streva (2020) e Braga (2021), entre outros pesquisadores e artistas que transitam
pela zona aberta, híbrida, plural e irreverente de cabarés no sul do mundo.
8
Financiadas pelo SESC São Paulo e pelo edital Petrobrás Distribuidora Cultural
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Figura 6 -
Cabaré do Amor Partido
, Porto Alegre, 2016. Foto: Adriana Marchiori
Acervo da autora
Figura 7 -
Sonho de Uma Noite de Verão
, Porto Alegre, 2008. Foto: Alex Ramirez
Acervo da autora
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Nossos cabarés do sul do mundo
Entre a pluralidade da arte contemporânea, o imaginário do cabaré pode
articular espaços, tempos e ferramentas poderosas em termos estéticos, éticos,
conceituais e epistemológicos, ao propor um modelo múltiplo que convoca e
celebra a diversidade, o coletivo, o afeto, a mistura, a liberdade; que evoca modos
de um pensamento não dissociado do corpo; que sugere políticas amorosas de
produzir em colaboração, práticas desviantes que buscam viabilizar o improvável.
A partir deste horizonte, assim como das experiências de cabaré na trajetória da
Cia Rústica, e em minha própria trajetória como encenadora
9
, entendemos que
tais práticas podem contribuir no desafio contemporâneo de afirmação de
poéticas das artes cênicas do sul do mundo, que considerem seu contexto e
potencialidades. Assim, a noção de
cabarés do sul do mundo
ancora-se tanto em
um conjunto de práticas desenvolvidas como na identificação, análise e
fortalecimento de procedimentos criativos que estruturam certos modos de fazer
e pensar artes cênicas, e que podem contribuir para novos voos.
Ainda que sua origem como linguagem artística remonte à Europa do século
XIX, o cabaré assumiu seus próprios movimentos em terras sul-americanas, como
tantas outras referências europeias canibalizadas e transformadas pela fantástica
máquina popular de apropriação e invenção que compõe nossa cultura, permeada
por gambiarras estéticas e políticas que escarvam seus próprios caminhos. Na
origem e em suas derivas, o cabaré propõe misturas e desvios, narrativas
fragmentadas e descentralizadas em um imaginário distante da “alta cultura”. A
docente e encenadora Cristina Streva destaca as nebulosidades que a palavra
sugere:
A palavra cabaré é cercada de mistérios e dubiedades. Por um lado, é
frequentemente empregada para se referir a uma série de apresentações
artísticas que vão desde espetáculos de circo-teatro, saraus, palcos
abertos à improvisação, reuniões de artistas e poetas e até mesmo festas
performáticas. Por outro lado, a palavra carrega paralelamente uma
dimensão pejorativa e é frequentemente usada como sinônimo de lugar
de baixa reputação, de baderna e prostituição (Streva, 2020, p.4).
9
Meu trabalho final na graduação em Teatro Habilitação Direção Teatral, em 1995, foi um espetáculo com
mais de 30 atores e atrizes, encenado por uma equipe de duas diretoras e um diretor, com dramaturgia
fragmentada e cena inspirada em cabarés dadaístas, chamado CabaOpto Atônito. O modelo cabaré
marcava minha poética na encenação.
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A imagem de “baixa reputação” e baderna pode interessar à uma perspectiva
fora do eixo, que marca grande parte do fazer cênico de pequenas produções, e,
de forma mais ampla, o conhecimento produzido no chamado “terceiro mundo”.
Ao invés de fragilizar, a aproximação com o que é considerado
menor
ou marginal
pode fortalecer nossas práticas, saberes e espaços de atuação, deslocando óticas
hegemônicas, subvertendo perspectivas e contribuindo na urgência de reconhecer
saberes marginados que nos livrem de certos colonialismos que também marcam
as artes. Entre tais colonialismos encontra-se a separação das coisas em opostos
binários, como corpo/mente, teoria/prática, produção/criação artística. Na
disrupção de tais perspectivas, a referência de mistura e festividade do cabaré
indica a fronteira como espaço de conhecimento, descoberta e criação, e reforça
a intenção de embaralhar binarismos. No mesmo horizonte político, estético e
conceitual, o professor Cleber Braga destaca e celebra a “ética decolonial do
cabaré sudaca”:
Nessa perspectiva, os estudos de cabaré, no contexto brasileiro e sudaca,
forjam novos possíveis na cena contemporânea, dada sua natureza
fronteiriça. Congregando estética e política, eles dizem respeito a um
conjunto de práticas transdisciplinares e movediças que transgridem o
padrão classificatório, disciplinar. [...] Deste modo, projeta-se do cabaré
sudaca, forjado nas ex-colônias, uma maquinaria contracolonial
disseminadora de diferenças, que em parte mantém-se fiel à tradição
popular e anti-burguesa do gênero, no que diz respeito a sua pré-história
europeia e, por outro lado, trai a própria colonialidade do poder no qual
foi forjado e imposto: pura tra(d)ição (Braga, 2021, p.7).
Entendemos que uma das “traições à tradição” propostas por modos de
cabarés do sul do mundo é a conexão direta entre criação e produção, na
contramão de estudos eurocentrados nos quais abordamos grandes obras e
nomes sem, contudo, considerar a trama econômica e produtiva do processo
criativo. No entanto, podemos atentar que “na vida e na arte, é necessário pensar
em quem paga a conta, como e por quê. As relações de produção que constituem
uma obra cênica são parte de seu discurso” (Fagundes e Rosa, 2020, p.19). No fazer
diário da cena no sul do mundo, nesse chão onde continuamente nos
confrontamos com condições precárias e criamos mundos, é urgente considerar
processos de produção como parte da própria criação, como exercício político e
social que abre possibilidades de invenção, como meio de controlar os próprios
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meios de produção e ocupar as frestas do neoliberalismo vigente. Por essa razão
habitamos circuitos de produção “menores”, fora do esquema dos grandes teatros
e festivais internacionais, os quais articulam modos de organização econômica
também desviantes em suas práticas cooperativas e colaborativas, que, muitas
vezes, se estruturam em coletivos criativos que indicam o desejo político de outras
realidades. Não há como imaginar outros futuros artísticos no sul do mundo sem
considerar essa cena viva e múltipla que também acontece em escolas, centro
comunitários, ruas, bares, boates e lugares periféricos, fora dos holofotes e
infiltrada no tecido social.
O espaço-tempo do cabaré, concreto e imaginado, é um espaço de fresta,
brecha, que se abre e se fecha, de impermanência, de ocupação dissidente, que
se adapta ao possível e articula impossíveis e, dessa forma, evoca um espaço-
tempo de suspensão de normas cotidianas, de encantamento do mundo.
Apontamos aqui as relações entre
Cidade Proibida
e a estrutura cabaré em
relação à dramaturgia considerando sua fragmentação, sua multiplicidade e suas
estruturas abertas ao improviso. Da mesma forma, outros aspectos que reúnem
questões de criação e produção podem ser destacados:
- Mistura entre artes: o cabaré não é um lugar de purezas, e sim de mistura
festiva e indisciplinaridades, que todas as expressões podem encontrar seu
espaço na polifonia, dialogando e celebrando diferenças. Circo, dança, teatro,
música, manifesto, poesia,
performance drag, strip-tease
, toda arte é celebrada no
cabaré;
- Período intensivo e compacto de ensaios (a criação de
Cidade Proibida
foi
desenvolvida em 14 ensaios, por exemplo; e os diversos Cabarés da Cia Rústica
em períodos ainda menores), viabilizando a reunião de uma equipe numerosa em
um projeto de baixo orçamento - sabemos que conciliar agendas na velocidade
da sociedade pós-industrial é um logro cada vez mais complicado; e cachês de
ensaio, em nosso contexto, não contemplam todos os custos de vida dos artistas,
o que exige que as pessoas desenvolvam simultaneamente outras atividades para
sobreviver, e é com esta realidade que temos que nos relacionar;
- Relação direta com o público, que é integrado ao acontecimento cênico,
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em “um espaço cênico difuso, onde artista e público estão em contato direto,
afetando-se mutuamente” (Braga, 2021, p.11) – afinal, a cena é uma festa;
- Celebração do corpo e do próximo, da própria teatralidade, do compartilhar
o mesmo espaço-tempo de mortalidade;
- Disrupção de binarismos como ética e estética, seriedade e humor, poesia
e festa, crítica social e brincadeira, arte e política;
- Ocupação de espaços possíveis, em produções adaptáveis, que não
dependem do palco italiano ou de estruturas complexas e/ou dispendiosas,
jogando com as condições do real.
Essas características não são regras, e sim movimentos de uma cena que
encontra e inventa caminhos para existir em seu contexto, e, deste modo, é
diversa, aberta, localizada e ágil em adaptações e transformações. Para a Cia
Rústica, que envolve uma rede plural de artistas, tais movimentos constituem
memória, repertório e desejos de futuro, articulados em ações que se desdobram
em várias frentes, como a montagem de dois cabarés, em projeto recentemente
contemplado em edital público de financiamento
10
, que se desenvolverá em 2023.
O projeto, que se intitula justamente Cabarés do Sul do Mundo, propõe a
criação de dois espetáculos, com dramaturgia autoral e trilha ao vivo com canções
originais, em processo criativo compartilhado entre múltiplos artistas, de
diferentes núcleos, gerações e linguagens (teatro, circo, música, dança), compondo
uma equipe de cerca de trinta pessoas.
Cabaré da Mulher Braba
coloca o clichê
da “mulher braba” em pauta, um estereótipo associado à raiva, elemento
indesejável na narrativa de suposta “docilidade feminina”. Em contraponto, é
preciso reconhecer que em uma sociedade patriarcal que multiplica violências
contra as mulheres muitos motivos para ter raiva, energia fundamental no
embate da vida.
Cabaré do Amor Rasgado
celebra o amor como força de vida, uma
ação que pode construir outros modos de convívio e partilha coletiva. Em tempos
de ódio (uma força destruidora distinta da raiva), o amor, assumido como
fundamento social e humano, como escuta e desejo de convívio, possibilita a
10
Edital SEDAC 16/2021 do Fundo de Apoio à Cultura do Estado do Rio Grande do Sul - FAC das Artes de
Espetáculo.
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construção de outros imaginários e realidades possíveis.
Além das montagens, o projeto inclui oficinas, rodas de conversa, ensaios
abertos, apresentações gratuitas em diferentes regiões da cidade, site e produção
de minidocumentário sobre o processo, em ações de formação e investigação que
correspondem à demanda de muitos editais públicos de financiamento.
Entretanto, para além da demanda do edital, o projeto tem como especificidade a
relação direta com pesquisa artística no âmbito da universidade, a partir de minha
atuação como encenadora e docente, artista-pesquisadora que busca ocupar
espaços fronteiriços entre academia e criação, prática e teoria, entendendo que a
teoria é prática, e toda prática é conceito. Há, portanto, nessa postura, a intenção
de afirmar a arte como modo próprio de pensamento e de conhecimento, que se
compõe em entrelaçamentos e fricções com o tecido social; de reconhecer o
pensamento impresso nas dinâmicas de criação cênica, os discursos das práticas,
as dimensões corpóreas dos conceitos.
A pesquisa, que também se intitula
Cabarés do Sul do Mundo
, é estruturada
na perspectiva cabaré de uma investigação teórico-prática misturada que subverte
divisões fabricadas e conta com a participação de discentes, docentes e artistas,
tomando a Cia Rústica como possível laboratório aberto de investigação e criação
(Como ocorreu em projetos anteriores). A proposta é reconhecer, analisar e
desenvolver práticas, conceitos e técnicas de criação, formação, produção, gestão
em artes cênicas relacionados à noção de Cabarés do Sul do Mundo, a qual se
insere no horizonte de festividade na criação cênica, que venho investigando desde
o Doutorado
11
, como uma possibilidade est(é)tica que instaura outros espaços-
tempos de encontro e sociabilidade, como um modo de dançar no caos e negociar
com a morte.
A festa é nossa imagem contra a rigidez e a aridez social, contra o
individualismo e o egoísmo diariamente fomentado em cada um de nós.
É a celebração do coletivo, do corpo, da alegria, do prazer, da rebeldia, do
excesso, abrindo espaços nos interstícios do poder, aproveitando as
frestas para fazer a festa que afirma existências excluídas das narrativas
hegemônicas. Um modo de suspensão das normas sociais, um tempo de
ruptura do cotidiano e imersão no coletivo, de experiência corpórea que
subverte a desesperança, a tristeza e o desânimo programado. (Fagundes
11
Doutorado realizado entre 2006 e 2010, na Universidade Carlos III de Madrid, que resultou na tese
La Etica
de la Festividad en la Creación Escénica
.
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e Martins, 2020, p.102)
Essa subversão festiva, saborosamente rebelde e cheia de vida que se
insinua em nossos fazeres da cena e em tantas práticas culturais do sul do mundo,
indica uma política de esperança que articula espaços-tempos dissidentes da
rigidez e da mecânica exaustiva da lógica neoliberal. Podemos imaginar que essa
cena festiva e cabareteira de pequenas produções do sul do mundo oferece
contribuições para a construção de futuros renovados, por meio da constituição
de experiências de sociabilidade que vislumbram outros modos de relação,
criação, organização e pensamento, em contraposição, desvio ou subversão da
lógica colonial que ainda estrutura a sociedade e os nossos corpos. Lógica essa
que pressupõe e sustenta o racismo, o classismo, o machismo, a LGBTQIAP+fobia,
o ódio, a exploração insustentável de recursos naturais e ameaça nossa própria
existência e perspectivas de futuro.
É possível que na mistura, na festividade, na subversão de hierarquias e
binarismos limitantes, nas dissidências dos modelos hegemônicos, em políticas
amorosas de produzir em colaboração, na coletividade, no corpo, nas frestas,
residam pistas e caminhos para as transformações sociais e culturais que urgem
em nossa época. É também possível que habitem nossas criações de baixo
orçamento, que subvertem a precariedade, nosso humor e nossa dança, nossa
balbúrdia poética, nossas gambiarras criativas, nossas narrativas carnavalizadas,
fragmentadas, corpóreas, que misturam humor e poesia, em nossas práticas de
encontro, em nossas pesquisas artísticas desejantes, em nossos pequenos
cabarés inventados e desviantes, em nossos caminhos tortos por cidades que
desejamos mais nossas, mais afetivas, menos proibidas e mais compartilhadas.
Na criação artística, arriscamos a aventura de inventar outros espaços-tempos e
imaginários, outras narrativas, atiçando ventos que impulsionem nossa nau de
esperanças compartilhadas em direção a outros mundos possíveis.
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Figura 8 -
Desmedida Noite,
Porto Alegre, 2018. Foto: Adriana Marchiori
Acervo da autora
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Patrícia Fagundes
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Recebido em: 29/08/2022
Aprovado em: 14/11/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br