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Cidade e experiência estética: ocupar as ruas,
para ocupar os currículos
Abimaelson Santos
Para citar este artigo:
SANTOS, Abimaelson. Cidade e experiência estética:
ocupar as ruas, para ocupar os currículos.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 3,
n. 45, dez. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573103452022e0113
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Cidade e experiência estética: ocupar as ruas, para ocupar os
currículos
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Abimaelson Santos
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Resumo
nas relações formativas contemporâneas a necessidade atitudinal e
epistêmica de se fazer da cidade um espaço para que a experiência estética
possa existir e, assim sendo, uma das maneiras para que tal premissa
educativa, que resvala diretamente na formação de novos espectadores,
possa se consolidar enquanto área de conhecimento e campo de experiência
seria a ocupação regular dos espaços públicos por ações estéticas diversas,
desse modo, as Universidades não estão fora deste contexto. Assim, de
maneira ensaística, o trabalho a seguir levanta algumas reflexões sobre as
potências formativas que a cidade pode oferecer na construção de artefatos
estéticos e, ainda, algumas possíveis relações entre currículo, cidade e cultura
na formação artística.
Palavras-chave
: Cidade. Experiência estética. Teatro. Formação de
professores.
City and aesthetic experience: occupy the streets, to occupy the
curricula
Abstract
In contemporary formative relationships there is an attitudinal and epistemic
need to make the city a space for the aesthetic experience to exist and,
therefore, one of the ways in which such an educational premise, which slips
directly into the formation of new spectators, can be consolidated as an area
of knowledge and field of experience, it would be the regular occupation of
public spaces by different aesthetic actions, thus, Universities are not outside
of this context. Thus, in an essayistic way, the following work raises some
reflections on the training potential that the city can offer in the construction
of aesthetic artifacts and, also, some possible relationships between
curriculum, city and culture in artistic training.
Keywords
: City. Aesthetic experience. Theater. Teacher training.
1
Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Brenda Stefanine Diniz Silva. Graduada
em Licenciatura em Letras Português e Espanhol pela Faculdade Santa Fé.
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Doutorado em Artes pela Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho (UNESP). Mestrado em Cultura
e Sociedade pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Graduação Licenciatura em Teatro pela UFMA.
Professor da Universidade Federal do Maranhão. abimaelsonteatro@hotmail.com
http://lattes.cnpq.br/3688097486981308 https://orcid.org/0000-0001-5178-4552
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Ciudad y experiencia estética: ocupar las calles, ocupar los
currículos
Resumen
En las relaciones formativas contemporáneas existe una necesidad
actitudinal y epistémica de hacer de la ciudad un espacio para que exista la
experiencia estética y, por tanto, una de las formas en que tal premisa
educativa, que se desliza directamente en la formación de nuevos
espectadores, puede consolidarse como área de conocimiento y campo de
experiencia sería la ocupación regular de los espacios públicos por diferentes
acciones estéticas, por lo que las Universidades no quedan fuera de este
contexto. Así, de manera ensayística, el siguiente trabajo plantea algunas
reflexiones sobre el potencial formativo que la ciudad puede ofrecer en la
construcción de artefactos estéticos y, también, algunas posibles relaciones
entre currículum, ciudad y cultura en la formación artística.
Palabras Clave
: Ciudad. Experiencia estética. Teatro. Formación docente.
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No caminho entre as estações da e da Barra Funda, no metrô de São
Paulo, vê-se uma microcidade subterrânea e passageira que se movimenta e se
modifica a cada estação, a cada entrada e saída; modifica-se a cada usuário que
abre uma embalagem de um enlatado qualquer e, com as mãos, enfia na boca
uma porção da sua refeição. Um outro, como que em uma corrida consigo mesmo,
ávido de tempo, faz da brecha entre as portas do vagão do trem uma passagem,
uma conectividade entre o ir mais rápido e a pausa na respiração de quem chegou
a tempo, mas a tempo de que?
De dentro da Estação da Sé, a caminho da Barra Funda, por volta das 18h, os
lirismos cotidianos se apresentam em curvas dramáticas, desenlaces, por meio de
heróis trágicos e de um coro de transeuntes, surgem protagonistas, antagonistas
e corifeus; com eles, as catarses do dia a dia como em um drama que se desenha
no presente, no entanto, com personagens épicos, o corpo em narrativa, corpos
em dramaturgia. Neste horário do fluxo, são em torno de 670 mil usuários, quase
que uma ópera de trabalhadores, uma massa de transeuntes cheia de histórias e
narrativas para compor aquilo que se chama cidade. Poderia ser uma dramaturgia
de Hauptman, como em
Os Tecelões
ou, quem sabe, uma cena de rua, como em
Duas Moedas
, de Brecht, mas é a cidade em sua contínua composição coreográfica
de tempos e espaços.
Quando se observa São Paulo, de dentro da estação de metrô, percebe-se
uma cidade de gente de tudo que é jeito. Na verdade, o contrário; uma cidade de
tudo que é jeito vestido de gente, pois talvez seja essa a questão: entender que
uma cidade é feita de tudo que é jeito que se veste de gente todos os dias, em
que os vários locais se interligam com os vários globais, onde os contrastes e as
camadas visuais de gênero e raça, por exemplo, que se apresentam a todo instante
em vestimentas, indumentárias e adereços corporais, tensionam as
normatividades que tentam ser impostas por uma publicidade homogeneizadora.
A estação, nesse sentido, não é passagem, mas ocupação, um espaço contínuo
dos modos de ser cidade e de interligações entre o global e o local.
algum tempo, mais precisamente a partir dos anos setenta, no Brasil, a
ideia de local, identidade fixa e nacionalismo cultural passaram a ter outras
significações no que tange às composições societárias das cidades. O local deixou
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de se resumir àquilo que é nosso a algo específico desta ou daquela cidade, ilha,
região ou vilarejo, não se restringe mais a um recorte singular da atividade cultural,
ainda que de fato seja uma manifestação cultural particular de determinado lugar.
Assim, as práticas culturais específicas de um lugar, bem como seus ofícios
manuais e seus modos de produção, por menor que seja a cidade, também são
partes significativas de uma perspectiva global de produção de cultura e as
características culturais de uma dada região ajudam a alimentar as composições
societárias e estéticas no mundo.
Se os corredores culturais, por exemplo, criados nas cidades em
desenvolvimento financeiro na segunda metade do século XX eram as vitrines que
apresentavam ao mundo uma produção de cultura que se expandiu em direção
às novas tecnologias, por meio de festivais, bienais, imersões culturais e
residências artísticas, nos dias atuais, de modo geral, não se faz necessário sair de
determinada região e ir até essas cidades e a esses corredores culturais para se
ter acesso às produções de cultura que impulsionam uma rede de saberes,
formatos e novidades experimentais. As coisas se encontram em movimento e
aquilo que é local, global se torna, logo, as cidades são como grandes estações de
trem, onde habitam jeitos de tudo enquanto é gentes, cada uma com suas
especificidades, mas em alguma medida conectadas por uma ideia coletiva de
produção cultural.
As cidades se tornaram uma espécie de rede de conexões cyber/presentes,
existindo um pouco de cidade em todo território corpóreo e corpo em toda
dimensão da urbe. Nesse sentido, tornou-se ela própria — a cidade — corpos em
constante movimento relacional de expansão, refração, interação e em
composição de marcas, afetos, memórias e construção de narrativas, como em
um passeio gastronômico pelos diversos sabores do Centro de São Paulo ou como
em uma imersão imagética pelas vielas do Centro de São Luís e seus casarões
históricos. As cidades, tão distintas, tão particulares e ao mesmo tempo em
constantes conexões, tornam-se, aos seus modos, campos de experiência
estética.
Assim, no que tange às operações artísticas na cidade, se por um lado a
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importante Bienal de Artes de São Paulo, que desde de 1951 aglutina no coração
cultural da América Latina a cada dois anos uma efervescência de produções
visuais, performativas e audiovisuais que ajudam a alimentar um corredor cultural
no Brasil, por outro lado do país, em Macapá, no Amapá, um grupo de artistas
transformam o Norte em outro eixo de criação com as produções artísticas
desenvolvidas durante a
Tecnobarca
, que por sua vez tem importância cultural
para aquela microrregião similar aos impactos da Bienal de Artes para a cidade de
São Paulo, tanto do ponto de vista da produção em si quanto da manutenção das
pesquisas de linguagens e suas reverberações educativas.
Desse modo, enquanto a Bienal de Artes é uma imensa galeria com inúmeros
pavilhões de produções estéticas que movimentam a cena cultural no coração da
América Latina, a Tecnobarca é um ateliê, uma galeria itinerante em formato de
residência artística que acontece durante duas semanas no Arquipélago do
Bailique um conjunto de oito ilhas situadas entre o Rio Amazonas e o Oceano
Atlântico, distante doze horas de barco da capital — onde artistas passam quinze
dias desenvolvendo diversos trabalhos de produção, apresentação e debates
culturais em arte contemporânea nas comunidades ribeirinhas.
O que essas iniciativas têm em comum? Elas buscam compreender a cidade
como plataforma de criação, produção e fruição artística. Para alguns, uma
dimensão macro da relação entre arte, cidade e experiência, como na Bienal de
Artes de São Paulo; para outros, como no Tecnobarca, no Amapá, uma relação
micro dessa potência que são as imersões artísticas na cidade. Entretanto, para
ambos, as conexões estéticas que as cidades oferecem, lugares tão distintos, mas
conectados por uma ideia, pelo desejo artístico de ocupar a cidade, de vê-la de
dentro, a necessidade de criar movimentos estéticos nos nichos das próprias
cidades.
Assim, perceber as cidades de dentro parece um modo de compreender
como elas acontecem artisticamente, observando como seus nichos de produção
reverberam, seguem e retornam ao cotidiano das pessoas, constroem novos fluxos
e contrafluxos estéticos, conexões e diversos modos de experiências artísticas
dentro daquilo que a cidade oferece, bagunçando os limites entre o dito local e o
dito global.
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O local costuma estar em outro lugar. A mais célebre música cubana, o
dozón
, agora se ouve e se dança mais no México do que em cuba. [...]
Num concerto do grande jazzista argentino Mono Villegas, em plena
efervescência do nacionalismo folclórico dos anos sessenta, alguém do
público levantou a mão e perguntou: “por que você não toca alguma coisa
nossa?”. O Mono perguntou: “e você, compôs o quê?”. “Eu nada”. “Eu
também não, então como quer que eu toque alguma coisa nossa?”
(Canclini, 2008, p. 60).
Desse modo, se durante muito tempo os Festivais da Canção Popular (1965)
e o
Rock in Rio
(1985) foram as grandes referências brasileiras de festival de música
e diversidade cultural no país, há de se convir que os festivais se espalharam por
todo o território nacional fazendo interlocuções entre o dito local e o dito global.
Em São Luís MA, por exemplo, o Festival de Música BR-135 transforma a ilha em
centro, o distante em abraço, o virtual em agito frente aos olhos, uma vez que “em
tempos da interdependência mundial, a pergunta não é como construir alfandegas
impenetráveis, mas sim, como utilizar os recursos tecnológico-culturais para
melhor atender às necessidades de diferentes grupos” (Canclini, 2008, p. 60).
No entanto, esse campo de experiência estética que se constrói por meio da
inserção de detritos visuais, composições corpóreas e diversas gravuras textuais e
sonoras não ocorre de forma harmônica, plana ou sem poros. Como pressupõe
Certeau (2014), as operações societárias na cidade, como as que advêm das
linguagens artísticas, por exemplo, são construídas quase sempre numa zona de
conflito, uma vez que antes de ser um lugar para a habitação das práticas do
sensível, as cidades são um projeto em prol de uma organização totalizante.
A cidade, à maneira de um nome próprio, oferece a capacidade de
conceber e construir o espaço a partir de um número finito de
propriedades estáveis, insoláveis e articuladas uma na outra. Neste lugar
organizado por operações “especulativas” e “classificatórias”, combinam-
se gestão e eliminação. De um lado, existem uma diferenciação e uma
redistribuição das partes em função da cidade, graças a inversões,
deslocamentos, acúmulos etc.; de outro lado, rejeita-se tudo aquilo que
não é tratável e constitui, portanto, os “detritos” de uma administração
funcionalista (anormalidade, desvio, doenças, morte etc.). Certamente, o
progresso permite reintroduzir uma proporção sempre maior de detritos
no circuito da gestão e transforma o próprio déficit (na saúde, na
seguridade social etc.) em meios de densificar as redes da ordem. Enfim,
a organização funcionalista, privilegiando o progresso (tempo), faz
esquecer a sua condição de possibilidade, o próprio espaço, que passa a
ser o não pensado de uma tecnologia científica e política [...]. A cidade se
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torna o tema dominante dos legendários políticos, mas não é mais um
campo de operações programadas e controladas (Certeau, 2014, p.160-
161).
A extensa, porém necessária, reflexão supracitada aponta com certa lucidez
para alguns conflitos que constituem as estruturas das cidades. Se, por um lado,
a ideia de gestão aparece como lugar institucional que determina as operações
sociais e as funções da cidade para o progresso, por outro viés emergem desvios,
detritos, modos de operações sociais que escapam da normatividade imposta e
se apresentam como brechas para a própria existência coletiva e que se afirmam
em combinações quase impossíveis de serem geridas à luz do progresso financeiro
e pela própria instituição cidade. Ações urbanas que subtraem a lógica da ordem
institucional e são operacionalizadas numa dada marginalidade da existência
ocorrem às margens da coisa pública.
Neste ponto, para refletir sobre tais conflitos que são da ordem da cidade,
acredita-se ser necessária a aproximação com a ideia de
lugar
e
espaço
proposta
por Certeau (2014), quando este considera lugar como o ambiente da ordem, como
o campo institucional; a esfera política e de poder que determina os modos de
operação dos sujeitos. Sendo assim, um lugar nunca será um lugar qualquer, mas
a compilação de elementos que norteiam os modos de ser, uma vez que os
projetos arquitetônicos das cidades modernas, por exemplo, são pensados,
geralmente, para manter um adestramento coletivo onde as praças são pensadas
para serem mais um território de passagem que um espaço de ocupação.
Já a ideia de espaço se concretiza e pode ser composta pelos modos que os
sujeitos operam suas relações societárias e constroem seus afetos e suas
experiências na cidade. O espaço seria algo que se encontra no corpo, na ação,
nos detritos imagéticos que constituem a cidade, nesse sentido, o espaço existe
quando o lugar se torna praticado; quando inserção de operações societárias
que orientam a própria ideia de espaço para uma funcionalidade polivalente,
experimental, múltipla, permitindo um jogar-se ao risco. Uma habitação outra que
talvez nem se saiba qual, mas que seria possível de ser inventada (Certeau, 2014).
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Figura 1 Final de tarde na comunidade Poço da Draga em Fortaleza (CE), 2014
Acervo do autor.
Assim, desde a entrada do metrô, que tem um jovem tocando samba em seu
violino, perpassando por semáforos onde a presença de malabares e acrobacias
circenses rompem a lógica da espera, poesias e imagens estampam a cidade com
temas transversais nas paredes de concreto, o
stencil
no canto da calçada que diz
“vai da certo”, os repentistas dentro do ônibus e o
freestyle
no trem; todos
inventando modos de existência em lugares que foram pensados para outras
finalidades.
O espaço do cotidiano vai se tornando um lugar praticado se se considerar,
por exemplo, que a dimensão espacial seria também uma dimensão da existência
e a existência uma dimensão espacial da vida em sociedade. Logo, tratar de
espaço, nessa perspectiva, aponta para a realização de práticas da existência,
tornando-o viável para a construção de memórias, identidades e afetos,
possibilitando que a ação artística aconteça enquanto evento político e que as
relações societárias possam ser estabelecidas numa construção em comum.
Existem espaços sempre que se tomam em conta vetores de direção,
qualidades de velocidade e a variável tempo. O espaço é um cruzamento
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de móveis. É de certo modo animado pelo conjunto dos movimentos que
se desdobram. Espaço é o efeito produzido pelas operações que os
orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em
unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades
contratuais (Certeau, 2014, p.184).
O cruzamento desses móveis, do qual Certeau se refere, aponta para uma
maneira de perceber o urbano enquanto um espaço dos pedestres, dos
transeuntes e dos ocupantes. Nesse sentido, os lugares são qualificados e se
tornam espaços diante das atividades que neles são realizadas, que vão desde a
ação de caminhar em trajetos distintos pela cidade até interferências materiais
em determinados lugares.
Dessa maneira, retorna-se à ideia de que um
lugar
nunca é um lugar qualquer,
mas um campo da ordem, da institucionalização, do domínio, do poder, das
normatividades, portanto, um ambiente de microconflitos em que cada coisa deve
ser posta em seu lugar. Assim, ao se inserir em um lugar e torná-lo um campo de
práticas do cotidiano, ou seja, ao torná-lo um lugar praticado, os usuários
reescrevem histórias, narrativas e experiências. O lugar, que até então se resumia
a uma espacialidade funcional, transforma-se num espaço de compartilhamento
de práticas estéticas.
É nesse sentido de cidade como fuga e de espaço como existência que
interessa pensar os desvios e os rastros estéticos como construção de
combinações imagéticas, textuais, sonoras e corporais em prol de operações
estéticas que consideram o espaço como uma condição de subversão da
normatividade das cidades, onde o fluxo artístico se apresenta como uma
possibilidade porosa, reflexiva e constituinte da ideia de cidade. A cidade, portanto,
sendo vista como um conjunto lírico de palavras estampadas em muros, que tece
o cotidiano de ruas, vielas, avenidas, becos e quebradas, possibilitando marcas e
oferecendo encontros e que, a partir de microações culturais, tenta atender as
necessidades de diferentes grupos sociais.
A cidade, essa ideia de unidade geográfica fragmentada em margens, centros,
zonas e afins, atravessa as identidades, corta o pensamento e num piscar de
olhos tira o andante do eixo, aguça uma memória, atiça um grito, promove
suspensões temporárias dos objetivos matinais, torna-se plataforma de criação,
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movências e impulso que retornam ao início e depois seguem, vira silêncio no
estampido da ação. Um aglomerado de sons, cheiros, imagens, pesadelos, risos,
angústias, alegrias, desastres e dores, uma locomotiva sem freios composta por
diversos discursos políticos; muito destes advindos da ação artística. Seria possível
uma cidade sem os traços estéticos das linguagens artísticas?
Ao adotar esses espaços da vida cotidiana, os artistas e suas obras
apresentam desejos utópicos de reaproximação entre o sujeito e o
mundo. A cidade é vista como um lugar de fluxo, de movimento, de
relações coletivas, e de sobreposições de questões históricas e políticas.
Nesse sentido, os “espaços públicos” podem designar não apenas as
estruturas físicas das cidades, como ruas, praças, parques e prédios
(embora muitas vezes a obra precise dessas estruturas para acontecer),
mas também espaços desmaterializados onde ocorrem debates e
acontecimentos públicos como, por exemplo, internet, os livros, o rádio,
a tv e a propaganda. Com a ampliação do conceito de espaço público,
gerados pelos avanços tecnológicos dos aparatos de comunicação, pode-
se dizer que o debate público torna-se muitas vezes desterritorializado.
As redes de comunicação, as redes sociais, a internet, podem então ser
compreendidas como um “espaço público expandido”, onde o debate se
dá de modo orgânico e descentralizado (Campbell, 2015, p.21).
A descentralização da ideia de bem público permite a criação de redes quase
impossíveis de serem administradas pela gestão daquilo que institucionalmente
se tem como público (praças, parques, ruas, etc.). Com isso, emerge uma
ampliação da ideia de experiência estética, de criação em coletivo e de tentativa,
mesmo que utópica, da aproximação entre mundo, vida e atividade artística.
Expandir a ideia daquilo que se considera público possibilita, diante das ações
artísticas situadas no urbano, que também se tornem públicas as reações dos
transeuntes, as conversas casuais, os discursos que são construídos nas
interrelações com aquilo que se vivencia, as pausas na caminhada para a
contemplação de uma determinada imagem. Enfim, o lugar quando habitado vai
se tornando público na medida que se torna ocupado e expandido pelas ações
das pessoas, pelas ações artísticas.
A habitação da cidade por traços estéticos ocorre, quase sempre, de maneira
dissipada, em constante conflito com os discursos políticos institucionais, na
contramão do mercado e da indústria e, ainda, convive com a desconfiança das
pessoas frequentemente ávidas de tempo e apressadas para seguir seus
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afazeres — que nem sempre estão disponíveis ou caminham conjuntamente com
os artefatos que lhes são oferecidos.
A criação artística que ocorre e se compõe nas estruturas da cidade, sendo
apresentadas em muros, ruas, praças, becos, janelas, entre outros espaços, vai se
costurando a partir de uma estética do risco e da desobediência, navega entre a
marginalidade comum e o status de ser artista. Um território sempre em estado
de atenção, uma vez que por trás de um artefato estético uma certa batalha,
quase que de sobrevivência, travada consigo e com o Estado para que a cidade
possa ser para as pessoas um lugar praticado, um espaço de experiências.
Experienciamos as diferentes cidades das cidades enquanto nos
deslocamos: a cidade a velocidade, a cidade vista a pé, a cidade vista da
janela do ônibus, a cidade espetáculo, a cidade favela, a cidade bairro.
Andar pela cidade, atitude subjetiva e singular, abre um canal incrível de
possibilidades de infinitas transgressões. Através do ato de caminhar
atualizamos e reinventamos o espaço urbano em nosso cotidiano. Como
um pequeno ato revolucionário que corrompe, na prática, uma certa
ordem instituída. Para muitas pessoas, a experiência nas cidades se
apenas a parti de seus automóveis. A paranoia da segurança incutiu em
nós um medo do desconhecido, o medo da rua, e nos afastou da esfera
pública. Andar pela cidade se tornou um ato radical, na medida em que
nos colocamos em contato com seu corpo físico e urbano: em
movimentos lentos, durante a caminhada, sem rapidez (aceleração) ou
orientação, e tão somente pela presença física. A cidade deixa de ser o
lugar de trânsito e passa a ser o lugar da experiência (Campbell, 2015,
p.27).
Por conseguinte, os artefatos estéticos que ocupam a cidade se configuram
num campo de poéticas de risco, porque geralmente rompem com as
configurações convencionais historicamente estruturadas e que são avalizadas
pelas instituições panópticas. São propostas de trabalho que, ao saírem do
conforto dos teatros ou das galerias, por exemplo, permitem construir discursos
a partir de arriscamentos reais, físicos e discursivos, que são divididos com os seus
públicos, com os andantes, com os errantes.
As ações estéticas não correspondem ao ideal de beleza ou de harmonia
visual do qual as pessoas se acostumaram a ver em teatros, galerias, cinema ou
na televisão. Vale ressaltar, ainda, que os lugares urbanos não foram feitos para
receber, de modo harmônico e satisfatório, as necessidades das atividades
artísticas que se apresentam e se movem pela cidade, sendo preciso fazer
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adaptações estéticas com frequência, mesmo diante de um estudo minucioso e
estar atento aos imprevistos que o ambiente urbano pode oferecer em prol de
uma experiência que habita o mundo para além da ordem institucional. Enfim, um
poroso campo de riscos.
Há, portanto, nisso tudo, uma ideia de texto urbano que vai se tecendo
coletivamente, como pressupõe Certeau (2014), em que os passantes, os
pedestres e os caminhantes estabelecem redes de relações independentes da
estrutura do Estado, inventando micro-habitações e microespaços de afetação,
uma vez que “a rua geometricamente definida por um urbanista é transformada
em espaço pelos pedestres. Do mesmo modo, a leitura é o espaço produzido pela
prática do lugar construído por um sistema de signos um escrito” (Certeau, 2014,
p.184).
Amiúde, para muito além dessa produção geométrica organizada por um
urbanista, a rua também é inventada pela vibrante necessidade de existir, habitar,
ocupar e transformar um lugar que não é seu em um território possível; assim
como a arte, enquanto um invento coletivo para se instaurar modos de existir no
mundo.
Figura 2 - Grafite localizado na comunidade Pau Fininho em de Fortaleza (CE), 2014
Fonte: Acervo do autor.
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Habitar a cidade e assumir os seus riscos estando fora das convenções
tradicionais sobre o belo ou o agradável demanda uma série de investigações
aprofundadas sobre as maneiras de estabelecer composições estéticas num
ambiente tão incerto e fugaz como a urbe. No teatro, por exemplo, a ocupação
pode acontecer tanto em espaços pequenos, como em um
lambe-lambe
, em que
as apresentações são realizadas para uma pessoa de cada vez, quanto em uma
praça por completo, criando labirintos, ambientes entreabertos, entradas e saídas
distintas, explorando plataformas em níveis diferentes de altura, podendo-se
utilizar do próprio espaço urbano como composição cenográfica para as ações
apresentadas numa busca por tornar o lugar um espaço praticado; enfim, diversos
modos de ocupação para diversos procedimentos estéticos.
Em uma de suas definições sobre cidade, Lefebvre (2001, p.62) aponta que
esta seria uma projeção da sociedade sobre um local. Cabe dizer que essa
projeção pode ser entendida como as diversas situações societárias planejadas,
executadas e mesmo realizadas ao acaso por um indivíduo, por agrupamentos
sociais ou por instituições que compõem aquilo que se entende por cidade. De
modo geral, a cidade acaba sendo um resumo daquilo que se projeta sobre os
espaços urbanos, uma projeção dos modos de ser e estar em tais espaços. Numa
escala menor, mínima e única, pode-se afirmar, diante de tal definição, num
campo individual, que a cidade seria a projeção daquilo que se é e daquilo que se
quer ser no mundo em conjunção e em conflito com as instituições presentes nos
cotidianos.
Para Lefebvre (2001), tais projeções das sociedades sobre determinado lugar
ocorrem pelo menos em duas ordem, definidas por ele como
ordem próxima
e
ordem distante
. Por ordem próxima, o autor considera que a sociedade se organiza
e se projeta por meio das relações individuais e grupais, de coletivos mais ou
menos amplos e organizados onde se pode instaurar diversos campos e territórios
sobre infinitas perspectivas societárias, sensíveis e abstratas de modo geral. Em
resumo, a ordem próxima seria aquilo que se encontra no domínio individual ou
coletivo de maneira minimamente organizada. Assim, é viável dar conta de
construir uma sociedade nos moldes desejados e sonhados, relacionando-se aos
nichos de relações, aos espaços habitados na cidade, às proposições profissionais
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possíveis nos espaços urbanos, entre outras ações.
Em contrapartida, a ordem distante se trata daquilo que, em geral, não é
possível ter pleno domínio de execução no campo individual e coletivo, muito
menos possível de execução pela classe trabalhadora, uma vez que este algo se
encontra sob a égide institucional e, quase sempre, é definido por regras e códigos
bem específicos, vinculado a uma política de estado, logo, a uma ideologia
institucional e também sob os diversos controles morais e jurídicos. Essa ordem
distante se projeta num determinado lugar como organização macro da cidade e
se encontra presente na própria ordem próxima, tencionando as relações
individuais e grupais e, em alguns casos, persuadindo estas relações.
Ela (cidade) se situa num meio termo, a meio do caminho entre aquilo
que se chama de ordem próxima (relações dos indivíduos em grupos
mais ou menos amplos, mais ou menos organizados e estruturados,
relações desses grupos entre eles) e a ordem distante, a ordem da
sociedade regida por grande e poderosas instituições (Igreja e Estado),
por um código jurídico formalizado ou não, por uma “cultura” e por
conjuntos significantes. A ordem distante, se institui neste nível
“superior”, isto é, neste nível dotado de poderes. Ela se impõe. Abstrata,
formal, supra-sensível e transcendente na aparência não é concebida
fora das ideologias (religiosas, políticas). Comporta princípios morais e
jurídicos (Lefebvre, 2001, p.52).
A cidade, por sua vez, para Lefebvre (2001), diante dessa mobilidade de forças,
apresenta-se como uma mediação dos diversos tipos de convivência. Assim, a
cidade seria a responsável por também gerar as mudanças necessárias nas
perspectivas de comportamento, seja no campo da ordem próxima seja no campo
da ordem distante, de alguma maneira, pois a cidade enquanto uma mediadora,
entre tantas outras mediações do urbano, seria um tipo de termômetro entre
essas polaridades que sempre estão em algum tipo de conflito existencial por
conceito e por função.
Entre todos os diretos constituintes da maioria das sociedades modernas e
democráticas, que vão desde o acesso a uma educação de qualidade perpassando
pelo direito aos sistemas públicos e gratuitos de saúde, Lefebvre (2001), no final
dos anos sessenta, reivindica o direito à cidade, o direito à reconstrução do urbano
por meio da organização social e coletiva, o direito de habitar a cidade e, junto
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desta, exercitar o prazer de construir e observar seus modos e suas práticas
culturais. Então, por que a cidade? Porque esta seria um direito de todos, um
direito da classe trabalhadora.
O velho humanismo clássico acabou sua carreira muito tempo, e
acabou mal. Está morto. Seu cadáver mumificado, embalsamado, pesa
bastante e não cheira bem. Ocupa muitos lugares públicos ou não,
transformados assim em cemitérios culturais com as aparências do
humano: museus, universidades, publicações diversas. Mais as novas
cidades e revistas de urbanismo. Trivialidades e insignificâncias são
cobertas por essa embalagem. É a “medida humana”, se diz. Quando na
verdade deveríamos nos encarregar da desmedida e, criar “alguma coisa
nova” à altura do universo. Este velho humanismo encontrou sua morte
nas guerras mundiais, durante o impulso demográfico que acompanha
sempre os grandes massacres, diante das brutais exigências do
crescimento e da competição econômica e diante do impulso de técnicas
mal dominadas. Não é nem mesmo mais uma ideologia, apenas um tema
para discurso oficiais (Lefebvre, 2001, p.107).
Ao alegar o fim do humanismo clássico, o filósofo reivindica a construção de
um humanismo urbano que, por sua vez, não se efetivará por meio de uma
prescrição acadêmica pragmática e muito menos a partir de um retorno aos
padrões de comportamento das cidades antigas, pois estes caminhos se
encontram dados a uma falência operativa. Assim, a única via possível seria o
desejo por uma habitação do urbano que se encontra no presente, nas urgências
e nas necessidades do agora e dos tempos de cada geração.
Por conseguinte, e ao contrário de um pragmatismo humanista clássico em
que se considera o ser humano no centro do universo e o universo derivante de
todas as equações construídas pelo ser humano, a função das instituições de
aprendizagem e dos seus especialistas na construção de um humanismo urbano,
no que tange o direto à cidade, seria a de construir pistas, noções, espaços e
territórios para modos de habitação no mundo interligado às suas urgências do
agora, pois apenas a vida social teria poderes para reconstruir essa urbanidade,
ainda mais se for considerar que — após duas guerras mundiais e depois de todo
um processo avassalador de industrialização do urbano e a mercantilização dos
espaços públicos o projeto humanista global precisaria ser radicalmente
repensado (Lefebvre, 2001).
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Essa reviravolta, tratada pelo autor como revolução urbana, por vias da razão
e da organização social, seria possível diante de um urbanismo que pudesse
ser habitado pelas pessoas, ou seja, um projeto no qual as cidades possam ser
projeções de si no mundo e tomar para si a cidade enquanto significante de
existência.
São Luís, no Maranhão, tem um Centro Histórico com extensão de duzentos
e vinte hectares e mais de três mil imóveis tombados pelo Patrimônio Histórico
estadual e federal, sendo considerado Patrimônio Mundial da Humanidade desde
1997. Seus casarões, ruas, becos e vielas históricos guardam memórias e narrativas
materiais e imateriais que remetem à chegada de holandeses, franceses,
portugueses e africanos no Brasil; de modo que, paralelo a essa vastidão de
artefatos históricos, a cidade vive todos os dilemas urbanos das cidades
contemporâneas onde questões como acessibilidade, mobilidade urbana,
engenharia de trânsito e funcionalidade precária do transporte público afetam os
modos de ser e estar cotidianamente na cidade. Uma cidade que se move entre
as marcas do passado e os dilemas do presente, uma das capitais mais antigas
do país e que tem apenas cinco teatros mantidos pelo setor público e mais uns
seis espaços de apresentação que são geridos pelo setor privado ou por grupos e
coletivos de teatro.
Em 2013, na falta de uma estrutura pública para realizar suas atividades, um
coletivo de artistas circenses começou a fazer seus treinamentos na Praça Nauro
Machado a principal praça do Centro Histórico da cidade que tem uma
concentração relativamente pulsante de bares, ambulantes noturnos,
apresentações artísticas e reúne diversas tribos culturais de quarta à sábado
naquele território, além de ser o espaço onde são realizados os principais festivais
culturais da cidade. As atividades deste grupo de artistas circenses se
concentraram nas segundas-feiras; um dia um tanto quanto inóspito para uma
cidade que cotidianamente tem um número reduzido de opções culturais, assim,
e tão logo, os artistas chamaram o projeto de
O Circo Tá na Rua
.
Nesse contexto, o que eram segundas-feiras mórbidas, esvaziadas e
culturalmente quase que inoperantes naquele lugar, aos poucos foi se
tornando um espaço ocupado e existencial no qual as práticas estéticas em si,
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num processo de partilha, tornou o lugar institucional em um espaço praticado,
de trocas de experiências, ensinamentos e aprendizagem. Assim, aos poucos, foi
surgindo uma microescola de circo a céu aberto, fazendo com que houvesse tanto
uma restruturação da operação do lugar, transformando-se em espaço habitado,
quanto uma partilha do comum, daquilo que é sensível e que promove uma
vivência política e cultural na cidade.
As ações do projeto O Circo Tá na Rua tomaram uma dimensão comunitária
tão potente em pleno Centro Histórico e numa segunda-feira que os encontros
para treinamentos de práticas circenses se tornaram também: aulas livres e
gratuitas, com manuseio de instrumentos e realização de diversos exercícios de
malabares, acrobacias e outras práticas do circo; espaço de troca sobre confecção
e manutenção de objetos circenses; um ambiente com discotecagem eletrônica;
sebo de livros, de roupas e de acessórios cotidianos; entre outras ações que foram
surgindo na praça. Ações que ficam por um tempo e depois partem para outros
rumos.
Os instrumentos de trabalho dos artistas circenses ficam na praça à
disposição de todas as pessoas, inclusive daquelas que nunca fizerem nenhuma
atividade artística: as pessoas olham de longe, algumas se aproximam
timidamente, outras chegam tentando manusear as claves de malabarismos,
chegam crianças, adolescentes, adultos e idosos. Aos poucos, esse aglomerado de
curiosos, artistas e aprendizes vão ocupando a praça, tornando aquele lugar um
espaço praticado; um espaço comum, de compartilhamento do sensível; uma
microrrevolução urbana pelas vias da organização social, como sugere Lefebvre
(2001).
A atividade artística, nesse sentido, como operadora do cotidiano, não foge à
competição estabelecida pela lógica de produção de cultura no mercado dos bens,
no sentido de que, mesmo enquanto desvio e contrafluxo, a ação estética se
apresenta como mais um produto na cidade e inevitavelmente compete, por
exemplo, com o comércio, com as placas de publicidade, com o ambulante, com
os bares, etc. Todavia, o que importa não é necessariamente o produto pelo qual
este está fadado ao efêmero, mas sim a possibilidade de a ação artística
proporcionar à cidade outros modos de operação do cotidiano por seus usuários.
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Desse modo, perceber a cidade de dentro não é tentar acabar com as
relações de poder estabelecidas pelo comércio, pelas empresas ou pelas
instituições estatais; ao contrário, trata-se de construir partilhas comunitárias do
sensível, do político e de práticas estéticas de dentro desta estrutura, como tem
feito, a exemplo, O Circo na Rua ao ocupar o lugar público em São Luís desde
2013.
Entretanto, na condição de partícipes da burocracia institucional e, de alguma
forma, como gestores que algumas vezes se é no ambiente acadêmico, como
pensar essa ação desmedida e utópica, reivindicada por Lefebvre (2001), diante
das tantas crises que a sociedade contemporânea oferece? Como identificar as
urgências que precisam ser trabalhadas na cidade, numa esfera menor, mesmo
estando dentro da máquina pública? Como ser, na universidade, como as ações
de O Circo Tá na Rua?
Talvez sejam estes os importantes e significativos desafios para os cursos de
graduação em Artes que precisam estar atentos aos constantes movimentos
culturais e políticos que ocorrem no mundo para, de algum modo, tentarem
atender as urgências e demandas que aparecem, cavando mesmo que aos poucos
e de maneira bastante reduzida essa utópica revolução urbana da qual se
reivindica mais de cinquenta anos. É possível? Acredita-se que tentar seria
uma forma de ser possível.
Após uma breve passagem pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Maranhão IFMA (2012) e pela Universidade Federal do Ceará (UFC)
(2013/2016), retoma-se a São Luís, em meados de 2016, para a junção ao quadro
de professores efetivos da Universidade Federal do Maranhão e, de imediato, a
designação para atuar como coordenador do Casarão Angelus Novus, uma espécie
de Anexo do Curso de Licenciatura em Teatro, localizado no Centro Histórico; um
espaço destinado a ensaios de modo geral, apresentações artísticas, realização de
disciplinas práticas, acolhedor de eventos culturais da cidade onde aconteciam
reuniões de grupos e coletivos culturais, entre outras atividades formativas no
campo da pesquisa, do ensino e da extensão.
Além de gerenciar todas as atividades do espaço, organizar sua logística de
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agendamentos e cuidar do seu zelo físico e patrimonial, havia o desafio qualitativo
de fazer com que o espaço mantivesse e ampliasse sua relação com a cidade,
com seu território em específico o Centro Histórico e, ainda, fazer a
manutenção das parcerias que usavam o espaço com os seus projetos culturais
estabelecidos na cidade que mantinham alguma relação com o espaço. Na
época, fora solicitada uma reorganização geral do espaço, das suas normas de uso,
de suas regras de funcionamento e das diversas escalas de atendimento ao
público.
Antes de prosseguir, cabe destacar que a conquista desse espaço, no centro
da cidade, o Casarão Angelus Novus, foi uma luta que durou décadas dentro das
esferas internas da Universidade e que teve o importante protagonismo do Prof.
Luiz Pazzini, o qual manteve em toda a sua carreira universitária e até após a sua
aposentadoria uma relação qualitativa de pesquisa com o espaço urbano, com
aquilo que a cidade pode oferecer enquanto potência de criação estética. Assim,
vale dizer ainda, como uma maneira de compartilhar os devidos créditos, que junto
ao Prof. Luiz Pazzini estavam também nessa conquista o Prof. Arão Paranaguá de
Santana e a Prof.ª Gisele Vasconcelos como organizadores desse projeto para uma
possível ocupação do Centro Histórico por ações do Curso de Licenciatura em
Teatro da UFMA.
Essas informações preliminares são importantes para ambientar o debate a
seguir e servem também para apresentar, mesmo que resumidamente, que se
trata de um espaço estético-pedagógico que nasce do desejo dos professores de
conseguirem se conectar ainda mais com a cidade e se fazerem presentes
enquanto Universidade com seus espetáculos, suas pesquisas, suas ações
formativas, etc.
Assim, ao assumir o posto de Coordenador do Casarão Angelus Novus, o
maior desafio, efetivamente, era traçar um planejamento que pudesse dar conta
da relação “cultura, cidade e formação de professores” de modo que isto não se
resumisse a ações ordinárias da Universidade e do Curso de Licenciatura em
Teatro e muito menos que ficasse ali estabelecida uma ordem distante, uma
projeção institucional sobre um lugar público. Ao contrário, era preciso fazer do
espaço um corpo/casa onde os estudantes, que são artistas e professores em
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formação, pudessem se sentir partícipes daquele espaço para além das
obrigações acadêmicas, bem como construir, aos seus modos, aquilo que Lefebvre
(2001) chamou de ordem próxima: uma cidade que tem várias cidades dentro de
si e essas outras diversas são construídas na relação dos seus habitantes com
seus espaços de convivência.
Então, como fazer daquele equipamento cultural algo que de alguma maneira
suscitasse um humanismo urbano? Até aqui, a cultura e as práticas societárias
que desta advêm têm sido o principal argumento utilizado para tentar responder
e tensionar, simultaneamente, a equação artística e professoral
cidade/escola/cidade, considerando a urgência de se olhar para a sala de aula,
para os currículos e para os programas de disciplinas e, então, tentar entendê-los
como partícipes das culturas que são criadas, produzidas e divulgadas nos
territórios próprios de atuação em diálogo com a História e com seus diversos
discursos. Além da compreensão de que a presença das linguagens artísticas nas
escolas acontece devido à necessidade e ao direito de que todos tenham acesso
às práticas culturais.
Neste caso, essa premissa investigativa da qual a pesquisa vem se
debruçando ao longo dos anos não poderia ficar de fora daquele processo de
gestão cultural, daquela experiência nova que estava no horizonte, ainda mais
diante da responsabilidade institucional de coordenar um espaço cultural da
Universidade. Destarte, segue-se tentando fazer do Casarão Angelus Novus mais
um espaço/cidade/corpo possível para os estudantes e para a sociedade de modo
geral.
Para tanto, seria necessário perceber a cultura como algo que não se
encontra externo ao que é produzido nas universidades e nas escolas, uma vez
que a função pedagógica e professoral no caso das artes se mostra enquanto
modo de apresentar, produzir, gerenciar e realizar atividades culturais nos espaços
educativos. Sendo assim, enquanto professor de Artes, não se está alheio à
produção de cultura no mundo e muito menos como função pedagógica
produzir educação para a cultura; pelo contrário, se existe uma função primária na
formação de professores de artes, esta seria a própria produção de cultura e, por
consequência, haverá uma educação que advém das práticas culturais com suas
diversas variantes de aprendizagem. Ao produzir cultura, constrói-se, produz-se,
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gerencia-se e se propaga uma educação pautada na experiência estética.
Nesse sentido, vale ressaltar que a ideia de uma educação oriunda das
práticas culturais, por sua vez, não deve ser vista como algo abstrato, macro,
universal e que se dilui no mundo como um terno genérico, pois quando se trata
de educação no campo das artes, no campo das culturas, especificamente se quer
referir a uma educação e a uma experiência estética. Diz respeito a como seria
possível pensar o mundo e construir discursos por meio de práticas estéticas e,
ainda, em como reconhecer e compreender as práticas estéticas postas no mundo
enquanto impulsionadoras das subjetividades no processo formativo humano.
É claro que, inevitavelmente, bem como de maneira necessária, todo este
campo de estudo, pesquisa, aprendizagem e invenção, que tem a cultura como
substrato para a formação humana, vai desembocar na construção de discursos
societários, filosóficos, linguísticos, antropológicos, etc., uma vez que a cultura,
suas práticas e seus signos são uma das vias para se pensar a sociedade de modo
geral. Logo, cultura e ciências humanas, tal qual cultura e educação,
retroalimentam-se como campos necessários uns aos outros, mas que são
independentes do ponto de vista operacional, da sistematização de conhecimento
e de seus modos de atuação na cidade.
Nesse sentido, aquilo que interliga enquanto área de conhecimento à
educação, num primeiro instante, seria justamente a própria ideia de cidade, haja
vista que toda e qualquer produção cultural, artística e estética se relaciona
diretamente com a urbe e com os discursos societários advindos dela. Destarte,
no final das contas, não produção de cultura numa sociedade democrática
tampouco direito que estejam fora do contexto societário que as cidades
oferecem; assim, toda e qualquer produção de cultura é, em alguma medida, uma
produção sobre os modos de ser e estar na cidade.
Pode-se afirmar, então, que a cultura de uma cidade seria aquilo que a cidade
e seus agentes culturais produzem de práticas estéticas, isto é, seria aquilo que
também professores, estudantes, pesquisadores e artistas realizam na cidade a
partir e junto desta, envolvendo uma enorme e complexa rede de produção, que
a cultura de uma cidade vai desde os festivais música e de ópera em teatros
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tradicionais às intervenções visuais contemporâneas nas ruas. A cultura de uma
cidade vai desde os blocos de carnaval às apresentações das culturas populares
nas praças das cidades; vai desde as mostras públicas de finalização de disciplina
nas universidades às apresentações, aos saraus e festivais de teatro, arte e cultura
que são realizados na escola secundária.
Nesse sentido, a cidade importa enquanto substrato de criação, plataforma
operacional de produção, lugar de habitação, currículo e tecnologia para a cultura,
porque é nesse espaço chamado cidade que são construídos os territórios
sensíveis. Importa ter a cidade como lugar de interseção porque se tem direito a
esta, da mesma maneira que se tem o direito para acessar as diversas
manifestações culturais.
Munido deste pensamento, das relações entre cidade e cultura, após
planejamento das ações que seriam desenvolvidas naquela gestão e fazendo uma
análise de conjuntura da questão estético-política da cidade, chega-se à conclusão
que em São Luís uma cidade histórica e com uma imensa diversidade de
produção cultural merecia existir um festival de teatro com um formato mais
contemporâneo e que pudesse dar vazão à produção de cultura realizada dentro
das atividades do Curso de Licenciatura em Teatro. Era preciso reivindicar uma
microrrevolução urbana que perpassasse pela cultura na formação de
professores.
Desse modo, em meio a uma reunião com a equipe de bolsistas do Casarão
Angelus Novus, foi proposta a realização de um festival de cenas curtas cujo
formato, ainda inexistente em São Luís, vinha ganhando fôlego em diversas
capitais brasileiras. Em diversos festivais de teatro, pelo Brasil, tinham a
categoria de cenas curtas em suas programações, enquanto isso não havia nada
parecido em São Luís, seja como organização de um festival específico seja como
uma mostra/categoria dentro de algum evento cultural da cidade.
Naquela configuração estético-política da cidade, deu-se a entender que era
necessário e urgente para os estudantes em processo de formação, que logo em
breve entrariam para a vida artística e docente profissional, que eles precisavam
ter um espaço de protagonismo cultural onde pudessem mostrar seus trabalhos,
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experimentos, pesquisas estéticas. A necessidade de ser também cidade,
construí-la e a ela integrar-se com as produções realizadas no âmbito universitário
e em diálogo com o circuito profissional.
Assim sendo, era muito importante que o festival não fosse um evento
restrito à comunidade acadêmico, mas sim um espaço de trocas estéticas e
culturais por meio de um formato novo, o qual pudesse agregar artistas de modo
geral; um espaço onde pudesse caber na grade de programação, na curadoria, na
ideia de ser artista, tanto profissionais estabelecidos no mercado de trabalho
como aqueles que estão começando suas trajetórias. Isso por se considerar que
este era um modo viável de estar na cidade e de fazer com que as pessoas de
maneira geral, espectadores e artistas, construíssem juntamente outros
repertórios estéticos, além de apreciar, fruir, analisar, perceber e sentir outros
formatos de criação teatral.
Vale destacar que como São Luís não tem uma tradição de atividades
organizadas em tal formato, exceto as finalizações de disciplinas na Universidade
e no Centro de Artes Cênicas do Maranhão CACEM (escola técnica), o que ocorre
é que, em geral, esses pequenos produtos de relevante importância na formação
dos professores e dos artistas vão desaparecendo ao longo do tempo, tornando-
se descartáveis a cada semestre, uma vez que não havia espaço nos festivais para
que essas ações pudessem acontecer.
Então, se os grandes teatros da cidade, as secretarias de cultura, os festivais
de teatro e os poucos eventos de teatro de grupo não produzem meios para que
estes estudantes retroalimentem suas investigações e ocupem também os
espaços da cidade, não seria de responsabilidade da Universidade pensar essas
possibilidades, considerando as potências dos seus professores/artistas em
formação junto à classe cultural de modo geral?
O direito a cidade é um direito coletivo, que se realiza no espaço urbano.
Para sair do papel, que é um direito inscrito em nossa Constituição
Federal, é preciso romper e superar a lógica de expansão do capital e da
propriedade privada individual como norma, que como vimos, passa por
cima de outras lógicas de ocupação do espaço urbano (Moreno, 2015,
p.70).
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Nesse sentido, pensando a habitação dos espaços púbicos e das
oportunidades profissionais como um direito coletivo, considera-se que as
experiências dos estudantes com trabalhos curtos não podiam ser meramente
temporárias. Ao contrário, ali, na relação com a cidade, poderia surgir uma potência
investigativa e ainda possibilitar a própria experiência de estar na cidade não penas
como espectadores ou artistas em formação nos diversos debates sobre arte e
cultura.
A ideia era que estivessem na cidade também na condição de artistas,
considerando que a formação também se encontra fora da universidade nas
interrelações que a cidade e suas redes de cultura podem oferecer. Então, diante
do exposto, retoma-se a pergunta: por que a cidade? Arrisca-se responder: porque
é na cidade, junto e a partir desta, que se constroem as práticas culturais.
Assim, nessa conjuntura e diante dessas premissas conceituais e políticas
que foram supracitadas, nasce em São Luís, no ano de 2016, o Godôvirá Festival
de Cenas Curtas, primeiro festival deste formato no Maranhão, com o objetivo de
promover um encontro horizontal entre profissionais e estudantes das artes
cênicas, dando vazão às suas produções e aos processos de criação na área. Além
de abrir espaço para a revelação de novas potências artísticas nos diversos
campos e linhas de pesquisa das artes cênicas com a realização de debates
qualitativos sobre o processo de criação e profissionalização cênicas,
proporcionando ao público o acesso a outras possibilidades de estrutura da
linguagem teatral
3
.
A ideia de realizar um festival de teatro, organizado, gerenciado e executado
pela Universidade por professores e estudantes, partia do pressuposto educativo,
formativo e político de que se devia reunir a fim de aprender juntos, vendo uns
aos outros e, ao se deparar com tantas possibilidades de reflexão sobre as práticas
estéticas ali apresentadas, voltar para si, para os trabalhos e para as práticas em
particular, remontar os discursos, os procedimentos, as técnicas, as abordagens
conceituais, entre outras infinitas questões. Uma dimensão curricular da prática
3
Em 2019, Jairiane Muniz da Silva apresentou seu Trabalho de Conclusão de Curso intitulado “Festival Godôvirá
de Cenas Curtas: um espaço de formação, difusão e intercâmbio para a cena teatral ludovicense”. Nessa
pesquisa, a estudante destrinchou os vários aspectos e impactos formativos do festival para/na cidade e no
processo de aprendizagem dos estudantes.
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artística de que frequentemente a sala de aula não consegue abarcar que é a ideia
de ocupação da cidade com produções estéticas fora do ambiente acadêmico.
Por uma questão de prudência, e na tentativa de realizar algo com qualidade,
mesmo que partindo sempre de nenhum recurso financeiro, foi decido que o
festival aconteceria de forma bienal, acreditando-se que, entre uma edição e outra,
os artistas, os estudantes da universidade e os estudantes e professores da
Educação Básica teriam tempo para amadurecer suas produções, aprofundar suas
pesquisas e executar um trabalho com qualidade técnica junto à cidade. Vale
destacar que nas duas primeiras edições do festival tiveram inscrições e
aprovações de cenas curtas oriundas de grupos de teatro de escolas da Educação
Básica
4
.
Portanto, era necessário e urgente que, ao sair do papel e ganhar a cidade, o
festival se tornasse um espaço coletivo para aprendizagens conjuntas onde
estudantes que faziam teatro na Educação Básica, por exemplo, pudessem dividir
o mesmo espaço, ter o mesmo respeito e a mesma atenção que os artistas
profissionais; assim, ao passo que produziam estética e cultura junto aos
processos formativos, também se criavam públicos e novos espectadores.
A reflexão teórica se obrigada a redefinir as formas, funções, estruturas
da cidade (econômicas, políticas, culturais e etc.), bem como as
necessidades sociais inerentes à sociedade urbana. Até aqui, apenas as
necessidade individuais, com sua motivações marcadas pela sociedade
dita de consumo (a sociedade burocrática de consumo dirigido) foram
investigadas, e aliás foram antes manipuladas do que efetivamente
conhecidas e reconhecidas. As necessidades sociais têm um fundamento
antropológico; opostas e complementares, compreendem a necessidade
de segurança e a de abertura, a necessidade de certeza e a necessidade
de aventura, a da organização do trabalho e a do jogo, as necessidades
de previsibilidade e do imprevisto, de unidade e de diferença, de
isolamento e de encontro, de trocas e de investimentos, de
independências (e mesmo de solidão) e de comunicação, de
imediaticidade e de perspectiva a longo prazo. O ser humano tem
também a necessidade de acumular energias e a necessidade de gastá-
las, e mesmo de desperdiçá-las no jogo. Tem necessidade de ver, de
ouvir, de tocar, de degustar, e a necessidade de reunir essas percepções
num “mundo”. A essas necessidades antropológicas, socialmente
elaboradas (isto é, ora separadas, ora reunidas, aqui comprimidas e ali
4
Na terceira edição, realizada em dezembro de 2020, em meio à pandemia do Novo Coronavírus, não houve
inscrições de propostas das escolas de educação básica. Considerou-se que provavelmente essa falta de
propostas ocorreu devido à suspensão das aulas presencias nas escolas públicas e particulares do estado
do Maranhão naquele momento.
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hipertrofiadas) acrescentam-se necessidades específicas, que não
satisfazem os equipamentos comerciais e culturais que são mais ou
menos parcimoniosamente levados em consideração pelos urbanistas.
Trata-se da necessidade de uma atividade criadora, de obra (e não
apenas de produtos e de bens materiais consumíveis), necessidades de
informação, de simbolismo, de imaginário, de atividades lúdicas. Através
dessas necessidades específicas vive e sobrevive um desejo
fundamental, do qual o jogo, a sexualidade, os atos corporais tais como
esporte, a atividade criadora, a arte e o conhecimento são manifestações
particulares e momentos, que superam mais ou menos a divisão parcelar
dos trabalhos. Enfim, a necessidade da cidade da vida urbana se
exprime livremente nas perspectivas que tentam aqui se isolar e abrir os
horizontes (Lefebvre, 2001, p.105).
Ainda que extenso, considera-se o texto supracitado oportuno por dar luz à
perspectiva societária dos modos de ser e estar na cidade e por entender que as
reflexões teóricas para uma restruturação da vida urbana precisam acompanhar
as próprias necessidades societárias que, em alguma medida, avançam sobre a
cidade, uma vez que assim, repensando as práticas e as reflexões que advêm
da cidade, seria possível vislumbrar a utopia da
revolução urbana
. Doravante, este
debate ainda se faz urgente, de modo que é fundamental compreender as
necessidades societárias para que se possa pensar nas urgências estéticas e
políticas possíveis em consonância com a cidade no campo das artes.
Por conseguinte, tal debate se torna ainda mais complexo e importante no
tocante ao recorte da formação de professores e do entendimento da cultura
como um dos caminhos para que essa mediação política e urbana que a cidade
por si só se propõe a fazer possa acontecer ainda que em uma microesfera.
Desse modo, entre tantas necessidades, uma delas seria a urgência de
professores que consigam se perceber enquanto artistas, produtores culturais,
espectadores assíduos e debatedores da arte e da educação estética, que tenham
a compreensão diante de suas práxis que a cidade não é algo abstrato, distante e
inalcançável; ao contrário, apresenta-se e se move como algo concreto que
também depende da atuação desses profissionais para acontecer enquanto
cidade, enquanto uma projeção dos discursos estéticos.
É preciso, portanto, no processo de formação de professores, que a noção
sobre cidade na relação com a cultura ou com a prática teatral propriamente dita
não se resuma ou, pelo menos, não se entenda que se resume à atividade da
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performance, da intervenção urbana, do teatro performativo, do teatro de rua ou
de quaisquer outras atividades que se faça na rua, uma vez que a cidade não é só
feita da rua ou daquilo que esteticamente se produz na rua, indo muito além.
Trata-se aqui de um exercício estético e existencial, logo, filosófico, sociológico e
antropológico para uma atuação cultural na cidade e, ainda, sobre como os
espaços públicos, as universidades, as escolas de educação básica podem
promover modos de ser cidade que acontecem junto, no entanto, para além das
salas de aula e dos ementários curriculares.
Nesse sentido, acredita-se que o Godôvirá Festival de Cenas Curtas, num
recorte local, tem contribuído com essa perspectiva utópica de revolução urbana
que se encontra na esfera do direito à cidade, do direito, do desejo e da realização
de práticas culturais urbanas coletivas e que induz a criação de novos nichos,
novos espaços de aprendizagem, prazer e de contemplação, novos modos de
utilização do tempo por parte de artistas e espectadores para habitar uma
programação cultural que se apresenta como uma possibilidade alternativa para
a troca de experiências estéticas e que, ao mesmo tempo, contribui para a
formação de professores por meio das práticas culturais.
Seja do ponto de vista acadêmico ou do ponto de vista que envolve
políticas de cultura, possuímos um grande déficit, possuímos aqui diversos
estudantes de teatro e diversos artistas que não possuem muitas
oportunidades. Festivais como o Godôvirá, que são uma forma de
incentivo, deveriam ocorrer com mais frequência. Muitos dizem que aqui
não tem público, mas é devido ao fato de que não existem políticas que
fomentem as produções.
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Cabe destacar, diante da eminente preocupação acima e considerando as
abordagens formativas até aqui apresentadas, que a busca por um possível direito
à cidade, no caso do festival e em relação aos estudantes, não se restringe à
participação apenas na condição de artistas que compõem a grade de
programação.
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Entrevista dada ao Jornal Pequeno por Gilberto Martins, que além de ser professor de teatro do IFMA,
também é ator do Núcleo de Pesquisa Teatrais Rascunho e participou do festival na edição de 2020, com a
cena curta
Memórias de Tempo de Espera
, uma adaptação da obra
Tempo de Espera
, do dramaturgo
maranhense Aldo Leite. Ver matéria completa sobre o festival em: https://jpturismo.com.br/festival-de-
teatro-oferece-opcoes-para-artistas-maranhenses/.
Cidade e experiência estética: ocupar as ruas, para ocupar os currículos
Abimaelson Santos
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-30, dez. 2022
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Por serem profissionais em processo de formação, entende-se que é
necessário que se tornem presentes também no processo de elaboração e
execução do festival e que possam, dessa forma, coordenar ações reais
encontradas na linha de frente do festival, tais como: equipe de produção, equipe
técnica e de palco, equipe de comunicação interna, equipe de produção gráfica,
equipe de receptivo, entre outras possibilidades que vão aparecendo a cada
edição.
À guisa de concluir, insiste-se nesta perspectiva formativa de que a cidade —
no campo das práticas estéticas e, sobretudo, no campo da formação de
professores de teatro não deveria ser vista unicamente como plataforma para
a criação e a execução de atividades culturais nos espaços urbanos. Antes, é
necessário que os agentes desse processo cultural se sintam partícipes da cidade
com suas potencialidades diversas, que possam se entender enquanto cidade ao
passo que os processos formativos vão acontecendo. A universidade, quem sabe,
deveria servir para isso, a fim de que os estudantes se sintam integrantes e
protagonistas deste processo e, consequentemente, daquilo que se pode projetar
para a construção de um humanismo urbano no contexto da produção artística,
no contexto da própria vida (Oliveira; Pereira, 2020).
É imprescindível reforçar a ideia de que é na cidade que as práticas culturais
acontecem, desenvolvem-se e se transmutam em outras práticas e experiências
estéticas. Em alguma medida, também é função das instituições de ensino,
sobretudo das universidades e, neste caso em específico, dos cursos de teatro e
de suas grades curriculares, ficarem atentos a mudanças, avanços, retomadas,
desvios e novas epistemes que as cidades oferecem, podendo contribuir com a
história da cultura e com uma pedagogia assentada nas práticas culturais.
Nesse contexto, contribuir com uma história que vai se escrevendo e se
performando no hoje, no agora, no presente, neste instante e diante das
tecnologias que estão à vista para o uso imediato em prol de um direito comum,
que é o direito de ser e estar na cidade usufruindo das suas possibilidades
estéticas, uma vez que ninguém vai mover a cultura se não for os seus
trabalhadores.
Cidade e experiência estética: ocupar as ruas, para ocupar os currículos
Abimaelson Santos
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-30, dez. 2022
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Referências
CAMPBELL, Brígida.
Arte para uma cidade sensível
. São Paulo: Invisíveis Produções,
2015.
CANCLINI, Nestor Garcia.
Leitores, Espectadores e Internautas
. São Paulo:
Iluminuras, 2008.
CERTEAU, Michel de.
A invenção do cotidiano: Artes do fazer
. 22ª ed. Petrópolis:
Vozes, 2014.
LEFEBVRE, Henri.
O Direito à Cidade
. São Paulo: Centauro, 2001.
MORENO, Renata. Entre o capital e a vida: pistas para uma reflexão feminista sobre
as cidades. In: MORENO, Renata (Org.).
Reflexões e práticas de transformações
feministas
. São Paulo: SOF, 2015.
OLIVEIRA, Fernanda Areias; PEREIRA, João Victor. A reescritura de espaços
históricos no processo teatral de Negro Cosme em Movimento, do Grupo Cena
Aberta.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n.
38, ago./set. 2020.
Recebido em: 29/08/2022
Aprovado em: 15/10/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br